- Sociedade Brasileira de Sociologia

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XIV Congresso Brasileiro de Sociologia
28 a 31 de julho de 2009 - Rio de Janeiro (RJ).
Grupo de Trabalho: Ensino de Sociologia
Título do Trabalho: Ensino de sociologia em um curso de Direito: visões
estudantis
Autor: Rodrigo Pereira da Rocha Rosistolato (UFMA)
Ensino de sociologia em um curso de Direito: visões estudantis
Por: Rodrigo Pereira da Rocha Rosistolato1
RESUMO
A sociologia é a ciência da sociedade. A história da
disciplina, no entanto, está marcada por intensos debates
teórico-metodológicos para a definição do conceito de
sociedade. Trata-se de uma ciência pré-paradigmática, no
sentido oferecido por Kuhn (1998). Esta condição não a
impediu de se transformar em matéria obrigatória em
praticamente todos os cursos de graduação no Brasil;
inclusive nos maiores, como o Direito. A popularização da
sociologia promove diálogos entre sociólogos e
estudantes que não serão sociólogos. O objetivo deste
artigo é apresentar os resultados de uma pesquisa sobre
o ensino de sociologia, realizada a partir do ponto de vista
de estudantes de Direito de uma faculdade particular,
situada na cidade do Rio de Janeiro. O material empírico
é um conjunto de 44 questionários, além das visões
estudantis sobre o conceito de sociedade, mapeadas a
partir de um exercício didático. As observações
etnográficas realizadas na instituição também serão
apresentadas.
Palavras-chave: ensino de sociologia, Direito, sociedade,
universidade.
1
Doutor em ciências humanas pela UFRJ. Professor do departamento de sociologia e antropologia da
UFMA.
Introdução
Este artigo tem por base os dados da pesquisa “juventude e
escolarização: uma proposta de análise da distribuição da cultura escolar entre
camadas menos favorecidas economicamente na cidade do Rio de Janeiro2”. O
projeto foi elaborado com o objetivo de contribuir com o debate sobre a
produção e distribuição da cultura escolar a partir da análise da inserção de
estudantes menos favorecidos economicamente no universo simbólico da
educação de nível superior. Buscava-se compreender as expectativas
relacionadas à escolarização, as certezas e os dilemas envolvidos nas
escolhas profissionais, os significados da formação universitária e os sentidos
produzidos a partir do contato com o conhecimento disciplinar, especificamente
com o conhecimento sociológico e antropológico.
Durante o ano de 2008 lecionei na instituição que serve de campo a esta
pesquisa. A idéia de transformar o contexto de ensino em objeto de análise
sociológica surgiu a partir de debates informais realizados entre mim, meus
alunos de trabalho de conclusão de curso e dois outros professores que
constantemente discutiam os dilemas do ensino de ciências sociais em
bacharelados e licenciaturas de outras áreas. O calor destas discussões e a
recorrência de categorias relacionadas à suposta inadequação das ciências
sociais ao modelo de ensino proposto pelas universidades particulares
suscitava
reflexões
sociológicas
sobre
a
produção
e
circulação
de
conhecimento disciplinar. A análise se impunha porque não era possível, em
um primeiro momento, legitimar as pré-noções apresentadas pelo pequeno
grupo de discussão sem submetê-las à crítica, principalmente porque a
inserção de todos os professores e todos os alunos no mesmo contexto de
ensino transformava-se no principal obstáculo epistemológico a ser superado.
O projeto foi elaborado com o objetivo de desconstruir estas pré-noções a partir
da comparação entre os discursos de professores e estudantes. A idéia era
analisar o lugar do conhecimento oferecido pelas ciências sociais na formação
de estudantes de outras áreas.
2
Este projeto foi financiado pelo Programa Institucional de Pesquisa do Centro Universitário Augusto
Motta. Foi realizado durante o ano de 2008 e teve a colaboração direta da estudante PIBIC Ana Cristina
Correa Vidal de Melo.
O trabalho de campo foi encerrado, mas os dados ainda estão em fase
de organização e tabulação. Neste texto, apresentarei reflexões iniciais sobre a
visão dos estudantes de Direito sobre o conceito de sociedade. Os estudantes
não escolheram as ciências sociais como profissão, mas são obrigados a
estudá-las, o que transforma as salas de aula em espaços de produção de
sentido e (des) construção de visões de senso comum relativas ao conceito de
sociedade. Ao mesmo tempo, os espaços educacionais onde se ensina
sociologia se transformam em arena de disputa pelo monopólio dos
significados legítimos do conceito de sociedade. A visão dos professores que
ensinam sociologia não será apresentada neste momento. Privilegia-se, aqui, o
olhar dos estudantes.
A pesquisa se insere em um espaço de reflexão que se encontra em
processo de institucionalização na comunidade dos cientistas sociais: o ensino
de sociologia3. A análise pretende contribuir com o debate sobre as formas de
transmissão dos saberes operadas nas escolas. No caso específico deste
texto, busca-se uma reflexão sobre o ensino superior enquanto espaço de
embate entre sentidos referentes ao conceito de sociedade, a partir da análise
do ponto de vista dos atores envolvidos no processo.
Antes de passar à metodologia empregada cabe enfatizar que este texto
deve ser lido como uma comunicação. No máximo, um ensaio. Ocorre que no
início de 2009 me desliguei da instituição em que o trabalho de campo era
realizado. Meu afastamento não encerrou a pesquisa, mas deixei de
acompanhar e participar do trabalho de campo. Por isso não foi possível ter
acesso à totalidade dos dados já acumulados. Os resultados aqui
apresentados estão limitados, portanto, ao período em que eu coordenava a
pesquisa.
Metodologia
O contexto que serve de base à reflexão é a graduação em Direito de
uma faculdade particular no Rio de Janeiro. Durante parte da pesquisa estava
3
Amaury Moraes (2003), inclusive, entende que a construção deste campo de reflexões depende de seu
reconhecimento na comunidade de cientistas sociais.
inserido neste curso como professor4, o que transforma minhas observações
participantes em “participações observantes” (Wacquant, 2002).
O material empírico é um conjunto de observações etnográficas
realizadas durante 06 meses de “participação observante”. Além das
“participações
observantes”,
utilizo
44
questionários
respondidos
por
estudantes de Direito que cursavam a disciplina “estudos sócio-antropológicos”.
Os estudantes foram informados que estavam participando de uma pesquisa
coordenada pelo professor da disciplina, e que seu anonimato seria garantido.
O questionário era um pré-teste. A equipe considerou as pré-noções
presentes no discurso dos professores e optou por testá-las a partir de um
instrumento simples de pesquisa. Além de dados referentes à escolarização
anterior à universidade, trazia cinco questões abertas sobre a opção pelo curso
de Direito e por aquela faculdade em específico. As questões seguintes
visavam mapear representações sobre a sociologia no curso de Direito. Além
delas, continha um exercício didático organizado a partir de duas questões (i)
se você fosse entrevistado por um jornalista e ele perguntasse o que é a
sociedade, qual seria sua resposta? e (ii) pensando na relação entre o Direito e
a sociedade, é possível dizer que o Direito cria a sociedade? Ou que a
sociedade cria o Direito?
Após minha saída da instituição não tive acesso ao processo de
formulação do novo questionário, orientado pelo pré-teste. Porém, os dados
recolhidos permitem algumas reflexões sobre o ensino de sociologia fora dos
cursos de ciências sociais.
O ensino de sociologia
O debate sobre o ensino de ciências sociais como objeto de análise
sociológica é orientado, principalmente, por estudos que tomam a trajetória da
sociologia no ensino médio como objeto de reflexão. Na antropologia, existem
trabalhos que analisam o ensino de antropologia, focalizando a formação e o
ensino (Debert, 2004; Duarte, 2006; Fry, 2006; Maués, 2006; Durhan, 2006;
4
Minha saída da instituição ocorreu a partir da aprovação em concurso público para o departamento de
sociologia e antropologia da Universidade Federal do Maranhão.
Groisman, 2006), a reprodução da antropologia (Oliven, 2004; Schwarcz,
2006), o perfil dos egressos dos cursos de pós-graduação (Grossi, 2004), o
ensino de antropologia em outros cursos (Groisman, 2006).
Na sociologia, ainda são poucas as pesquisas sobre ensino. No entanto,
o retorno da disciplina para a educação básica vem contribuindo para a
consolidação desta nova linha de pesquisa a partir das questões que têm
suscitado. Mas ainda não existe um esforço coletivo, como o empreendido pela
Associação Brasileira de Antropologia (2004, 2006)5, para analisar o campo da
sociologia no Brasil. A pesquisa sobre ensino de sociologia ainda depende,
portanto,
de
alguns
esforços
individuais,
orientados
por
motivações
profissionais e teóricas.
Amaury Moraes (2003) analisa a história do ensino de sociologia na
educação básica no Brasil. O autor explica que a intermitência da disciplina nos
currículos colaborou para a fragmentação dos debates e dos saberes
produzidos a partir da reflexão sobre o ensino de sociologia.
Simone Meucci (2008) indica que a compreensão da trajetória da
sociologia no ensino médio pode contribuir para a análise da história e dos
desenvolvimentos da sociologia no Brasil. Porém, entende que a análise da
história da sociologia também explicita o lugar pouco valorizado da sociologia
no ensino e, em conseqüência, dos professores que ensinam sociologia.
Flavio Sarandy (2004) aponta que embora o debate sobre ensino de
sociologia tenha preocupado a comunidade de sociólogos até a década de
1950, e retornado após a década de 1980, ainda trata-se de tema pouco
explorado.
É importante frisar que todos os autores, principalmente Amaury Moraes
(2003), estão enfatizando o caráter intermitente da sociologia na educação
básica. No ensino superior, ao contrário, a disciplina é presença constante em
quase todos os cursos de graduação de nível superior no Brasil. No contexto
que serve de base a esta pesquisa, a sociologia e a antropologia estão
5
Trata-se dos livros “O campo da Antropologia no Brasil” (2004), uma publicação coletiva coordenada
por Wilson Trajano Filho e Gustavo Lins Ribeiro e “Ensino de antropologia no Brasil” (2006), também
coletivo, coordenado por Mirian Pillar Grossi, Antonella Tassinari e Carmen Rial.
agrupadas na disciplina “estudos sócio-antropológicos”, oferecida a todos os
cursos da instituição. A ciência política também está presente, mas não em
todos os cursos.
O conhecimento produzido pelas ciências sociais é considerado
importante para a formação de bacharéis e licenciados em todas as áreas do
conhecimento. Porém, da mesma forma que sabemos pouco sobre o ensino de
sociologia na educação básica, pouco sabemos sobre o ensino superior. Tanto
nos cursos de ciências sociais quanto em outras graduações. No caso da
Antropologia, a pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Sociologia
indicou que embora o campo de ensino seja plural, existem algumas
regularidades na formação considerada obrigatória. Paula Monteiro (2004)
identifica um tripé presente nos programas de pós-graduação: ensina-se a
antropologia clássica (de Taylor a Malinowski e Radcliffe-Brown), antropologia
contemporânea (até Lévi-Strauss), seguido de parentesco e metodologia do
trabalho de campo. O mesmo poderia ser dito para a antropologia ensinada
nos cursos de graduação.
Seria possível pensar em regularidades equivalentes quando se discute
a formação em sociologia? Em caso positivo, qual seria a estrutura destes
processos de formação? Este texto não se propõe a responder estas questões,
mas cabe indicá-las como desafios ao campo da sociologia no Brasil.
A sociologia no contexto da pesquisa.
Na instituição pesquisada a sociologia não é ensinada exclusivamente
por sociólogos. Existe um corpo de profissionais das ciências sociais, composto
por mestres e doutores que dividem as disciplinas de estudos sócioantropológicos e ciência política. Todos estão lotados no curso de serviço
social porque não se oferece bacharelado ou licenciatura em ciências sociais.
A ementa de estudos sócio-antropológicos está dividida em quatro
tópicos (i) homem, natureza e cultura (ii) a relação indivíduo/sociedade (iii) a
questão social (iv), sociedade e cultura no Brasil contemporâneo. Foi
construída a partir de contribuições de todos os profissionais que ensinam
sociologia e antropologia, no momento em que a instituição decidiu unir as
duas disciplinas. Antes, sociologia e antropologia tinham uma carga horária
total de quatro tempos. Atualmente, possuem três tempos condensados em
uma única disciplina.
Os estudantes
A turma analisada é composta por 44 estudantes, 12 mulheres e 32
homens. As estatísticas disponíveis na instituição permitem dizer que esta é
uma característica do curso de Direito: a demanda masculina é freqüentemente
maior que a feminina. Entre as mulheres, 9 construíram suas trajetórias
estudantis no sistema público de educação e buscaram o sistema particular
apenas para a formação de nível superior. As outras 3 freqüentaram escolas
públicas e privadas.
Entre os homens, 11 freqüentaram apenas escolas
públicas, 10 apenas escolas privadas e 11 transitaram por escolas públicas e
privadas. As mulheres têm idades entre 19 e 44 anos. Os homens entre 18 e
43 anos.
As justificativas para a escolha do Direito são equivalentes. Homens e
mulheres procuram status profissional (3), financeiro (4) e inserção no mercado
de trabalho [principalmente por intermédio de concursos] (10). Há também
estudantes que trabalham com advogados (3) e outros que têm advogados na
família (2).
O gosto pelo Direito (11), a vontade de conhecer os próprios
direitos (3) e o sonho de se transformar em advogados (4) também são citados
por ambos. Há um homem que escolheu Direito porque não gosta de
matemática, outro por “questões pessoais”. Existem também duas mulheres
que escolheram a profissão por causa do pai e por causa do avô.
As orientações presentes na escolha da faculdade são, principalmente, o
fácil acesso (10) e o preço (14), considerado acessível. Além do bom preço
existe um sistema de bolsas oferecido aos estudantes que residem nas favelas
do entorno da instituição. Assim, os estudantes mais pobres conseguem
agregar as duas características mais citadas: o fácil acesso e o preço baixo. O
sistema de bolsas também foi citado por ambos (6) e houve referências a
indicações realizadas por outros estudantes (8). Também houve estudantes,
dois homens e uma mulher, que disseram buscar qualidade (3) e ainda há um
homem que afirmou que a instituição é conceituada junto ao MEC. Contrastam
com estas respostas outras duas: um homem disse que escolheu a instituição
porque quase não tem aula, e outro afirmou que procura um diploma fácil.
A sociologia no Direito
A presença da sociologia no curso de Direito obteve 42 classificações
positivas e apenas duas negativas. Entre as justificativas estão a possibilidade
de melhor entender o Direito (15) e a importância de se entender a sociedade
(11), além de classificações mais genéricas como interessante (10),
fundamental (2), boa (2), e o grande aprendizado proporcionado pela disciplina
(2). Entre as negativas estão a discordância com os debates trazidos pela
sociologia (1) e a idéia de que a sociologia não tem nada a ver com o Direito
(1).
Quando falam sobre o que mais gostam nas aulas, as classificações
positivas se repetem. Apenas 6 estudantes disseram que não gostam das
aulas de sociologia. Eles afirmaram que não gostam, mesmo sendo
fundamental para o crescimento (1), que o conhecimento sociológico não vai
ajudar em nada (1), que a disciplina deveria ser mais ativa (1) e que depende
do professor (1), além de dois estudantes que não responderam. Entre os 38
estudantes que responderam positivamente, as respostas são justificadas com
a possibilidade de conhecer a sociedade (21), de conhecer a própria vida (5),
de conhecer outras culturas (3), de melhorar a formação em Direito (5), de abrir
a mente (2), de ampliar a conscientização (2).
Considerando
que
os
questionários,
embora
anônimos,
eram
respondidos em sala de aula, os estudantes também foram indagados sobre o
que eles não gostavam nas aulas de sociologia. A questão tinha como objetivo
controlar algum viés produzido pelo fato de estarem em sala de aula.
A maioria dos estudantes disse que não há nada que não gostem nas
aulas de sociologia (21). Também houve aqueles que não responderam (8).
Mas não foram poucos os que declararam que não gostavam de alguma coisa
nas aulas (15). Suas respostas permitem identificar alguns dos conflitos
presentes nos contextos em que se ensina sociologia. Eles reclamaram dos
textos muito longos (4), da necessidade de escrever (1), da necessidade de
decorar (1) e da monotonia das aulas (1). Além destas, houve respostas mais
elaboradas que permitem pensar sobre os significados do saber sociológico.
São elas:
“Na parte que falava que o homem veio do macaco, eu não
caio nessa, pois sou evangélica e acredito na bíblia”.
“Quando tira de Deus sua razão”
“Quando ele [o professor] escreve muito e eu não consigo
copiar e quando me deparo com injustiças”
“Algumas palavras que não soam bem, e se igualam a
palavras que são fáceis, mas não são ditas”
“Acho que os estudos devem ser mais aprofundados”
“Karl, Max, Weber (sic) porque nós temos que estudar
muitos pensamentos que se não soubermos vão nos
reprovar, e que muitas vezes são bobos”
“Sobre algumas teorias que alguns dos autores pensam,
como Durkheim em ´O suicídio`”.
“Quando se refere ao que pensam os grandes filósofos,
pensadores, enfim, saber o que Marx, Weber, etc pensam
é um saco (sic).”
Suas respostam salientam os conflitos instaurados a partir do momento
em que a sociologia se apresenta como ciência em oposição à religião.
Interessante observar que a origem do homem não é, especificamente, uma
discussão sociológica. Porém, é possível pensar que a discussão provocada
pela sociologia consegue desnaturalizar outro modelo de racionalidade
oferecido pela religião. Os mais religiosos sentem-se ofendidos e procuram não
“cair nessa”. Este conflito entre dois conjuntos de referências é benquisto por
sociólogos, mas malquisto pelos estudantes religiosos. É curioso pensar que
quando a sociologia instaura este conflito e provoca este tipo de reação está,
de fato, cumprindo seu papel.
Marx, Weber e Durkheim também recebem críticas. Nossos clássicos
são apresentados como “bobos” e “chatos”. Para um sociólogo recém-formado,
estas críticas, além de consideradas absurdas, são uma agressão à sociologia
e ao profissional que a ensina. Durante o tempo em que permaneci na
instituição, algumas reclamações por parte dos professores eram bastante
recorrentes, principalmente relacionadas ao desprezo apresentado pelos
estudantes quando eram obrigados a estudar os clássicos. Estas reclamações,
inclusive, despertaram algumas das questões que estão em desenvolvimento
nesta pesquisa. Talvez seja possível dizer que os professores são treinados
para conviver com este tipo de conflito quando estão em campo, realizando
pesquisa. Afinal, o “ponto de vista nativo” é, por definição, diferente do “ponto
de vista do pesquisador”.
Quando o sociólogo se transforma em professor a oposição entre
pesquisador e pesquisado não é um elemento orientador da relação
estabelecida. Esta oposição não faz sentido porque o sociólogo em sala de
aula não é o sociólogo em campo. Em sala de aula, o profissional da sociologia
é um dos atores inseridos em uma situação social de ensino. Neste momento
não está orientado para respeitar, recolher, analisar o “ponto-de-vista nativo”
sobre os clássicos da sociologia. Ao contrário, seu objetivo é oferecer o “pontode-vista sociológico”, combatendo o senso comum. Uma atividade, por
definição, conflituosa.
O olhar sociológico
O final do questionário era composto por um exercício didático
construído a partir de duas questões. “Se você fosse entrevistado(a) por um
jornalista e ele perguntasse o que é a sociedade, qual seria sua resposta?” e
“pensando na relação entre Direito e sociedade, é possível dizer que o Direito
cria a sociedade? Ou que a sociedade cria o Direito?” Era necessário justificar
a resposta à segunda pergunta. A idéia era avaliar a capacidade de transpor
conceitos sociológicos para a análise de questões relacionadas ao campo do
Direito.
As respostas a ambas as questões foram bastante sintéticas. Em alguns
casos resumiam-se a uma única frase. Além dos que não responderam (4) ou
que declararam não saber (2), a maioria disse que a sociedade é um grupo de
pessoas (17), outros afirmaram que a sociedade é um conjunto de regras e
normas (7), um conjunto de grupos sociais, com classes sociais (6), uma
mistura de povos, políticas e culturas (4), o lugar onde vivemos (2), a busca
pelo bem de todos (1) e uma comunidade (1).
Os limites apresentados pelas respostas podem ser lidos de duas
formas. Uma delas permite dizer que os estudantes não têm domínio sobre os
conceitos sociológicos e realizam uma reflexão curta e pouco sistematizada
sobre a vida social. Outra leitura possível é que a multiplicidade de paradigmas
e definições conceituais presentes na sociologia tornam a materialização do
conceito de sociedade uma das tarefas mais difíceis.
As Orientações Curriculares Nacionais6 (OCN`s) para o ensino de
sociologia na educação básica identificam a pluralidade de explicações
presentes na sociologia como um desafio. Quando mal ensinado, um conceito
pode vir a confundir os estudantes. Ao mesmo tempo, a apresentação das
várias definições possíveis para um conceito permite que os estudantes
estabeleçam o primeiro contato com a diversidade teórico-metodológica
presente na sociologia.
Os estudantes analisados não estão no ensino médio, mas suas
respostas, ou a quase ausência de respostas, indicam dificuldades e desafios
presentes
no
ensino
de
sociologia
também
na
educação
superior.
Considerando que os estudantes gostam da disciplina, talvez seja possível
pensar que o sabor proporcionado pelo conhecimento sociológico não está
diretamente relacionado à compreensão dos conceitos que orientam a
disciplina. Cabe indagar se o prazer de conhecer a disciplina depende do
entendimento de suas questões teórico-metodológicas. Bourdieu (1999)
identificava a coexistência entre o discurso propriamente sociológico e o que o
autor chamava de sociologias espontâneas. Afirmava que o principal obstáculo
epistemológico a vencer quando se deseja fazer sociologia é a luta pela
superação das sociologias espontâneas presentes no senso comum. A partir
dos resultados parciais desta pesquisa, é possível dizer que o ensino de
sociologia também enfrenta o mesmo desafio.
6
As Orientações Curriculares Nacionais (OCN`s) para o ensino de sociologia foram publicadas
pelo Ministério da Educação, em 2006. Foram consultores os professores Amaury Cesar
Moraes, Nelson Dácio Tomazi e a professora Elisabeth da Fonseca Guimarães.
No momento em que foram convidados a discutir a relação entre Direito
e sociedade a maioria respondeu que a sociedade cria o Direito (25). Além dos
que não responderam ou não sabiam (9), houve estudantes que afirmaram que
é o Direito quem cria a sociedade (10). Em sua visão, o Direito cria a sociedade
porque impõe regras, cria normas e um lugar para viver. Duas respostas são
significativas deste ponto de vista:
“O Direito cria a sociedade porque o Direito
cria normas que devem ser obedecidas pelos
cidadãos para que haja harmonia e bem-estar
social. Caso contrário, o cidadão receberá
uma sanção por causar problemas aos outros.
O Direito de um começa quando termina o
Direito do outro”.
“O Direito cria a sociedade. O posicionamento
da sociedade pressupõe comando e ordem e
para tanto é preciso, de um lado, que se
organize a estrutura de poder e, de outro, que
se estabeleçam as diretrizes”
Os estudantes que acreditam que a sociedade cria o Direito utilizam
argumentos semelhantes, mas invertem a relação de causa/conseqüência.
Dizem que a sociedade cria o Direito porque busca a paz e a harmonia. Para
isso precisa de regras e de instituições que as garantam. O Direito aparece
como conseqüência da sociedade, como elemento agregador e condição para
a existência e manutenção da moral.
A pluralidade de reflexões sobre a relação entre a sociedade e o Direito
permite dizer que ainda não conseguimos construir a proposta apresentada por
Rui Barbosa em 1882. Preocupado com as impropriedades da transmissão de
uma idéia de Direito natural, dizia: “ao Direito natural, pois, que é a metafísica,
antepomos a sociologia, ainda não rigorosamente científica, é certo, na mor
parte dos seus resultados, mas científica nos seus processos, nos seus
intuitos, na sua influência sobre o desenvolvimento da inteligência humana e a
orientação dos estudos superiores.” (p. 106). Rui Barbosa se opunha às teorias
jusnaturalistas que pensavam o Direito a partir da idéia de um “estado de
natureza”. Na instituição analisada não existe nenhuma disciplina de Direito
Natural, mas as doutrinas jusnaturalistas parecem ainda orientar as reflexões
de parte dos estudantes; e talvez dos professores.
Algumas considerações e indagações
A idéia inicial da pesquisa era pedir que os estudantes respondessem
aos questionários no primeiro dia de aula, antes de qualquer contato com a
sociologia. Algumas questões institucionais impediram que a aplicação fosse
realizada neste momento, o que frustrou a primeira proposta de pesquisa.
Considerando que os estudantes têm contato com a sociologia no ensino
médio, seria possível mapear as influências da formação sociológica realizada
na educação básica.
A impossibilidade de aplicação de questionários nos primeiros dias de
aula fez com que o próprio instrumento de pesquisa se tornasse inadequado.
Um segundo questionário foi construído com o objetivo de mapear
representações sobre a sociologia, o conceito de sociedade e o conceito de
Direito. O questionário ainda era um instrumento em fase de teste. A idéia era
produzir outro instrumento - mais amplo e refinado - a partir dos dados
recolhidos inicialmente. Quando o responderam, os estudantes já tinham
experimentado os primeiros contatos com a sociologia no ensino superior e
conseguiam propor algumas relações entre os debates sociológicos e o campo
do Direito.
A ementa da disciplina estudos sócio-antropológicos é genérica, mas os
professores tendem a relacionar os conteúdos aos debates presentes no curso
que
estão
ministrando
aulas,
principalmente
quando
dão
aulas
em
bacharelados e licenciaturas das ciências humanas e ciências sociais
aplicadas. A análise das respostas permite perceber a incorporação de alguns
conceitos ao vocabulário discente, mas ainda de forma muito espontânea, no
sentido proposto por Bourdieu (1999). Parece possível dizer que um dos
desafios colocados para os professores que ensinam sociologia é a construção
de metodologias que permitam que os estudantes transitem dos termos aos
conceitos.
Outro ponto a salientar é a presença de resistências religiosas ao ensino
de sociologia. Sabe-se que o discurso religioso é um dos quais a sociologia
pretende contestar. Mas, levando em consideração o lugar permanente da
religião em oposição ao lugar transitório da sociologia no contexto vivido pelos
estudantes, a resposta da estudante que disse não “cair nessa” é bastante
plausível. Não que o ensino de sociologia tenha que combater a religião, mas
sem opor estes discursos não se faz sociologia.
Também merece destaque a resposta que indica que gostar ou não da
disciplina depende do professor. Apenas uma pessoa respondeu desta forma,
mas, esta percepção pode ser mais generalizada. Cabe, portanto, refletir sobre
o lugar do professor de sociologia na criação de visões positivas e/ou negativas
sobre a disciplina.
Ao final, esta comunicação cria mais indagações do que oferece
respostas.
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