Floresta de Segredos

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erin hunter
Floresta de Segredos
Para o Schrödi, que caça com o Clã das Estrelas,
e para Abbey Cruden,
que conheceu o verdadeiro Coração de Fogo
Agradecimentos especiais a Cherith Baldry
ALIANÇAS
CLÃ DO TROVÃO
COMANDANTE ESTRELA AZUL – gata cinzento-azulada,
manchada de prata em redor da boca.
VICE-COMANDANTE GARRA DE TIGRE – grande gato tigrado
castanho-escuro, com garras dianteiras
invulgarmente compridas.
GATA CURANDEIRA PRESA AMARELA – gata velha, cinzenta,
com um focinho largo e achatado,
anteriormente do Clã das Sombras.
Aprendiza, Pata de Carvão
GUERREIROS (gatos e gatas sem crias)
TEMPESTADE BRANCA – grande gato
branco.
Aprendiz, Pata de Brilhante
RISCA ESCURA – esguio gato tigrado preto
e cinzento.
Aprendiz, Pata de Poeira
C AUDA LONGA – gato tigrado claro
com riscas pretas.
Aprendiz, Pata Rápida
VENTO QUE CORRE – gato rápido tigrado.
CASCA DE SALGUEIRO – gata cinzenta
muito clara com invulgares olhos azuis.
PÊLO DE RATO – pequena gata parda.
Aprendiz, Pata de Espinho
CORAÇÃO DE FOGO – bonito gato ruivo.
Aprendiz, Pata de Nuvem
RISCA CINZENTA – sólido gato cinzento
de pêlo comprido.
Aprendiz, Pata de Feto
PÊLO DE POEIRA – gato tigrado castanho-escuro.
TEMPESTADE DE AREIA – gata ruivo-clara.
APRENDIZES ( com mais de seis luas de idade, em treino
para se tornarem guerreiros)
PATA RÁPIDA – gato tigrado preto e branco.
PATA DE FETO – gato tigrado castanho-
-dourado.
PATA DE NUVEM – gato branco de pêlo
comprido.
PATA BRILHANTE – gata branca com
manchas ruivas.
PATA DE ESPINHO – gato tigrado castanho
RAINHAS e dourado.
(gatas prenhas ou a amamentar gatinhos)
PÊLO DE NEVE – gata de lindo pêlo branco
e olhos azuis.
FOCINHO MALHADO – bonita gata tigrada.
FLOR DOURADA – de pêlo ruivo-claro.
CAUDA SARDENTA – gata tigrada clara,
ANCIÃOS a mais velha das rainhas do berçário.
(antigos guerreiros e rainhas, agora retirados)
MEIA CAUDA – grande gato tigrado
castanho-escuro, sem parte da cauda.
ORELHA PEQUENA – gato cinzento
com orelhas muito pequenas; o gato mais velho
do Clã do Trovão.
PÊLO MALHADO – gato pequeno branco
e preto.
ZAROLHA – gata cinzento-clara, a mais velha
do clã do Trovão; praticamente cega e surda.
CAUDA SARAPINTADA – gata outrora
bonita com um belo pêlo manchado em casca
de tartaruga.
ESTRELA QUEBRADA – gato castanho-
-escuro com pêlo comprido; cego; antigo
comandante do Clã das Sombras.
COMANDANTE CLÃ DAS SOMBRAS
ESTRELA DA NOITE – gato preto.
VICE-COMANDANTE PELAGEM DE CARVÃO – gato magro
e cinzento.
GATO CURANDEIRO NARIZ MOLHADO – pequeno gato cinzento
e branco.
GUERREIROS CAUDA ESPETADA – gato tigrado castanho.
Aprendiz, Pata Castanha
PATA MOLHADA – gato tigrado cinzento.
Aprendiz, Pata de Carvalho
N UVEM PEQUENA – pequena gata tigrada.
RAINHAS UVEM DA MANHÃ – pequena gata
N
tigrada.
FLOR ESCURA – gata preta.
PAPOILA ALTA – gata tigrada castanho-clara de patas compridas.
CLÃ DO VENTO
COMANDANTE ESTRELA ALTA – gato preto e branco
com cauda muito comprida.
VICE-COMANDANTE PÉ MORTO – gato preto com uma pata torcida.
GATO CURANDEIRO FOCINHO DE CASCA – gato castanho
de cauda curta.
GUERREIROS GARRA DE LAMA – gato castanho-escuro
com manchas.
Aprendiz, Pata de Teia
ORELHA RASGADA – gato tigrado.
Aprendiz, Pata Corredora
UM BIGODE – gato tigrado, jovem e castanho.
Aprendiz, Pata Branca
RAINHAS PÉ DE CARVÃO – rainha cinzenta.
F LOR DA MANHÃ – rainha com pelagem
tartaruga.
ANCIÃOS PÊLO DE CORVO – velho gato preto.
CLÃ DO RIO
C O M A N D A N T E ESTRELA TORTA – enorme gato tigrado
claro com uma mandíbula torta.
VICE-COMANDANTE PÊLO DE LEOPARDO – gata dourada
com manchas invulgares.
GATO CURANDEIRO PÊLO DE LAMA – gato castanho-claro
GUERREIROS de pêlo comprido.
GARRA NEGRA – gato preto fuliginoso.
Aprendiz, Pata Pesada
P ÊLO DE PEDRA – gato cinzento,
com cicatrizes de batalha nas orelhas.
Aprendiz, Pata de Sombra
GRANDE VENTRE – gato castanho-escuro.
Aprendiz, Pata Prateada
R IO DE PRATA – bela gata tigrada prateada.
RAINHAS PATA DE NÉVOA – gata cinzento-escura.
ANCIÃOS LAGOA CINZENTA – gata magra, cinzenta
com malhas e cicatrizes no focinho.
GATOS FORA DOS CLÃS
CEVADA – gato preto e branco que vive numa
quinta, próximo da floresta.
P É NEGRO – gato grande, branco,
com enormes patas pretas, anteriormente
do Clã das Sombras.
P RINCESA – gata tigrada castanho-clara
de peito e patas brancas – uma tareca.
PATA DE CORVO – gato esguio, preto,
com a ponta da cauda branca, que vive
na quinta com Cevada.
M ANCHA – gatinho preto e branco, roliço
e amistoso, que vive numa casa na orla
da floresta.
Pedras Altas
Quinta
do Cevada
Acampamento
do Clã do Vento
Quatro
Árvores
Est
quedas-d’água
Árvore
da Coruja
Clar
da A
Rio
Pedras
do Sol
Acampamento
do Clã do Rio
Sítio
CLÃ Do trovão
Lugar
dos mortos
Acampamento
do Clã das
Sombras
CLÃ Do Rio
Estra
da do
CLÃ DAS SOMBRAS
Trov
ão
Acampamento
do Clã do Trovão
Clareira
da Areia
Grande
Plátano
Pedras das Cobras
CLÃ Do Vento
Pinheiros
Altos
CLÃ Das Estrelas
Sítio das Árvores
Cortadas
Sítio dos Duas Pernas
do
Nor
te d
eA
ller
ton
Dedos do Diabo
[mina abandonada]
Est
rad
a
Quinta do Vento
Parado
Charneca do Vento Parado
Clareira do Druida
Estr
Salto do Druida
ell
Rio Ch
Acampamento
da Quinta Morgan
Tra
ves
s
aM
Quinta
Morgan
org
an
Lixeira do Norte
de Allerton
Bosque de decíduas
Coníferas
Estrada d
o Vento P
arado
Pântano
Bosque do Veado Branco
Ravinas e pedras
Floresta de
Chelford
Carreiros
Fábrica de Ch
Chelford
NORTE
elford
Prólogo
O frio paralisava a floresta, os campos e a charneca como uma garra
gelada. A neve cobria tudo, brilhando tenuemente sob a lua nova.
Nada quebrava o silêncio na floresta, excepto uma ocasional e
suave queda de neve a deslizar dos ramos das árvores e o ruído
fraco dos caniços secos quando o vento soprava por entre eles. Até
o murmúrio do rio fora silenciado pelo gelo que se estendia de
uma margem à outra.
Houve um vislumbre de movimento na orla do rio. Um gato
grande, de pêlo castanho e dourado eriçado contra o frio, emergia
das canas. Sacudia com impaciência a neve das patas enquanto
voltava a afundá-las nela a cada passo.
À sua frente, duas crias minúsculas avançavam a custo, com
débeis miados de aflição. Patinhavam na neve porosa e o pêlo das
patas e do ventre colava-se-lhes em torrões gelados; mas, sempre
que tentavam parar, o gato empurrava-os para diante.
Os três gatos arrastaram-se ao longo do rio até este se alargar
e conseguirem alcançar uma ilhota não longe da margem. Espes‑
sos maciços de canas rodeavam-na de caules secos irrompendo do
gelo. Salgueiros raquíticos e nus ocultavam o centro da ilha por
trás de ramos cobertos de neve.
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– Estamos quase – miou o gato malhado em tom encorajador.
– Sigam-me.
Deslizou pela margem até um carreiro estreito e gelado por
entre as canas e saltou para a terra seca e fria da ilha. A maior das
duas crias seguiu-o desastradamente, mas a mais pequena caiu no
gelo e ali ficou agachada, miando de desespero. Após um momento
de pausa, o gato saltou para o seu lado e tentou fazê-la levantar-se,
mas ela estava demasiado exausta para se mexer. O gato lambeu‑
-lhe as orelhas, numa tentativa de consolar aquele farrapo indefeso,
e depois ergueu-o pelo cachaço e transportou-o para a ilha.
Para lá dos salgueiros havia uma extensão de terreno aberto
intercalado por arbustos. Ali, a neve cobria o solo, marcada pelas
pegadas de muitos gatos. A clareira parecia deserta, mas havia
olhos que brilhavam nos abrigos, observando o gato, que abria
caminho para o maior maciço de arbustos e através da sebe exte‑
rior de ramos emaranhados.
O ar gelado do exterior deu lugar ao calor do berçário e ao
cheiro de leite. Numa cama fofa de musgo e urze, uma gata
cinzenta amamentava uma única cria tigrada. Ergueu a cabeça
quando o gato se aproximou e pousou delicadamente a cria que
transportava. A segunda cria entrou no berçário a cambalear atrás
dele e tentou abrir caminho até à cama.
– Coração de Carvalho? – miou a gata. – O que trazes aí?
– Crias, Lagoa Cinzenta – respondeu Coração de Carvalho.
– Ficas com elas? Precisam de uma mãe que cuide delas.
– Mas… – Os olhos ambarinos de Lagoa Cinzenta revelavam
choque. – De quem são? Não pertencem ao Clã do Rio. De onde
as trazes?
– Encontrei-as na floresta. – Os olhos de Coração de Carvalho
fugiam dos da gata enquanto falava. – Por sorte não foram encon‑
trados primeiro por uma raposa.
– Na floresta? – miou a rainha, com descrença na voz. – Cora‑
ção de Carvalho, não me fales como se eu tivesse miolos de rato.
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Que gata abandonaria as crias na floresta, especialmente com este
tempo?
Coração de Carvalho encolheu os ombros.
– Renegados, talvez, ou Duas Pernas. Como hei-de saber? Não
podia deixá-las lá, pois não? – Empurrou com o nariz a cria mais
pequena, que estava totalmente imóvel, excepto na rápida subida
e descida das costelas minúsculas com a respiração. – Lagoa Cin‑
zenta, por favor… As tuas outras crias morreram, e estas morrerão
também, a menos que as ajudes.
A dor enevoou os olhos de Lagoa Cinzenta. Baixou o olhar
para as duas crias. As suas boquinhas cor-de-rosa abriam-se em
miados patéticos.
– Tenho bastante leite – murmurou, quase de si para si. – Claro
que fico com elas.
Coração de Carvalho expeliu o ar num suspiro de alívio. Ergueu
uma cria, depois a outra, e pousou-as junto a Lagoa Cinzenta. Ela
empurrou-as delicadamente para o côncavo do ventre, onde come‑
çaram a mamar avidamente.
– Continuo sem entender – miou Lagoa Cinzenta quando elas
sossegaram. – Por que estariam duas crias sozinhas na floresta em
pleno Sem-Folhas? A mãe deve estar aflitíssima.
O gato cor de casca de carvalho remexeu num pedaço de musgo
com uma enorme pata dianteira.
– Não os roubei, se é o que estás a pensar.
Lagoa Cinzenta olhou-o durante um longo momento.
– Não, não penso que o tenhas feito – miou por fim. – Mas não
estás a dizer-me toda a verdade, pois não?
– Disse-te tudo o que precisavas de saber.
– Não, não disseste! – Os olhos de Lagoa Cinzenta faiscaram
de raiva. – E a mãe delas? Eu sei como é perder crias, Coração de
Carvalho. Não desejo um desgosto desses a gata alguma.
Coração de Carvalho ergueu a cabeça e fitou-a com ira,
enquanto um ténue rugido lhe nascia no fundo da garganta.
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– A mãe deve ser uma gata renegada. Não está tempo para
andar à procura dela.
– Mas, Coração de Carvalho…
– Cuida das crias, por favor! – O gato cor de casca de carva‑
lho levantou-se de um salto e virou-se com brusquidão, encami‑
nhando-se para a saída do berçário. – Eu trago carne fresca – miou
por cima do ombro ao sair.
Depois da sua partida, Lagoa Cinzenta baixou a cabeça para
as crias, passando-lhes a língua pelo pêlo para as aquecer. A neve
derretida tinha feito desaparecer quase todo o seu cheiro, mas
Lagoa Cinzenta ainda conseguiu distinguir os odores da floresta,
de folhas mortas e terra congelada. E havia algo sob tudo isso,
ainda mais ténue.
Lagoa Cinzenta parou de lamber. Tinha realmente sentido
aquilo, ou estava a imaginar coisas? Mergulhando de novo a
cabeça, abriu a boca para inspirar os cheiros das crias.
Os olhos arregalaram-se-lhe, e olhou fixamente para as som‑
bras escuras que rodeavam o berçário. Não estava enganada. O pêlo
daquelas duas crias sem mãe, cuja origem Coração de Carvalho
recusava explicar, transportava inequivocamente o odor de um clã
inimigo!
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Capítulo 1
O vento gelado atirava neve para o focinho de Coração de Fogo
enquanto este descia a custo a ravina para o acampamento do Clã
do Trovão, segurando firmemente entre os maxilares o rato que
acabara de matar. A espessura dos flocos era tal que quase não via
o caminho.
A boca encheu-se-lhe de água quando o odor de carne fresca
lhe penetrou as narinas. Não comera desde a noite anterior, triste
sinal da escassez de presas no Sem-Folhas. A fome apertava-lhe o
estômago, mas Coração de Fogo não violaria o código dos guer‑
reiros: primeiro havia que alimentar o Clã.
O calor do orgulho afastou momentaneamente o frio da neve
que lhe cobria a pelagem ígnea, quando recordou a batalha que
tivera lugar apenas três dias antes. Juntara-se aos restantes guerrei‑
ros do Clã do Trovão para apoiar o Clã do Vento quando os outros
dois Clãs tinham atacado os gatos da charneca. A batalha fizera
muitos feridos, logo era ainda mais importante que os que podiam
caçar levassem presas para casa.
Ao percorrer o túnel de carqueja que levava ao acampamento,
Coração de Fogo fez cair neve dos ramos espinhosos, e agi‑
tou as orelhas quando os pedaços frios lhe atingiram a cabeça.
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Os espinheiros em redor do acampamento abrigavam um pouco
do vento, mas a clareira no centro estava deserta: com tal espessura
de neve, todos os gatos preferiam ficar nos covis para se manterem
quentes. Tocos de troncos e os ramos de uma árvore caída sobres‑
saíam do manto branco Uma única linha de pegadas ia do covil
dos aprendizes até ao maciço de silvas onde se cuidava das crias.
Ao ver o rasto, Coração de Fogo não pôde deixar de se lembrar de
que agora não tinha aprendiz, visto que Pata de Carvão fora ferida
junto da Estrada do Trovão.
Trotando pela neve até ao centro do acampamento, pousou o
rato no monte de carne fresca perto do arbusto onde dormiam
os guerreiros. O monte era penosamente pequeno. As presas que
se apanhavam eram minúsculas e esqueléticas e quase não che‑
gariam para encher a boca de um guerreiro faminto. Só voltaria
a haver ratos roliços na Folha-Nova, e para isso faltavam muitas
luas.
Quando Coração de Fogo ia dar meia volta, pronto para regres‑
sar à caça, ouviu um miado alto atrás de si. Virou-se de imediato.
À saída do covil dos guerreiros estava Garra de Tigre, o vice‑
-comandante do Clã.
– Coração de Fogo!
Coração de Fogo caminhou pela neve até ele, de cabeça respei‑
tosamente baixa, mas consciente de que os enormes olhos do gato
tigrado o viam até ao âmago. Todas as suas desconfianças acerca de
Garra de Tigre voltaram a invadi-lo. O vice-comandante era forte,
respeitado e um lutador notável, mas Coração de Fogo sabia que
no seu coração havia trevas.
– Não precisas de voltar a sair para caçar esta noite – rosnou
Garra de Tigre quando ele se aproximou. – A Estrela Azul esco‑
lheu-te a ti e ao Risca Cinzenta para irem à Assembleia.
As orelhas de Coração de Fogo agitaram-se com a excitação.
Era uma honra acompanhar a comandante à Assembleia em que
os quatro Clãs se reuniam em paz sob a lua cheia.
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– Agora é melhor ires comer – acrescentou o vice-comandante
de pelagem escura. – Partimos ao nascer da Lua. – Começou a
atravessar a clareira em direcção à Pedra Alta, onde Estrela Azul,
comandante do Clã, tinha o seu covil; depois parou e virou de novo
a enorme cabeça para Coração de Fogo. – Vê se te lembras do Clã
a que pertences na Assembleia – silvou.
Coração de Fogo sentiu o pêlo eriçar-se-lhe e a raiva a crescer
dentro de si.
– O que te leva a dizer isso? – perguntou, destemido. – Achas
que eu seria desleal ao meu próprio Clã?
Garra de Tigre virou-se para o encarar, e Coração de Fogo
esforçou-se para não recuar perante a ameaça nos ombros tensos
do gato.
– Vi-te na última batalha. – A voz do vice-comandante era um
rugido surdo, e as orelhas colaram-se-lhe à cabeça quando lançou:
– Vi-te deixar escapar aquela guerreira do Clã do Rio.
Coração de Fogo estremeceu; a sua mente recuou até à batalha
no acampamento do Clã do Vento. O que Garra de Tigre dizia era
verdade. Coração de Fogo deixara uma guerreira do Clã do Rio
escapar sem um arranhão, mas não por cobardia ou deslealdade.
Sem que o Clã do Trovão soubesse, Risca Cinzenta, o seu melhor
amigo, estava apaixonado por ela, e Coração de Fogo não fora
capaz de feri-la.
Fizera tudo para dissuadir o amigo de visitar Rio de Prata –
aquela relação ia contra o código dos guerreiros e colocava ambos
em grande risco. Mas também sabia que nunca trairia Risca Cin‑
zenta.
Além disso, Garra de Tigre não tinha o direito de acusar gato
algum de deslealdade. Mantivera-se à margem da batalha, vendo
Coração de Fogo lutar pela vida contra outro guerreiro do Clã do
Rio, e virara-lhe as costas em vez de o ajudar. E aquela não era a
maior acusação que Coração de Fogo podia fazer contra o vice‑
-comandante. Desconfiava que Garra de Tigre tinha assassinado
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Cauda Vermelha, o antigo vice-comandante do Clã do Trovão,
e até que planeava livrar-se da própria comandante.
– Se pensas que sou desleal, diz à Estrela Azul – miou, desa‑
fiador.
Garra de Tigre arreganhou os beiços, rosnou e, meio agachado,
mostrou as longas garras.
– Não preciso de incomodar a Estrela Azul – silvou. – Chego
para um tareco como tu.
Olhou fixamente para Coração de Fogo durante mais um
momento. Este apercebeu-se de súbito de que havia um traço de
medo e desconfiança nos faiscantes olhos de âmbar. «O Garra de
Tigre não sabe o que eu sei», pensou, de repente.
Pata de Corvo, amigo de Coração de Fogo e aprendiz de Garra
de Tigre, assistira ao assassínio de Cauda Vermelha. Garra de
Tigre tentara matá-lo para o silenciar, portanto Coração de Fogo
tinha-o levado para viver com Cevada, um solitário que vivia perto
de uma quinta de Duas Pernas do outro lado do território do Clã
do Vento. Coração de Fogo tentara contar a história de Pata de
Corvo a Estrela Azul, mas a comandante do Clã recusava-se a
acreditar que o seu corajoso vice-comandante pudesse ser culpado
de tal coisa. Enquanto olhava para Garra de Tigre, a frustração
de Coração de Fogo voltou; era como se uma árvore tivesse caído,
pregando-o ao chão.
Sem mais uma palavra, Garra de Tigre deu meia volta e afas‑
tou-se. Coração de Fogo viu-o ir, e ouviu um ruído no interior
do covil dos guerreiros; a cabeça de Risca Cinzenta espreitou por
entre os ramos.
– Que diabo estás a fazer? – miou. – A arranjar assim brigas
com o Garra de Tigre! Ele faz de ti comida para corvos!
– Nenhum gato tem o direito de me chamar desleal – argu‑
mentou Coração de Fogo.
Risca Cinzenta baixou a cabeça e lambeu rapidamente o pêlo
do peito.
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– Desculpa, Coração de Fogo – disse entredentes. – Sei que
tudo isto se deve a mim e à Rio de Prata.
– Não, não deve – interrompeu Coração de Fogo. – Sabes
bem que não. O problema está no Garra de Tigre, não em vocês.
– Sacudiu-se, soltando a pelagem da neve. – Vá, vamos comer.
Risca Cinzenta saiu totalmente e dirigiu-se para o monte
de carne fresca. Coração de Fogo seguiu-o, pegou num arganaz
e levou-o para o covil dos guerreiros para comer. Risca Cinzenta
agachou-se a seu lado, perto da camada exterior de ramos.
Tempestade Branca e outros dois guerreiros mais velhos dor‑
miam enroscados no centro do arbusto, mas para além deles o covil
estava vazio. Os seus corpos adormecidos aqueciam o ar, e a neve
quase não penetrava o espesso dossel de ramos.
Coração de Fogo deu uma dentada na ratazana. A carne era
dura e nervosa, mas ele tinha tanta fome que a achou deliciosa.
Acabou-se demasiado depressa, mas fora melhor do que nada,
e dar-lhe-ia a força de que precisava para viajar até à Assembleia.
Depois de Risca Cinzenta terminar a sua refeição numas pou‑
cas dentadas esfaimadas, os dois gatos deitaram-se juntos, cui‑
dando da pelagem fria um do outro. Era um alívio para Coração de
Fogo voltar a partilhar assim línguas com Risca Cinzenta, depois
do período perturbador em que parecia que o amor deste por Rio
de Prata destruiria a amizade entre os dois guerreiros. Embora o
romance proibido do amigo continuasse a preocupá-lo, ele e Risca
Cinzenta tinham reatado a amizade desde a batalha, e estavam
tão próximos como antes. Precisavam de confiar um no outro para
sobreviver à longa estação do Sem-Folhas e, ainda mais impor‑
tante do que isso, Coração de Fogo sabia que precisava do apoio de
Risca Cinzenta contra a hostilidade de Garra de Tigre.
– Que novidades ouviremos esta noite? – murmurou junto
à orelha cinzenta do amigo. – Espero que o Clã do Rio e o Clã das
Sombras tenham aprendido a lição. O Clã do Vento não voltará
a ser expulso do seu território.
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Risca Cinzenta mexeu-se, pouco à vontade.
– A batalha não se deveu somente à ambição territorial – fez
notar. – As presas são ainda mais escassas do que o habitual;
o Clã do Rio passa fome desde que os Dois Pernas lhe ocuparam
o território.
– Eu sei. – Coração de Fogo agitou as orelhas numa compai‑
xão a contragosto, compreendendo o desejo do amigo de defender
o Clã de Rio de Prata. – Mas a solução não é expulsar outro Clã
do seu território.
Risca Cinzenta grunhiu em concordância, e calou-se em
seguida. Coração de Fogo sabia como ele se devia sentir. Fora há
poucas luas que tinham atravessado a Estrada do Trovão a fim de
procurar os do Clã do Vento e trazê-los para casa. No entanto, era
inevitável que Risca Cinzenta simpatizasse também com o Clã
do Rio, devido ao seu amor por Rio de Prata. Não havia solu‑
ções fáceis. A escassez de alimentos seria um problema dramático
para os quatro Clãs, pelo menos até o Sem-Folhas abrandar o seu
domínio cruel da floresta.
Sonolento sob as passagens ritmadas da língua de Risca Cin‑
zenta, Coração de Fogo sobressaltou-se com o remexer de ramos
no exterior do covil. Garra de Tigre entrou, seguido de Risca
Escura e Cauda Longa. Os três olharam ameaçadoramente para
Coração de Fogo enquanto se aninhavam mais perto do centro do
arbusto. Ele observou-os de olhos semicerrados, desejando perce‑
ber de que falavam. Era demasiado fácil imaginar que conspiravam
contra ele. Sentiu os músculos contraírem-se-lhe ao aperceber-se
de que nunca estaria em segurança no seu próprio Clã enquanto
a traição de Garra de Tigre se mantivesse em segredo.
– O que se passa? – perguntou Risca Cinzenta, erguendo a cabeça.
Coração de Fogo espreguiçou-se, tentando voltar à descontrac‑
ção anterior.
– Não confio neles – murmurou, agitando as orelhas na direc‑
ção de Garra de Tigre e dos outros.
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– Não te censuro – miou Risca Cinzenta. – Se o Garra de Tigre
alguma vez soubesse da Rio de Prata… – Estremeceu.
Coração de Fogo encostou-se mais a ele, reconfortando-o,
enquanto os seus ouvidos continuavam a esforçar-se para apanhar
o que Garra de Tigre dizia. Pareceu-lhe ouvir o seu próprio nome,
e sentiu-se tentado a aproximar-se um pouco mais, mas nesse
momento captou a atenção de Cauda Longa.
– Para onde estás a olhar, tareco? – silvou o guerreiro tigrado.
– O Clã do Trovão só quer gatos leais. – E virou deliberadamente
as costas a Coração de Fogo.
Este levantou-se de imediato de um salto.
– E quem te deu o direito de questionar a minha lealdade? –
lançou. Cauda Longa ignorou-o. – Basta! – miou Coração de Fogo
num tom feroz para Risca Cinzenta. – É óbvio que Garra de Tigre
anda a espalhar boatos sobre mim.
– Mas o que podes fazer? – Risca Cinzenta parecia resignar-se
perante a hostilidade do vice-comandante.
– Quero voltar a falar com o Pata de Corvo – miou Coração de
Fogo. – Pode ser que ele se lembre de mais alguma coisa da bata‑
lha, algo que eu possa usar para convencer a Estrela Azul.
– Mas o Pata de Corvo agora vive na quinta dos Duas Pernas.
Terias de atravessar o território do Clã do Vento. Como explicarias
uma ausência tão longa do acampamento? Iria apenas fazer que
as mentiras do Garra de Tigre parecessem verdade.
Coração de Fogo estava disposto a correr o risco. Nunca pedira
a Pata de Corvo quaisquer pormenores sobre como Cauda Ver‑
melha morrera na batalha contra o Clã do Rio tantas luas atrás.
Na altura parecera-lhe mais importante tirar o aprendiz do cami‑
nho de Garra de Tigre.
Agora sabia que tinha de descobrir exactamente o que Pata
de Corvo vira. Porque cada vez estava mais certo de que o amigo
tinha de saber alguma coisa que pudesse provar até que ponto
Garra de Tigre era perigoso para o Clã.
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– Vou esta noite – miou baixinho. – Depois da Assembleia, saio
à socapa. Se trouxer carne fresca, posso dizer que fui à caça.
– Vais correr um grande risco – miou Risca Cinzenta, dando
uma lambidela breve e afectuosa na orelha de Coração de Fogo.
– Mas o Garra de Tigre é um problema também meu. Se estás
decidido a ir, então eu vou contigo.
A neve parara e as nuvens tinham-se dissipado quando os gatos
do Clã do Trovão, entre eles Coração de Fogo e Risca Cinzenta,
saíram do acampamento e atravessaram a floresta na direcção
das Quatro Árvores. O solo coberto de neve parecia brilhar sob
a luz intensa da lua cheia, e a geada cintilava em todos os galhos
e pedras.
Contra eles soprava uma brisa, agitando a superfície de neve e
transportando o cheiro de muitos gatos. Os territórios dos quatro
Clãs encontravam-se no espaço sagrado e, em todas as noites de
lua cheia, estes declaravam uma trégua a fim de se reunirem sob os
quatro grandes carvalhos que se erguiam no centro daquela cla‑
reira de extremidades íngremes.
Coração de Fogo formou atrás de Estrela Azul, que já se aga‑
chara para percorrer as últimas caudas até ao cimo da encosta e
espreitar a clareira. Uma pedra erguia-se mesmo no centro, entre os
carvalhos, de contornos negros e angulosos destacando-se da neve.
Enquanto esperava o sinal de Estrela Azul para avançar, Coração
de Fogo observou os gatos dos outros Clãs cumprimentando-se
lá em baixo. Não pôde deixar de reparar nos olhares hostis e nas
marcas acentuadas quando os gatos do Clã do Vento encaravam
os do Clã do Rio e do Clã das Sombras. Era nítido que nenhum
deles esquecera a batalha recente; se não fosse a trégua, estariam a
esgatanhar-se mutuamente.
Coração de Fogo reconheceu Estrela Alta, o comandante do
Clã do Vento, sentado perto da Grande Pedra, tendo ao lado Pé
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Morto, o seu vice-comandante. Perto dali, Nariz Molhado e Pêlo
de Lama, os gatos curandeiros do Clã das Sombras e do Clã do
Rio, sentavam-se lado a lado, observando os outros gatos com
olhos que reflectiam a Lua.
Ao lado de Coração de Fogo, Risca Cinzenta tinha os músculos tensos, e os seus olhos amarelos brilhavam de excitação ao
olhar para a clareira. Seguindo o olhar dele, Coração de Fogo
viu Rio de Prata surgir da sombra, com a sua bela pelagem preta
e prateada a reluzir ao luar.
Coração de Fogo conteve um suspiro.
– Se falares com ela, tem cuidado com quem te possa ver – avi‑
sou o amigo.
– Não te preocupes – miou Risca Cinzenta. As suas patas dian‑
teiras escavavam o chão duro enquanto ele aguardava o momento
de estar de novo com a gata do Clã do Rio.
Coração de Fogo lançou um olhar a Estrela Azul, esperando
que ela desse o sinal para descerem até à clareira, mas em vez disso
viu Tempestade Branca aproximar-se e agachar-se junto dela na
neve.
– Estrela Azul – ouviu o nobre guerreiro branco murmurar –,
o que vais dizer sobre o Cauda Quebrada? Vais contar aos outros
Clãs que lhe demos asilo?
Tenso, Coração de Fogo aguardou a resposta de Estrela Azul.
Cauda Quebrada fora em tempos Estrela Quebrada, comandante
do Clã das Sombras. Assassinara o próprio pai, Estrela Rasgada,
e roubara crias ao Clã do Trovão. Em retaliação, este ajudara o Clã
de Estrela Quebrada a afugentá-lo para a floresta. Pouco tempo
depois, Estrela Quebrada liderara um bando de gatos renegados
num ataque ao acampamento do Clã do Trovão. Na batalha, Presa
Amarela, a gata curandeira do Clã do Trovão, arranhara-lhe os
olhos, e agora Cauda Quebrada estava prisioneiro, cego e derro‑
tado. Embora o antigo líder tivesse sido despojado do seu cog‑
nome de Clã, e estivesse sob vigilância constante, Coração de Fogo
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sabia que os outros Clãs supunham que o Clã do Trovão o tivesse
matado ou expulsado para que morresse na floresta. Não recebe‑
riam bem a notícia de que Cauda Quebrada estava vivo.
Estrela Azul manteve o olhar fixo nos gatos na clareira, lá em
baixo.
– Não vou dizer nada – respondeu Tempestade Branca. – Não
diz respeito aos outros Clãs. Agora o Cauda Quebrada é da res‑
ponsabilidade do Clã do Trovão.
– Grandes palavras – rosnou Garra de Tigre de onde estava,
do outro lado de Estrela Azul. – Ou envergonhamo-nos de admi‑
tir o que fizemos?
– O Clã do Trovão não tem de se envergonhar por mostrar cle‑
mência – replicou friamente Estrela Azul. – Mas não vejo motivo
para arranjarmos complicações. – Antes de Garra de Tigre poder
protestar, ela pôs-se de pé e encarou os restantes gatos do Clã do
Trovão. – Ouçam – miou. – Nenhum de vocês deve falar do ataque
dos gatos renegados nem referir o Cauda Quebrada. São assuntos
que só dizem respeito ao nosso Clã.
Aguardou até os gatos reunidos miarem em concordância.
Depois agitou a cauda para assinalar que os membros do Clã do
Trovão deviam ir juntar-se aos dos outros Clãs. Desceu a correr
por entre os arbustos, seguida de perto por Garra de Tigre, cujas
enormes patas faziam saltar a neve.
Coração de Fogo seguiu-os. Ao deslizar dos arbustos para a
clareira, viu que Garra de Tigre tinha parado ali perto e lhe lançava
um olhar desconfiado.
– Risca Cinzenta – silvou Coração de Fogo baixinho, por cima
do ombro –, acho que não deves afastar-te com a Rio de Prata esta
noite. O Garra de Tigre já…
Coração de Fogo apercebeu-se de súbito de que Risca Cin‑
zenta já não estava ao seu lado. Olhando em redor, viu o amigo
desaparecer atrás da Grande Pedra. Segundos depois, Rio de Prata
contornou um grupo de gatos do Clã das Sombras e seguiu-o.
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Coração de Fogo suspirou. Lançou um olhar a Garra de Tigre,
perguntando-se se o vice-comandante os vira ir. Mas Garra de Tigre
tinha-se afastado para se juntar a Um Bigode, do Clã do Vento, e o
pêlo voltou a repousar sobre o dorso de Coração de Fogo.
Percorrendo, inquieto, a clareira, deu por si junto de um grupo
de anciãos – Pêlo Malhado, do Clã do Trovão, e outros que ele não
conhecia – acocorados sob um arbusto de azevinho de folhas bri‑
lhantes, onde a neve não se acumulara tanto. Com o olhar sempre
em busca de Risca Cinzenta, Coração de Fogo instalou-se para
ouvir a conversa deles.
– Lembro-me de um Sem-Folhas ainda pior do que este.
– Quem falava era um velho gato preto, de focinho grisalho e o
flanco marcado por muitas lutas. Tinha o cheiro do Clã do Vento no
pêlo curto e desigual. – O rio ficou gelado durante mais de três luas.
– Tens razão, Pêlo de Corvo – confirmou uma rainha tigrada.
– E as presas eram ainda mais escassas, mesmo para o Clã do Rio.
Por um momento, Coração de Fogo surpreendeu-se por dois
anciãos de Clãs recentemente hostis conseguirem conversar com
calma sem cuspirem ódio um para o outro. Mas eram anciãos, reflec‑
tiu. Deviam ter visto muitas batalhas durante as suas longas vidas.
– Os jovens guerreiros de hoje – acrescentou o velho gato preto,
lançando um olhar a Coração de Fogo – não sabem o que são
dificuldades.
Coração de Fogo remexeu-se entre as folhas mortas sob o
arbusto e tentou aparentar respeito. Pêlo Malhado fez-lhe uma
carícia amistosa com a cauda.
– Deve ter sido nessa estação que a Estrela Azul perdeu as crias –
recordou o ancião do Clã do Trovão.
Coração de Fogo arrebitou as orelhas. Lembrava-se de Cauda
Sarapintada dizer qualquer coisa em tempos sobre as crias de
Estrela Azul, que tinham nascido imediatamente antes de ela se
tornar comandante do Clã. Mas nunca soubera quantas crias tinha
tido, nem que idade tinham quando morreram.
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– E lembram-se do degelo naquele Sem-Folhas? – Pêlo de
Corvo interrompeu os pensamentos de Coração de Fogo, de olhos
desfocados, perdido nas suas recordações. – O rio no estreito subiu
até quase às represas dos castores.
Pêlo Malhado estremeceu.
– Bem me lembro. O Clã do Trovão não conseguiu atravessar
o riacho para comparecer aqui à Assembleia.
– Houve gatos afogados – recordou com tristeza a rainha do
Clã do Rio.
– E caça também – acrescentou Pêlo de Corvo. – Os gatos que
sobreviveram quase morreram de fome.
– Que o Clã das Estrelas permita que esta estação não seja tão
má! – miou fervorosamente Pêlo Malhado.
Pêlo de Corvo lançou:
– Estes gatos jovens nunca aguentariam. Nós naquele tempo
éramos mais rijos.
Coração de Fogo não conseguiu deixar de protestar:
– Agora temos guerreiros fortes!
– Quem te pediu a opinião? – rosnou o velho gato rabugento.
– És pouco mais que uma cria!
– Mas nós…
Coração de Fogo calou-se, pois o ar enchera-se com um uivo
agudo que silenciou todos os gatos. Virou a cabeça e viu quatro
gatos em cima da Grande Pedra, silhuetas sob um luar de prata.
– Chiu! – silvou Pêlo Malhado. – A reunião vai começar.
– Inclinou as orelhas para Coração de Fogo e ronronou baixi‑
nho: – Não ligues ao Pêlo de Corvo. Ele diria mal até do Clã
das Estrelas.
Coração de Fogo lançou um olhar grato a Pêlo Malhado, arru‑
mou as patas sob o corpo e preparou-se para ouvir.
Estrela Alta, o comandante do Clã do Vento, começou por
anunciar como os seus gatos estavam a recuperar após a batalha
recente com o Clã do Rio e o Clã das Sombras.
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– Um dos nossos anciãos morreu – miou –, mas todos os guer‑
reiros vão sobreviver… para lutar noutra ocasião – acrescentou
intencionalmente.
Estrela da Noite achatou as orelhas e semicerrou os olhos,
enquanto Estrela Torta soltava um rosnido ameaçador e profundo.
O pêlo de Coração de Fogo eriçou-se. Se os comandantes
começassem a lutar, os seus gatos lutariam também. Alguma
vez isso acontecera numa Assembleia? Decerto nem Estrela da
Noite, o novo e destemido comandante do Clã das Sombras,
se arriscaria a provocar a ira do Clã das Estrelas violando a trégua
sagrada!
Enquanto Coração de Fogo observava com apreensão os gatos
agitados, Estrela Azul avançou.
– São boas notícias, Estrela Alta – miou suavemente. – Todos
devemos regozijar-nos por saber que o Clã do Vento voltará a
fortalecer-se.
Os seus olhos azuis brilhavam ao luar, enquanto ela fixava os
comandantes do Clã das Sombras e do Clã do Rio. Estrela da
Noite desviou-se daquele olhar e Estrela Torta baixou a cabeça,
com uma expressão imperscrutável.
Fora o Clã das Sombras, sob o comando cruel de Estrela Torta,
quem primeiro afugentara o Clã do Vento para poder expandir o
seu território de caça. O Clã do Rio aproveitara-se do exílio deste
para caçar no território deserto. Mas, depois do exílio de Estrela
Quebrada, Estrela Azul convencera os outros comandantes de
que a vida na floresta dependia dos quatro Clãs, e que o Clã do
Vento devia regressar. Coração de Fogo estremeceu ao lembrar‑
-se da longa e difícil viagem que fizera com Risca Cinzenta para
procurar o Clã do Vento e trazê-lo de volta ao seu ermo território
nas terras altas.
Isso fê-lo lembrar-se de que tencionava voltar a atravessar as
terras altas em busca de Pata de Corvo, e agitou-se, incomodado.
Não estava ansioso por aquela viagem. «Pelo menos o Clã do
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Vento é amigo do Clã do Trovão», pensou, «portanto não devemos
ser atacados no caminho.»
– Os gatos do Clã do Trovão também estão a recuperar – pros‑
seguiu Estrela Azul. – E, desde a última Assembleia, dois dos nos‑
sos aprendizes passaram a guerreiros. Passarão a ser conhecidos
como Pêlo de Poeira e Tempestade de Areia.
Ouviram-se uivos de aprovação vindos da mole de gatos sob a
Grande Pedra – na sua maioria, como reparou Coração de Fogo,
do Clã do Trovão e do Clã do Vento. Vislumbrou Tempestade de
Areia, sentada, com a cabeça ruivo-clara orgulhosamente erguida.
A Assembleia prosseguia agora mais pacificamente. Coração
de Fogo recordou a Assembleia anterior, quando os comandantes
se tinham acusado mutuamente de caçar fora dos seus territó‑
rios, mas desta vez nenhum gato falou disso. Um grupo de gatos
renegados, liderado por Cauda Quebrada, fora o responsável, mas
a notícia de que o bando tinha atacado o Clã do Trovão e fora
derrotado parecia não se ter espalhado. O segredo de Estrela Azul
sobre Cauda Quebrada estava a salvo.
No final da reunião, Coração de Fogo olhou em redor, pro‑
curando Risca Cinzenta. Se iam ver Pata de Corvo, tinham de
partir rapidamente, enquanto os outros gatos do Clã do Trovão
permanecessem na clareira e não reparassem na direcção que eles
tomassem.
Coração de Fogo captou o olhar de Pata Rápida, o aprendiz de
Cauda Longa, sentado no meio de um grupo de gatos jovens do
Clã das Sombras. Pata Rápida desviou o olhar, com uma expressão
de culpa. Em qualquer outra altura, Coração de Fogo podia tê-lo
chamado e ordenar-lhe que procurasse o seu mentor para a viagem
de regresso, mas naquele momento só lhe importava encontrar Risca
Cinzenta de imediato. Esqueceu Pata Rápida assim que viu o amigo
a abrir caminho na sua direcção. Não havia sinal de Rio de Prata.
– Cá estás tu! – exclamou Risca Cinzenta, de olhos amarelos
a brilhar.
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Coração de Fogo bem via que ele tinha gostado da Assembleia,
embora duvidasse de que o amigo tivesse ouvido muito do que se
dissera.
– Estás pronto? – miou.
– Para ir ver o Pata de Corvo?
– Mais baixo! – silvou Coração de Fogo, olhando ansiosamente
em redor.
– Sim, estou pronto – miou baixinho Risca Cinzenta. – Não
posso dizer que esteja ansioso por ir. Ainda assim, vale tudo para
o Garra de Tigre me largar o pêlo… a menos que tenhas tido uma
ideia melhor.
Coração de Fogo abanou a cabeça.
– Esta é a única maneira.
A clareira continuava cheia de gatos, preparados para partir
em quatro direcções. Nenhum parecia prestar qualquer atenção
a Coração de Fogo e Risca Cinzenta, até estes chegarem quase à
encosta que levava às terras altas do território do Clã do Vento.
Então ouviram um miado atrás deles.
– Ei, Coração de Fogo! Aonde vais?
Era Tempestade de Areia.
– Hãã… – Coração de Fogo lançou um olhar desesperado a
Risca Cinzenta. – Vamos pelo caminho mais longo – improvisou
rapidamente. – O Garra de Lama, do Clã do Vento, falou-nos
de um viveiro de coelhos na orla do nosso território. Achámos
que podíamos regressar com carne fresca. – De repente, alarmado
com a ideia de que Tempestade de Areia pudesse oferecer-se para
os acompanhar, acrescentou: – Podes dizer à Estrela Azul, se ela
perguntar por nós?
– Claro. – Tempestade de Areia bocejou, revelando uma boca
cheia de dentes brancos e afiados. – Vou pensar em vocês a cor‑
rerem atrás de coelhos enquanto me enrosco numa cama bem
quente! – E afastou-se ondeando a cauda.
Foi um alívio para Coração de Fogo; não lhe agradara mentir.
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– Vamos – miou para Risca Cinzenta –, antes que mais algum
gato nos veja.
Os dois jovens guerreiros deslizaram para o abrigo dos arbus‑
tos e subiram silenciosamente a encosta. No cimo, Coração de
Fogo parou por um momento, olhando para trás para se certificar
de que não tinham sido seguidos. Depois, ele e Pata Cinzenta
percorreram o rebordo da clareira, correram para a charneca e,
atravessando-a, para a quinta dos Duas Pernas.
«Esta é a única maneira», repetia Coração de Fogo para consigo
enquanto corria. Tinha de descobrir a verdade. Não apenas por
Cauda Vermelha e Pata de Corvo, mas para bem de todo o Clã.
Garra de Tigre tinha de ser detido… antes de ter oportunidade de
voltar a matar.
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