RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NA INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA COMPULSÓRIA Fábio de Holanda Monteiro 1 RESUMO: O presente artigo tem como objetivo fazer uma abordagem da responsabilidade civil do estado na internação psiquiátrica compulsória, levando-se em conta que a ordem jurídica constitucional brasileira, alicerçada na dignidade humana, impõe a todos um tratamento igualitário, independentemente de cor, raça, religião, condição social, capacidade mental e estado, buscando garantir aos seres humanos meios para viver e conviver com felicidade e harmonia. Tomar-se-á como base as diretrizes garantidoras do direito fundamental à saúde previstas na Constituição Federal de 1988, na Lei nº 8.080/90, na Lei nº 10.216/2001, na jurisprudência, bem como uma abordagem doutrinária transdisciplinar que tenha pertinência com a matéria, estabelecendo uma interface com o Direito. I – INTRODUÇÃO O Estado brasileiro, a exemplo dos demais estados do mundo ocidental, afastou-se do modelo neutro que caracterizava o Estado liberal, estabelecendo expressamente em diversos dispositivos constitucionais a participação do poder público com objetivo de proporcionar o bem-estar social, caracterizando-se como um modelo de Estado social de direito com o dever de garantir a igualdade material entre os cidadãos. Faz-se necessário, a fim de conferir um tratamento isonômico aos cidadãos, que haja oferta de prestações estatais positivas, cuja materialização ocorre sob a forma de direito econômicos e sociais, tais como prestações relativas à pessoa idosa, à criança e ao adolescente, ao deficiente, à educação, e à saúde. No que diz respeito à saúde, a Constituição de 1988 a consagrou como um direito fundamental de proteção (MENDES, 2012). Foi com a promulgação desta Carta Magna que houve consideráveis transformações no que diz respeito ao direito à saúde, a qual fora relegada pelas Constituições anteriores. A Constituição de 1824, de cunho liberalista, não se preocupou com o quesito saúde, voltando sua atenção mais para a propriedade privada e suas garantias. A Constituição de 1891 também não trouxe nada em termos de saúde, sem um mínimo de significado. A Constituição de 1934, por sua vez, idealizou um Estado Social que, além de tratar sobre o 1 Procurador do Estado do Piauí. Professor Efetivo do Curso de Direito da UESPI. Especialista em Processo Administrativo pela UFC. Especialista em Direito Tributário pela UECE. Mestrando em Direito pela PUC-RS. Advogado. princípio da dignidade humana, mencionava o direito à subsistência, a competência concorrente da União e dos Estados na matéria e a adoção de medidas preventivas e a preocupação com a saúde mental. A Constituição de 1937, de característica autoritária, não tratava sobre o direito fundamental à saúde, e de igual modo ocorreu também com a Constituição de 1946. A Constituição de 1967 tratou sobre o direito da saúde de forma muito superficial (DAVIES, 2012). Não havia uma efetiva proteção da saúde, pois referidos textos constitucionais limitavam-se a inserir a saúde como objeto das normas de atribuições de competências legislativas e executivas, ou apenas atribuir uma proteção de maneira indireta nas normas que tratavam de direitos do trabalhador e de assistência social (SARLET et al, 2011). Não há dúvida que a Constituição de 1988, além de conferir o direito à saúde um status de direito fundamental social (art. 6º), traz um alargamento no que se refere ao conceito de direito à saúde, abarcando não somente o caráter curativo, mas também o preventivo e o bem-estar do cidadão (art.196). Ao atribuir o direito à saúde como um direito fundamental necessário à preservação da dignidade humana, a Lei Suprema abarca também a saúde mental, entendida esta, segundo definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), como sendo o estado de completo bemestar físico, mental e social. A saúde mental deve abranger o bem-estar subjetivo, a autoeficácia percebida, a autonomia, a competência e a autorrealização do potencial intelectual e emocional do indivíduo (VENTURA, 2011). II - O DIREITO À SAÚDE NA ORDEM JURÍDICO-CONSTITUCIONAL BRASILEIRA O direito à saúde, com estreita correlação com a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III) e com o direito à vida (art. 5º, caput), na ordem jurídico-constitucional brasileira, encontra-se expressamente consagrado na Constituição federal, logo de inicio, no caput do art. 6º, nos seguintes termos: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (grifei). É de salientar-se que o direito à saúde, além de possuir vinculação com o direito à vida, encontra-se umbilicalmente ligado não somente à ideia de integridade corpórea, mas também de integridade psíquica do ser humano (SARLET, 2013). Contudo, em que pese sua previsão no art. 6º da Lei Suprema, o direito à saúde encontra-se sua concretização de maneira mais efetiva nos art. 196 e ss. ao estabelecer a necessidade de uma regulamentação normativa infraconstitucional, assegurando que tal direito além de pertencer a todos, impõe aos poderes públicos o dever de promoção de políticas sociais e econômicas que busque a diminuição do risco de doenças e de outros agravos, bem como a permissão de acesso universal e igualitário às ações e prestações que lhes digam respeito (SARLET, 2013). Nesse ínterim, torna-se oportuno citar a seguinte jurisprudência do Eg. STF: E M E N T A: PACIENTES COM ESQUIZOFRENIA PARANÓIDE E DOENÇA MANÍACO-DEPRESSIVA CRÔNICA, COM EPISÓDIOS DE TENTATIVA DE SUICÍDIO - PESSOAS DESTITUÍDAS DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE NECESSIDADE IMPERIOSA DE SE PRESERVAR, POR RAZÕES DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, A INTEGRIDADE DESSE DIREITO ESSENCIAL - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS INDISPENSÁVEIS EM FAVOR DE PESSOAS CARENTES - DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO (CF, ARTS. 5º, "CAPUT", E 196) PRECEDENTES (STF) - ABUSO DO DIREITO DE RECORRER IMPOSIÇÃO DE MULTA - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA.- O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.- O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE.- O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA, A PESSOAS CARENTES, DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS À PRESERVAÇÃO DE SUA VIDA E/OU DE SUA SAÚDE: UM DEVER CONSTITUCIONAL QUE O ESTADO NÃO PODE DEIXAR DE CUMPRIR.- O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, "caput", e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF. MULTA E EXERCÍCIO ABUSIVO DO DIREITO DE RECORRER.- O abuso do direito de recorrer - por qualificar-se como prática incompatível com o postulado ético-jurídico da lealdade processual - constitui ato de litigância maliciosa repelido pelo ordenamento positivo, especialmente nos casos em que a parte interpõe recurso com intuito evidentemente protelatório, hipótese em que se legitima a imposição de multa. A multa a que se refere o art. 557, § 2º, do CPC possui função inibitória, pois visa a impedir o exercício abusivo do direito de recorrer e a obstar a indevida utilização do processo como instrumento de retardamento da solução jurisdicional do conflito de interesses. Precedentes. (STF, RE 393175 AgR / RS, 2ª T., Rel. Min. Celso de Mello, j. 12/12/2006, DJ 02-022007 PP-00140, EMENT VOL-02262-08 PP-01524). (grifei). III – A REFORMA PSIQUIÁTRICA E A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA A história da civilização no que diz respeito aos portadores de transtorno mental é marcada pela intolerância, com a sociedade vendo-os como loucos em constante ameaça à sua segurança, confinando-os em asilos, terminado por excluí-los da convivência social, com consequente restrição aos seus direitos relacionados à dignidade humana. Nesse contexto, dúvida não há que os portadores de transtorno mental fazem parte de um grupo vulnerável da população, o que, de certa forma, já vem passando por mudanças implementadas por movimentos que buscam a conscientização de que é fundamental a luta pela preservação de seus direitos. Dessarte, a Lei nº 10.216/2001, que implantou a Reforma Psiquiátrica no Brasil, assume um importante papel no tratamento e na reinserção social dessas pessoas, conferindo-lhes um tratamento humano mais digno, condizente com o preconizado pelo art. 1º, inc. III, da CF/88. A Lei nº 10.216/2001 traz, no parágrafo único de seu art. 2º, diversos direitos às pessoas portadoras de transtorno mental, com especial destaque para melhor tratamento do sistema de saúde conforme suas necessidades; tratamento humanitário e respeitoso no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, proporcionando sua inserção na família, no trabalho e na comunidade; proteção contra qualquer forma de abuso e exploração; ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental; etc. O processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil é caracterizado primordialmente por novos conceitos, como cidadania, atenção integral e busca da colocação da saúde como referencial no lugar da doença. A Reforma objetiva a transformação nas relações cotidianas entre os profissionais de saúde mental, usuários, famílias, sociedade e serviços, com fins de buscar a desinstitucionalização e a humanização das relações sociais (CORREIA, 2004). Propõe-se o fechamento de hospitais psiquiátricos (hospícios), com a redução gradativa de leitos, a municipalização dos serviços, o questionamento das internações involuntárias, a vigilância, avaliação e acompanhamento pelas omissões locais de saúde (CORREIA, 2004). Há que se destacar que a questão dos portadores de transtornos mentais continua a representar um grande desafio para todos os que se interessam pela prevenção, pelo estudo, e pelo tratamento, posto existir uma conjuntura social, econômica, e política, que não propicia a saúde do indivíduo do ponto de vista físico, psíquico, social, e econômico, reforçando, em decorrência disto, o adoecimento e a exclusão social. Mostra-se incabível, perante a ordem jurídico-constitucional pátria, um tratamento antiisonômico entre os seres humanos, posto que seus valores encontram-se assentados, sobremaneira, no princípio da dignidade humana. A dignidade humana impõe um tratamento igualitário, devendo-se levar em conta inclusive a igualdade social, cuja efetividade demanda respeito às diferenças, observando-se que os indivíduos com maiores dificuldades sociais, econômicas, e mentais, devem ter maior amparo por parte do Estado e de toda a sociedade, buscando superar as dificuldades, proporcionando-lhes uma participação ativa da vida comunitária e social em geral (SANTOS, 2004). Não restam dúvidas que os portadores de transtorno mental necessitam de um tratamento específico com base em técnicas médicas, farmacológicas e sociais específicos, representando a Lei nº 10.216/2001 um grande avanço no tratamento de na convivência com as pessoas portadoras de transtorno mental. Aludida lei constituiu num verdadeiro marco na busca do respeito às pessoas afetadas por transtornos mentais. Consoante o disposto no art. 4º, caput, da Lei nº 10.216/2001, a internação psiquiátrica, seja qual modalidade for, mostrar-se cabível quando a recursos extrahospitalares forem tidos como insuficientes, resultando em risco à integralidade física à saúde ou à vida dos portadores de transtorno mental ou a terceiros (SANTORO FILHO, 2012) A situação de perigo concreto deve estar prevista em laudo médico, caso contrário, torna-se incabível a necessidade de internação do paciente. Em havendo necessidade de internação, esta deverá buscar a cessação do estado de perigo, com consequente reinserção social do paciente em seu meio (Art. 4º, § 1º, da Lei nº 10.216/2001). Consoante o disposto art. 6º, caput, da Lei nº 10.216/2001, a internação psiquiátrica exige laudo médico que a justifique. No parágrafo único do mesmo dispositivo legal, encontram-se previstos como modelos de internação a voluntária, a involuntária, e a compulsória, litteris: Art. 6o A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos. Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica: I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça. (grifos no original) Na internação voluntária há o consentimento do paciente, que deverá assinar uma declaração atestando sua escolha por este tipo de tratamento (art. 7º, caput, da Lei nº 10.216/01). Referida declaração faz-se essencial para que a internação seja reconhecida como voluntária, cujo término ocorrerá a pedido do próprio paciente ou por determinação médica, caso seja constatada a desnecessidade de continuidade do tratamento (art. 7º, parágrafo único, da Lei nº 10.216/01). A internação involuntária, por sua vez, dá-se sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro, cujo término somente ocorrerá por solicitação escrita do familiar ou responsável legal, ou ainda quando houver manifestação do médico responsável pelo tratamento (art. 8, § 2º, da Lei nº 10.216/01). Nesse caso, tanto a internação como a alta do paciente devem ser comunicadas no prazo de setenta e duas horas ao Ministério Público estadual, por ser este o órgão encarregado de proteger os interesses difusos e coletivos, assim como pelos interesses dos incapazes (art. 8º, § 1º, da Lei nº 10.216/01). Já a internação compulsória, nos termos do inciso III do parágrafo único do art. 6º da Lei nº 10.216/2001, é decorrente de ordem judicial. A finalidade da internação tem como princípios objetivos o tratamento das pessoas portadoras de transtorno mental, buscando possibilitar as condições para sua reintegração social. É uma medida de caráter extremo, somente devendo ser utilizada durante o período que se mostrar necessária e quando os demais recursos restarem ineficientes às necessidades terapêuticas do paciente (SANTORO FILHO, 2012). Deve haver observância de requisitos para a efetivação da internação, os quais se constituem em garantias conferidas aos portadores de transtorno mental, com fins de evitar internações indevidas ou seu prolongamento necessário (SANTORO FILHO, 2012). Faz-se necessária também a existência de laudo médico circunstanciado, devidamente motivado (art. 6º, caput, da Lei nº 10.216/2001). Da jurisprudência pátria, colham-se os seguintes julgados: INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. Dever do Poder Público, quando constatada a necessidade da medida por meio de avaliação médica. Direito à saúde e à vida digna. Regra de ordem constitucional de eficácia imediata. Inocorrência de afronta aos princípios da isonomia, da economicidade, da razoabilidade e da reserva do possível. Recurso improvido. (TJSP, Apelação nº 0002661-03.2011.8.26.0022, 7ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Evaristo dos Santos, Data do julgamento: 24/06/2013, Data de registro: 26/06/2013). (grifos nosso) HABEAS CORPUS - AÇÃO CIVIL DE INTERDIÇÃO CUMULADA COM INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA - COMPETÊNCIA DAS TURMAS DA SEGUNDA SEÇÃO – VERIFICAÇÃO - INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA - POSSIBILIDADE - NECESSIDADE DE PARECER MÉDICO E FUNDAMENTAÇÃO NA LEI 10.216/2001 - EXISTÊNCIA, NA ESPÉCIE - EXIGÊNCIA DE SUBMETER O PACIENTE A RECURSOS EXTRA-HOSPITALARES ANTES DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO DISPENSA EM HIPÓTESES EXCEPCIONAIS – EXAME DE PERICULOSIDADE E INEXISTÊNCIA DE CRIME IMPLICAM DILAÇÃO PROBATÓRIA - VEDAÇÃO PELA VIA DO PRESENTE REMÉDIO HEROICO - HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO CONHECIDO PARA DENEGAR A ORDEM. I A questão jurídica relativa à possibilidade de internação compulsória, no âmbito da Ação Civil de Interdição, submete-se a julgamento perante os órgãos fracionários da Segunda Seção desta a. Corte; II - A internação compulsória, qualquer que seja o estabelecimento escolhido ou indicado, deve ser, sempre que possível, evitada e somente empregada como último recurso, na defesa do internado e, secundariamente, da própria sociedade. III - São modalidades de internação psiquiátrica: a voluntária, que é aquela que se dá a pedido ou com o consentimento do paciente (mediante declaração assinada no momento da internação); a involuntária, que é a que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e, por fim, a internação compulsória, determinada por ordem judicial. IV - Não há constrangimento ilegal na imposição de internação compulsória, no âmbito da Ação de Interdição, desde que baseada em parecer médico e fundamentada na Lei 10.216/2001. Observância, na espécie. V - O art. 4º da Lei nº 10.216/2001, fruto de uma concepção humanística, traduz modificação na forma de tratamento daqueles que são acometidos de transtornos mentais, evitando-se que se entregue, de plano, aquele, já doente, ao sistema de saúde mental. VI - Todavia, a ressalva da parte final do art. 4º da Lei nº 10.216/2001, dispensa a aplicação dos recursos extra-hospitalares se houver demonstração efetiva da insuficiência de tais medidas. Hipótese dos autos, ocorrência de agressividade excessiva do paciente. VII - A via estreita do habeas corpus não comporta dilação probatória, exame aprofundado de matéria fática ou nova valoração dos elementos de prova. VIII - Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário conhecido para denegar a ordem. (STJ, HC 130155 / SP, 3ª T., Rel. Min. Massami Uyeda, j. 04.05.2010, DJe 14/05/2010). É de salientar-se que tratamento em regime de internação deve ser estruturado de forma a oferecer um atendimento multidisciplinar aos pacientes, oferecendo-lhe assistência integral, incluindo serviços médicos, de assistência social, de psicólogos, de terapeutas ocupacionais, dentre outros (art. 4º, § 2º, da Lei nº 10.216/2001). Em não havendo observância das imposições previstas no § 2º do art. 4º da Lei nº 10.216/2001, será incabível a internação, pois o § 3º do mesmo dispositivo legal veda sua ocorrência em instituições com características asilares que não assegurem aos portadores de transtorno mental os direitos previstos no parágrafo único do art. 2º. Contudo, deve-se ressaltar que a decisão judicial possui efeito condicional, os quais devem permanecer enquanto perdurarem os motivos que ocasionaram a interdição. IV - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO A responsabilidade estatal é marcada por uma evolução histórica em que, a princípio, o Estado não respondia pelos danos que viesse a causar a alguém, para posteriormente passar a responder de maneira subjetiva, e, finalmente, vindo a responder objetivamente. Nesse quadro evolutivo, havia o entendimento de que o Estado Absolutista, com alicerce na ideia de soberania, não poderia ser responsabilizado por seus atos, já que não se admitia a possibilidade de cometimento de erro por parte do rei (the king can do no wrong). Esse período estendeu-se do século XV ao século XIX, e, mesmo após a Revolução Francesa, prevaleceu ainda uma forte ideia de soberania, mudando apenas sua titularidade do rei para o povo. A superação da teoria da irresponsabilidade ocorreu com o surgimento do Estado de Direito e com a substituição do súdito pelo cidadão, passando este a ter direito frente ao próprio Estado. Nesse estágio, o Estado passa ser responsabilizado por seus atos que viessem a causar prejuízos ao particular. Mas essa responsabilidade estatal era concebida nos mesmos moldes da responsabilidade do particular, ou seja, com fundamento na lei civil. O início da responsabilidade estatal é marcado pela aplicação das teorias civilistas, ou seja, da responsabilidade com culpa, cuja prova caberia ao interessado. Pela teoria da culpa civil, o Estado passa a responder subjetivamente, da mesma forma como as demais pessoas jurídicas. No Brasil, essa teoria decorria do texto do art. 15 do CC/1916, perdurando até a promulgação da Constituição de 1946, quando foi instituída a responsabilidade objetiva ou sem culpa para as pessoas jurídicas de direito público. Com a atuação cada vez mais intensa na economia, absorvendo, prestando ou disciplinando a atividade econômica, o Estado passou a praticar atos que terminavam por causar danos aos particulares, vindo a demonstrar que a sua responsabilidade não poderia ser equiparada a de uma pessoa jurídica qualquer. Passada a fase da teoria da responsabilidade subjetiva, por meio da qual havia necessidade de comprovação de culpa do agente estatal, para que fosse reparado o dano eventualmente causado ao particular, passou-se a prescindir da culpa do agente, da sua individualização. Evoluindo então para admitir a ideia de culpa anônima do serviço (faute du service), ou a falha no funcionamento do serviço público, o Estado passou a responder no caso do não funcionamento, do funcionar mal ou atrasado, não sendo necessário apontar culpa de algum agente público específico. A responsabilidade da Administração passou, então, a prescindir da própria ideia de culpa, do servidor ou anônima, para admitir a responsabilidade do Estado sem a existência de culpa. Assim, surge a responsabilidade objetiva ou sem culpa, onde não é necessária a configuração da culpa, bastando a demonstração da conduta estatal, do dano e do nexo entre a conduta e o dano. A doutrina costuma fazer a distinção da responsabilidade objetiva segundo a teoria do risco integral e a teoria do risco administrativo. Pela teoria do risco integral, sempre haverá responsabilidade objetiva do Estado, não se admitindo em nenhuma hipótese que este isente sua responsabilidade. Já pela teoria do risco administrativo, adotada entre nós, o Estado passa a responder de maneira objetiva pelos danos que vier a causar, podendo eximir-se de indenizar caso demonstre a inexistência de nexo entre sua conduta e o dano. A atual Constituição brasileira adotou a responsabilidade objetiva no § 6º do art. 37, nos seguintes termos: Art. 37. Omite-se o caput (...) § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. (evidenciado) Inicialmente, deve-se notar que respondem objetivamente as pessoas jurídicas de direito público – o que inclui União, os Estados, Distrito Federal, os Municípios e as respectivas autarquias e fundações públicas – e as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos. De qualquer sorte, a responsabilidade objetiva dar-se segundo a teoria do risco administrativo, havendo a possibilidade do Estado excluir a responsabilidade ou reduzi-la, caso comprove a ausência de nexo entre a conduta e o dano, ou a culpa concorrente da vítima. A responsabilidade estatal pode se dar tanto por ação como por omissão. A responsabilidade por ação estatal é objetiva e sobre isso não existe divergência alguma; por outro lado, no caso de omissão estatal, existem duas posições: para uns a responsabilidade é também objetiva; enquanto para outros é subjetiva. No sentido de que a responsabilidade estatal por omissão é subjetiva, mas não sendo necessário individualizar a culpa, que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a falta do serviço, desde que haja nexo de causalidade, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 179/791). Cabe registrar, contudo, que, no Supremo Tribunal Federal, não está ainda pacificado o entendimento sobre a responsabilidade subjetiva do Estado por conduta omissiva. Como no Brasil é adotada a responsabilidade objetiva segundo a teoria do risco administrativo, é possível que a Administração atenue ou até mesmo exclua a responsabilidade de indenizar. Para excluir sua obrigação de indenizar, cabe ao Estado demonstrar a inexistência de nexo entre a sua conduta e o dano suportado pela vítima, o que ocorre em três situações: a) caso fortuito ou força maior; b) culpa de terceiro; e c) culpa exclusiva da vítima. V - RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NA INTERNAÇÃO PSIQUIÁTRICA COMPULSÓRIA A Constituição federal impõe aos entes estatais a necessidade de disponibilizar um tratamento de saúde adequado à população como um todo, que, segundo o disposto em seu art. 23, é compartilhado pela União, pelos Estados e pelos Municípios, que são solidariamente responsáveis, nos seguintes termos: Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; (evidenciado). A esse respeito, tornar-se oportuno trazer a lume as seguintes jurisprudências pátrias: DIREITO À SAÚDE. INTERNAÇÃO HOSPITALAR PSIQUIÁTRICA COMPULSÓRIA. PESSOA PORTADORA DE TRANSTORNO MENTAL. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DO PODER PÚBLICO DE FORNECÊ-LA. CONDENAÇÃO DO MUNICÍPIO AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS PARA DEFENSORIA PÚBLICA. ADEQUAÇÃO. DESCABIMENTO DE REEXAME NECESSÁRIO. DETERMINAÇÃO DE JUÍZO DE RETRATAÇÃO. 1. Quando se trata de pessoa pobre, portadora de distúrbios psiquiátricos, é cabível pedir aos Entes Públicos a sua internação compulsória e o fornecimento do tratamento de que necessita, a fim de assegurar-lhe o direito à saúde e à vida. 2. Os entes públicos têm o dever de fornecer gratuitamente o tratamento de pessoa cuja família não tem condições de custear. 3. Há exigência de atuação integrada do poder público como um todo, isto é, União, Estados e Municípios para garantir o direito à saúde. 4. É solidária a responsabilidade dos entes públicos. Inteligência do art. 196 da CF. 5. Considerando o entendimento pacífico desta Corte quanto ao cabimento da condenação do Município ao pagamento de honorários em favor da Defensoria Pública, refletindo também a orientação uníssona do STJ, submeto-me a esse entendimento para admitir tal ônus, mas reduzo a verba remuneratória destinada ao FADEP para patamar mais adequado, considerando que se trata de recurso repetitivo. 6. Em juízo de retratação, fica mantida a condenação aos honorários ao FADEP, porém reduzindo o quantum. 7. Não estão sujeitas ao reexame necessário as causas em que a condenação não supera o valor de sessenta salários mínimos. Inteligência do art. 475, §2º, do CPC. Reexame necessário não conhecido, recurso do Estado desprovido e provido em parte o recurso do Município. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70053022109, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 28/08/2013, DJ 02/09/2013). (destacado). AÇÃO ORDINÁRIA. Dependente químico. Internação compulsória. Art. 196 da Constituição Federal O direito à vida é amplo e explicitamente protegido pela Carta Magna. Responsabilidade solidária dos entes federativos. A internação compulsória está prevista na regra do artigo 6º da Lei 10.216/01, devendo resguardar a integridade física e psíquica do internando e de seus familiares. Eventual problema orçamentário ou burocrático do Estado não se pode sobrepor às garantias e direitos fundamentais da pessoa humana. Honorários devidos na forma do convênio firmado entre o Estado e a OAB. Recurso parcialmente provido. (TJSP, Apelação nº 0001476-46.2012.8.26.0263, 7ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Luiz Sergio Fernandes de Souza, j. 26.08.2013). (grifado). Especificamente em relação aos Municípios, há previsão expressa na Constituição acerca da atribuição e responsabilidade na prestação do atendimento à saúde, conforme previsto no art. 30, inc. VII, in verbis: Art. 30. Compete aos Municípios: (...) VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população; A responsabilidade pelo tratamento das pessoas portadoras de transtorno mental no Brasil, nos termos do art. 3º da Lei nº 10.216/2001, incumbe ao Estado, às instituições especializadas, à família, e à sociedade, cujo objetivo é possibilitar o retorno destes indivíduos o mais breve possível ao convívio social. Em caso de sofrimento ou morte do internado, a responsabilidade é, consoante entendimento da jurisprudência pátria majoritária, objetiva, a qual somente pode ser afastada, nos termos do art. 37, § 6º, da CF/88, se houver alguma excludente, exceto no caso de culpa exclusiva da vítima que se mostra incabível, dado o estado de confusão mental do paciente (SANTORO FILHO, 2012, p. 38). Uma vez efetivada a internação, cabe à instituição hospitalar o dever de cuidado e vigilância sobre o portador de transtorno mental. Vê-se, pois, ser inadmissível que o portador de transtorno mental e hipossuficiente fique sem o atendimento médico indicado, havendo a obrigatoriedade de o ente público tomar todas as medidas necessárias com fins de garantir o acesso à saúde. O art. 2º da Lei nº 8.080/1990, menciona também o dever do Estado na assistência à saúde da população. Assim dispôs aludido artigo: Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. § 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade. (grifamos). VI – CONCLUSÃO Diante do aviltante crescimento dos transtornos mentais no Brasil, com especial destaque para os problemas ligados aos vícios com drogas e álcool, bem como pelo constante crescimento dos casos de depressão, cujas informações divulgadas por órgãos de saúde dão conta que somente no Brasil existem treze milhões de pessoas sofrendo de depressão, o Estado deve assumir importante função na concretização das políticas públicas de saúde mental, dispondo de todos os meios necessários a uma vida digna, com fins de permitir, sobremodo, a reinserção social dessas pessoas. Como bem salientou o Ministro Celso de Mello, quando da prolação de seu voto no AgRg no RE 393.175/RS, “... o Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional ...”. Nessa esteira, o Estado não pode se escusar de proporcionar o direito à saúde, e não assim o fazendo, não há falar em interferência indevida do Poder Judiciário, escorando-se na mera alegação de déficit orçamentário que poderia redundar na prestação dos serviços de saúde como um todo. Não que o Estado possa vir a ser responsabilizado de maneira desmedida, como se fosse um segurador universal, mas que no caso concreto, levando em conta a ponderação dos valores fundamentais envolvidos, não resta dúvida que a obrigatoriedade de fazer valer o direito fundamental à saúde pode ser determinada ao Poder Público pelo Judiciário, assegurando, desse modo, a força imperativa das normas constitucionais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 26ª ed. São Paulo: Atlas, 2013. CORREIA, Joelma de Sousa. Saúde mental na contemporaneidade: aspectos psicossociais. Saúde mental e o direito: ensaios em homenagem ao professor Heitor Carrilho. 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