XIV Congresso Brasileiro de Sociologia 28 a 31 de julho de 2009 - Rio de Janeiro (RJ). Grupo de Trabalho: Ensino de Sociologia Título do Trabalho: Ensino de sociologia em um curso de Direito: visões estudantis Autor: Rodrigo Pereira da Rocha Rosistolato (UFMA) Ensino de sociologia em um curso de Direito: visões estudantis Por: Rodrigo Pereira da Rocha Rosistolato1 RESUMO A sociologia é a ciência da sociedade. A história da disciplina, no entanto, está marcada por intensos debates teórico-metodológicos para a definição do conceito de sociedade. Trata-se de uma ciência pré-paradigmática, no sentido oferecido por Kuhn (1998). Esta condição não a impediu de se transformar em matéria obrigatória em praticamente todos os cursos de graduação no Brasil; inclusive nos maiores, como o Direito. A popularização da sociologia promove diálogos entre sociólogos e estudantes que não serão sociólogos. O objetivo deste artigo é apresentar os resultados de uma pesquisa sobre o ensino de sociologia, realizada a partir do ponto de vista de estudantes de Direito de uma faculdade particular, situada na cidade do Rio de Janeiro. O material empírico é um conjunto de 44 questionários, além das visões estudantis sobre o conceito de sociedade, mapeadas a partir de um exercício didático. As observações etnográficas realizadas na instituição também serão apresentadas. Palavras-chave: ensino de sociologia, Direito, sociedade, universidade. 1 Doutor em ciências humanas pela UFRJ. Professor do departamento de sociologia e antropologia da UFMA. Introdução Este artigo tem por base os dados da pesquisa “juventude e escolarização: uma proposta de análise da distribuição da cultura escolar entre camadas menos favorecidas economicamente na cidade do Rio de Janeiro2”. O projeto foi elaborado com o objetivo de contribuir com o debate sobre a produção e distribuição da cultura escolar a partir da análise da inserção de estudantes menos favorecidos economicamente no universo simbólico da educação de nível superior. Buscava-se compreender as expectativas relacionadas à escolarização, as certezas e os dilemas envolvidos nas escolhas profissionais, os significados da formação universitária e os sentidos produzidos a partir do contato com o conhecimento disciplinar, especificamente com o conhecimento sociológico e antropológico. Durante o ano de 2008 lecionei na instituição que serve de campo a esta pesquisa. A idéia de transformar o contexto de ensino em objeto de análise sociológica surgiu a partir de debates informais realizados entre mim, meus alunos de trabalho de conclusão de curso e dois outros professores que constantemente discutiam os dilemas do ensino de ciências sociais em bacharelados e licenciaturas de outras áreas. O calor destas discussões e a recorrência de categorias relacionadas à suposta inadequação das ciências sociais ao modelo de ensino proposto pelas universidades particulares suscitava reflexões sociológicas sobre a produção e circulação de conhecimento disciplinar. A análise se impunha porque não era possível, em um primeiro momento, legitimar as pré-noções apresentadas pelo pequeno grupo de discussão sem submetê-las à crítica, principalmente porque a inserção de todos os professores e todos os alunos no mesmo contexto de ensino transformava-se no principal obstáculo epistemológico a ser superado. O projeto foi elaborado com o objetivo de desconstruir estas pré-noções a partir da comparação entre os discursos de professores e estudantes. A idéia era analisar o lugar do conhecimento oferecido pelas ciências sociais na formação de estudantes de outras áreas. 2 Este projeto foi financiado pelo Programa Institucional de Pesquisa do Centro Universitário Augusto Motta. Foi realizado durante o ano de 2008 e teve a colaboração direta da estudante PIBIC Ana Cristina Correa Vidal de Melo. O trabalho de campo foi encerrado, mas os dados ainda estão em fase de organização e tabulação. Neste texto, apresentarei reflexões iniciais sobre a visão dos estudantes de Direito sobre o conceito de sociedade. Os estudantes não escolheram as ciências sociais como profissão, mas são obrigados a estudá-las, o que transforma as salas de aula em espaços de produção de sentido e (des) construção de visões de senso comum relativas ao conceito de sociedade. Ao mesmo tempo, os espaços educacionais onde se ensina sociologia se transformam em arena de disputa pelo monopólio dos significados legítimos do conceito de sociedade. A visão dos professores que ensinam sociologia não será apresentada neste momento. Privilegia-se, aqui, o olhar dos estudantes. A pesquisa se insere em um espaço de reflexão que se encontra em processo de institucionalização na comunidade dos cientistas sociais: o ensino de sociologia3. A análise pretende contribuir com o debate sobre as formas de transmissão dos saberes operadas nas escolas. No caso específico deste texto, busca-se uma reflexão sobre o ensino superior enquanto espaço de embate entre sentidos referentes ao conceito de sociedade, a partir da análise do ponto de vista dos atores envolvidos no processo. Antes de passar à metodologia empregada cabe enfatizar que este texto deve ser lido como uma comunicação. No máximo, um ensaio. Ocorre que no início de 2009 me desliguei da instituição em que o trabalho de campo era realizado. Meu afastamento não encerrou a pesquisa, mas deixei de acompanhar e participar do trabalho de campo. Por isso não foi possível ter acesso à totalidade dos dados já acumulados. Os resultados aqui apresentados estão limitados, portanto, ao período em que eu coordenava a pesquisa. Metodologia O contexto que serve de base à reflexão é a graduação em Direito de uma faculdade particular no Rio de Janeiro. Durante parte da pesquisa estava 3 Amaury Moraes (2003), inclusive, entende que a construção deste campo de reflexões depende de seu reconhecimento na comunidade de cientistas sociais. inserido neste curso como professor4, o que transforma minhas observações participantes em “participações observantes” (Wacquant, 2002). O material empírico é um conjunto de observações etnográficas realizadas durante 06 meses de “participação observante”. Além das “participações observantes”, utilizo 44 questionários respondidos por estudantes de Direito que cursavam a disciplina “estudos sócio-antropológicos”. Os estudantes foram informados que estavam participando de uma pesquisa coordenada pelo professor da disciplina, e que seu anonimato seria garantido. O questionário era um pré-teste. A equipe considerou as pré-noções presentes no discurso dos professores e optou por testá-las a partir de um instrumento simples de pesquisa. Além de dados referentes à escolarização anterior à universidade, trazia cinco questões abertas sobre a opção pelo curso de Direito e por aquela faculdade em específico. As questões seguintes visavam mapear representações sobre a sociologia no curso de Direito. Além delas, continha um exercício didático organizado a partir de duas questões (i) se você fosse entrevistado por um jornalista e ele perguntasse o que é a sociedade, qual seria sua resposta? e (ii) pensando na relação entre o Direito e a sociedade, é possível dizer que o Direito cria a sociedade? Ou que a sociedade cria o Direito? Após minha saída da instituição não tive acesso ao processo de formulação do novo questionário, orientado pelo pré-teste. Porém, os dados recolhidos permitem algumas reflexões sobre o ensino de sociologia fora dos cursos de ciências sociais. O ensino de sociologia O debate sobre o ensino de ciências sociais como objeto de análise sociológica é orientado, principalmente, por estudos que tomam a trajetória da sociologia no ensino médio como objeto de reflexão. Na antropologia, existem trabalhos que analisam o ensino de antropologia, focalizando a formação e o ensino (Debert, 2004; Duarte, 2006; Fry, 2006; Maués, 2006; Durhan, 2006; 4 Minha saída da instituição ocorreu a partir da aprovação em concurso público para o departamento de sociologia e antropologia da Universidade Federal do Maranhão. Groisman, 2006), a reprodução da antropologia (Oliven, 2004; Schwarcz, 2006), o perfil dos egressos dos cursos de pós-graduação (Grossi, 2004), o ensino de antropologia em outros cursos (Groisman, 2006). Na sociologia, ainda são poucas as pesquisas sobre ensino. No entanto, o retorno da disciplina para a educação básica vem contribuindo para a consolidação desta nova linha de pesquisa a partir das questões que têm suscitado. Mas ainda não existe um esforço coletivo, como o empreendido pela Associação Brasileira de Antropologia (2004, 2006)5, para analisar o campo da sociologia no Brasil. A pesquisa sobre ensino de sociologia ainda depende, portanto, de alguns esforços individuais, orientados por motivações profissionais e teóricas. Amaury Moraes (2003) analisa a história do ensino de sociologia na educação básica no Brasil. O autor explica que a intermitência da disciplina nos currículos colaborou para a fragmentação dos debates e dos saberes produzidos a partir da reflexão sobre o ensino de sociologia. Simone Meucci (2008) indica que a compreensão da trajetória da sociologia no ensino médio pode contribuir para a análise da história e dos desenvolvimentos da sociologia no Brasil. Porém, entende que a análise da história da sociologia também explicita o lugar pouco valorizado da sociologia no ensino e, em conseqüência, dos professores que ensinam sociologia. Flavio Sarandy (2004) aponta que embora o debate sobre ensino de sociologia tenha preocupado a comunidade de sociólogos até a década de 1950, e retornado após a década de 1980, ainda trata-se de tema pouco explorado. É importante frisar que todos os autores, principalmente Amaury Moraes (2003), estão enfatizando o caráter intermitente da sociologia na educação básica. No ensino superior, ao contrário, a disciplina é presença constante em quase todos os cursos de graduação de nível superior no Brasil. No contexto que serve de base a esta pesquisa, a sociologia e a antropologia estão 5 Trata-se dos livros “O campo da Antropologia no Brasil” (2004), uma publicação coletiva coordenada por Wilson Trajano Filho e Gustavo Lins Ribeiro e “Ensino de antropologia no Brasil” (2006), também coletivo, coordenado por Mirian Pillar Grossi, Antonella Tassinari e Carmen Rial. agrupadas na disciplina “estudos sócio-antropológicos”, oferecida a todos os cursos da instituição. A ciência política também está presente, mas não em todos os cursos. O conhecimento produzido pelas ciências sociais é considerado importante para a formação de bacharéis e licenciados em todas as áreas do conhecimento. Porém, da mesma forma que sabemos pouco sobre o ensino de sociologia na educação básica, pouco sabemos sobre o ensino superior. Tanto nos cursos de ciências sociais quanto em outras graduações. No caso da Antropologia, a pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Sociologia indicou que embora o campo de ensino seja plural, existem algumas regularidades na formação considerada obrigatória. Paula Monteiro (2004) identifica um tripé presente nos programas de pós-graduação: ensina-se a antropologia clássica (de Taylor a Malinowski e Radcliffe-Brown), antropologia contemporânea (até Lévi-Strauss), seguido de parentesco e metodologia do trabalho de campo. O mesmo poderia ser dito para a antropologia ensinada nos cursos de graduação. Seria possível pensar em regularidades equivalentes quando se discute a formação em sociologia? Em caso positivo, qual seria a estrutura destes processos de formação? Este texto não se propõe a responder estas questões, mas cabe indicá-las como desafios ao campo da sociologia no Brasil. A sociologia no contexto da pesquisa. Na instituição pesquisada a sociologia não é ensinada exclusivamente por sociólogos. Existe um corpo de profissionais das ciências sociais, composto por mestres e doutores que dividem as disciplinas de estudos sócioantropológicos e ciência política. Todos estão lotados no curso de serviço social porque não se oferece bacharelado ou licenciatura em ciências sociais. A ementa de estudos sócio-antropológicos está dividida em quatro tópicos (i) homem, natureza e cultura (ii) a relação indivíduo/sociedade (iii) a questão social (iv), sociedade e cultura no Brasil contemporâneo. Foi construída a partir de contribuições de todos os profissionais que ensinam sociologia e antropologia, no momento em que a instituição decidiu unir as duas disciplinas. Antes, sociologia e antropologia tinham uma carga horária total de quatro tempos. Atualmente, possuem três tempos condensados em uma única disciplina. Os estudantes A turma analisada é composta por 44 estudantes, 12 mulheres e 32 homens. As estatísticas disponíveis na instituição permitem dizer que esta é uma característica do curso de Direito: a demanda masculina é freqüentemente maior que a feminina. Entre as mulheres, 9 construíram suas trajetórias estudantis no sistema público de educação e buscaram o sistema particular apenas para a formação de nível superior. As outras 3 freqüentaram escolas públicas e privadas. Entre os homens, 11 freqüentaram apenas escolas públicas, 10 apenas escolas privadas e 11 transitaram por escolas públicas e privadas. As mulheres têm idades entre 19 e 44 anos. Os homens entre 18 e 43 anos. As justificativas para a escolha do Direito são equivalentes. Homens e mulheres procuram status profissional (3), financeiro (4) e inserção no mercado de trabalho [principalmente por intermédio de concursos] (10). Há também estudantes que trabalham com advogados (3) e outros que têm advogados na família (2). O gosto pelo Direito (11), a vontade de conhecer os próprios direitos (3) e o sonho de se transformar em advogados (4) também são citados por ambos. Há um homem que escolheu Direito porque não gosta de matemática, outro por “questões pessoais”. Existem também duas mulheres que escolheram a profissão por causa do pai e por causa do avô. As orientações presentes na escolha da faculdade são, principalmente, o fácil acesso (10) e o preço (14), considerado acessível. Além do bom preço existe um sistema de bolsas oferecido aos estudantes que residem nas favelas do entorno da instituição. Assim, os estudantes mais pobres conseguem agregar as duas características mais citadas: o fácil acesso e o preço baixo. O sistema de bolsas também foi citado por ambos (6) e houve referências a indicações realizadas por outros estudantes (8). Também houve estudantes, dois homens e uma mulher, que disseram buscar qualidade (3) e ainda há um homem que afirmou que a instituição é conceituada junto ao MEC. Contrastam com estas respostas outras duas: um homem disse que escolheu a instituição porque quase não tem aula, e outro afirmou que procura um diploma fácil. A sociologia no Direito A presença da sociologia no curso de Direito obteve 42 classificações positivas e apenas duas negativas. Entre as justificativas estão a possibilidade de melhor entender o Direito (15) e a importância de se entender a sociedade (11), além de classificações mais genéricas como interessante (10), fundamental (2), boa (2), e o grande aprendizado proporcionado pela disciplina (2). Entre as negativas estão a discordância com os debates trazidos pela sociologia (1) e a idéia de que a sociologia não tem nada a ver com o Direito (1). Quando falam sobre o que mais gostam nas aulas, as classificações positivas se repetem. Apenas 6 estudantes disseram que não gostam das aulas de sociologia. Eles afirmaram que não gostam, mesmo sendo fundamental para o crescimento (1), que o conhecimento sociológico não vai ajudar em nada (1), que a disciplina deveria ser mais ativa (1) e que depende do professor (1), além de dois estudantes que não responderam. Entre os 38 estudantes que responderam positivamente, as respostas são justificadas com a possibilidade de conhecer a sociedade (21), de conhecer a própria vida (5), de conhecer outras culturas (3), de melhorar a formação em Direito (5), de abrir a mente (2), de ampliar a conscientização (2). Considerando que os questionários, embora anônimos, eram respondidos em sala de aula, os estudantes também foram indagados sobre o que eles não gostavam nas aulas de sociologia. A questão tinha como objetivo controlar algum viés produzido pelo fato de estarem em sala de aula. A maioria dos estudantes disse que não há nada que não gostem nas aulas de sociologia (21). Também houve aqueles que não responderam (8). Mas não foram poucos os que declararam que não gostavam de alguma coisa nas aulas (15). Suas respostas permitem identificar alguns dos conflitos presentes nos contextos em que se ensina sociologia. Eles reclamaram dos textos muito longos (4), da necessidade de escrever (1), da necessidade de decorar (1) e da monotonia das aulas (1). Além destas, houve respostas mais elaboradas que permitem pensar sobre os significados do saber sociológico. São elas: “Na parte que falava que o homem veio do macaco, eu não caio nessa, pois sou evangélica e acredito na bíblia”. “Quando tira de Deus sua razão” “Quando ele [o professor] escreve muito e eu não consigo copiar e quando me deparo com injustiças” “Algumas palavras que não soam bem, e se igualam a palavras que são fáceis, mas não são ditas” “Acho que os estudos devem ser mais aprofundados” “Karl, Max, Weber (sic) porque nós temos que estudar muitos pensamentos que se não soubermos vão nos reprovar, e que muitas vezes são bobos” “Sobre algumas teorias que alguns dos autores pensam, como Durkheim em ´O suicídio`”. “Quando se refere ao que pensam os grandes filósofos, pensadores, enfim, saber o que Marx, Weber, etc pensam é um saco (sic).” Suas respostam salientam os conflitos instaurados a partir do momento em que a sociologia se apresenta como ciência em oposição à religião. Interessante observar que a origem do homem não é, especificamente, uma discussão sociológica. Porém, é possível pensar que a discussão provocada pela sociologia consegue desnaturalizar outro modelo de racionalidade oferecido pela religião. Os mais religiosos sentem-se ofendidos e procuram não “cair nessa”. Este conflito entre dois conjuntos de referências é benquisto por sociólogos, mas malquisto pelos estudantes religiosos. É curioso pensar que quando a sociologia instaura este conflito e provoca este tipo de reação está, de fato, cumprindo seu papel. Marx, Weber e Durkheim também recebem críticas. Nossos clássicos são apresentados como “bobos” e “chatos”. Para um sociólogo recém-formado, estas críticas, além de consideradas absurdas, são uma agressão à sociologia e ao profissional que a ensina. Durante o tempo em que permaneci na instituição, algumas reclamações por parte dos professores eram bastante recorrentes, principalmente relacionadas ao desprezo apresentado pelos estudantes quando eram obrigados a estudar os clássicos. Estas reclamações, inclusive, despertaram algumas das questões que estão em desenvolvimento nesta pesquisa. Talvez seja possível dizer que os professores são treinados para conviver com este tipo de conflito quando estão em campo, realizando pesquisa. Afinal, o “ponto de vista nativo” é, por definição, diferente do “ponto de vista do pesquisador”. Quando o sociólogo se transforma em professor a oposição entre pesquisador e pesquisado não é um elemento orientador da relação estabelecida. Esta oposição não faz sentido porque o sociólogo em sala de aula não é o sociólogo em campo. Em sala de aula, o profissional da sociologia é um dos atores inseridos em uma situação social de ensino. Neste momento não está orientado para respeitar, recolher, analisar o “ponto-de-vista nativo” sobre os clássicos da sociologia. Ao contrário, seu objetivo é oferecer o “pontode-vista sociológico”, combatendo o senso comum. Uma atividade, por definição, conflituosa. O olhar sociológico O final do questionário era composto por um exercício didático construído a partir de duas questões. “Se você fosse entrevistado(a) por um jornalista e ele perguntasse o que é a sociedade, qual seria sua resposta?” e “pensando na relação entre Direito e sociedade, é possível dizer que o Direito cria a sociedade? Ou que a sociedade cria o Direito?” Era necessário justificar a resposta à segunda pergunta. A idéia era avaliar a capacidade de transpor conceitos sociológicos para a análise de questões relacionadas ao campo do Direito. As respostas a ambas as questões foram bastante sintéticas. Em alguns casos resumiam-se a uma única frase. Além dos que não responderam (4) ou que declararam não saber (2), a maioria disse que a sociedade é um grupo de pessoas (17), outros afirmaram que a sociedade é um conjunto de regras e normas (7), um conjunto de grupos sociais, com classes sociais (6), uma mistura de povos, políticas e culturas (4), o lugar onde vivemos (2), a busca pelo bem de todos (1) e uma comunidade (1). Os limites apresentados pelas respostas podem ser lidos de duas formas. Uma delas permite dizer que os estudantes não têm domínio sobre os conceitos sociológicos e realizam uma reflexão curta e pouco sistematizada sobre a vida social. Outra leitura possível é que a multiplicidade de paradigmas e definições conceituais presentes na sociologia tornam a materialização do conceito de sociedade uma das tarefas mais difíceis. As Orientações Curriculares Nacionais6 (OCN`s) para o ensino de sociologia na educação básica identificam a pluralidade de explicações presentes na sociologia como um desafio. Quando mal ensinado, um conceito pode vir a confundir os estudantes. Ao mesmo tempo, a apresentação das várias definições possíveis para um conceito permite que os estudantes estabeleçam o primeiro contato com a diversidade teórico-metodológica presente na sociologia. Os estudantes analisados não estão no ensino médio, mas suas respostas, ou a quase ausência de respostas, indicam dificuldades e desafios presentes no ensino de sociologia também na educação superior. Considerando que os estudantes gostam da disciplina, talvez seja possível pensar que o sabor proporcionado pelo conhecimento sociológico não está diretamente relacionado à compreensão dos conceitos que orientam a disciplina. Cabe indagar se o prazer de conhecer a disciplina depende do entendimento de suas questões teórico-metodológicas. Bourdieu (1999) identificava a coexistência entre o discurso propriamente sociológico e o que o autor chamava de sociologias espontâneas. Afirmava que o principal obstáculo epistemológico a vencer quando se deseja fazer sociologia é a luta pela superação das sociologias espontâneas presentes no senso comum. A partir dos resultados parciais desta pesquisa, é possível dizer que o ensino de sociologia também enfrenta o mesmo desafio. 6 As Orientações Curriculares Nacionais (OCN`s) para o ensino de sociologia foram publicadas pelo Ministério da Educação, em 2006. Foram consultores os professores Amaury Cesar Moraes, Nelson Dácio Tomazi e a professora Elisabeth da Fonseca Guimarães. No momento em que foram convidados a discutir a relação entre Direito e sociedade a maioria respondeu que a sociedade cria o Direito (25). Além dos que não responderam ou não sabiam (9), houve estudantes que afirmaram que é o Direito quem cria a sociedade (10). Em sua visão, o Direito cria a sociedade porque impõe regras, cria normas e um lugar para viver. Duas respostas são significativas deste ponto de vista: “O Direito cria a sociedade porque o Direito cria normas que devem ser obedecidas pelos cidadãos para que haja harmonia e bem-estar social. Caso contrário, o cidadão receberá uma sanção por causar problemas aos outros. O Direito de um começa quando termina o Direito do outro”. “O Direito cria a sociedade. O posicionamento da sociedade pressupõe comando e ordem e para tanto é preciso, de um lado, que se organize a estrutura de poder e, de outro, que se estabeleçam as diretrizes” Os estudantes que acreditam que a sociedade cria o Direito utilizam argumentos semelhantes, mas invertem a relação de causa/conseqüência. Dizem que a sociedade cria o Direito porque busca a paz e a harmonia. Para isso precisa de regras e de instituições que as garantam. O Direito aparece como conseqüência da sociedade, como elemento agregador e condição para a existência e manutenção da moral. A pluralidade de reflexões sobre a relação entre a sociedade e o Direito permite dizer que ainda não conseguimos construir a proposta apresentada por Rui Barbosa em 1882. Preocupado com as impropriedades da transmissão de uma idéia de Direito natural, dizia: “ao Direito natural, pois, que é a metafísica, antepomos a sociologia, ainda não rigorosamente científica, é certo, na mor parte dos seus resultados, mas científica nos seus processos, nos seus intuitos, na sua influência sobre o desenvolvimento da inteligência humana e a orientação dos estudos superiores.” (p. 106). Rui Barbosa se opunha às teorias jusnaturalistas que pensavam o Direito a partir da idéia de um “estado de natureza”. Na instituição analisada não existe nenhuma disciplina de Direito Natural, mas as doutrinas jusnaturalistas parecem ainda orientar as reflexões de parte dos estudantes; e talvez dos professores. Algumas considerações e indagações A idéia inicial da pesquisa era pedir que os estudantes respondessem aos questionários no primeiro dia de aula, antes de qualquer contato com a sociologia. Algumas questões institucionais impediram que a aplicação fosse realizada neste momento, o que frustrou a primeira proposta de pesquisa. Considerando que os estudantes têm contato com a sociologia no ensino médio, seria possível mapear as influências da formação sociológica realizada na educação básica. A impossibilidade de aplicação de questionários nos primeiros dias de aula fez com que o próprio instrumento de pesquisa se tornasse inadequado. Um segundo questionário foi construído com o objetivo de mapear representações sobre a sociologia, o conceito de sociedade e o conceito de Direito. O questionário ainda era um instrumento em fase de teste. A idéia era produzir outro instrumento - mais amplo e refinado - a partir dos dados recolhidos inicialmente. Quando o responderam, os estudantes já tinham experimentado os primeiros contatos com a sociologia no ensino superior e conseguiam propor algumas relações entre os debates sociológicos e o campo do Direito. A ementa da disciplina estudos sócio-antropológicos é genérica, mas os professores tendem a relacionar os conteúdos aos debates presentes no curso que estão ministrando aulas, principalmente quando dão aulas em bacharelados e licenciaturas das ciências humanas e ciências sociais aplicadas. A análise das respostas permite perceber a incorporação de alguns conceitos ao vocabulário discente, mas ainda de forma muito espontânea, no sentido proposto por Bourdieu (1999). Parece possível dizer que um dos desafios colocados para os professores que ensinam sociologia é a construção de metodologias que permitam que os estudantes transitem dos termos aos conceitos. Outro ponto a salientar é a presença de resistências religiosas ao ensino de sociologia. Sabe-se que o discurso religioso é um dos quais a sociologia pretende contestar. Mas, levando em consideração o lugar permanente da religião em oposição ao lugar transitório da sociologia no contexto vivido pelos estudantes, a resposta da estudante que disse não “cair nessa” é bastante plausível. Não que o ensino de sociologia tenha que combater a religião, mas sem opor estes discursos não se faz sociologia. Também merece destaque a resposta que indica que gostar ou não da disciplina depende do professor. Apenas uma pessoa respondeu desta forma, mas, esta percepção pode ser mais generalizada. Cabe, portanto, refletir sobre o lugar do professor de sociologia na criação de visões positivas e/ou negativas sobre a disciplina. Ao final, esta comunicação cria mais indagações do que oferece respostas. Referências bibliográficas BRASIL. Orientações Curriculares Nacionais. Ciências Humanas e suas Tecnologias. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria da Educação Básica, 2006. BARBOSA, Rui. 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