Propriedades predicativas dos verbos leves dar, ter e fazer

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Propriedades predicativas dos verbos leves dar, ter e fazer: estrutura argumental e
eventiva*
Anabela Gonçalves
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa / CLUL
Fátima Oliveira
Faculdade de Letras da Universidade do Porto / CLUP
Matilde Miguel
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa / CLUL
Amália Mendes
CLUL
Luís Filipe Cunha
CLUP
Purificação Silvano
CLUP
Inês Duarte
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa / CLUL
Fátima Silva
Faculdade de Letras da Universidade do Porto / CLUP
Madalena Colaço
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa / CLUL
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa descrever construções com predicados complexos do Português
Europeu (PE) que envolvem um verbo leve, mais especificamente os verbos leves ter, dar e
fazer, e um nome deverbal, como ilustrado em (1):
(1)
a. O Rui deu uma corrida.
b. Eles fizeram um assalto.
c. Elas tiveram uma viagem agradável.
No que segue, é nosso objectivo (i) apresentar um conjunto de propriedades que
constituam argumentos a favor da ideia de que os verbos leves são predicados; (ii) argumentar a
favor do estatuto de predicado complexo da construção que envolve um verbo leve e um nome
deverbal; (iii) propor, para os verbos leves, uma descrição baseada em traços das classes de
verbos de Moens (1987) (cf. Dowty 1979, Smith 1991, Scher 2005, Harley 2009, entre outros);
(iv) defender que a diferença crucial entre os verbos leves e os verbos principais
*
Este trabalho foi realizado no âmbito do projecto Predicados Complexos: tipologia e anotação de corpus (PREPLEXOS),
desenvolvido no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL) e financiado pela FCT (PTDC/LIN/68241/2006).
correspondentes em termos de aktionsart reside na subespecificação de alguns ou de todos os
traços dos primeiros.
2. ARGUMENTOS A FAVOR DO ESTATUTO PREDICATIVO DOS VERBOS LEVES
As três propriedades a seguir apresentadas ilustram os argumentos a favor do estatuto de
predicado dos verbos leves.
I. Os verbos leves podem preservar a estrutura argumental do verbo pleno
correspondente
Em (2b), o verbo leve dar mantém a estrutura argumental de três argumentos, como o
verbo pleno correspondente em (2a); (3b) mostra que o verbo leve fazer é um predicado de dois
lugares, como o verbo pleno correspondente de (3a); em (4b), o verbo leve ter mantém os dois
argumentos do verbo pleno homónimo (4a).
(2)
a. O Pedro deu uma gravata ao pai.
b. O Pedro deu uma leitura ao texto.
(3)
a. O Pedro fez uma casa enorme.
b. O Pedro fez um sorriso triste.
(4)
a. O Pedro teve um acidente.
b. O Pedro teve um sonho interessante.
II. Os verbos leves também são responsáveis pela selecção semântica do argumento
externo, contrariamente ao que acontece com os verbos auxiliares
(5)
a. O João tinha empurrado o carro que estava estacionado.
b. A chuva tinha empurrado o carro que estava estacionado.
(6)
a. O João deu um empurrão ao carro que estava estacionado.
b.* A chuva deu um empurrão ao carro que estava estacionado.
Nos exemplos (5a-b), o verbo pleno empurrar, num tempo composto que envolve o
auxiliar ter, selecciona um argumento externo com a função semântica Causa,
independentemente do traço [±animado] deste. Em (6), embora o nome empurrão tenha a
mesma base que o verbo empurrar, só é admitido um argumento externo Causa com o traço
[+animado], em conformidade com as propriedades de selecção semântica do verbo leve dar.
III. Os verbos leves preservam parte do significado e da estrutura argumental dos verbos
plenos correspondentes
Em (7), o verbo pleno dar denota uma mudança de localização de uma entidade y,
possuída por x e transferida para z, como resultado de uma situação eventiva intencional de x;
há presença de um controlador (Causa), uma mudança de localização e uma transferência
(cf.Dowty, 1979; Butt & Geuder, 2001). A presença de um controlador e a ideia de transferência
de x para z encontram-se preservadas pelo verbo leve em (8).
(7)
[O João]x deu [uma gravata] y [ao pai] z.
(8)
[O João]x deu [um abraço] y [ao pai]z.
Por sua vez, o verbo pleno fazer é um predicado causativo de dois lugares que implica
mudança de estado; o argumento Benefactivo opcional ocorre sob a forma de dativo ou de
sintagma preposicional oblíquo (cf. para, em (9a)). Na construção com verbo leve, o argumento
Benefactivo ocorre sob a forma de um dativo (cf. (9b)).
(9)
a. O Pedro fez uma casa na árvore (às / para as crianças).
b. O filme fez muita aflição / impressão às crianças.
Finalmente, o verbo pleno ter é um predicado estativo de dois lugares; expressa posse /
localização de duas entidades (cf. (10a)). A construção com o verbo leve (cf. (10b-d)) mantém a
estrutura argumental de dois lugares, e a preposição que encabeça o constituinte preposicional é
aquela que é requerida pela grelha argumental do nome, como ilustrado em (11).
(10) a. O Pedro tem uma casa no campo.
b. O Pedro tem receio de aranhas.
c. O Pedro teve uma conversa importante com os pais.
d. O Pedro tem muito orgulho na família.
(11) o receio de aranhas, uma conversa com os pais, o orgulho na família
3. ARGUMENTOS A FAVOR DO ESTATUTO DE PREDICADO COMPLEXO DA CONSTRUÇÃO COM UM
VERBO LEVE E UM NOME DEVERBAL
Como mostrámos na secção anterior, os verbos leves do Português europeu apresentam
propriedades predicativas, que os aproximam dos verbos plenos homónimos. Nesta secção,
serão apresentados argumentos adicionais a favor desta ideia e argumentos que nos permitem
concluir que o verbo leve e o nome com que este se combina formam um predicado complexo.
I. Os verbos leves seleccionam um Tema que denota um evento e não uma entidade
Contrariamente ao que acontece quando ocorrem os verbos principais homónimos, o
argumento interno seleccionado pelos verbos dar, fazer e ter denota eventos e não entidades.
Esta afirmação é motivada por dois argumentos:
(i)
Na construção com os verbos leves em análise, podem ocorrer adjectivos aspectuais
internamente ao tema (cf. (12)); este tipo de adjectivos não ocorre internamente a
DPs que denotam entidades (cf. (13)).
(12) a. O Pedro tem dado uma ajuda permanente / ocasional à Cruz Vermelha.
b. O Pedro fez uma intervenção interminável / rápida no debate.
c. Kissinger teve uma influência duradoura / pontual na política externa americana.
(13) a.* O Pedro deu um livro permanente / ocasional ao pai.
b.* O Pedro fez um bolo interminável / pontual para o filho.
c.* O Pedro teve um livro duradouro / pontual.
(ii) Se o núcleo do Tema for um nome que selecciona argumentos internos, um desses
argumentos deve estar presente ou ser recuperável discursivamente, facto que,
segundo Grimshaw (1990), constitui um critério pertinente para identificar leituras
eventivas de nominalizações (cf. (14) vs (15)).
(14) a. O presidente deu sugestões ao governo.
b. O primeiro-ministro fez uma apresentação da nova lei no Parlamento.
c. O presidente teve uma conversa com o primeiro-ministro.
(15) a.?? O presidente deu sugestões.
b.?? O primeiro-ministro fez uma apresentação.
c.?? O presidente teve uma conversa.
II. Existência de alternâncias verbais
Algumas construções com verbos leves admitem alternâncias semelhantes às que
manifestam alguns verbos plenos. Assinale-se o caso do verbo leve fazer, que permite uma
alternância causativa-incoativa (cf. (16)).
(16) a. Esse cirurgião fez uma operação difícil.
b. O paciente fez uma operação difícil (com esse cirurgião).
(causativa)
(incoativa)
Note-se que estas alternâncias não são admitidas nem pelo verbo pleno correspondente
(cf. (17)), nem pelo verbo com que o nome está morfologicamente relacionado (cf. (18)).
(17) a. O Pedro fez um veleiro.
b.* O veleiro fez-se com o Pedro.
(18) a. Esse cirurgião operou a doente.
b.* O doente operou-se com esse cirurgião.
Encontramos ainda pares em que o verbo leve dar alterna com ter (cf. (19a-b)) ou em que
o verbo leve fazer alterna com ter (cf. (20a-b)), o que altera a classe aspectual da eventualidade
da construção.
(19) a. O Pedro deu muitas preocupações aos pais.
b. Os pais tiveram muitas preocupações com o Pedro.
(20) a. O Pedro fez um assalto inusitado.·
b. A ourivesaria teve um assalto inusitado.
(processo)
(estado)
(processo)
(estado)
A alternância aspectual encontrada em (20) não é herdada nem do verbo pleno
correspondente, nem da base verbal a partir da qual o nome é formado. De facto, assaltar não
admite este tipo de alternância, em particular, não admite leitura estativa. Por sua vez, a
alternância de construção encontrada com o verbo preocupar (cf. (19)) não afecta o tipo
aspectual da eventualidade (cf. (21)).
(21) a. O Pedro preocupou os pais.
b. Os pais preocuparam-se com o Pedro.
(processo)
(processo)
Dos dados apresentados nesta secção podemos concluir que (i) o verbo leve e o nome
deverbal formam um predicado complexo e que (ii) as propriedades do predicado complexo são
distintas quer das do verbo pleno correspondente quer das da base verbal do nome e decorrem
da computação das propriedades combinadas do verbo leve e do seu complemento nominal.
4. PROPRIEDADES ASPECTUAIS DA CONSTRUÇÃO
Assumindo a hipótese da preservação do valor aspectual da base verbal a partir da qual os
nomes são formados, tal como definida em Marín & McNally (2009), nas secções seguintes,
serão apresentados argumentos que mostram que, no que toca à selecção do tipo de
eventualidades, os verbos leves são sensíveis à classe aspectual do nome deverbal com o qual se
combinam.
4.1. O verbo leve ter
O verbo leve ter é o mais flexível quanto à combinação com nomes deverbais, na medida
em que admite todas as classes, desde que esses nomes contenham algum tipo de modificação.
(22) Os turistas tiveram uma viagem agradável.
(processo)
(23) O edifício teve uma construção difícil.
(processo culminado)
(24) O atleta teve uma chegada triunfal.
(culminação)
(25) Cristiano Ronaldo teve um toque genial.
(ponto)
(26) A Maria teve uma vida fascinante.
(estado)
O verbo leve ter parece não alterar as propriedades aspectuais do nome deverbal com que
se combina, como mostra a compatibilidade com diferentes adverbiais de tempo (em (27) com
um processo, em (28) com um processo culminado e em (29) com uma culminação), que nos
permitem identificar as diferentes classes aspectuais associadas às predicações verbais de que
são derivados esses nomes.
(27) O Pedro teve um passeio agradável (durante meia hora).
(28) A máquina teve uma montagem completa (em meia hora).
(29) O helicóptero teve uma queda estrondosa (às dez da manhã).
Contudo, a informação veiculada pelo adjectivo é primordial. Assim, em (30), dado que
se utiliza um nome, leitura, que é formado a partir de um processo culminado, e que pode,
portanto, ter uma leitura eventiva e uma leitura resultativa (sendo esta última estativa), a
selecção do adjectivo pode remeter para a parte processual (cf. (30a)) ou para o estado resultante
(cf. (30b)).
(30) a. Este artigo teve uma leitura difícil.
b. Este artigo teve uma leitura proveitosa.
4.2. O verbo leve fazer
Contrariamente ao que acontece com o verbo ter, o verbo leve fazer não se combina com
todos os tipos aspectuais de predicações. De facto, não se pode combinar com estados nem com
pontos (cf. (31)), classes aspectuais que não têm uma estrutura fásica na sua estrutura temporal,
não satisfazendo, assim, os requisitos essenciais para se combinarem com fazer. Quanto à
combinação com nominalizações que denotam processos culminados e processos, fazer pode
preservar as propriedades aspectuais dos nomes (cf. (32)) ou alterá-las (cf. (33)).
(31) a.* O João fez uma vida.
b.* O João fez um espirro.
(32) a. O João fez uma leitura do artigo em cinco minutos / # durante cinco minutos.
b. A Maria fez uma caminhada durante meia hora.
(33) a. O deputado fez um discurso em meia hora.
b. O Pedro fez uma caminhada em meia hora.
Quanto à combinação com nominalizações que derivam de culminações, apenas um
número reduzido é compatível com fazer (cf. (34a) vs (34b-d)):
(34) a.* A Maria fez uma chegada / um nascimento / um desaparecimento.
b. O ladrão fez um assalto.
c. O exército fez um ataque à cidade.
d. O vento fez um estrago no telhado.
Consideramos que há duas hipóteses de explicação para as restrições observadas em
(34b-d):
(i)
Os predicados complexos com fazer requerem um sujeito Agente / Causa; ora as
culminações em (34a) derivam de verbos inacusativos, cujo argumento único não
recebe essa função semântica, o que determina a agramaticalidade dessas sequências.
(ii) Os predicados complexos com fazer só admitem culminações que podem ser
convertidas em processos culminados, por acréscimo de um processo preparatório à
sua estrutura aspectual básica, como o pode confirmar a presença dos adverbiais em
cinco minutos e durante cinco minutos (cf. (35)):
(35) a. O ladrão fez um assalto em cinco minutos.
b. O exército fez um ataque à cidade em duas horas.
4.3. O verbo leve dar
O verbo leve dar é o mais restritivo com as classes aspectuais a partir das quais se
formam as nominalizações. Com efeito, este verbo leve não é compatível nem com estados nem
com culminações (cf. (36) e (37)).
(36) * O João deu um gosto / uma vida.
(37) * A Maria deu um nascimento / um assalto à casa.
Quanto à co-ocorrência de dar com nomes derivados de processos e processos
culminados, observa-se que é pouco consistente, uma vez que este verbo se combina apenas
com alguns processos e com alguns processos culminados (cf. (38a) vs (38b) e (39) vs (40)).
(38) a. O João deu um passeio / uma corrida / uma caminhada.
b.* A Maria deu um trabalho / uma perseguição / uma fuga / uma dança.
(39) a. O turista deu uma visita pela cidade / pelo museu.
b. O Pedro deu uma leitura ao artigo.
(40) a.* O pedreiro deu uma construção à casa.
b.* O Pedro deu um resumo ao artigo.
Note-se que, contrariamente ao que acontece com fazer, o verbo dar é compatível com
pontos, como se pode observar em (41):
(41) Cristiano Ronaldo deu um espirro / um toque na bola.
Verifica-se que o verbo leve dar, comparativamente com o verbo leve fazer, selecciona
preferencialmente nominalizações formadas a partir de eventos sem estrutura fásica, sendo
muito restritivo quanto à co-ocorrência com nomes derivados de eventos com uma clara
estrutura fásica.
5. DERIVAÇÃO DAS PROPRIEDADES ASPECTUAIS DO PREDICADO COMPLEXO
5.1. Propriedades aspectuais dos verbos leves e dos verbos plenos correspondentes
Tem sido defendido que as propriedades aspectuais das classes de verbos, como descritas
em Vendler (1967), podem ser caracterizadas em termos de um conjunto de traços (cf. Dowty
1979, Smith 1991, Scher 2005, entre outros). Neste sentido, Harley (2009:333) propõe a
seguinte especificação de traços para os morfemas verbalizadores que formam verbos plenos:
(42) a. VCAUSE: [+dynamic], [+change of state], [+cause]
b. VBECOME: [+dynamic], [+change of state], [-cause]
c. VDO: [+dynamic], [-change of state], [-cause]
d. VBE: [-dynamic], [-change of state], [-cause]
Tendo em conta as propriedades semânticas das diferentes classes aspectuais, tal
classificação parece insuficiente, pelo que propomos a seguinte adaptação da proposta de Harley
(2009):
(i)
manter os traços [±dinâmico], [±causa];
(ii) adoptar o traço [±mudança], que opera sobre mudança de estado, de localização e de
posse;
(iii) introduzir o traço [±durativo], para distinguir processos culminados, processos e
estados de culminações e pontos;
(iv) introduzir o traço [±instant(âneo)], para distinguir pontos de todas as outras classes
(veja-se Smith (1991)).
Estas alterações permitem reformular (42) como em (43), em que verbo pleno fazer
corresponde a (43a), o verbo pleno dar, a (43b), e o verbo pleno ter, a (43d).
(43) a. VCAUSE: [+dynamic], [+change], [+cause], [+durative], [-instant]
b.VBECOME: [+dynamic], [+change], [-cause], [-durative], [-instant]
(FAZER)
(DAR)
c. VDO: [+dynamic], [-change], [-cause], [+durative], [-instant]
d. VBE: [-dynamic], [-change], [-cause], [+durative], [-instant]
(TER)
e. VDO_INSTANT: [+dynamic], [- change], [-cause], [-durative], [+instant]
Tendo em conta a caracterização, em termos de traços aspectuais, dos verbos plenos
proposta em (43), a nossa hipótese é a de que os verbos leves diferem dos verbos plenos por se
encontrarem subespecificados para alguns traços aspectuais, como ilustrado em (44):
(44) a. fazerleve: [+dinâmico], [±mudança], [±causa], [±durativo], [-instant]
b. darleve: [+dinâmico], [±mudança], [±causa], [±durativo], [±instant]
c. terleve: [± dinâmico], [± mudança], [± causa], [± durativo], [± instant]
5.2. Exclusão das combinatórias <Vleve + N> agramaticais
Com base na caracterização anterior dos verbos leves face aos verbos plenos, verifica-se
que há combinatórias <Vleve + N> que são agramaticais:
(i)
Os verbos leves dar e fazer dispõem do traço [+dinâmico], não podendo combinar-se
com nomes que derivam de estados, por estes serem [-dinâmico].
(ii) Como estes verbos se encontram subespecificados para o traço [mudança], podem
combinar-se com nomes que denotam processos ou processos culminados, que irão
valorar um desses traços: [-mudança], com um nome de processo, e [+mudança],
com um nome derivado de um processo culminado.
(iii) Fazer, por não estar especificado quanto ao traço [causa], combina-se com processos
culminados ([+causa]) e processos ([-causa]).
(iv) O facto de dar se encontrar subespecificado para o traço [causa] levaria a supor que
este verbo leve seria compatível tanto com processos culminados como com
culminações. No entanto, observamos que apenas a primeira classe aspectual é
compatível. Isto significa que a proposta apresentada sobregera possibilidades, já que
dar não é compatível com culminações, embora os traços prevejam essa
combinatória.
(v) Enquanto dar está subespecificado para o traço [instant], permitindo a ocorrência de
pontos, fazer mantém o valor [-instant] do verbo pleno correspondente, excluindo,
assim, nomes que denotam pontos.
(vi) No caso de dar, a exclusão de culminações deve ser explicada na componente pós-sintáctica (na interface C-I; veja-se Oliveira et al. (2009)).
(vii) O verbo leve ter é o mais defectivo; combina-se com todas as classes de nomes
predicativos, dado que todos os seus traços estão subespecificados.
5.3. Derivação das propriedades aspectuais do predicado complexo: uma ilustração
Nesta secção, ilustraremos a derivação das propriedades aspectuais de predicados
complexos que integrem o verbo leve dar.
Se o referido verbo se combinar com um nome que denote um processo, a derivação das
propriedades aspectuais de todo o predicado complexo procede como em (45):
(45) dar um passeio
darleve: [+dinâmico], [±mudança], [±causa], [±durativo], [±instant]
passeio: [+dinâmico], [-mudança], [-causa], [+durativo], [-instant]
dar um passeio: [+dinâmico], [-mudança], [-causa], [+durativo], [-instant]
Neste caso, os dois elementos que compõem o predicado complexo partilham o valor do
traço [dinâmico]. Como os outros traços do verbo leve se encontram subespecificados, a
sequência <Vleve + N> herda os valores especificados nos traços do nome.
Se, por sua vez, o verbo leve dar se combinar com um nome que denote um estado, a
derivação das propriedades aspectuais do predicado complexo é a ilustrada em (46):
(46) * dar uma estada no Brasil
darleve: [+dinâmico], [±mudança], [±causa], [±durativo], [±instant]
estada: [-dinâmico], [-mudança], [-causa], [+durativo], [-instant]
A exclusão destas sequências decorre do conflito entre os valores do traço [dinâmico]:
[+dinâmico] para o verbo leve; [-dinâmico] para o nome que denota um estado.
6. CONCLUSÕES
O objectivo central deste trabalho foi o de demonstrar que os verbos leves são elementos
predicativos, como os verbos plenos e ao contrário dos verbos auxiliares. Os dados apresentados
permitem-nos concluir que os verbos em análise não são elementos meramente funcionais nem
verbos auxiliares, aproximando-se, antes, de verbos plenos. Assim, podemos concluir que:
(i) os verbos leves são predicados, seleccionando argumentos e impondo restrições
sobre as classes aspectuais dos nomes com que se combinam;
(ii) a sequência <Vleve + N> forma um predicado complexo;
(iii) os verbos leves distinguem-se dos verbos plenos homónimos em virtude de alguns
dos traços da sua estrutura aspectual se encontrarem subespecificados.
Defendemos ainda que, em termos semânticos, existe uma interacção entre as
propriedades das nominalizações seleccionadas e algumas das características que os verbos
leves herdam dos verbos plenos correspondentes; as possibilidades de compatibilização dos
verbos leves com as classes aspectuais de predicados nominais manifestam esse tipo de
interdependência.
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