Antropologia e Graça - Universidade Católica Editora

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José Jacinto Ferreira de Farias, scj
Antropologia e Graça
Ser cristão hoje
UNIVERSIDADE CATÓLICA EDITORA
Lisboa, 2011
Introdução
1. A origem do tratado “De gratia”: a graça como “habitus”
O tratado De gratia surgiu depois do Concílio de Trento, centrado no
tema da graça criada e/ou santificante e, neste sentido, é um tratado moderno,
dado que antes a graça era estudada não de um modo autónomo, mas
sim em diversas partes ou tratados da teologia1.
O De gratia está ligado ao debate moderno sobre o sobrenatural e a
sua relação com a natureza, onde a ordem sobrenatural e a graça são vistas
como acidentais a respeito da natureza. A gratuidade da graça é afirmada
no pressuposto da natureza, que é considerada na modernidade não como
criação, como era o caso da tradição teológica, mas sim na sua condição
autónoma, encerrada em si mesma, com fins e objectivos próprios, independentemente da sua relação com o sobrenatural. A graça considerada
como um dom, mas segundo um esquema adicional e, por isso, a nota
da gratuidade da graça e do sobrenatural era vista por não ser devida
à natureza, por ser algo que vem de fora, acidentalmente acrescentado
como uma qualitas, mas que transforma interiormente o homem.
E aqui estava o ponto no qual se dava a diferença entre a visão luterana
e a visão católica sobre a graça da justificação.
O tratado De Gratia surge no contexto da polémica entre os
católicos e os protestantes acerca da justificação, encontrando a sua
principal fonte de inspiração no Concílio de Trento, o qual ensina
Cf. F. G. Brambilla, Antropologia teologica (Brescia: Queriniaa 2005) 65-127. Veja-se também:
L. Serenthà, Antropologia del punto di vista teologico, in Dizionario Teologico Interdisciplinare III
(Torino: Marietti 1977) 523-536.
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que a graça modifica ontologicamente o homem, contra a Reforma,
a qual defendia uma noção meramente exterior da justificação, de
tipo forense, porque no fundo último do seu ser o homem permanece pecador, sendo sinal disso a concupiscência, identificada com o
pecado original.
Na resposta às posições da Reforma, o concílio de Trento recupera
o discurso medieval sobre a graça, o qual se concentrava na noção de
habitus e entendia a graça como qualitas dada à natureza, produzindo
nela uma real modificação acidental que habilita a natureza para a
vida da graça.
É esta noção de graça que o novo tratado estuda na sua primeira parte,
tomando como ponto de partida a afirmação de Trento: a única causa
formal da justificação é a justiça de Deus, não aquela pela qual Deus é justo,
mas sim aquela pela qual nos faz justos2. A justificação é, por conseguinte,
uma realidade nova inerente ao homem, um habitus, a qual constitui a
arquitectura da primeira parte do tratado, que desenvolve sucessivamente
os seguintes temas: (1) a existência, (2) a natureza, (3) as propriedades
da justificação cristã, (4) a preparação para a justificação e (5) o desenvolvimento da vida em graça.
2. Depois do Concílio de Trento: a graça como “auxilium”
Depois do Concílio de Trento a questão que vai ocupar a teologia
é a relação entre a graça e a liberdade, ou seja, qual o lugar da liberdade
perante o primado absoluto da iniciativa salvífica de Deus. Este foi o
tema das querelas de auxiliis que puseram em confronto dominicanos
e jesuítas sobre esta questão: como conciliar a relação entre a graça e a
liberdade, como salvaguardar a sua gratuidade, como ver a graça não como
grandeza em concorrência com a liberdade, mas como força de comunhão divina que suscita a liberdade?
O Concílio de Trento, na formulação da sua doutrina sobre a
justificação, recuperou o pensamento ocidental, muito particularmente a teologia de S. Tomás. Mas nos debates posteriores a teologia
vai inspirar-se sobretudo em Santo Agostinho, no qual também se
tinham inspirado os reformadores, muito concretamente Lutero,
«Unica formalis causa (da justificação) est iustitia Dei, non qua ipse iustus est, sed qua nos justos
facit» (DS 1529).
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Introdução
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como monge agostinho que era. E assim se explica a ênfase que se
dá à compreensão da graça como auxilium ou adiutorium gratuito
concedido por Deus à liberdade pecadora. E assim, a graça como
auxilium constitui a segunda parte do tratado da graça, onde aparecem
os temas da predestinação, da relação graça e liberdade. Recupera-se
também no tratado sobre a graça, também como reflexo das controvérsias pós-tridentinas, a noção agostiniana da graça como delectatio
vitrix, auxilium dado à liberdade sob a senhoria do pecado e liberta
da atracção irresistível da acção divina.
Embora em Santo Agostinho seja muito importante a consideração da graça como auxilium, não se limita porém a este aspecto a
sua teologia da graça. De facto, em Santo Agostinho encontramos
também, e de um modo muito desenvolvido, a consideração da graça
na perspectiva da inabitação e divinização pelo Espírito Santo, bem
como da comunhão com Cristo, temas que podemos encontrar
amplamente desenvolvidos nas suas cartas 187 e 140, bem como no
comentário à primeira carta de S. João, onde aparece o tema da caridade
e a sua função na obra da justificação, não devendo ser esquecida a
sua reflexão sobre o Christus totus, com a mística da união real entre
Cristo e a Igreja, onde é afirmada a identidade entre Cristo e os
cristãos segundo a lei da caridade.
Estes temas encontram também grande desenvolvimento nos
Padres gregos que são de algum modo descobertos a partir dos
finais do século xvi, com Petau (1583-1652), prosseguindo no século
xvii, com Thomassin (1619-1695), e depois até ao século xix, com a
teologia romântica (J. A. Möhler) sobretudo com M. J. Scheeben, no
qual a “inabitação do Espírito Santo” aparecerá como o princípio
construtivo da sua teologia.
3. A graça como divinização
Com a redescoberta dos Padres gregos, assistimos à emergência de
um terceiro momento do tratado da graça, onde se vê a acção da graça
como divinização operada pelo Espírito Santo entendido neste contexto
como graça incriada.Temos assim, na arquitectónica do tratado da graça, a
emergência sucessiva de três grandes temas: a graça como habitus, depois
como auxilium e finalmente como divinização. Será a partir deste terceiro
tema que o tratado da graça sofrerá, sobretudo a meados do século xx,
uma profunda remodelação.
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Antropologia e Graça
4. A renovação da teologia da graça no século
xx
A remodelação do tratado De Gratia ao longo do século xx consistiu
principalmente numa inversão metodológica: já não se parte da natureza para chegar à graça e ao sobrenatural, mas sim do Espírito Santo, o
qual opera a santificação e divinização do homem. Nesta compreensão
renovada da graça foram muito importantes os contributos de M. de la
Taille e de K. Rahner, os quais explicam o modo de presença do Espírito
Santo na alma através da causalidade quase-formal.
K. Rahner sublinha especialmente a natureza intrínseca da presença do
Espírito Santo não só através do recurso à causalidade quase-formal, mas
também à sua tese do existencial sobrenatural, pela qual mostra a dimensão
histórica e antropológica da presença do Espírito Santo na alma. Na linha
de K. Rahner situam-se outros teólogos, dos quais deve especialmente
relevar-se J. Alfaro, com a sua tese acerca do existencial crístico3.
Esta perspectiva pneumatológica da graça foi especialmente desenvolvida a partir dos anos ’80 quer pelas experiências dos movimentos
de renovação carismática quer pelo próprio magistério pontifício, nomeadamente pela encíclica de João Paulo II, Dominum et vivificantem,
publicada no dia 18 de Maio de 1985.
5. Da teologia da graça à antropologia teológica
A perspectiva pneumatológica de consideração da graça, ou seja, o
Espírito Santo como graça incriada, teve como consequência que esta seja
considerada no plano económico e salvífico e cristológico.
Esta nova perspectiva tem por sua vez consequências ao nível da antropologia: o homem é visto a partir da sua vocação a ser incorporado
em Cristo. É então a partir de Cristo e do Espírito Santo que se equaciona todo o processo de transformação do homem, de configuração
com Cristo pelo Espírito. A graça, neste novo enquadramento, deixa de
ter um tratamento autónomo e isolado, para ser integrada na cristologia,
donde decorre toda a compreensão do homem. O De gratia desaparece
como tratado autónomo, para dar lugar à antropologia sobrenatural como
antropologia da graça e da liberdade.
Cf. várias aproximações do autor na sua obra: J. Alfaro, Cristologia y antropologia. Temas
teológicos actuales (Madrid: Cristiandad 1973).
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Introdução
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Esta transição de um tratado De gratia autónomo que passa a ser
integrado na antropologia sobrenatural corresponde ao movimento do
pensamento moderno marcadamente antropológico. Este movimento
acompanhou e levou também à crise e superação de outro tratado, que
tinha surgido ainda depois do De gratia e que desapareceu primeiro, o
De Deo creante et elevante, cuja origem se deve a uma tentativa de resposta
às teses de Baio, o que levou à elaboração do conceito de natureza pura,
ou, pelo menos, ao seu uso intensivo em teologia4.
Se antes a relação natureza-graça era vista na base de uma compreensão da natureza ferida pelo pecado, na linha de Santo Agostinho, agora
a relação da natureza com a graça e vice-versa é vista no quadro da
consideração da natureza pura.
Entre outras coisas, a ideia de natureza pura permite uma leitura da
realidade independentemente da fé, o que contribuiu, segundo H. de
Lubac, para o processo de secularização, para uma visão da antropologia
independentemente da fé, resultando daí também a elaboração de uma
teologia natural.
O tratado De Deo elevante tinha como finalidade considerar o homem a partir da graça, enquanto o De Deo creante considerava a criação
do homem segundo a razão. A crise do tratado, apesar da sua relativa
consagração pelo Magistério na Constituição Dei Filius, do Concílio
Vaticano I (1870), teve a ver com a superação de uma filosofia da natureza provocada pela viragem antropológica do pensamento, por um
lado, e, por outro, entre outras razões, pela tomada de consciência da
historia salutis como horizonte de toda a teologia, superando-se assim a
aproximação abstracta e a-histórica do De Deo creante et elevante.
6. A situação actual
O estado actual da questão mostra, segundo F. G. Brambilla 5,
um amplo consenso nos projectos contemporâneos de antropologia
Cf. M. Flick, La strutura del Trattato: “De Deo creante et Elevante”, in Gregorianum 36 (1955)
284-290. Para o enquadramento das vicissitudes históricas do tratado sobre a graça no
quadro da reflexão sobre o sobrenatural, veja-se os ensaios: G. Colombo, Il problema del soprannaturale negli ultimi cinquant’anni, in Problemi e orientamenti di teologia dommatica (Milano
1957) 545-607; ID., Soprannaturale, in Dizionario Teologico Interdisciplinare III (Torino: Marietti
1977) 293-301.
5
Cf. F. G. Brambilla, Antropologia teologica, 102-113.
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Antropologia e Graça
teológica, posteriores ao Concílio. Estes projectos têm na sua organização,
como princípio estruturante, a perspectiva do cristocentrismo trinitário. Se
a antropologia teológica pretende ser a herdeira das grandes questões
que agitaram a teologia na modernidade, movida pela preocupação em
explicar para o mundo a visão cristã do homem, isso não pode ser feito
senão em referência a Jesus Cristo, à sua singularidade, no qual se decifra
o desígnio de Deus acerca do homem, a sua altíssima vocação (cf. GS
22). Trata-se de elaborar uma antropologia teológica centrada em Jesus
Cristo, no qual e para o qual o homem foi desde sempre pensado em
Deus.
Segundo o teólogo italiano, a visão cristã do homem, que na antropologia teológica se pensa e se projecta, tem a “forma crística”6 e
esta é escatológica. Então “o crente cristão é o homem que assume os
contornos de Jesus e a Ele acede livremente no Espírito”7.
Mas este projecto de antropologia teológica renovada encontra-se
hoje, no início do século xxi, perante novos desafios, e que são sobretudo de duas ordens8.
Em primeiro lugar, da crítica entretanto feita pelos movimentos
ecologistas ao exagerado antropocentrismo moderno, que encontraria
na própria teologia à sua justificação ideológica, na medida em que este
antropocentrismo conduz à objectivação e instrumentalização do mundo,
não respeitando portanto a natureza. Esta crítica ao antropocentrismo
moderno encontrou eco, entre muitos outros, em J. Moltmann9, o qual
pensa a teologia da criação como base do respeito pela natureza e a
antropologia na qual recupera o sentido do repouso sabático, ou seja, de
uma nova ordem que restabeleça o equilíbrio e a harmonia originais.
Em segundo lugar, o desafio que é provocado pelo assim dito pós-modernismo e pelos teóricos do pensamento frágil. O pensamento frágil
representa uma forma de mostrar o enfraquecimento do homem, do seu
desaparecimento ou do surgimento de um quarto homem, de Deus e
do mundo, como forma de criar um espaço vazio filosófico e cultural, porque a razão frágil abdica da possibilidade de aceder à verdade,
quedando-se numa aproximação meramente estética, muito embora seja
este um conceito no qual tudo pode caber e que afinal representa a
F. G. Brambilla, Antropologia teologica, 109.
F. G. Brambilla, Antropologia teologica, 109.
8
Cf. F. G. Brambilla, Antropologia teologica, 113-119.
9
Cf. J. Moltmann, Dio nella creazione (Brescia: Queriniana 1986).
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redução gnóstica ou neognóstica quer do cristianismo quer da religião
em geral.
Um esforço de pensar a antropologia teológica no quadro dos desafios vindos agora do pós-modernismo neognóstico da razão frágil e
que tem sido teorizado em Itália10, é o trabalho de I. Sanna11, ensaio sem
dúvida pioneiro neste confronto, cuja solução, na nossa perspectiva, terá
de passar pela assunção dos paradoxos que constituem os pressupostos
da antropologia teológica como configuração com Cristo. Esta passa
necessariamente pela teologia da cruz, pois é a sua sombra que cobre e
que envolve a antropologia teológica e a dinâmica da graça que a informa
e transfigura, tanto na sua clássica acepção da graça criada como na sua
expressão como graça incriada, o Espírito Santo como dom, que santifica
e diviniza o homem, conformando-o à imagem do Verbo Incarnado.
7. O nosso projecto
O nosso projecto pressupõe esta problemática e, tendo em conta as
fases do desenvolvimento da teologia da graça, sobretudo desde Santo
Agostinho, procura detectar os elementos que vão permitir a configuração do perfil característico do cristão no mundo e esse perfil resultará
da releitura que a partir dos dados da Escritura a teologia foi fazendo
ao longo da história e dos problemas novos que foram provocando a
teologia, desde Pelágio até aos nossos dias.
Este esboço procura constituir uma antropologia teológica em torno
de três eixos: a eleição/predestinação em Cristo e na Igreja; a justificação
e a ontologia da graça como filiação.
Cf. G. Vattimo, O Fim da Modernidade. Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-Moderna
(Lisboa: Presença 1987) 30-42; ID., Credere di credere (Milano: Garzanti 1996).
11
Cf. I. Sanna, Antropologia cristiana tra modernità e posmodernità (Brescia: Queriniana
20043).
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Índice
Introdução............................................................................... 7
Capítulo I
Fundamentos............................................................................. 15
1.1. Sagrada Escritura................................................................. 1.1.1.A Graça no Antigo Testamento................................... 1.1.2.A Graça no Novo Testamento..................................... 1.2. Tradição teológica............................................................... 1.2.1.Santo Agostinho......................................................... 1.2.2.S. Tomás de Aquino.................................................... 1.2.3.O Concílio de Trento................................................. 15
16
24
34
35
48
56
Capítulo II
Problemas. ................................................................................ 59
2.1. A afirmação da unilateralidade da graça................................ 2.1.1.Lutero........................................................................ 2.1.2.Calvino...................................................................... 2.1.3.Baio e Jansénio........................................................... 2.2. A tentativa de conciliação entre a graça e a liberdade............ 2.2.1.Molina....................................................................... 2.2.2.Bañez......................................................................... 2.2.3.A querela “de auxiliis”................................................ 60
60
63
64
67
68
69
70
152
Antropologia e Graça
2.3. O debate sobre a graça e a liberdade/natureza-graça............. 70
2.3.1.A transcendência e imanência do sobrenatural............ 71
2.3.2.A proposta da “Nova Teologia”................................... 74
Capítulo III
Temas........................................................................................ 93
3.1. Eleição – predestinação........................................................ 93
3.1.1.A problemática da predestinação................................. 94
3.1.2.As vias para uma solução............................................ 102
3.2. Justificação........................................................................... 108
3.2.1.Uma questão inactual?............................................... 108
3.2.2.Lutero........................................................................ 111
3.2.3.K. Barth..................................................................... 114
3.2.4.Caminhos para uma solução....................................... 116
3.2.5.A justificação como redenção subjectiva..................... 125
3.3.A graça da adopção filial...................................................... 128
3.3.1.A filiação adoptiva...................................................... 129
3.3.2.A inabitação trinitária................................................. 130
3.3.3.A ontologia da filiação............................................... 132
Conclusão. .............................................................................. 137
Bibliografia............................................................................. 141
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