Centro Universitário Metodista Bennett A OPÇÃO DE DEUS PELOS

Propaganda
Ce nt ro Un iv er si tá ri o Me to di st a Be nn et t
A OPÇÃO DE DEUS PELOS POBRES
SÁVIO PEREIRA CARVALHO
2007
Ce nt ro Un iv er si tá ri o Me to di st a Be nn et t
A OPÇÃO DE DEUS PELOS POBRES
Autor:Sávio Pereira Carvalho
Monografia apresentada ao Curso de Teologia do
BENNETT - Centro Universitário Metodista como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Bacharel
em Teologia.
Orientador: Odilon Chaves
Rio de Janeiro
Dezembro/ 2007
2
A OPÇÃO DE DEUS PELOS POBRES
Nome do autor: SÁVIO PEREIRA CARVALHO
Orientador: ODILON CHAVES
Monografia de Conclusão submetida ao Curso de Graduação em Teologia do
Bennett – Centro Universitário Metodista como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Bacharel em Teologia.
Aprovado por:
Prof.Odilon Massolar Chaves – Monografia II
Prof. Odilon Massolar Chaves
Rio de Janeiro
10
A OPÇÃO DE DEUS PELOS POBRES
Autor: SÁVIO PEREIRA CARVALHO
Or ie nt ad or : OD IL ON CH AV ES
Resumo da monografia apresentada ao Curso de Teologia do Centro
Universitário Metodista como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Bacharel em Teologia.
O ser humano criado à imagem de Deus encontra sua razão de ser na
referência ao próprio Deus e seu futuro está somente em Deus. Mas, é preciso
afirmar alto e bom som: o ser humano foi criado porque Deus o ama e quer fazer
dele seu parceiro na criação. Ela é a revelação desta bondade amorosa e da
liberdade infinita de Deus. Nela, o ser humano é a obra principal deste amor.
Para os cristãos, é somente Jesus Cristo quem revela a plenitude do ser
humano; quem revela e explica o ser humano ao próprio ser humano. Nele, Deus
demonstrou sua paixão pelo ser humano. Deus o fez à imagem divina para que
pudesse chegar um dia ser sua semelhança profunda e para evidenciar-lhe livre e
gratuitamente que o amor divino extrapola a possibilidade de um amor egoísta ou
egocêntrico.
Ao nos dedicarmos apaixonadamente aos outros, começamos a viver.
Nessa dedicação reavivamos outras vidas. Somente a paixão e o amor nos
tornam vivos na plenitude. Mas também nos tornam mortais. O que permanece da
paixão pela vida é o amor, o “sim” apaixonado para a vida e a resistência
apaixonada contra na negação da vida. Eis aí o segredo da vida e da morte. O
amor, porém, transforma a vida em paixão de Deus e a história do sofrimento de
Cristo levam-nos da morte para a vida e nos preservam, a nós e ao mundo, do
naufrágio na apatia.
Portanto, compartilhar o verdadeiro amor de Deus é envolver-se com o
necessitado nas suas necessidades. È ter solidariedade para com os pobres não
como uma opção, mas como marca essencial da participação na vida do Reino.
Palavras – chave:
O AMOR DE DEUS – POBRES – OPÇÃO DE DEUS
Rio de Janeiro
Dezembro de 2007
11
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus que me sustentou durante toda a minha
caminhada, pela sua preciosa graça que me fortaleceu ate aqui!
Agradeço aos meus pais Eulício Carvalho e Wandecy Pereira Carvalho, que
me educaram, investiram em mim abrindo mãos de seus sonhos pessoais, e que
apesar de seus problemas pessoais sempre estiveram presentes na minha vida.
À minha querida esposa Maria Cecília, que sempre acreditou na minha
vocação, abrindo mão de vaidades pessoais para estar ao meu lado, sendo uma
lutadora comigo!
Aos meus queridos e preciosos filhos; Carolina, Daniela e Lucas que com
certeza em muito me influenciaram a continuar neste meu projeto de vida, e que
são muito importante na minha vida.
Aos meus amigos, tais como, Fábio Pereira, Lucas Bezerra, David Barreto,
Edson José Ferreira, Antonio Santos, Marlene Morais, Elvira Bessa, que estiveram
ao meu lado e choraram comigo.
Aos pastores que me apoiaram e incentivaram nesta caminhada; Rev.
Anselmo Amaral, Pra Miriam Amaral, Rev. Luiz Daniel Nascimento, Rev. Paulo
Fernandes e Rodolfo Salvato.
12
À Igreja Metodista em Copacabana, esta que me acompanhou durante a
minha caminhada nesta fase da minha vida, seus membros que muito me
apoiaram e acolheram. A Igreja Metodista de Jardim Botânico que muito me
incentivou durante o meu período de estágio.
Ao póstumo Pastor Ilídio de Oliveira Christino que teve uma participação
marcante na minha vida acreditando no meu chamado.
A meus colegas de Classe: Augusto, Alexandre, Carlos Alberto, Edson,
Elva, João Daniel, Josuel, Joab, Katrine, Jorge Alexandre, Laércia, Luís Cláudio,
Maria Emília, Maria do Socorro, Rubens, Sebastião, Tânia, Wallace, Yvanna,
estes que passaram a fazer parte da minha vida, e que certamente serão sempre
lembrados com muito carinho.
Aos meus professores, destacando meu orientador Odilon Chaves, Edson
Fernando, Nelson Marriel, Alessandra Viegas, Josias, André Botelho, Uriel
Teixeira, Marcelo Carneiro, Levi Bastos, Carlos Frederico, Ricardo Lengruber, e os
professores José e Nelson Magalhães. Obrigado por terem doado de seus
conhecimentos para contribuir de forma tão esplendorosa para a minha formação.
Ao Projeto Social Camp Bairro Peixoto (Amas) e Camp Vila Isabel que
nestes quatro anos não foi somente um trabalho mais algo tremendamente
especial para minha vida, creio que um verdadeiro presente de Deus.
13
DEDICATÓRIA
A Deus, meu Amigo, Jesus Cristo, o centro da minha fé, que transformou minha
vida a ponto de estar pronto a pregar, viver e a morrer pelo evangelho!
Aos Meus Pais.
À Minha querida esposa.
Aos meus filhos amados e preciosos.
Ao Rev. Ilídio de Oliveira Christino (in memória).
Ao Rev. Anselmo Amaral e Pra. Miriam Amaral
À Igreja Metodista em Copacabana.
À Igreja Metodista em Jardim Botânico.
Para honra destes dedico meu trabalho.
14
SU MÁ RI O
INTRODUÇÃO................................................................09
I. Denunciando a opressão..................................................................................12
1. O ser humano, a imagem de Deus.....................................................................13
2. A criação na experiência de Israel ...................................................................15
3. Deus responde ao sofrimento do homem..........................................................19
II.
P a i x ã o p e l a vi d a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 2
1. Paixão e convivência......................................................................................24
2. Paixão e Justiça..................................................................................................26
3.A opção de Deus pelos pobres, na visão do
Apóstolo Paulo.....................................................................................................27
4. A comunidade vivenciando a Paixão..................................................................29
lll.A Gratuidade Do Reino De Deus Evidencia-Se Em Seus
Destinatários.................................................................................................................... 32
1. O Inicio Do Evangelho Na América Latina
(O Testemunho Da Vida De Bartolomeu De Las Casas).................................................33
2. Evangelização e Realidade.............................................................................................34
3. Libertados para a liberdade.............................................................................................40
4. Indiferença e Cuidado..................................................................................................... 42
CONCLUSÃO.....................................................................48
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................51
15
INTRODUÇÃO
“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu, para
pregar boas-novas aos quebrantados de coração a proclamar libertação
aos cativos, e a pôr em liberdade os algemados; a apregoar o ano
aceitável do Senhor e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos
os que choram, e a pôr sobre os que em Sião estão de luto uma coroa
em vez de cinzas, óleo de alegria em vez de pranto, veste de louvor em
vez de espírito angustiado; a fim de que se chamem carvalhos de justiça,
plantados pelo Senhor para sua glória”.
(Isaías 61:1-3)
Paixão pelo ser humano: eis a origem e a razão deste tema. Paixão que se
reveste de amor e dor, de êxtase e sangue. Paixão que vem de Deus e vem do
ser humano também. Deus que salva e liberta o ser humano do jugo opressor que
o impede de conviver com Deus e com o seu próximo.
Falar de Libertação é buscar resposta para a pergunta: que relação existe
entre a salvação e o processo histórico de libertação do homem? Procurar ver
como se relacionam entre si os diferentes níveis de significado do termo libertação
que vínhamos tentando precisar.
É analisar a relação entre fé e existência humana, fé e realidade social, fé e
ação política ou, em outros termos, reino de Deus e construção do mundo. Nesse
problema se inscreve normalmente o tema, também clássico, da relação Igreja sociedade, Igreja-mundo.
16
Sempre teve o homem esta dimensão social, sendo ele social por sua própria
natureza. Hoje, porém, não por acidente, mas por estrutura, o acontecimento
coletivo da extensão e intensidade a esta dimensão. O coletivo como tal tem valor
humano e é, portanto, caminho e objeto de amor. O amor humano caminha por
estas vias largas, por estes organismos de justiça distributiva, por estes sistemas
de justiça.
Além deste aspecto de totalidade, defrontamos com uma crescente
radicalidade da práxis social. O homem contemporâneo começa a perder a
ingenuidade diante de seus condicionamentos econômicos e sócio-culturais; e
cada vez melhor conhecida são as causas profundas da situação em que ele se
encontra. Atacá-las é exigência indispensável para uma mudança radical. A
situação atual do terceiro mundo exprime esse caráter de radicalidade
ascendente.
A práxis social se faz necessária não só no campo social e político, mas mais
do que nunca se traduzir e exprimir-se através da fé no Senhor da história. Refletir
neste processo de libertação é uma atitude obrigatória na vida cristã.
Ser cristão é, com efeito, aceitar e viver solidariamente a fé, a esperança e a
caridade, no sentido que a palavra do Senhor e o encontro com ele dão ao devir
histórico da humanidade a caminho da comunhão total. Colocar a relação única e
absoluta com Deus como horizonte de toda ação humana é situar-se inicialmente
em contexto mais amplo, mais profundo e mais exigente também.
A unidade é dada pelo reino de Deus; a Igreja e o mundo contribuem cada um
a seu modo para sua edificação.
17
Desta forma pretendo neste trabalho contribuir com uma reflexão através do
Antigo Testamento no primeiro capítulo, sobre o chamado do povo de Israel por
Deus, o seu comprometimento com seus irmãos e com a humanidade, e o
comprometimento como resposta ao amor que Deus lhe revelou. Assim sua fé irá
se manifestar através do amor, da liberdade e da justiça. Fé que realizará a união
entre o homem e o Deus Criador.
Já no segundo capítulo pretendo despertar a reflexão do leitor sobre a
paixão de Deus pelo homem, enviando seu Filho, a ponto de quebrar paradigmas
e se ajuntar aos miseráveis e injustiçados desta terra, não medindo esforços para
resgatar a dignidade do ser humano amado e criado por Ele. Reavivar,
estabelecer e impulsionar os homens, através de Cristo e dos seus discípulos,
restaurando a comunhão justa e digna entre Deus e o homem, por meio da
mensagem cristã.
O terceiro capítulo tem por objetivo nos fazer refletir sobre o que é
realmente ser humano; e qual as implicações da Bem-aventurança com os pobres.
Perceber através do testemunho de Bartolomeu de Las Casas, o real
comprometimento com a evangelização e a palavra de Deus. Entender a visão
ampla da palavra Evangelização e a profundidade da libertação que nos é dada
através de Jesus. Nos conscientizarmos de que, como cristãos, não podemos ser
paralisados pela apatia e indiferença com o que nos cerca, e sim assumirmos a
responsabilidade que nos foi dada no Éden, de sermos administradores do
mundo, atuando com mais sensibilidade para com o próximo, com a vida e o
planeta.
18
I. DENUNCIANDO A OPRESSÃO
Vede quantos oprimidos no centro de Samaria.
1
Assim diz Amós: “Jeroboão morrerá à espada”.
2
Compram por prata o justo,
o pobre por um par de sandálias.
3
Entortam o caminho dos oprimidos.
Hostilizam o justo,
Tomam suborno,
4
Rejeitam os pobres no portão.
As questões denunciadas são de ordem social. A opressão social é o “terror
total”. Em Amós a crítica religiosa é parte dessa sua crítica social.
As pessoas, defendidas por Amós mediante sua crítica social, são os
“pobres”, “magros”, “fracos” e “oprimidos”. Esses e termos similares designam
camponeses empobrecidos, prestes a serem transformados em escravas e
escravos ou recentemente escravizados. O profeta sai em defesa da gente do
campo. Essas gentes do campo, pela qual bate o coração profético, não são
meramente indivíduos isolados. São grupos organizados segundo seus clãs em
razão de sua pauperização. O profeta é um broto desse tronco.
Como trabalhador sazonal
5
Amós é irmão de sina dos “pobres”, “magros” e
“oprimidos”.
Nesse profeta, a esperança não chega a ser um tema especial, mas está
implícita. Amós conhece a utopia dos pobres.
1
AMÓS 3,9. Bíblia de referência Thompson. Ed. Vida. São Paulo, SP. 12° Edição, 2000.
AMÓS 7,11. Idem.
3
AMÓS 2,6 e 7. Idem.
4
AMÓS 5,12. Idem.
5
Temporário, que trabalha por períodos.
2
19
Israel na forma de poder opressor não detém privilégio na história de Deus.
Assemelha-se aos povos. Equipara-se e é até pior. A teologia de Amós olha para
o mundo, não com os olhos de Israel, mas com os dos oprimidos, das escravas e
camponesas de Israel. 6
O Deus contemplado e experimentado pelos profetas é o Deus da história.
Não apenas no sentido de que preside soberanamente aos acontecimentos e tem
respeito deles um desígnio. Trata-se de muito mais. É o Deus que se manifesta
mediante os
acontecimentos como o inapagável
e invencível
labareda
alimentadora da liberdade e a luta por sua conquista ou por sua preservação.
Pelos fatos, revela-se Redentor, quer dizer, libertador, justiceiro e vingador dos
oprimidos e necessitados.
7
1. O Ser Humano, Imagem de Deus
Deus criou o ser humano à sua imagem,
8
à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou.
O ser humano não é Deus, mas também não é puramente
mundano. Deus o eleva acima de todas ao outras criaturas e lhe confere
o sopro de vida divino. Deus põe em seu coração um desejo do divino.
Assim o ser humano está sempre referido a Deus. O Criador estabelece a
criatura humana como partner ou lugar-tenente seu para guardar e
cultivar aquilo que é de Deus desde a criação (os peixes, as aves e as
plantas; isto é, o mundo todo em seus três níveis: as águas, os céus e a
terra). O ser humano é estabelecido socium de Deus para dar
cumprimento ao plano divino, e por isto é ele imagem, “pouco menos
que um deus, coroado de glória e beleza” (Sl 8,6). Não se pode
“derramar seu sangue”: ele é imagem de Deus (Gn 9,6).Ser referido a
Deus significa ter um ponto de apoio que ninguém tem o direito/poder de
tirar-lhe – mesmo que o ser humano esteja sob o domínio do pecado. A
referência ou dependência de Deus não aliena o ser humano, pois Deus
o plasmou dotado de liberdade, inclusive de voltar-se contra o Criador
6
7
SCHWANTES, Milton. A terra não pode suportar suas palavras: reflexão e estudo sobre Amós, p.109.
SOARES, Sebastião Armando Gamelaria. Reler os profetas – Notas sobre a releitura da profecia bíblica,
Estudos Bíblicos, v.4, Petrópolis, Vozes, 1985, p. 27.
8
Gn 1,27. Bíblia de referência Thompson.
20
mesmo. “O ser humano degrada-se a si mesmo quando cancela Deus de
9
seu horizonte”
10
De acordo com Hélcio Ribeiro , a vida, a Bíblia e a teologia estabelecem e
fundamentam elementos para a compreensão da pessoa humana e do mundo.A
partir deles podem-se construir códigos e discursos sobre o nosso cotidiano e a
história de todos os seres humanos.Tais princípios constroem as bases de uma
antropologia teológica, que reivindica a igualdade fundamental de todos,
especialmente dos pobres, a liberdade que não reduz o ser humano por causa de
Deus, a participação que assegura a peculiaridade de todo ser humano, a
solidariedade, porque todos são co-responsáveis pelo bem-estar comum e
plenitude humana.
Eles estabelecem uma reflexão adequada para que a pessoa humana possa
compreender-se frente ao mundo criado: o cosmo e os seres todos; para poder
recompor a dignidade dos pobres, confraternizar os seres humanos entre si e
fazer da história o lugar e o tempo felizes, apesar do mal, do pecado e da
provisoriedade.
Fundamentada em dois eixos principais; a criação do ser humano (Gn1 e 2) e
a revelação de Cristo (o ser humano original), a reflexão sobre o “humanum” se
amplia na experiência do passado, conservada na grande tradição eclesial, e do
presente, inspirada no empenho de ser presença de Deus no mundo.
9
A. DEISSLER. L’ uomo secondo la Bibbia. Per um ‘antropologia esegetica. Roma: Città Nuova, 1989,
p. 15.
10
RIBEIRO, Hélcion. Ensaio de Antropologia Cristã. Rio de Janeiro. Editora Vozes, 1995, p. 29.
21
A dinâmica Cristã sabe que toda pessoa é amada e querida por Deus desde
toda a eternidade (Ef 1,4) e tem seu futuro plenificado só em Deus.S. Gregório de
Nissa traduz a afirmação bíblica da criação do ser humano (Gn 1,26 ou 2,4) ao
sustentar que ele obtém sua “dignidade antes mesmo de seu nascimento”, pois
“desde o seu nascimento convinha que ser humano fosse rei”. 11
Todo ser humano – homem/mulher e povos em seus conjuntos – é criatura de
Deus. Este princípio sustenta a concepção cristã da pessoa humana. O Novo
Testamento representa um aperfeiçoamento daquela revelação em Cristo e por
Cristo, pois, como diz Sto Inácio de Antioquia, “não existe senão um único Deus
que quis se manifestar por meio de Cristo, que é sua Palavra (Logos) saída do
Silêncio e em tudo agrada àquele que o enviou”. 12
Assim em Cristo todo ser humano é re-velado plenamente e n’Ele nós
encontramos o sentido e a plenitude da “criação em Adão”.
“A criação traz em si de fato uma aproximação de Deus ao ser
humano que não se deduz da simples criaturidade. Só ao ser humano é
13
comunicada a vida divina, só ele é imagem e semelhança de Deus”.
2. A Criação na Experiência de Israel
Hélcion Ribeiro em seu livro, menciona que Israel tem consciência de ser o
povo de Deus num modo de ser profundamente diferente de outros povos. Mesmo
que permaneçam alguns resquícios dos mitos circundantes, há uma concepção
diferenciada, sobretudo porque Deus aparece como Senhor absoluto e Criador.
11
RIBEIRO, Hélcion.op.cit. p..31. Cf.Gregório de Nissa. De hominis opificio, 2 e 3
Idem.Inácio de Antioquia Epistola ad Magnésios, 8,2.
13
Idem. L. LADARIA,op. cit.,p.111.
12
22
Pelo poder transcendente de sua palavra, um ato livre com infinita superioridade e
completa autoridade sobre o criado, cria o ser humano. O ser humano depende
sempre de Deus, mas não lhe é absolutamente dependente. Deus o faz dotado de
liberdade inclusive para recusá-lo14.
O israelita sabe que o Deus transcendente entra em diálogo com sua obra,
particularmente com o ser humano. Seu Pai é o Criador, que ama sua obra. Trataa com carinho e bondade. “Javé é tudo. Mas então quem é o ser humano?”.
“Ele não é um deus e nem se confunde com o mundo; pode julgar
e observar o cosmo todo e é diferente dos animais, isto é, pensa,
pergunta, constrói e organiza a sociedade. Assim, entre os seres, ele é
único, seja como indivíduo seja como sociedade. Tem uma história, uma
sucessão de fatos e acontecimentos que são realizações suas, e que,
em, vista da sucessividade do tempo, representa progresso, seja para a
ordem cultural, seja para a economia, e não pode ser para ele motivo de
vanglória ou orgulho. Ele é o único entre todos os seres que tem uma
história. Entende a história como controle e dinamização de todos os
elementos mediante os quais ele cria para si um modo melhor de existir e
viver. Ao lado da divindade, também, ele é criador; estando capacitado
para produzir novas formas e novas condições de vida, de atuar sobre o
mundo da matéria e nos animas a tal ponto de sentir-se dono deles.
Portanto, á luz da história, daquilo que é capaz e pode fazer, o ser
humano se encontra sempre a um passo de crer que exatamente na
história, por causa de suas capacidades, ele pode realizar, por si só, suas
aspirações e desejos. Ela está, em outras palavras, a um passo da idéia,
da tentação de sentir-se grande, capaz, auto -suficiente e, portanto,
também livre de crer; ao menos praticante, na existência de um Deus, o
qual, com sua onipotente sabedoria e bondade, dirige o mundo que,
15
mediante seus próprios atributos infinitos, criou “
O ser humano semita sabe-se grande porque grande é o seu Senhor. No
entanto, sua experiência imediata aponta freqüentemente para o mal e a injustiça
ao seu redor, a pessoa se rebaixa e se apequena; trai seu Senhor e desobedecelhe pecando. Mesmo sendo um ser humano mísero e fraco, Deus dele se
aproxima e infunde-lhe confiança; faz alianças onde a contrapartida é tão somente
14
15
RIBEIRO, Hélcion, op. cit, p.35.
Idem, p.37.
23
tê-lo como único Deus. A santidade de Deus envolve o ser humano por todos os
lados e ele é reconhecido como o seu Senhor. O Senhor Javé é de tal modo
absorvente, ciumento, que o hebreu sente ser protagonista da história, não a
pessoa humana, mas na verdade o próprio Deus. O ser humano rompe a dialética
existencial à medida que ama a Deus de todo o coração, com todas as suas
forças, com todo o seu entendimento; mas também à medida que ama seu
semelhante, o outro/ a outra, pois juntos eles constituem o povo de Deus.
Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o coração,
de toda a tua alma e de toda a tua força.16
Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do seu povo;
mas amarás o teu próximo como a ti mesmo.
17
Eu sou o Senhor.
Na dimensão horizontal do amor fraterno hão de ter preferência os órfãos, as
viúvas, os abandonados, os estrangeiros. Em resumo: grandeza e miséria são os
dois aspectos essenciais que constituem, diante de Javé, a identidade existencial
de cada ser humano sem se contradizer. Cada ser humano é, ao mesmo tempo,
grande e pequeno, muito grande e muito pequeno. A grandeza pode ser para ele
ocasião de sentir-se auto-suficiente e negar, ao menos de modo prático, a suma e
infinita grandeza de Deus; mas a pequenez está sempre lá a sugerir-lhe a solução
oposta. Ele é, então, segundo a Bíblia, grande exatamente porque através de sua
pequenez reconhece uma grandeza superior à sua.
16
18
DT 6,5. Bíblia de referência Thompson.
LV 19,18. Idem.
18
MATTIOLLI. DIO e L’ uomo nella Bibbia da Israele e Teologia da Antigo Testamento,Roma:
Marietti,1976,cp.Cit,p. 193
17
24
Deus irrompe na história humana e é descoberto em sua ação libertadora
confirmada em suas alianças. Na história o povo vai percebendo que, por um lado,
Deus está constantemente perto e comprometido em propiciar-lhe benefícios
divinos; por outro lado, o povo nem sempre é fiel. Deus faz e refaz suas alianças
mesmo como um marido cuja esposa infiel o troca por amantes vários. Deus o
liberta dos dominadores, vigia suas cidades, promete-lhe uma terra promissora.
Enfim, Deus manifesta-lhe um amor maior ainda que uma mãe, pois jamais
abandona seus filhos.
A espiritualidade cotidiana do israelita, longe de sufocá-lo, liberta-o
inclusive como povo que não pode fechar-se sobre si mesmo. Afinal Israel é povo
escolhido para ser sinal entre as nações.
A experiência de Deus, a convivência com os povos circunvizinhos e a
meditação sobre a história oportunizam a Israel explicitar a origem do ser humano.
Narrar a origem do universo e do ser humano é superar o próprio nacionalismo e
sentir que Javé não é somente Deus dele, mas também de todos os seres
humanos, de todos os povos e de todo o universo.
19
Narrar a origem do ser
humano é identificar o Criador de todos a partir da própria fé.
19
RIBEIRO, Hélcion.op. Cit 33. SALVADOR, Vergas. El hombre creado em Cristo.Trindad y
creación.Salamanca:Ed. Secretariado Trinitario,1975,p.12.
25
3. Deus Responde ao Sofrimento do Homem
20
De acordo com Frei Beto , nenhum homem escolhe o sofrimento e a
humilhação. Ele sofre na medida em que não tem meios de recusar. Sua atitude
tanto pode ser de aceitação e resignação como de revolta e protesto. As
ideologias podem dar sentido à sua aceitação ou à sua revolta. Aceitar ou recusar
o sofrimento são duas atitudes que podem ter como única raiz à covardia. Quem o
aceita admite que o homem deve permanecer impregnado dos estigmas do
pecado e das alienações; quem o recusa pode estar fugindo à solidariedade aos
oprimidos e explorados a fim de refugiar-se numa vida omissa e acomodada.
Como vencer o impasse?
Deus não quer o sofrimento. Não é ele quem introduz a dor, a miséria, a
opressão e a morte na história, mas o próprio homem. O livro do Gênesis mostra
que, tendo criado todas as coisas, Deus contemplou toda a sua obra, e viu que
tudo era muito bom (Gn 1,31). Se agora nem tudo é tão bom é por culpa do
egoísmo do homem. A ele cabe, portanto, a tarefa de eliminar a iniqüidade do
mundo, restabelecendo a comunhão dos homens entre si e com Deus.
Na Bíblia, o sofrimento não parte de Deus, mas dos homens ou de situações
calamitosas como catástrofes, atitudes injustas (Ez 35,5) exploração (Ez 18,18);
pobreza (2 Cor 8,13); perseguição (1 Tes 2,15; prisão (At 20,23). Não é Deus, mas
os homens que causam sofrimentos. Os gritos de dor e revolta do homem
oprimido ecoam como oração junto ao Deus libertador : Eu vi, eu vi a aflição de
20
FREI BETO. Experimentar Deus Hoje. Rio de Janeiro. Editora Vozes, 2003, p. 17 e 23.
26
meu povo que está no Egito, e ouvi os seus clamores por causa de seus
opressores. Sim, eu conheço os seus sofrimentos (Ex. 3,7). A Palavra de Deus
repudia toda miséria e opressão.
Defendei o oprimido e o órfão,fazei justiça ao humilde e ao pobre.
21
Livrai o oprimido e o necessitado, tirai-o das garras dos ímpios .
Todas as vezes que os profetas se referem à pobreza é para elevar seu
protesto contra os ricos e poderosos.
Por causa dos inúmeros crimes de Israel serei inflexível!
Porque eles vendem o justo por dinheiro e o pobre por um par de
sandálias;
esmagam a cabeça do pobre no pó da terra e corrompem os
22
humildes.
Ai daqueles que fazem leis injustas e dos escribas que redigem
sentenças opressivas para afastar os pobres dos tribunais e negar os
23
direitos dos humildes.
Movidos pelo Espírito de Deus os profetas denunciam todo tipo de abuso,
toda situação injusta que favorece ou perpetua a existência de uma minoria rica ao
lado de uma multidão pobre, apontando diretamente os culpados. Condenam o
comércio fraudulento e a exploração (Os 12,8; Am 8,5; Miq 6,10-11; Is 3,14; Jer
5,27; 6,12); os açambarcadores de terras (Miq 2,1-3; Ez 22,29; Hab 2,5-6); a
justiça venal (Am 5,7; Jer 22,13-17; Miq 3,9-11; Is 5,23; 10,1-2); a violência das
classes dominantes (2Rs 23,30-35; Am 4,1; Miq 3,1-2; 6,12; Jer 22,13-17); a
escravidão (Ne 5,1-5; Am 2,6; 8,6); os impostos injustos (Am 4,1: 5,11-12); os
21
SL 81,3-4. Bíblia de referência Thompson.
AMÓS 2, 6-7.Idem.
23
ISAÍAS 10,1-2. Idem.
22
27
funcionários abusivos (Am 5,7; Jer 5,28). O Novo Testamento também condena
todo o sofrimento causado pela opressão dos ricos, principalmente no evangelho
de Lucas (6,24-25; 12,1321; 16,19-31; 18,18-26) e na carta de Tiago (2,5-9; 4,1317; 5,1-6).
A palavra de Deus, porém, não se restringe a denunciar a iniqüidade que o
egoísmo humano introduz na história e suas causas e conseqüências. Ela aponta
os culpados – não dentro de um conceito abstrato de mal que exclui o homem de
responsabilidade pessoais e sociais – mas o rico, o tirano, o ambicioso, o
opressor, enfim, todos aqueles que abusam de sua liberdade estabelecendo
relações sociais, políticas e econômicas que dividem os homens entre si. Ao
mesmo tempo a Palavra de Deus exalta todo homem criado à imagem e
semelhança de Deus e chamado à comunhão com os outros homens e com o
Criador. Assim, toda atividade ou obra humana, estrutura ou instituição que obstrui
a comunhão entre os homens e contribui para dividi-los é condenada por Deus.
Com efeito, só conhece a Deus quem prática a justiça entre os homens.
A Palavra de Deus exalta ainda a ação libertadora de Moisés, que livrou os
hebreus da escravidão, da exploração e da alienação no Egito. Ele conduziu seu
povo a uma terra onde corre leite e mel, símbolos da vida digna, livre e feliz.
Aceitar, pois a pobreza e a injustiça ou manter-se indiferente ao sofrimento que
elas provocam é negar a libertação operada por Deus.
28
ll. PAIXÃO PELA VIDA
Jesus, ouvindo isto, retirou-se dali num barco,
para um lugar deserto, à parte.
O povo sabendo, seguiu-o a pé desde as cidades.
Saindo Jesus, viu uma grande multidão, e,
possuído de grande compaixão para com ela,
curou os seus enfermos. 24
Como temos visto, os evangelhos mostram claramente que Jesus era
materialmente pobre. Eles também mostram que ele tinha uma preocupação
especial para com os pobres, os necessitados, os oprimidos. Para começar, não é
nada provável que, numa época em que as pessoas estavam sujeitas a pesadas
cargas tributárias relacionadas tanto com o templo como com o governo romano,
Jesus pudesse ir de cidade em cidade e de aldeia em aldeia sem perceber a
pobreza que afligia as massas. As enfermidades, muitas das quais ele curava,
eram sem dúvida um aspecto da condição de pauperização destas multidões que
lhe inspiravam compaixão porque “estavam aflitas e exaustas como ovelhas que
não têm pastor”. (Mt 9.36)25
Conseqüentemente, a pobreza e a opressão a que a definição de sua
missão alude não podem ser limitadas a uma condição espiritual que ele veio
enfrentar. As bênçãos do Reino inaugurado por Jesus tocam a realidade da vida
humana. 26
No centro do Novo Testamento acha-se a história de Cristo. Não a
entenderemos se a interpretarmos apenas como um relato a mais na longa
24
MATEUS 14,13-14. Bíblia de referência Thompson.
PADILHA, C. René. Missão Integral. 2° Edição Londrina: Descoberta, 2005, p.188.
26
Idem, p.190.
25
29
história dos sofrimentos humanos. Somente a entenderemos na paixão que a
tornou possível.
Moltman menciona, que em Jesus, a vida se faz presente onde os doentes
são curados, os leprosos aceitos, e os pecadores perdoados. Essa vida divina,
liberta, salva, faz-se presente hoje em nosso meio. Basicamente, a vida de Jesus
não nos consola para uma vida no além nem apenas nos transmite esperança
para o futuro. Ela nos orienta para a encarnação, a humanização e a salvação ao
aceitar os perseguidos e ao reativar as relações humanas adormecidas. É por isso
que se aproximam de Jesus os doentes incuráveis, os possessos, os cegos, os
coxos, os surdos, os mortos, enfim, “os que vivem no escuro”, representando a
miséria da humanidade. Em Jesus encontram vida. Saem dos escuros caminhos
da humanidade, onde em geral os colocamos, e aparecem porque percebem a
vida de Jesus irradiada por sua paixão e dedicação. Nesta paixão pela vida vê-se
a paixão do próprio Deus, o inimigo da morte que deseja a vida e a liberdade, e
rejeita a escravidão. A paixão que quer o amor e desconhece a apatia.27
Ora, Jesus mostra que é duplamente diferente: come com os “outros” em
vez de os rejeitar e não organiza nada de especial com os “seus”. Jesus, por sua
prática diferente, que não passa despercebida, sabota todo o sistema de poder
religioso em seu duplo funcionamento de identificação interna e de condenação
externa. É intimidado, desse modo, se quer ser alguém no mundo religioso, a agir
como todo mundo. Jesus responde que tem um pensamento e uma prática tão
27
MOLTMANN, Jurgen.Teologia da Esperança.São Paulo,SP: 3° Ed. Loyola, 2005.
30
diferente que não há compromisso possível: não se põe “vinho novo em odres
velhos”.
A sinagoga, no exercício de seu poder religioso, utiliza Deus para
absolutizar seu poder e o homem para exercê-lo. Jesus, ao contrário, exerce um
poder de mediação perfeita entre Deus e o homem concreto: a paixão por Deus é
inseparável, nele, da paixão pelo homem concreto, pois ela é também a paixão de
Deus. 28
1. Paixão e Convivência
Saindo da sinagoga, foram à casa de Simão Pedro e de
29
André com Tiago e João.
Jesus preferiu a casa em vez do templo. No lugar do altar, escolheu a
mesa. E em vez do sacerdócio oficial, optou pela família. Para ele, o perdão era
oferecido gratuitamente nas casas, longe dos sacrifícios que custavam caro para o
povo simples. Nas casas, convivia com o povo. Mais do que o templo, esse era o
novo lugar da presença do sagrado.
Na prática de Jesus, a acolhida de pessoas discriminadas, consideradas
impuras, de modo especial as doentes, era uma das marcas de sua solidariedade
e compaixão. Assim também, as comunidades praticam novas relações sociais,
28
VARONE, François. Esse Deus que dizem amar o sofrimento. Aparecida,SP. Editora Santuário, 2001,
p. 57.
29
Marcos 1,29. Bíblia de referência Thompson.
31
não de exclusão, mas de acolhida, permitindo às pessoas excluídas um novo
espaço, reintegração na convivência social.
30
A prática de Jesus, violando aberta e publicamente a lei de pureza, tende
ao contrário a acreditar num Deus diferente, um Deus cuja santidade é acolhedora
e santificante, a começar por aqueles que são mais esmagados e rechaçados: “Eu
vim chamar não os justos, mas os pecadores”. 31
Enquanto Jesus estava jantando na casa de Levi, muitos cobradores de
impostos e pecadores estavam assentados à mesa com Jesus e seus
32
discípulos, pois eram muitos os que o haviam seguido.
33
34
Jesus não é laxista quando come com os pecadores , quando deixa que
os impuros se aproximem dele e quando se detém a conversar com uma pecadora
conhecida na cidade (Lc 7,36). Ele está corporificando o amor de Deus. Ele está
amando como o Pai cuja bondade e amor experimenta. Seu Deus é o Deus do
filho pródigo (Lc 15,11-32); o Deus que corre atrás da ovelha tresmalhada (Lc
15,4-7); o Deus que perdoa os dois devedores que não tinham com que pagar (Lc
7,41-43); o Deus do patrão bom que paga bem tanto os que trabalharam mais
quanto os que trabalharam menos (Mt 20,1-15). Os pecadores, as rameiras, os
pobres todos que são para Jesus, não apenas economicamente pobres, mas
todos os que sofrem opressão e não podem defender-se, os desesperançados, os
que não têm salvação, devem sentir Deus como Pai bondoso que perdoa a culpa
e convida a todos para a comunhão com Ele.
30
GASS, Ildo Bohn, Uma introdução à bíblia. São Paulo. Editora Paulus, 2003, pág. 57.
VARONE, François, op. cit.63.
32
Marcos 2,15. Bíblia de referência Thompson.
33
Tolerante em excesso, indulgente, desleixado, desorientado.
34
O termo designa a massa de pessoas muito pobres, esse proletariado, cujas condições de vida tornavam
impossível à observância das regras de pureza, todas as abluções rituais que era preciso fazer antes de comer,
voltando do mercado, todas as sujeiras que eram necessárias evitar.
31
32
Jesus não transmitiu uma doutrina sobre a bondade infinita de Deus. Ele
mostra essa bondade, sendo ele mesmo bondoso, circulando com os pecadores e
dando confiança aos desamparados social e religiosamente. Não faz isso por puro
humanitarismo, mas como tradução de sua experiência de Deus como Pai e Amor,
como Graça e Perdão. Porque se sente totalmente amado e aceito pelo Pai, ele
também aceita e ama a todos: “se alguém vem a mim, eu não o mandarei embora”
(João 6,37). 35
2. Paixão e Justiça
A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade
36
e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça.
Entre os beneficiários de Reino, sempre gratuito, estão os pobres. E,
conforme assinalamos anteriormente, não é devido a algum mérito especial deles.
A explicação é outra: a situação de injustiça em que se encontram faz com que o
Deus do Reino intervenha, mediante Jesus, em seu favor. Chamamos também a
atenção para a dura advertência feita por Jesus aos ricos: não participarão do
Reino de Deus aqueles que marginalizam, que permitem que outros sejam
37
injustiçados ou que simplesmente se omitem diante da injustiça.
Verifico que Deus não faz acepção de pessoas, mas que,
38
em qualquer nação,quem o teme e prática a justiça lhe é agradável.
35
BOFF, Leonardo. Experimentar Deus Hoje. Rio de Janeiro. Editora Vozes, 2003, pág.168.
ROM 1,18. Bíblia de referência Thompson. Ed. Vida. São Paulo, SP. 12° Edição, 2000.
37
RUBIO, Alfonso Garcia. O Encontro com Jesus Cristo Vivo. São Paulo. Paulinas, 2003, pág. 59.
38
ATOS 10,34-35. Idem.
36
33
Em segundo lugar, o Deus revelado na cruz de Jesus é um Deus solidário
com o sofrimento de cada ser humano, um Deus que assume o sofrimento e a
morte de Jesus e, inseparavelmente, o sofrimento e a morte de todos os seres
humanos. É um Deus que não está fora ou à margem do sofrimento e do mal,
existentes na história humana, um Deus que vence o mal, não mediante discursos
dirigidos aos que sofrem, mas assumindo-o de acordo com o próprio interior da
negatividade da história. É um Deus enfim que vence o sofrimento e o mal,
assumindo-os mediante Jesus Cristo, com uma solidariedade e um amor que
visam a transformar a situação negativa em que o outro (outros) se encontra, um
Deus que, nessa solidariedade e nesse amor transformadores, abre um futuro
novo, tornando possível, de fato, a esperança.
Podemos agora compreender melhor por que o marginalizado, o
empobrecido, aquele que não tem valor social..., precisamente ele (ou ela)
constitui a mediação privilegiada do Reino de Deus. Nele está presente, de forma
oculta, o revelador do Reino, o Filho do Homem (Mt 25,31), a interpelação viva do
Reino de Deus.
39
3. A Opção de Deus pelos Pobres, na Visão do Apóstolo Paulo
Corinto era uma das cidades mais importantes do Império
Romano. Tinha em torno de 400 mil habitantes, na maioria migrantes. Em
27 a.C., tornou-se a sede da província da Acaia (Grécia). A cidade era
muito movimentada, com dois portos: Laqueu, a oeste e Cencréia, a
leste. Ligavam Roma à A´sai. Os escravos carregavam as mercadorias e
empurravam os navios por cerca de seis quilômetros entre um porto e
outro. Era trabalho duro. Em Corinto, morava a maioria dos latifundiários
da Grécia. Havia um abismo entre ricos e pobres. Corinto era centro
comercial, administrativo, industrial (por exemplo: bronze) e cultural.
O poder político e econômico estava nas mãos de poucos que
viviam explorando os pobres e escravos, deliciando-se com festas,
39
RUBIO, Alfonso Garcia, op. cit, p.101.
34
músicas, teatro e com os jogos ístmicos. Estes eram realizados de dois
40
em dois anos em honra a Posêidon, Deus dos mares.
Na primeira carta aos Coríntios, Paulo enfrenta oponentes internos da
própria comunidade. Estes são fundamentalmente um pequeno grupo de pessoas
com poder, que quer impor a Paulo e à comunidade uma prática diferente, o que
implica também uma pastoral e uma teologia diferentes da de Paulo.
Ora, vede, irmãos, a vossa vocação, que não são muitos os sábios
segundo à carne, nem muitos os poderosos,
nem muitos os nobres que são chamados.
Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as
sábias; Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as
fortes.
Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que
não são,
41
para aniquilar as que são; para que ninguém se glorie perante ele.
Paulo nos convida a fazer uma análise social e teológica da comunidade:
“Irmãos, olhai quem foi chamado”. Na comunidade, portanto, há uma minoria
frente a uma maioria (o autor insiste três vezes na expressão “não há
muitos”).Esta minoria está composta por sábios segundo a carne (possivelmente
alguns filósofos ou mestres importantes de Corinto), por poderosos (membros
importantes das estruturas políticas da cidade) e por nobres (alguns das famílias
patrícias e oligárquicas da cidade).A maioria, pelo contrário, é composta pelo que
o mundo considera néscio, fraco, plebeu e desprezível.
O mais importante é que a composição cultural, política e social da
comunidade refletem a opção de Deus. Deus chama e escolhe a todos, mas a
40
41
GASS, Ildo Bohn, op. cit, p. 157.
1COR 1,26-28. Bíblia de referência Thompson.
35
preferência de Deus é por essa maioria dos considerados estultos, fracos, plebeus
e desprezíveis. Esta e a opção do próprio Deus pela maioria pobre e oprimida da
comunidade, opção que é, explicitamente dito, para “confundir” a minoria. A última
frase usa um verbo ainda mais forte: Deus escolhe o que não é para “reduzir a
nada” o que é. A opção de Deus pelos pobres confunde e reduz ao nada essa
minoria sábia, poderosa e nobre da comunidade.42
Percebemos assim que Paulo chama a loucura da cruz, o poder de Deus
que se manifesta na fraqueza, a sabedoria de Deus que é estultícia para a
sabedoria dos príncipes deste mundo.
A ressurreição de Jesus é inseparável da sua cruz. Na pregação de Paulo,
elas estão intimamente associadas (1 Cor 1,23).
Ao concluir este item, lembramos que, na experiência de Paulo, a cruz é o
poder de Deus (1 Cor1,18). É um poder que se manifesta na fraqueza, no nãopoder, segundo os critérios dos potentes deste mundo. Confiar na cruz é confiar
unicamente em Deus, é contar somente com sua força (2 Cor 13,4) que, na
verdade, está presente na realidade da vida do povo pobre e trabalhador, pois é
ele que carrega o peso da sociedade.
43
4. A Comunidade Vivenciando a Paixão
Todos os que creram estavam juntos, e tinham tudo em comum.
44
Ninguém considerava exclusivamente seu nem uma das coisas
que possuía; tudo, porém, lhes era comum.45
42
RICHARD, PABLO. Apocalipse, Reconstrução da Esperança. Editora Vozes, 1998.
GASS, Ildo Bohn, op. cit, p. 133.
44
ATOS 2.44. Bíblia de referência Thompson.
43
36
Partilhando o pão, acolhendo as pessoas doentes, vivendo novas relações
de gênero e de poder, as primeiras comunidades experimentaram uma nova
relação com o sagrado presente no dia-a-dia de suas vidas. Eram modelos de
convivência social e religiosa. Modelos de inclusão e de solidariedade. Essas
pequenas células de convivência fraterna eram, ao mesmo tempo, denúncia de
estruturas sociais injustas e anúncio de um mundo onde novas relações se
aproximam do ideal do Reino de Deus.
Reunidos nas comunidades joaninas, esses grupos mais marginalizados
pelas instituições judaicas experimentaram o amor de Deus que se revelou em
Jesus de Nazaré. Ele veio realizar a definitiva aliança (Jo 2,1-12). Sentiam sua
presença viva no Espírito enviado pelo Pai. Era Ele a autoridade nas igrejas. Por
isso, não permitiram que suas comunidades se hierarquizassem. O poder-serviço
era a forma de exercer a autoridade (Jo 13,1-17). O amor era a única lei. Era o
critério que orientava as novas relações nessas comunidades de iguais (Jo 13,3435).
46
A reconciliação acontecia nas casas, nas igrejas domésticas, ao redor da
mesa, na partilha e no serviço uns aos outros. O perdão se manifestava de forma
concreta numa casa ao redor de uma mesa e no serviço solidário. A grande
adesão dos pobres, sem terras, sem tetos e sem cidadania acontecia porque
havia uma nova prática nas comunidades.
45
46
ATOS 4.32. Bíblia de referência Thompson.
GASS, Ildo Bohn, op. cit, p. 62.
37
Apresentaram-no como projeto de libertação da humanidade toda, de
qualquer forma de opressão, seja pessoal, social, ou estrutural.
47
A propriedade comum de bens foi um dos resultados do derramamento do
Espírito Santo no dia de Pentecostes. Não foi uma vitória da genialidade humana,
mas um resultado da vida espiritual que uniu os crentes em um só coração e uma
só alma.
Nem Atos nem as epístolas neotestamentárias se referem jamais ao
“comunismo de amor” da igreja de Jerusalém como normativo para a igreja
através dos séculos. No entanto, está claro que a preocupação pelos pobres era
para os primeiros cristãos um aspecto essencial da vida e da missão da igreja.
48
A preocupação com os pobres era na igreja primitiva um aspecto normal do
discipulado cristão. Traduzida em ação, ela dava visibilidade à vida do Reino
inaugurado por Jesus Cristo. Sua raiz não era nem a idealização da pobreza, nem
o desejo de obter méritos perante Deus, mas a graça de nosso Senhor Jesus
Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que pela sua pobreza
vos tornásseis ricos. (2 Co 8.9)
47
49
GASS, Ildo Bohn, op. cit, p. 78.
PADILHA, C. René. Missão Integral. 2°Edição Londrina: Descoberta, 2005, pág.196.
49
Idem, p.197.
48
38
lll. A GRATUIDADE DO REINO DE DEUS,
EVIDENCIA-SE EM SEUS DESTINATÁRIOS
O caráter de gratuidade, próprio do Reino de Deus, é tão importante e tão
fundamental que convêm abordá-lo também a partir de seus destinatários.Estes,
segundo o próprio Jesus, são: os pobres, as crianças, os pequenos e os
pecadores.
...Bem-aventurados vós, os pobres, pois vosso é o reino de Deus.
Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, pois sereis fartos.
Bem-aventurados vós que chorais pois haveis de rir.
Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem,
e quando vos expulsarem, vos injuriarem e rejeitarem o vosso
nome como indigno, por causa do Filho do homem.
Folgai nesse dia, exultai, porque grande é vosso galardão no
50
céu...
O pobre é convidado a participar do Reino não porque seja melhor, mais
hospitaleiro ou mais solidário do que o rico. O pobre pode ser tudo isso, mas
Lucas não está falando de merecimento nem das qualidades do pobre. È a
situação miserável e injusta em que a pessoa do pobre se encontra que faz com
que o Deus do Reino intervenha em seu favor.
Sob a ótica em que se coloca Lucas, não é tão difícil deduzir que o pobre é
convidado, não por causa de suas qualidades ou merecimentos, mas pela escolha
gratuita de Deus, o rei justo que favorece aqueles que não têm defesa. 51
O que Jesus nos comunica é algo muito diferente: aceitem o Reino de Deus
como um dom, como um presente, como uma realidade estupenda que vai muito
50
51
LUCAS 6,20-23. BÍBLIA de Referência Thompson.
RUBIO, Alfonso Garcia.op. cit, p. 52.
39
além de qualquer merecimento humano, como uma realidade assombrosa que só
o amor de Deus pode oferecer!
E quem são os pequenos? São homens e mulheres do povo: camponeses
e camponesas, pescadores, etc. São pessoas que não têm títulos honoríficos para
apresentar a Deus, nem posição social, nem estudos especiais, nem poder de
qualquer outro tipo.
Naturalmente, aqueles que eram tidos como pecadores passavam a ser
desprezados e marginalizados. E não podiam confiar nas próprias “obras”, como
os “justos”, precisamente porque não as tinham. Uma vez que não cumpriam
todas as prescrições da lei, só lhes restava a acolhida da misericórdia de Deus, o
único que poderia abrir-lhes um horizonte de salvação.
52
Os intérpretes podem diferir quanto à sua compreensão da solidariedade de
Jesus com os pobres e oprimidos. No entanto, ninguém pode, sem descartar a
evidência, negar que Jesus concebeu seu ministério como a inauguração de uma
nova era, na qual seria feita justiça aos pobres. 53
1. O Inicio do Evangelho na América Latina - (O testemunho da vida
de Bartolomeu de Las Casas)
A todos os que sofrem e estão sós, dai sempre um sorriso de alegria.
Não lhes proporciones apenas os vossos cuidados, mas também o vosso
coração .
52
RUBIO, Alfonso Garcia, op. cit, p.63.
PADILHA, C. René. Missão Integral. 2° Edição Londrina: Descoberta, 2005, pág.192.
54
Frase de Madre Teresa de Calcutá. PENSADOR.INFO.
53
54
40
Gustavo Gutiérrez
55
nos relata as histórias de Bartolomeu de Las Casas e
seu impacto dos fatos ocorridos com os moradores desta terra. A expansão para
as Índias e sua colonização em nome da fé trouxe uma postura comprometedora.
Ele assim nos faz refletir sobre o impacto que teve o cristianismo neste período e
as conseqüências posteriores na América Latina. Como chegou o Evangelho de
Jesus a essas terras? O que significa hoje as primeiras reações de cristãos diante
da violência, do desdém e da morte das populações indígenas? Em que medida
os protestos, reflexões e compromissos de inúmeros missionários do séc. XVI
diante dos sofrimentos dos índios têm algum significado para os nossos dias?
Infelizmente, pode-se dizer algo semelhante a respeito dos atuais pobres da
América Latina, que continuam sofrendo morte prematura e injusta. A reflexão
sobre a fé percebeu-se rápida e eficazmente comprometida na consciência da
situação de pobreza e injustiça em que vive a imensa maioria da população da
América Latina, bem como na inspiração que deve animar a procura de uma
libertação que leve em consideração a complexidade da pessoa humana. Por tudo
isto, parece-nos tão significativo, na atualidade, o testemunho de Bartolomeu de
Las Casas que se sentiu impulsionado a anunciar devidamente o Reino de Deus,
defendendo a vida e a liberdade daqueles em quem sua fé o levava a encontrar o
próprio Cristo. Em sua obra transparece uma contínua interação entre reflexão e
compromisso histórico, entre teoria e prática. Trata-se de um pensamento que não
só se refere à prática, mas que é laborado por alguém inserido nela. A fé
confiança em Deus e aceitação de sua mensagem ilumina um discurso que deve
55
GUTIÉRREZ, Gustavo. Em busca dos pobres de Jesus Cristo.São Paulo: Paulus, 1995, pág. 7,8.
41
penetrar a experiência humana. A compreensão da fé trata de uma verdade
revelada que é acolhida por pessoas concretas. Certa perspectiva filosófica e
teológica induz alguns a pensar que a reflexão é tão mais exata e de maior nível
quanto mais se distancia das lides cotidianas e da ambigüidade da ação. Mas,
sem dúvida, esta não é a concepção cristã mais antiga e mais tradicional.
Desde os primeiros séculos da Igreja, a teologia se construiu através de
uma relação próxima e constante com a existência cristã e a missão eclesial,
desafiada e questionada, a fim de contribuir fielmente com a revelação, dando
testemunho da salvação em Jesus Cristo.
Aproximar-se desta testemunha do amor de Deus nas Índias, implica
respeitá-lo em seu mundo, em sua época, em suas fontes, ser lúcido sobre seus
limites. As vertentes libertadoras de fé estão aí: pode encontrá-las quem desejar
proclamar a boa nova a partir dos sofrimentos e das esperanças dos pobres.56
Com efeito, a justiça, expressão do amor, é uma exigência de suma
importância para o cristão. Segundo a Bíblia, estabelecer “a justiça e o direito”
para o povo judeu significa prolongar o ato libertador de Deus que o retirou da
opressão em que vivia no Egito. É fidelidade à aliança estabelecida com Deus; ela
deve conduzir à plenitude da vida. Nesta perspectiva, o termo justiça, partindo dos
laços estabelecidos entre pessoas que vivem em sociedade, manifesta também a
relação dos seres humanos com Deus. O primeiro sentido não é anulado, antes, é
assumido dentro de uma conotação tão importante e rica na Escritura que chega a
equivaler à salvação, ou seja, da plena comunhão com Deus e com os outros.
56
GUTIÉRREZ, Gustavo, op. cit, p. 15.
42
São Paulo, por exemplo, fala da salvação como justificação; pela mesma razão, a
palavra justo é equivalente a santo.
Assim, em sua luta pela justiça Las Casas apela constantemente pra a
compreensão da fé, marcada pela sua meditação sobre a figura de Jesus Cristo.
Ela lhe permite discernir, no tumulto dos acontecimentos, convencer seus
interlocutores, perceber as exigências da boa nova em seu “aqui e agora” para
anunciar o amor de Deus de sua fé e de sua esperança.Trata-se de uma reflexão
teológica vigorosa em alguns momentos, titubeante em outros, mas sempre a
procura, ao serviço da proclamação do amor de Deus por sua pessoa e em
especial pelos pobres de seu tempo.
57
2. Evangelização e Realidade
A religião pura e sem mácula, para com nosso Deus e Pai, é
esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e a si mesmo
guarda-se incontaminado do mundo. 58
Temos de ir à procura das pessoas, porque podem ter fome de
59
pão ou de amizade.
Evangelizar é anunciar com obras e palavras a salvação em Cristo. Tendo
vencido na raiz as forças do pecado que dominam o “homem velho”, através de
sua entrega até a morte e de sua Ressurreição pelo Pai, o Filho de Deus feito
57
GUTIÉRREZ, Gustavo, op. cit, p. 23.
Tg 1,27. Bíblia de referência Thompson. Ed. Vida. São Paulo, SP. 12° Edição, 2000.
59
Frase de Madre Teresa de Calcutá. PENSADOR.INFO.
58
43
carne aplaina o caminho do “homem novo”, a fim de que este dê cumprimento à
sua vocação de comunhão com Deus no “face a face” Paulino (1Co 13).
Mas precisamente porque essa libertação do pecado vai ao coração mesmo
da existência humana, ali onde a liberdade de cada um aceita ou rejeita - em
última instância- o amor gratuito e redentor de Deus, nada escapa a ação salvífica
de Jesus Cristo. Esta alcança e deixa a sua marca em todas as dimensões
humanas, pessoais e sociais. 60
Há poucos anos acontecia o seguinte. Num desses programas que as
Igrejas mantêm em rádios foi lido um texto de Amós. A simples leitura do texto
provocou a ira de repressão policial. O locutor teve de explicar-se junto a órgãos
policiais. Sim, a crítica social de Amós é de palpitante atualidade. Poder-se-ia até
dizer: basta lê-la.
Não só suas palavras são atuais. Seu método também, pois ele não se
esgota numa denúncia genérica do pecado social. Vai ao concreto, aos detalhes,
à vida cotidiana. Recorre às mediações. E chama as coisas pelo seu nome
concreto.
Isso não faz com que o os pobres estejam excluídos do pecado. Não os
transforma em “santos”. Nem opta por eles por causa de sua isenção de pecado
ou por causa de sua suposta perfeição. O “terror total”, no qual vivem os pobres, é
o que motiva sua defesa. Em Amós, essa defesa dá-se de uma forma tão intensa
e radical que se pode afirmar que aí, nesse grito pelo pobre, tudo se decide. A
veracidade da fé é afunilada em direção da defesa dos empobrecidos. Nessa
60
GUTIÉRREZ, Gustavo, op. cit, p. 10 e 11.
44
questão concretíssima decide-se a teologia. “Aquele que não ama não conhece a
Deus, pois Deus é amor” (1 Jo 4,8).
61
Teologia da palavra é teologia de resistência, em Amós de resistência
contra sacerdócio e realeza, contra a opressão e o “total terror” contra os
empobrecidos.
Teologia
da
palavra
é
teologia
de
gente
empobrecida,
enfraquecida, crucificada.62
63
A falta de amor é a maior de todas as pobrezas.
64
O que eu faço é simples: ponho pão nas mesas e compartilho-o.
Na América Latina, a Bíblia está sendo descoberta. É lida com fervor. Fezse símbolo e alimento do novo jeito de ser de toda a igreja. As comunidades
cristãs nutrem-se e animam-se, lendo e celebrando a história bíblica.
Essa redescoberta traz à tona um novo jeito de compreender a Escritura.
Experimenta-se uma nova aproximação aos textos. Abrem-se novas portas. Passo
a caracterizá-las, ainda que de maneira bastante breve.
A nova leitura é, antes de mais nada, profundamente litúrgica. Está
enraizada no convívio da comunidade, em seu canto, em sua oração, em sua
eucaristia. Não foi concebida no academicismo ou no mundo racional. Seu berço é
a liturgia comunitária e a luta contra as dores da vida. Provém da prática da
comunidade e a ela direciona-se. São, por exemplos, as lutas pela terra e pelo teto
as que, entre nós, puxam e animam a redescobrir a história bíblica. É a opressão
da mulher pobre e a espoliação da gente trabalhadora que direcionam a ótica de
61
62
SCHWANTES, Milton, op. cit, p.110.
Idem, p.121.
Frase de Madre Teresa de Calcutá. PENSADOR.INFO
64
Idem.
63
45
leitura. Reivindicam uma interpretação que parte do concreto e o social, das dores
e utopias da gente latino-americana. As lutas de nossos povos fermentam e
maduram o novo jeito de ler.
E, enfim, emergem um novo portador de interpretação. Mulheres e homens
empobrecidos tornam-se sujeitos de leitura. Os empobrecidos são novos agentes,
novos hermeneutas. A escritura é memória dos pobres.
Essas são algumas das novas portas que as comunidades estão abrindo.
Há outras mais. Aqui só quis aludir a essa nova experiência que nos marca na
65
América Latina.
Contudo, não me parece que, na releitura bíblica, fosse suficiente ser
solidário com as mulheres e os homens pauperizados. Igualmente decisivo é o
jeito de ler. Só a intenção e o propósito podem evidenciar-se como incompletos. O
método de leitura da Bíblia necessita estar achegado ao método de leitura e de
transformação das condições às quais os pobres estão sujeitados. Os pobres
cada vez mais se entendem como empobrecidos e, em suas organizações,
mostram que somente a derrocada das causa de sua pauperização diária será
capaz de transformar sua situação. A leitura da Bíblia não poderá estar descolada
da prática dos oprimidos. Precisa ser inserida no método dos pobres.
Javé, ele mesmo como criador e libertador, é solidário com as “cantoras”
/escravas, as viúvas, os órfãos, os pequenos. Não há nada mais decisivo que
esse testemunho a respeito do Deus que vê e ouve o clamor do seu povo
pisoteado.66
65
66
SCHWANTES, Milton, op. cit, p.184.
Idem, p.202 e 203.
46
3. Libertados para a Liberdade
Se o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.
67
Antes de tudo, é oportuno fazer algumas breves observações sobre os
vínculos entre libertação e liberdade, questão medular em teologia da libertação.
O ponto de partida está num importante texto de Paulo na Epístola aos
Gálatas, que tem como centro o tema da liberdade do cristão: ”Cristo nos libertou
para que sejamos verdadeiramente livres [literalmente: para a liberdade]”, diz
Paulo (5,1). Libertação do pecado como encerramento egoísta em si mesmo.
Pecar é negar-se a amar a Deus e aos outros, e a libertação que Cristo operou é
para Paulo igualmente libertação da Lei e das forças da morte (Rom 8,2). O
pecado, ruptura da amizade com Deus e com os outros, é na Bíblia a causa última
da injustiça e da opressão entre os seres humanos, bem como de toda falta de
liberdade pessoal. Causa última porque certamente há outras situadas no nível
das estruturas econômicas e sociais, assim como no das dimensões pessoais.
Não é, pois, suficiente uma transformação, por mais radical que possa ser, dessas
estruturas e aspectos. Só o amor gratuito e salvífico de Cristo pode ir à raiz do
nosso próprio ser e fazer brotar daí um verdadeiro amor.
Não obstante, Paulo não se limita a dizer que Cristo nos libertou: ele afirma
igualmente que o fez para que fôssemos livres. Segundo uma distinção clássica,
cumpre considerar uma liberdade de e uma liberdade para. A primeira aponta para
67
João 8,36. Bíblia de referência Thompson.
47
o pecado, o egoísmo, a opressão, a injustiça, a necessidade, todas elas condições
que requerem uma libertação. A segunda indica o para que dessa liberdade: o
amor, a comunhão, é a etapa final da libertação. A liberdade par dá seu sentido
profundo à liberdade de. Se recorrermos ao que se diz nessa mesma Epístola aos
Gálatas, em 5, 13, poderíamos dizer que a expressão livres para amar resume a
posição paulina. Sem uma reflexão sobre a liberdade, uma teologia da libertação
fica mutilada.
A liberdade é um elemento central da mensagem cristã. A ênfase na
libertação não nos deve fazer esquecer disso. É importante estabelecer uma
fecunda relação entre libertação e liberdade. Isso se faz ainda mais urgente diante
de alguns questionamentos do tempo presente.Estes nos levam também a chamar
a atenção para o alcance de outro aspecto capital de fé estreitamente ligado ao
tema da liberdade. Referimo-nos ao vínculo que as Escrituras instituem entre
verdade e liberdade. “... e a verdade libertará vocês”, diz um célebre texto do
Evangelho de João (8,32). Essa verdade é o próprio Cristo que nos liberta e nos
chama à liberdade (Gl 5,13). Todos os seres humanos têm direito de ver essa
verdade comunicada a si, anúncio que não só deve tratar da liberdade, mas que,
além disso, deve constituí-la enquanto tal. Liberdade que, por outro lado, não deve
ficar encerrada a um âmbito individual e privado. Ela alcança seu verdadeiro
sentido quando dispõe as pessoas a entrar em relação com Deus e a ficar a
serviço dos outros, com ênfase especial nos mais pobres e despossuídos.
A tarefa evangelizadora da Igreja deve fazer que as pessoas sejam
efetivamente livres. Livres para amar. Em consonância essa finalidade, a reflexão
teológica deve ser a crítica de um pensamento que renuncia à busca da verdade,
48
devendo percorrer os caminhos que permitam o aprofundamento no dom da
verdade que nos torna livre.
68
4. Indiferença e Cuidado
O senhor não daria banho a um leproso nem por um milhão de dólares?
Eu também não. Só por amor se pode dar banho a um leproso.
69
Onde está Jesus, há vida. Plena, viva, amorosa e eterna. Ao falarmos em
vida nos referimos à morte. È incrível como nos acostumamos com qualquer tipo
de morte: da alma, nas ruas, violenta. A vida antecede a morte, mas colocamos a
morte antes da vida.
Disse um amigo, para Moltmann, em Nova York, ao discutir sobre a
criminalidade crescente, depois de um assalto, “o pior é que a gente vai se
acostumando”. Fiquei pensando na, morte. Cheguei a conclusão de que ele tinha
razão. O mal e sofrimento não são maus, mas a indiferença. Insensíveis
esquecemos-nos dos acontecimentos desagradáveis. Não notamos que os jovens
desempregados se multiplicam. Não percebemos que, sem esperança, entregamse às drogas e se viciam. Acostumamo-nos a vê-los roubando para comprar “a
matéria – prima” de seus falsos sonhos. Não mais nos alarmamos quando, à luz
do dia, vemos assaltos ou atropelamentos. Ninguém se espanta.
E assim o mal se expande como um tumor no corpo doente. Amplia-se o círculo
diabólico da pobreza, do desemprego, da criminalidade e das prisões.Por quê?
68
69
GUTIÉRREZ, Gustavo, op. cit, p. 44 e 46.
Frase de Madre Teresa de Calcutá. PENSADOR.INFO
49
Porque, simplesmente, não paramos para pensar, e não nos deixamos
impressionar. Aceitamos a brutalidade. Não queremos admitir a miséria dos
outros. Evitamos, destarte, sofrer com eles. Perdemos a paixão pela vida.
Evitamos os conflitos. A morte se aninha em nós. O mesmo acontece na
sociedade. Por causa da nossa indiferença, e não só pela própria incapacidade,
perecem os famintos no Terceiro Mundo, os desempregados em muitas partes da
terra, os prisioneiros e os excepcionais.
70
Pensamos demasiadamente
Sentimos muito pouco
Necessitamos mais de humildade
Que de máquinas.
Mais de bondade e ternura
Que de inteligência.
Sem isso,
A vida se tornará violenta e
71
Tudo se perderá.
Um psicanalista atento ao drama da civilização moderna como o norteamericano Rollo May comentou: ”Nossa situação é a seguinte: na atual confusão
de episódios racionalistas e técnicos perdemos de vista e nos despreocupamos do
ser humano; precisamos agora voltar humildemente ao simples cuidado...; é o
mito do cuidado – e creio, muitas vezes, somente ele – que nos permite resistir ao
cinismo e à apatia que são as doenças psicológicas do nosso tempo”.
Importa colocar cuidado em tudo. Para isso urge desenvolver a dimensão
anima72que está em nós. Isso significa: conceder direito de cidadania à nossa
capacidade de sentir o outro, de ter compaixão com todos os seres que sofrem,
70
71
MOLTMANN, Jurgen.Teologia da Esperança.São Paulo, 3° Ed. Loyola, 2005.
Frase de CHARLE CHAPLIN. PENSADOR.INFO.
Expressão difundida pelo psicanalista C.G.Jung (1875-1961) para designar a dimensão masculina (animus)
e feminina (anima) presentes em cada pessoa e que se reflete nos padrões culturais de comportamento.
72
50
humanos e não humanos, de obedecer mais à lógica do coração, da cordialidade
e da gentileza do que à lógica da conquista e do uso utilitário das coisas.
Dar centralidade ao cuidado não significa deixar de trabalhar e de intervir no
mundo. Significa renunciar a vontade de poder que reduz tudo a objetos,
desconectados da subjetividade humana. Significa recusar-se a todo despotismo e
a toda dominação. Significa impor limites a obsessão pela eficácia a qualquer
custo. Significa derrubar a ditadura da racionalidade fria e abstrata para dar lugar
ao cuidado. Significa organizar o trabalho em sintonia com a natureza, seus ritmos
e suas indicações. Significa respeitar a comunhão que todas as coisas entretêm
entre si e conosco. Significa colocar o interesse coletivo da sociedade, da
comunidade biótica e terrenal acima dos interesses exclusivamente humanos.
Significa colocar-se junto e ao pé de cada coisa que queremos transformar para
que ela não sofra, não seja desenraizada de seu habitat e possa manter as
condições de desenvolver-se e co-evoluir73 junto com seus ecossistemas74 e com
a própria Terra75.
Não ame pela beleza, pois um dia ela acaba.
Não ame por admiração,pois um dia você decepciona-se...
Ame apenas, pois o tempo nunca pode acabar com um amor sem explicação!!!
73
Evolução conjunta dos ecossistemas com seus respectivos representantes, incluindo os sistemas sociais e
técnicos.
74
Conjuntos de todos os sistemas sejam naturais, sejam técnicos, projetados pelo ser humano.
75
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999,
pág.101 e 102.
76
Frase de Madre Teresa de Calcutá. PENSADOR.INFO.
76
51
Na natureza, os seres interagem sem razões de sobrevivência, por puro
prazer, no fluir de seu viver.Trata-se de encaixes dinâmicos e recíprocos entre os
seres vivos e os sistemas orgânicos.Quando um acolhe o outro e assim se realiza
a co-existência, surge o amor como fenômeno biológico. Ele tende a expandir-se e
a ganhar formas mais complexas. Uma destas formas é a humana. Ela é mais que
simplesmente espontânea como nos demais seres vivos; é feita projeto da
liberdade que acolhe conscientemente o outro e cria condições para que o amor
se instaure como o mais alto valor da vida.
Nessa deriva surge o amor ampliado que é a socialização. O amor é o
fundamento do fenômeno social e não uma conseqüência dele. Em outras
palavras, é o amor que da origem à sociedade; a sociedade existe porque existe o
amor e não ao contrário, como convencionalmente se acredita. Se falta o amor (o
fundamento) destrói-se o social. Se, não obstante, o social persistir, ganha a forma
de agregação forçada, de dominação e de violência de uns contra os outros,
coagidos a encaixar-se. Por isso sempre que se destrói o encaixe e a congruência
entre os seres, destrói-se o amor e, com isso, a sociabilidade. O amor é sempre
77
uma abertura ao outro e uma com-vivência e co-munhão com o outro.
Um dos maiores desafios lançados à política orientada pela ética e ao
modo-de-ser-cuidado é indubitavelmente o dos milhões e milhões de pobres,
oprimidos e excluídos de nossas sociedades. Esse antifenômeno resulta de
formas altamente injustas da organização social hoje mundialmente integrada.
Com efeito, graças aos avanços tecnológicos, nas últimas décadas verificou-se
um crescimento fantástico na produção de serviços e bens materiais, entretanto,
77
BOFF, Leonardo, op. cit. p. 110.
52
desumanamente distribuídos, fazendo com que 2/3 da humanidade viva em
grande pobreza. Nada agride mais o modo-de-ser-cuidado do que a crueldade
para com os próprios semelhantes.
Como tratar esses condenados e ofendidos da Terra? A resposta a esta
pergunta divide, de cima a baixo, as políticas públicas, as tradições humanísticas,
as religiões e as igrejas cristãs. Cresce mais e mais a convicção de que as
estratégias meramente assistencialistas e paternalistas não resolvem como nunca
resolveram os problemas dos pobres e dos excluídos. Antes, perpetua-os, pois os
mantêm na condição de dependentes e de esmoleres, humilhando-os pelo não
reconhecimento de sua força de transformação da sociedade.
A libertação dos oprimidos deverá provir deles mesmos, na medida em que
se conscientizem da injustiça de sua situação, se organizam entre si e começam
com práticas que visam transformar estruturalmente as relações sociais iníquas. A
opção pelos pobres contra a sua pobreza e em favor de sua vida e liberdade
constituiu e ainda constitui a marca registrada dos grupos sociais e das igrejas que
se puseram à escuta do grito dos empobrecidos que podem ser tanto os
trabalhadores explorados, os indígenas e negros discriminados, quanto às
mulheres oprimidas e as minorias marginalizadas, como os portadores do vírus da
Aídes ou de qualquer outra deficiência. Não são poucos aqueles que não sendo
oprimidos se fizeram aliados dos oprimidos, para junto com eles e na perspectiva
deles empenhar-se por transformações sociais profundas.
53
O compromisso dos oprimidos e de seus aliados por um novo tipo de
sociedade, na qual se supera a exploração do ser humano e a espoliação da
Terra, revela a força política da dimensão –cuidado.78
O amor é a força mais sutil do mundo.
79
É o cuidado que permite a revolução da ternura ao priorizar o social sobre o
individual e ao orientar o desenvolvimento para a melhoria da qualidade de vida
dos humanos e dos outros organismos vivos. O cuidado faz surgir o ser humano
complexo, sensível, solidário, cordial, e conectado com tudo e com todos no
universo.
O cuidado imprimiu sua marca registrada em cada porção, em cada
dimensão e em cada dobra escondida do ser humano. Sem o cuidado o humano
se faria inumano. 80
78
BOFF, Leonardo, op. cit., p. 140 e 141.
Frase de Mahatma Gandhi. PENSADOR.INFO.
80
BOFF, Leonardo, op. cit., p. 190.
79
54
CONCLUSÃO
Senhor, quem é o ser humano para dele vos lembrardes
e tratardes com tanto carinho? (salmo 8,4)
Assim diz Javé: O que vossos pais encontraram em mim de injusto,
para que se afastassem de mim e corressem atrás do vazio,
tornam-se eles mesmos vazios? (Jr 2,5)
O ser humano criado à imagem de Deus encontra sua razão de ser na
referência ao próprio Deus e seu futuro está somente em Deus. Mas, é preciso
afirmar alto e bom som: o ser humano foi criado porque Deus o ama e quer fazer
dele seu parceiro na criação. Ela é a revelação desta bondade amorosa e da
liberdade infinita de Deus. Nela, o ser humano é a obra principal deste amor.
Considerar-se como criatura, para o cristão, longe de ser motivo de
humilhação ou privação de liberdade, é a certeza de possibilidade maiores. Hoje,
porém mais que a pergunta sobre a liberdade, povos inteiros se perguntam pelo
significado do ser criatura de Deus, quando exatamente dois terços da
humanidade vivem em condições de sub-humanidade ou de in-humanidade. De
quem são estas criaturas? Criaturas de que Deus? Ou que Deus é este que ignora
ou despreza sua criatura?
No Ocidente esta pergunta se faz mais forte porque ela repercute
imediatamente no cristianismo. Na América Latina e na África a pergunta não se
põe tanto sobre ser ou não ser livre, mas como se libertar destas formas de
opressão já que toda criatura é criatura de Deus. A pergunta desses povos é tão
fundamental, que precede, na ordem existencial, a questão da liberdade
55
substituindo-a pela questão direitos mínimos de dignidade que lhe é negada
permanentemente e estruturalmente como povo e como individualidade. Mais
ainda: a pergunta dos povos latino-americanos não faria jus a si própria se
ignorasse, em sua miséria relativa, a miséria absoluta em que vivem milhões de
outras criaturas de Deus no Oriente (chineses, filipinos, indianos, asiáticos) e na
África.
A pergunta se torna relevante no Ocidente e está posta porque o Ocidente
é tido como cristão e ele mesmo impossibilita para a grande maioria dos seres
humanos o acesso ao mínimo de dignidade de vida humana, enquanto uma
pequena porção vive na fartura, no esbanjamento e no desperdício dos bens
comuns da humanidade. Esta disparidade aos olhos de Deus, passa a ser uma
provocação arrogante ao Deus criador e à sua própria criatura.
O ser humano não é visto por Deus como uma coisa qualquer, antes é um
homem ou mulher que ama ou odeia, que chora e ri, sonha e luta, espera e crê.
Essa gente toda é sangue, suor, amor e paixão da mesma raça humana. Todos
eles são irmãos de raça, alguns são mal-amados, ignorados e até desprezados.
Irmãos que se eliminam por dinheiro, em guerras, crimes, e amores: que se unem
na dor e na alegria. Empenham-se na pesquisa científica, nos laboratórios, nos
grandes e pequenos interesses do mundo. Se conhecem como amigos, sócios,
companheiros,inimigos, concorrentes ou exploradores.
O ser humano produz seu próprio amor, seu próprio sofrimento. Sofrimento
na enfermidade e na fome, na privação da liberdade e carências do amor, na falta
de estruturas básicas (sanitária, educacional, habitacional, etc.) e cidadania
(econômica e política). Amor que se traduz no encontro e solidariedade, egoísmo
56
e morte, desenvolvimento científico, tecnológico e humano propriamente dito.
Nesta paixão por si mesmo, o ser humano se vê em grandeza, pequenez e
cotidianidade.
Para os cristãos, é somente Jesus Cristo quem revela a plenitude do ser
humano; quem revela e explica o ser humano ao próprio ser humano. Nele, Deus
demonstrou sua paixão pelo ser humano. Deus o fez à imagem divina para que
pudesse chegar um dia ser sua semelhança profunda e para evidenciar-lhe livre e
gratuitamente que o amor divino extrapola a possibilidade de um amor egoísta ou
egocêntrico.
Ao nos dedicarmos apaixonadamente aos outros, começamos a viver.
Nessa dedicação reavivamos outras vidas. Somente a paixão e o amor nos
tornam vivos na plenitude. Mas também nos tornam mortais. O que permanece da
paixão pela vida é o amor, o “sim” apaixonado para a vida e a resistência
apaixonada contra na negação da vida. Eis aí o segredo da vida e da morte. O
amor, porém, transforma a vida em paixão de Deus e a história do sofrimento de
Cristo levam-nos da morte para a vida e nos preservam, a nós e ao mundo, do
naufrágio na apatia.
Portanto, compartilhar o verdadeiro amor de Deus é envolver-se com o
necessitado nas suas necessidades. È ter solidariedade para com os pobres não
como uma opção, mas como marca essencial da participação na vida do Reino.
57
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Rubem. O Enigma da Religião, 4 Ed. Campinas Paulus, 1986.
BOFF, Clodovis. Uma Igreja Para o Novo Milênio. 3°Edição. São Paulo, 2003.
BOFF, Leonardo.Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
BOFF, Leonardo. Espiritualidade um caminho de transformação. Rio de Janeiro:
Sextante, 2006.
BOFF, Leonardo. Ética da Vida. Rio de Janeiro: Sextante, 2005.
BOFF, Leonardo. Igreja: Carisma e Poder. Rio de Janeiro: Editora Ática, 1994.
BOFF, Leonardo. O destino do homem e do mundo. 9. ed. Petrópolis, Vozes,
2000.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Em busca dos pobres de Jesus Cristo.São Paulo: Paulus,
1995.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Onde dormirão os pobres. 3°Edição.São Paulo: Paulus,
2003.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação. Perspectivas. Petrópolis: Vozes
1979.
JONES, Stanley. Cristo e o sofrimento Humano. 2. Ed. São Paulo, Exodux, 1995.
MOLTMANN, Jurgen.Teologia da Esperança.São Paulo,SP: 3° Ed. Loyola, 2005.
MOLTMANN, Jurgen. Deus na Criação: Doutrina ecológica da Criação, RJ: Vozes,
1993.
MESTERS, Carlos. Esperança de um povo que luta. 13°Ed. Petrópolis, RJ: 2004.
MESTERS, Carlos. Paraíso Terrestre. 17°Ed. Petrópolis, RJ: 2001.
PADILHA, C. René. Missão Integral. 2°Edição Londrina: Descoberta, 2005.
58
RIBEIRO, Hélcion. Ensaio de Antropologia Cristã. Rio de Janeiro. Editora Vozes,
1995.
RICHARD, PABLO. Apocalipse, Reconstrução da Esperança. Editora Vozes,
1998.
RUBIO, Alfonso Garcia. O encontro com Jesus Cristo vivo: um ensaio de
cristologia para nossos dias. São Paulo: Paulinas, 2003.
SCHWANTES, Milton. A terra não pode suportar suas palavras(Am 7,10): reflexão
e estudo sobre Amós.São Paulo: Paulinas, 2004.
COLEÇÃO CID. Experimentar Deus Hoje. Rio de Janeiro. Editora Vozes, 2003.
VARONE, Franois. Esse Deus que dizem amar o sofrimento.Aparecida São Paulo:
Editora Santuário, 2001.
BÍBLIA DE REFERÊNCIA THOMPSON. Ed. Vida. São Paulo, SP. 12° Edição,
2000.
SITE: PENSADOR.INFO.
Download