Evangelho segundo S. Mateus 23,1-12. Então, Jesus falou assim à multidão e aos seus discípulos: «Os doutores da Lei e os fariseus instalaram-se na cátedra de Moisés. Fazei, pois, e observai tudo o que eles disserem, mas não imiteis as suas obras, pois eles dizem e não fazem. Atam fardos pesados e insuportáveis e colocam-nos aos ombros dos outros, mas eles não põem nem um dedo para os deslocar. Tudo o que fazem é com o fim de se tornarem notados pelos homens. Por isso, alargam as filactérias e alongam as orlas dos seus mantos. Gostam de ocupar o primeiro lugar nos banquetes e os primeiros assentos nas sinagogas. Gostam das saudações nas praças públicas e de serem chamados 'mestres’ pelos homens. Quanto a vós, não vos deixeis tratar por 'mestres’, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos. E, na terra, a ninguém chameis 'Pai’, porque um só é o vosso 'Pai’: aquele que está no Céu. Nem permitais que vos tratem por 'doutores’, porque um só é o vosso 'Doutor’: Cristo. O maior de entre vós será o vosso servo. Quem se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado. Máximas dos Padres do deserto (sécs. IV e V) Macário 11 (a partir da trad. Solesmes 1966, p.217) «Quem se humilha será exaltado» Um dia, regressava Padre Macário do pântano para a cela levando umas folhas de palmeira. No caminho o diabo veio ao seu encontro, com uma gadanha: quis feri-lo com ela, mas não conseguiu. Disse-lhe então: «Macário, por tua causa passo por muitos tormentos, pois não posso vencer-te. No entanto, faço tudo o que tu fazes: tu jejuas, e eu nunca como; fazes vigília, e eu nada durmo. Só me suplantas num aspecto». «Em qual?», perguntou Macário. «Na humildade, é ela que não me deixa vencer-te». S. Pascácio Radberto (? - c. 849), monge beneditino Comentário sobre o evangelho de Mateus, 10, 23 "Tendes um só mestre, Cristo" Se alguém desejar um alto cargo na Igreja (cf. 1Tm 3,1), deseje a obra que ele permite realizar e não a honra que lhe está ligada: deseje ajudar e servir todos os homens, mais do que ser ajudado e servido por todos. Porque o desejo de ser servido provém do orgulho, como o dos fariseus, e o desejo de servir nasce da sabedoria e do ensinamento de Cristo. Aqueles que procuram as honras por elas mesmas são os que se elevam, e aqueles que alegram por levar a sua ajuda e servir são os que se abaixam para que o Senhor os eleve. Cristo não falou aqui daquele que o Senhor eleva mas disse: "Aquele que se eleva a si mesmo será humilhado", naturalmente pelo Senhor. Também não falou daquele que o Senhor humilha, mas disse: "Aquele que se humilha voluntariamente será exaltado", em consequência, pelo Senhor... É por isso que Cristo, logo após ter reservado para si, de modo particular, o título de "mestre", imediatamente invoca a regra de sabedoria em virtude da qual "aquele que quiser ser grande deve ser o servo de todos" (Mc 10,43)... Esta regra, tinha-a ele exprimido noutros termos: "Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração" (Mt 11,29). Deste modo, todo aquele que quiser ser seu discípulo não deve tardar em aprender esta sabedoria de Cristo porque "todo o discípulo perfeito será como o seu mestre" (Lc 6,40). Pelo contrário, aquele que tiver recusado aprender a sabedoria ensinada pelo Mestre, longe de se tornar mestre, não será sequer um discípulo. Existe uma verdade absoluta, recorda o pregador do Papa Padre Raniero Cantalamessa comenta o Evangelho do próximo domingo ROMA, sexta-feira, 28 de outubro de 2005 (ZENIT.org).- Publicamos o comentário do padre Raniero Cantalamessa OFM Cap. --pregador da Casa Pontifícia-- ao Evangelho do próximo domingo (Mt 23, 1-12). *** XXXI do tempo comum (ano A) Mateus (23, 1-12) - cf,par. Mc 12,38-40; Lc 20,45-47; cf. Lc 11,37-54; 13,34-35 Naquele tempo, Jesus dirigiu-se às pessoas e a seus discípulos e lhes disse: «Na cátedra de Moisés se sentaram os escribas e os fariseus. Fazei, pois, e observai tudo o que vos digam; mas não imiteis sua conduta, porque dizem e não fazem. [...] Vós, ao contrário, não vos deixeis chamar “Rabi”, porque um só é vosso Mestre; e vós sois todos irmãos. Nem chameis na terra ninguém de “Pai”, porque um só é vosso Pai: o do céu. Nem tampouco vos deixeis chamar: “Diretores”, porque um só é vosso Diretor: o Cristo. O maior entre vós será vosso servidor». Um só é o Mestre No Evangelho, os títulos de Cristo são como lados de um prisma, cada um dos quais reflete uma «cor» particular, isto é, um aspecto de sua realidade íntima. Este domingo, encontramonos com o importante título de Mestre «Um só é vosso Mestre, o Cristo». Entre os artistas e certas categorias de profissionais, o nome do mestre em cuja escola se tenha formado é uma das coisas das quais se está mais orgulhoso e se põe na reunião das próprias referências. Mas a relação mestre-discípulo era ainda mais importante nos tempos de Jesus, quando não havia livros e toda a sabedoria se transmitia por via oral. Em um ponto Jesus se distancia contudo do que ocorria em seu tempo entre o mestre e os discípulos. Estes pagavam, por assim dizer, os estudos servindo ao mestre, fazendo por ele pequenos encargos e prestando-lhe os serviços que um jovem pode fazer a um ancião, entre os que estava lavar-lhe os pés. Com Jesus sucede ao contrário: é ele quem serve aos discípulos e lhes lava os pés. Jesus não é verdadeiramente da categoria dos mestres que «dizem e não fazem». Ele não disse a seus discípulos que fizessem nada que não tivesse feito ele mesmo. É o contrário aos mestres admoestados na passagem do Evangelho do dia, que «atam cargas pesadas e as deixam às costas das pessoas, mas eles nem com o dedo querem movê-las». Não é um desses sinais viários que indicam a direção na qual andar, sem mover-se um centímetro. Por isso Jesus pode dizer com toda verdade: «Aprendei de mim». Mas o que quer dizer que Jesus é o único mestre? Não quer que este título não deva ser utilizado de agora em diante por nenhum outro, que ninguém tem direito de fazer-se chamar mestre. Quer dizer que nenhum tem direito de fazer-se chamar Mestre com M maiúsculo, como se fosse o proprietário último da verdade e ensinasse em nome próprio a verdade sobre Deus. Jesus é a suprema e definitiva revelação de Deus aos homens que contém em si todas as revelações parciais que se tiveram antes ou depois dele. Não se limitou a revelar-nos quem é Deus, também nos disse o que quer Deus, qual é sua vontade em nós. Isto há que recordar ao homem de hoje tentado de relativismo ético. João Paulo II o fez com a encíclica O esplendor da verdade [«Veritatis splendor», 6 de agosto de 1993. Ndr] e seu sucessor, Bento XVI, não se cansa de insistir nisso. Não se trata de excluir um sadio pluralismo de perspectivas sobre as questões ainda abertas ou sobre os problemas novos que se apresentam à humanidade, mas de combater essa forma de relativismo absoluto que nega a possibilidade de verdades certas e definitivas. Contra este relativismo o magistério da Igreja reafirma que existe uma verdade absoluta porque existe Deus que é o mediador da verdade. Esta verdade essencial, certamente a identificar sempre com maior esmero, está impressa na consciência. Mas já que a consciência se obscureceu pelo pecado, pelos costumes e os exemplos contrários, eis aqui o papel de Cristo, que veio revelar de forma clara esta verdade de Deus; eis aqui o papel da Igreja e de seu magistério, que explica tal verdade de Cristo e a aplica às cambiantes situações da vida. Um fruto pessoal da reflexão de hoje sobre o Evangelho será redescobrir que honra, que privilégio inaudito, que «título de recomendação» é, ante Deus, ser discípulos de Jesus de Nazaré. Ponhamos também nós isso no cume de todas nossas «referências». Que vendo-nos ou ouvindo-nos qualquer um possa dizer de nós o que a mulher disse a Pedro no átrio do Sinédrio: «Também tu és um de seus discípulos. Tua própria fala [melhor se puder acrescentar: tua atuação] te denuncia» [Cf. Mt 26, 73. Ndr]. [Original italiano publicado por «Famiglia Cristiana». Traduzido por Zenit] ZP05102801 S. Pascácio Radbert (?-cerca 849), monge beneditino Comentário ao evangelho de Mateus “Se eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros” (Jo, 13,14) “Quem se humilha será exaltado”. Não somente Cristo disse aos seus discípulos que não se deixassem chamar de mestres e não amassem os primeiros lugares nas refeições nem nenhuma outra honra, mas ele próprio deu, na sua pessoa, o exemplo e o modelo da humildade. Por isso lhe foi dado o nome de mestre, não por complacência mas por direito de natureza, porque “Ele existe antes de todas as coisas e todas têm nele a sua subsistência” (Col 1,17), por assumir a condição carnal ele comunicou-nos um ensinamento que nos conduz a toda a verdadeira vida e, porque ele é maior do que nós “reconciliou-nos com Deus” (Rom 5,10). Como se nos dissesse: Não amai as honras, não desejai que vos chamem mestres, tal como “não sou eu que procuro a minha glória, há Quem a procure” (Jo 8,50). Mantende os vossos olhos fixos em mim, “porque o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida pela multidão” (Mt 20,28). Certamente, nesta passagem do evangelho, o Senhor instrui não a penas os seus discípulos, mas também os chefes das Igrejas, prescrevendo a todos que não se deixem arrastar pela avidez de procurar as honras. Pelo contrário, “ o que quer vir a ser grande” seja o primeiro a fazer-se como ele “o servidor de todos” (Mt 20,26-27). Santo Isaac, o Sírio (séc. VII), monge em Nínive, perto de Mossul, no actual Iraque Discurso 58 "Quem se humilha será exaltado" Há uma humildade que vem do medo de Deus e há uma humildade que vem do próprio Deus. Há aquele que é humilde porque tem medo de Deus e o que é humilde porque conhece a alegria. Um deles, o que se humilhou porque teme a Deus, recebe a doçura no seu corpo, o equilíbrio dos sentidos e um coração permanentemente controlado. O outro, o que é humilde porque conhece a alegria, recebe uma grande simplicidade e um coração dilatado que já nada pode prender. Imitação de Jesus Cristo §2 "O maior entre vós será vosso servo" Se souberes calar-te e manter-te paciente, receberás sem qualquer dúvida o auxílio do Senhor. É Ele que conhece o momento e a maneira de te libertar; é por isso que te deves abandonar a Ele. É de Deus que vem o socorro, a libertação de toda a humilhação. Muitas vezes, é muito vantajoso, para nos guardar numa maior humildade, que os outros conheçam e critiquem as nossas faltas. Quando um homem se humilha das suas faltas, é-lhe fácil apaziguar os outros e conquista facilmente aqueles que se irritam contra ele. Ao humilde, Deus defende e liberta; ao humilde, Deus acarinha e consola; é para o humilde que Deus se inclina. Ao que é humilde, Deus concede uma graça abundante e, após a sua humilhação, fá-lo subir à glória. Ao que é humilde, Deus revela os seus segredos, atrai-o e convida-o docemente a vir até Ele. Santo Hilário (cerca de 315 - 367), bispo de Poitiers e doutor da Igreja Comentários sobre S. Mateus "Eles dizem e não fazem" O Senhor adverte-nos de que as palavras belas e os comportamentos suaves devem ser julgados pelos frutos que produzem. Devemos então apreciar alguém, não tal como ele se propõe pelas suas palavras mas pelo que é realmente, pelos seus actos. Muitas vezes, sob uma aparência de ovelha dissimula-se uma raiva de lobo. Da mesma forma, diz-nos Jesus, não é nas belas palavras que consiste a realidade das boas obras, mas todos devem ser julgados pelos seus frutos. Não, um serviço que se limite a belas palavras não basta para se obter o Reino dos céus. Com que se articularia uma santidade limitada a belas palavras, uma vez que o caminho do Reino dos céus se encontra na obediência à vontade de Deus? Temos pois que nos empenhar, se queremos atingir a felicidade eterna. É preciso darmos alguma coisa de nós mesmos: querer o bem, evitar o mal e obedecer de todo o coração aos preceitos divinos. Uma tal atitude valer-nos-á ser reconhecidos por Deus como filhos. Por isso, adequemos os nossos actos à sua vontade, em vez de nos glorificarmos apenas pelo seu poder. Porque Ele afastará e rejeitará os que se tiverem apartado d'Ele pela iniquidade dos seus actos. Evangelho segundo S. Mateus 23,13-22. Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, porque fechais aos homens o Reino do Céu! Nem entrais vós nem deixais entrar os que o querem fazer. Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, que devorais as casas das viúvas, com o pretexto de prolongadas orações! Por isso, sereis mais rigorosamente julgados. Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito e, depois de o terdes seguro, fazeis dele um filho do inferno, duas vezes pior do que vós! Ai de vós, guias cegos, que dizeis: 'Se alguém jura pelo santuário, isso não tem importância; mas, se jura pelo ouro do santuário, fica sujeito ao juramento.’ Insensatos e cegos! Que é o que vale mais? O ouro ou o santuário, que tornou o ouro sagrado? Dizeis ainda: 'Se alguém jura pelo altar, isso não tem importância; mas, se jura pela oferta que está sobre o altar, fica sujeito ao juramento.’ Cegos! Qual é o que vale mais? A oferta ou o altar, que torna sagrada a oferta? Portanto, jurar pelo altar é o mesmo que jurar por ele e por tudo o que está sobre ele; jurar pelo santuário é jurar por ele e por aquele que nele habita; jurar pelo Céu é jurar pelo trono de Deus e por aquele que nele está sentado. Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona (norte de África) e doutor da Igreja Confissões, VII, 10 Cristo chama-nos a ver a luz que brilha sobre nós Aconselhado pelas minhas leituras a debruçar-me sobre mim mesmo, entrei no fundo do meu coração, conduzido por ti. Pude fazê-lo porque te fizeste o meu suporte. Entrei em mim e vi, não sei com que olhos, mais alta do que o meu pensamento, uma luz imutável. Não era a luz habitual que os olhos do corpo apreendem, nem sequer uma luz do mesmo tipo mas mais poderosa, mais brilhante, que enchesse tudo com a sua imensidade. Não, não era isso, mas uma luz diferente, muito diferente de tudo isso. Também não estava acima do meu pensamento como o azeite que fica por cima da água, nem como o céu que se estende por cima da terra. Estava acima porque foi ela que me criou, e eu por baixo porque sou a sua obra. Para a conhecer, é preciso conhecer a verdade; e aquele que a conhece, conhece a eternidade; é a caridade que a conhece. Ó eterna verdade, verdadeira caridade, querida eternidade! Tu és o meu Deus e eu suspiro por ti dia e noite. Quando comecei a conhecer-te, elevaste-me para ti para me mostrares que eu tinha ainda muitas coisas a compreender e como era ainda incapaz de o fazer. Fizeste-me ver a fraqueza do meu olhar, lançando sobre mim o teu esplendor, e eu estremeci de amor e de espanto. Descobri que estava longe de ti, na região da dissemelhança, e a tua voz vinha a mim como que das alturas : « Eu sou o pão dos grandes; cresce e comer-me-ás. E não serás tu que me transformarás em ti, como acontece com o alimento do teu corpo ; mas tu é que serás transformado em mim”. Epístola dita de Barnabé (cerca de 130) §19 Cristo chama-nos a escolher o caminho que conduz ao Seu Reino (Mt 7,13) Há dois caminhos para o ensino e para a acção: o da luz e o das trevas. É grande a distância entre esses dois caminhos. Ao longo de um deles, estão os anjos de Deus, transportando a luz; no outro, estão os anjos de Satanás... Eis o caminho da luz. Quem quiser caminhar por ele até ao fim terá de se aplicar à sua tarefa. Este é o conhecimento que nos foi dado para avançarmos nesse caminho: amarás aquele que te criou, temerás o que te modelou, glorificarás o que te resgatou da morte, serás simples de coração e rico de espírito. Não te ligarás aos que pisam o caminho da morte... Não te exaltarás mas serás sempre humilde. Não procurarás glória em nada, não tramarás maus desígnios contra o teu próximo... Não farás acepção de pessoas insistindo sobre as suas faltas. Serás manso e pacífico e respeitarás as palavras que tiveres ouvido. Não guardarás rancor ao teu irmão. Não te interrogarás sobre o que o amanhã te reserva. Não invocarás em vão o nome do Senhor; amarás o teu próximo mais do que à vida. Não praticarás o aborto e não farás morrer o recém-nascido... Acolherás os acontecimentos da tua vida como benefícios, sabendo que nada te acontece fora de Deus... Partilharás tudo com o teu próximo, sem a nada chamar o teu próprio bem (Act 4,32). Porque, se pondes em comum os bens incorruptíveis, quanto mais os que desaparecem... Até ao fim odiarás o mal... Julgarás com equidade. Não criarás divisão mas restabelecerás a paz reconciliando os adversários. Confessarás o teu pecado. Não virás rezar com má consciência. Cardeal John Henry Newman (1801-1890), sacerdote, fundador de comunidade religiosa, teólogo PPS vol. 5, n°22 Voltar a Deus com arrependimento verdadeiro O sentimento da presença de Deus não é apenas o fundamento da paz numa consciência recta; é também o fundamento da paz no arrependimento. À primeira vista, pode parecer estranho que o arrependimento do pecador produza nele conforto e paz. É certo que o evangelho promete transformar toda a dor em alegria; temos, pois, de nos alegrar até na dor, na fraqueza e no desprezo. Gloriamo-nos «também nas tribulações [...] porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações, pelo Espírito Santo, que nos foi concedido», diz o Apóstolo Paulo (Rom 5, 3-5). Mas, se há dor que pode parecer um mal absoluto, que continua a ser um mal no reinado do evangelho, é claramente a consciência de não termos correspondido ao evangelho. Se há momento em que a presença do Altíssimo pode parecer-nos intolerável, é o momento em que tomamos subitamente consciência de termos sido ingratos e rebeldes para com Ele. E, contudo, não há arrependimento verdadeiro que não seja acompanhado pelo pensamento de Deus. O homem arrependido pensa em Deus no seu coração, porque O procura; e procura-O porque é movido pelo amor. É por isso que a própria dor de ter ofendido a Deus deve ser acompanhada por uma certa doçura, a doçura do amor. O que é o arrependimento, senão o impulso do coração, que nos leva a entregar-nos a Deus, quer para o perdão, quer para a correcção, a amar a Sua presença por si mesma, a preferir a correcção que Dele provém ao repouso e à paz que o mundo poderia oferecer-nos sem Ele? Enquanto vivia nos campos, com os porcos, o filho pródigo sentia dor, mas não se sentia arrependido; limitava-se a ter remorsos. Quando, porém, começou a sentir-se verdadeiramente arrependido, levantou-se, voltou para junto do pai, a quem confessou que pecara, libertando assim o coração da sua miséria. O remorso, aquilo a que o Apóstolo Paulo chama «a tristeza do mundo», produz a morte (2Cor 7, 10). Em vez de voltarem para junto da fonte da vida, do Deus da consolação, aqueles que estão cheios de remorsos limitam-se a revolver as próprias ideias, sem conseguirem confiar a ninguém a dor que sentem. [...] Precisamos de conforto para o nosso coração, a fim de que ele saia das trevas e abandone a tristeza. [...] Mas só a presença de Deus pode ser para nós refúgio verdadeiro. Santo [padre] Pio de Pietrelcina (1887-1968), capuchinho Carta 3, 698 Cristo chama-nos à conversão Diante das tentações, comporta-te como uma mulher forte e combate com a ajuda do Senhor. Se caíres no pecado, não permaneças nele, desencorajada e abatida. Humilha-te, mas sem perder a coragem; baixa-te, mas sem te degradares; verte lágrimas sinceras de contrição para lavar as tuas imperfeições e as tuas faltas, mas sem perderes a confiança na misericórdia de Deus, que será sempre maior que a tua ingratidão. Toma a resolução de te corrigires, mas sem presumires de ti própria, pois só em Deus deves colocar a tua força. Enfim, reconhece sinceramente que, se Deus não fosse a tua couraça e o teu escudo, a tua imprudência ter-te-ia levado a cometer toda a espécie de pecados. Não te espantes com as tuas fraquezas. Aceita-te tal como és; córa das tuas infidelidades para com Deus, mas confia nEle e abandona-te tranquilamente a Ele, como uma criança nos braços da mãe. S.Clemente de Roma, Papa aproximadamente de 90 a l00 Carta aos Coríntios «Convertei-vos a Mim de todo o vosso coração» (Jl 2,l2) Percorramos todas as épocas e veremos que, de geração em geração, o Mestre ofereceu a possibilidade de conversão a todos quantos queriam voltar-se para Ele. Noé pregou a conversão, e aqueles que o escutaram foram salvos. Jonas anunciou aos Ninivitas a destruição que os ameaçava; eles arrependeram-se dos seus pecados, apaziguaram a Deus e apesar de Lhe serem estranhos alcançaram, por suas súplicas, a salvação. Por sua vontade omnipotente Deus quer que todos aqueles a quem Ele ama participem da conversão. É por isso que devemos obedecer à Sua magnífica e gloriosa vontade. Imploremos humildemente a Sua misericórdia e a Sua bondade; confiemo-nos à Sua compaixão abandonando as preocupações frívolas, a discórdia e a inveja que só conduzem à morte. Permaneçamos humildes, meus irmãos, rejeitemos todos os sentimentos de orgulho, de jactância, de vaidade e de cólera. Agarremo-nos firmemente aos preceitos e aos mandamentos do Senhor Jesus, tornando-nos dóceis e humildes diante das Suas palavras. Eis o que diz a Palavra sagrada: «Para quem voltarei o meu olhar, senão para o homem humilde, pacifico, que teme as minhas palavras?» (Is. 66,2). Evangelho segundo S. Mateus 23,23-26. Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, porque pagais o dízimo da hortelã, do funcho e do cominho e desprezais o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade! Devíeis praticar estas coisas, sem deixar aquelas. Guias cegos, que filtrais um mosquito e engolis um camelo! Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, porque limpais o exterior do copo e do prato, quando por dentro estão cheios de rapina e de iniquidade! Fariseu cego! Limpa antes o interior do copo, para que o exterior também fique limpo. S. Pedro Damião (1007-1072), eremita, depois bispo, doutor da Igreja Opúsculo 51 «Abandonastes o que há de mais importante na Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade» Se quiseres avançar correctamente, com discrição e dando frutos no caminho da verdadeira religião, deves ser austero e rígido contigo mesmo, mas parecer sempre alegre e aberto para com os outros, esforçando-te no teu coração por caminhar nos cumes da rectidão, sabendo inclinar-te com bondade para com os mais fracos. Numa palavra, perante o juízo da tua consciência, deves moderar os rigores da justiça, de tal forma que não sejas duro para com os pecadores, mas acessível ao perdão e indulgente... Considera o teu pecado como perigoso e mortal; o dos outros, considera-o como fragilidade da condição humana. A falta que, em ti, consideras digna de severa correcção, pensa que, nos outros, não merece mais do que uma pequena admoestação. Não sejas mais justo do que o justo : receia cometer o pecado, mas não hesites em perdoar ao pecador. A verdadeira justiça não é a que precipita as almas dos irmãos no laço do desespero… É muito perigoso o fogo que, ao queimar o mato, ameaça abrasar a própria casa com o ardor das suas chamas. Não, aquele que se compraz a escalpelizar os defeitos dos outros não evitará o pecado porque, ainda que seja movido pelo zelo da justiça, tarde ou cedo acabará por o denegrir. Evidentemente, se a nossa vida não nos parecesse tão brilhante, a dos outros não nos pareceria toa feia. E se, como se deveria, fôssemos para nós mesmos juizes severos, as faltas dos outros não encontrariam em nós censores tão rigorosos. Orígenes (cerca de 185-253), presbítero e teólogo Homilias sobre Josué "Purifica primeiro o interior da taça" Partamos para a guerra, como Josué; tomemos de assalto a cidade mais forte deste mundo - a malícia - e destruamos as muralhas orgulhosas do pecado.. Irias procurar à tua volta o caminho que é preciso tomar, o campo de batalha que tens de escolher? Sem dúvida, vais achar que as minhas palavras são estranhas; contudo, elas são verdadeiras: limita a tua procura a ti mesmo. Está em ti o combate que vais travar, no interior de ti o edifício de malícia que tens de minar; o teu inimigo sai do fundo do teu coração. Não sou eu quem o diz, mas Cristo; escuta-o: "É do coração que vêm os maus pensamentos, os assassínios, os adultérios, as impurezas, os roubos, os falsos testemunhos, as palavras injuriosas" (Mt 15,19). Percebes qual é o poder deste exército inimigo que avança contra ti a partir do fundo do teu coração? Ei-los, os inimigos que temos de massacrar no primeiro combate, que temos de eliminar na primeira linha da batalha. Se formos capazes de derrubar as suas muralhas e de os exterminar até que não reste nenhum para ir contar, nenhum para recobrar o ânimo (Jos 11,14), se não ficar um único para retomar vida e ressurgir nos nossos pensamentos, então Jesus dar-nos-á o grande repouso. São João Eudes (1601-1680), sacerdote, pregador, fundador de institutos religiosos Coração admirável, cap. 12 «Purifica primeiro o interior» Oh meu Deus, quão admirável é o Vosso amor por nós! Sois infinitamente digno de ser amado, louvado e glorificado! Não tendo nós coração, nem espírito, que seja digno deste amor, a Vossa sabedoria e a Vossa bondade concederam-nos, porém, forma de o ser: destesnos o Espírito e o coração do Vosso Filho, para que fosse o nosso próprio espírito e o nosso próprio coração, segundo a promessa que fizestes pelo Vosso profeta: «Dar-vos-ei um coração novo e introduzirei em vós um espírito novo» (Ez 36, 26); e, para que soubéssemos que coração e que espírito novos eram estes, acrescentastes: «Dentro de vós porei o Meu espírito» (27). Só o Espírito e o coração de Deus são dignos de amar e de louvar um Deus, são capazes de O bendizer e de O amar como Ele deve ser bendito e amado. Foi por isso que nos destes o Vosso coração, o coração do Vosso Filho, Jesus Cristo, bem como o coração de Sua Mãe e o coração de todos os santos e anjos que, em conjunto, formam um só coração, como a cabeça e os membros formam um só corpo (Ef 4, 15). [...] Renunciai, pois, irmãos, ao vosso coração e ao vosso espírito, à vossa vontade e ao vosso amor próprio. Dai-vos a Jesus, para entrardes na imensidão do Seu coração, que contém o de Sua Mãe e o de todos os santos, para vos perderdes nesse abismo de amor, de humildade e de paciência. Se amardes o vosso próximo e tiverdes de fazer um acto de caridade, amai-o o fazei o que deveis no coração de Jesus. Se se trata de vos humilhardes, que seja na humildade desse coração. Se se trata de obedecerdes, que seja na obediência do Seu coração. Se tendes de louvar, de adorar, de agradecer a Deus, que seja em união com a adoração, o louvor e a acção de graças que nos são dados por esse grande coração. [...] O que quer que façais, fazei todas as coisas no espírito desse coração, renunciando ao vosso, entregando-vos a Jesus, para agirdes no Espírito que anima o Seu coração. Evangelho segundo S. Mateus 23,27-32. Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, porque sois semelhantes a sepulcros caiados: formosos por fora, mas, por dentro, cheios de ossos de mortos e de toda a espécie de imundície! Assim também vós: por fora pareceis justos aos olhos dos outros, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade. Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, que edificais sepulcros aos profetas e adornais os túmulos dos justos, dizendo: 'Se tivéssemos vivido no tempo dos nossos pais, não teríamos sido seus cúmplices no sangue dos profetas!’ Deste modo, confessais que sois filhos dos que assassinaram os profetas. Acabai, então, de encher a medida dos vossos pais! Epístola dita de Barnabé (cerca de 130) §20 Afastar-se do caminho da hipocrisia e do mal Há duas vias para o ensino e para a acção: a da luz e a das trevas. A distância entre estas duas vias é grande... A via das trevas é tortuosa e semeada de maldições. É o caminho da morte e do castigo eterno. Tudo o que pode arruinar uma vida está aí: idolatria, arrogância, orgulho do poder, hipocrisia, duplicidade de coração, adultério, assassínio, roubo, vaidade, desobediência, fraude, malícia..., cupidez, desprezo de Deus. Por aí vão os que perseguem as pessoas de bem, os inimigos da verdade..., os que são indiferentes à viúva e ao órfão..., sem atenção ao indigente e que esmagam o oprimido... Por isso, é justo instruir-se acerca das vontades do Senhor que estão escritas e caminhar junto delas. O que assim agir será glorificado no Reino de Deus. Mas todo aquele que escolher o outro caminho morrerá com as suas obras. Eis porque há uma ressurreição e uma retribuição. A vós, portanto, dirijo um pedido: estais rodeados de pessoas a quem fazer o bem; não deixeis de o fazer. Balduíno de Ford (? - c. 1190), abade cisterciense Tratado 10 Senhor, arranca o meu coração de pedra Corresponde-nos a nós amar a Cristo como Ele nos amou. Ele deixou-nos o exemplo para que sigamos os seus passos (1 Pe 2, 21). Por isso exclama: «Grava-me como selo em teu coração» (Ct 8, 6), que o mesmo é dizer: «Ama-me como eu te amo. Leva-me no teu espírito, na tua memória, no teu desejo, nos teus suspiros, nos teus gemidos, nos teus soluços. Recorda, ó homem, em que estado foste criado, como eu te elevei acima das outras criaturas, com que dignidade te enobreci, como te coroei de glória e de honra, como te coloquei um pouco inferior aos anjos e tudo submeti a teus pés (Sl 8). Recorda não só tudo o que fiz por ti, mas quantas provações e humilhações sofri por ti… E tu, se me amas, demonstra-o; ama, não de palavra nem de boca, mas em actos e em verdade… Grava-me como selo em teu coração e ama-me com todas as tuas forças» … - Senhor, arranca o meu coração de pedra, este coração duro e incircunciso. Dá-me um coração novo, um coração de carne, um coração puro (Ez 36, 26). Tu, que pu rificas os corações, que amas os corações puros, toma posse do meu coração e vem nele habitar.