A inquietude da alma numa criança hiperativa

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A inquietude da alma numa criança hiperativa
The restlessness of the soul in a hyperactive child
Maria das Graças Ramos Del Corso
Psicóloga, Psicanalista, Mestre pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em
Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP –
Brasil). Membro do Laboratório de Psicopatologia Fundamental – PUC-SP – Brasil no programa de Doutorado.
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2
RESUMO:
O presente artigo tem como objetivo investigar, a partir da experiência clínica
psicanalítica,
algumas
afirmações
feitas
sobre
crianças
ditas
hiperativas.
Considerando a visão filosófica de quietude/inquietude da alma, o trabalho busca
avançar na perspectiva de admitir que tal configuração diagnóstica da vida infantil
possa ser tomada como manifestação reconhecível no escopo da produção das marcas
inerentes à experiência do humano e que, portanto, constitui expressão em busca de
sentido a ser situada singularmente.
Palavras-chave: Alma. Inquietude. Criança. Hiperatividade. Psicanálise.
Abstract:
This paper aims to investigate, based on the psychoanalytic clinical experience,
some usual considerations done about children said to be hyperactive. It takes
into consideration the philosophical view of quietness/restless of the soul while
looking forward the prospect of taking such childhood diagnostic configuration
as an overt sign in the scope of the production of landmarks inherent to the
human experience; therefore, it constitutes an expression of search for meaning
which needs to be uniquely situated.
Keywords: Soul. Restlessness. Child. Hyperactivity. Psychoanalysis.
3
A INQUIETUDE DA ALMA NUMA CRIANÇA HIPERATIVA1
Maria das Graças Ramos Del Corso
Manoel Tosta Berlinck
Ao longo do atendimento com crianças inquietas nomeadas como hiperativas
foi possível observar a ampla variedade de definições e explicações sobre a
inquietude da alma, conhecida popularmente como hiperatividade. Nomeada através
dos sintomas principais: falta de atenção, concentração, dificuldade de um pensar
mais reflexivo e que, ao longo do tempo, vem recebendo diversas nominações nas
áreas do conhecimento e, apesar das constantes modificações nos termos:
hiperatividade, TDHA, DDA, instabilidade psicomotora, transtorno déficit de atenção,
os sintomas continuam os mesmos. Esta ampla sinonímia ressalta a imprecisão
conceitual e as divergências consensuais sobre o tema. É provável que nenhum outro
distúrbio tenha sido tão amplamente estudado e atraído tanto o interesse dos
pesquisadores nas áreas da medicina, psicologia e educação. Talvez esteja aí a
explicação para esta busca incessante de resultados que esbarram na multiplicidade
dos fatores que estão envolvidos.
Esta inquietação sobre o tema não é nova, existe desde o alvorecer das grandes
civilizações, passando pela filosofia, a ciência, até os dias de hoje, nos mostram
diversas formas de transformação e compreensão de como tratar as inquietações do
ser humano e o esforço para alcançar a tão almejada tranquilidade diante dos enigmas
da vida e da morte. Entretanto, tal tentativa de viver a inquietude a coloca ora como
uma força positiva que leva o sujeito sempre numa busca incessante para um mais
além, ora esta mesma inquietude é vista como algo negativo, principalmente no caso
das crianças ditas hiperativas, sendo reservado para elas, quando sofrem deste mal,
um lugar que denuncia em tom de acusação da existência de um déficit, um distúrbio
que precisa rapidamente ser extirpado.
Contudo, cabe-nos reconhecer o caráter ilusório de que seria possível eliminar
do mundo as inquietações, ou seja, os conflitos os antagonismos do ser humano e
viver em constante tranquilidade. Pergunto-me se ao invés de nos debatermos em
1
Este artigo deriva-se da Tese de Mestrado em Psicologia Clínica: Del Corso, M. G. R. O que busca
uma alma inquieta? 2011. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Disponível em:
<http://www.psicopatologiafundamental.org>.
4
busca de equilíbrio, não seria mais interessante nos preocuparmos em que momento e
em que situação se manifesta tal hiperatividade, aqui nomeada de inquietude, na sua
singularidade.
Identificando-se em muitos aspectos com esta visão, a observação do clínico
em relação ao paciente pode contar ainda com a psicanálise, que vem a ocupar um
lugar de relevo entre os esforços de uma outra forma de compreensão. Tal campo de
pensamento promoveu uma verdadeira ampliação na abordagem das múltiplas
possibilidades da inscrição do sofrimento humano tomadas em suas manifestações
singulares, através de articulações que levam em conta uma “outra cena”, a do
universo inconsciente via metapsicologia.
Certa ocasião, ao receber em tratamento uma menina de oito anos de idade,
diagnosticada como hiperativa, iniciamos um trabalho analítico. Esta tinha ao seu
redor um batalhão de profissionais encarregados de fazê-la parar em sua
hiperatividade, como também, um longo percurso de tratamentos que visavam sua
readaptação social e que só a deixava cada vez mais hiperativa.
Ficou evidente que estas dificuldades manifestavam-se também ao longo do
atendimento em análise. Sempre chegava à sessão muito brava, perturbada e, certa
vez, quando interrogada sobre o que teria acontecido, sem condições de falar, tomada
pela raiva, ela escreveu no papel: “Cala boca, fica quieta!”. Este é o ponto que quero
destacar sobre a inquietude da alma. A paciente em questão, embora inquieta,
hiperativa, naquele momento, pedia que sua analista ficasse quieta como condição
para que ela pudesse experimentar outra maneira de ser e assim o fez por algum
tempo.
Através da prática deste atendimento específico podemos nos perguntar se o
estado dito hiperativo, aqui tomado pela via do termo de inquietude e quietude,
mereceria ser considerado como uma manifestação de características reconhecíveis no
escopo das marcas e princípios que tangem a experiência de todo ser humano e que
cabe ser articulada aos movimentos e desdobramentos do funcionamento psíquico,
desde suas primeiras ligações com o Outro.
Sobre a paciente em questão, o que ela procurava realizar com o seu
comportamento dito hiperativo, que se revelava numa busca incessante em tudo que
fazia? Não sabemos, mas algo, no seu modo de agir nos dava pistas, ora se
apresentava muito regredida, ora revelava uma vontade de se tornar adulta. Segundo
as palavras de sua mãe, na época em que sua filha nasceu seu casamento estava em
5
crise, agravando-se ao longo do tempo. Será que esse seu mal-estar, que se
manifestava via hiperatividade, não era uma tentativa ou à maneira de um imperativo
de responder essas questões? Que tempo e lugar seus pais lhe teriam ofertado e que
ela tão “(hiper)ativamente” ocupava?
Com o caminhar do trabalho foi tornando factível que a inquietude da
mencionada paciente estava a serviço da questão da dinâmica estabelecida entre ela e
sua mãe, e o esvaziamento dos efeitos da função paterna, promovendo um sofrimento,
o que parecia ser insuportável para ela, dava voz aos problemas de sua própria
família.
A escuta da referida paciente revelou-nos que esta se encontrava refém do
fantasma parental, sem poder seguir seu próprio caminho, mostrando com o seu fazer
excessivo apresentado como sintoma da hiperatividade se colocava no caso como um
apelo à instalação de uma falta, à separação e, até mesmo, à castração. Oportunidade
esta que a fez deslocar-se desse lugar fantasmático onde ela pôde encontrar suas dores
até então indizíveis, resgatando a condição de ser criança para que pudesse seguir sua
própria vida, encarregando-se da constituição de suas próprias questões.
Para começar a entender o que estamos chamando de inquietude, é preciso
buscar nas produções sobre a consciência dos filósofos, que desde muito tempo se
preocuparam com este tema, até chegarmos à psicanálise. A psicanálise justamente se
ocupa dessas sobras, as quais estabelecem outro campo que foi excluído, cuja matéria
é exatamente aquilo que não cabe na filosofia e que permitiu a investigação do
inconsciente, cujo âmbito mais radical é o real enquanto irredutível, irreconciliável
com qualquer mundo.
A inquietude nos remete à palavra ataraxia formada pelo prefixo “a”. Ataraxia,
segundo definição de Koogan e Houaiss2, quer dizer a quietude da alma, tranquilidade
da alma, quietude. Do grego ataraktos, imperturbado, indicativo de ausência de
perturbação, tendo como seu oposto taraxia. Pelo radical Taraché, entende-se a
perturbação (a, não; tarassein, tarak, perturbar).3
O termo ataraxia foi introduzido por Demócrito, utilizado por Epicuro, e,
especialmente, por Sêneca, autor de um texto intitulado “Da tranquilidade da alma”,
escrito em forma de diálogo para atender a um pedido do seu amigo Sereno, que
2
KOOGAN, A.; HOUAISS, A. (Ed.). Enciclopédia e dicionário digital 98. São Paulo: Delta: Estadão,
1998. 5 CD-ROM.
3
WIKIPEDIA. Ataraxia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/ataraxia>. Acesso em: 23 mar.
2011.
6
solicita ao filósofo que lhe mostre um caminho o qual minimize sua angústia e o leve
a um estado de tranquilidade. Na verdade, ele não responde exatamente as perguntas e
dúvidas do amigo, mas começa, a partir daí, a refletir sobre a maneira de contornar os
obstáculos que impedem a tranquilidade.4
Diferentemente dessa abordagem, no caso clínico introduzido, por um período
foi característico a jovem paciente fazer questão de se apresentar como “a louca”. Nas
sessões, se comportava como uma menina muito regredida: xingava, agitava-se,
expressava certa dose de violência e agressividade, de forma muito desequilibrada.
O importante aqui é ressaltar que numa psicanálise busca-se não tanto
equilíbrio, retidão, mas a produção de sentido. Bem verdade que a psicanálise toma
outra direção, mostrando-nos o tempo todo a não-linearidade enfatizada por um
inconsciente ativo que nos escapa na sua integridade.
Sendo assim, devemos começar a nos perguntar: será possível atingir esse
estado de tranquilidade? Não podemos esquecer que o homem sempre procurou o
bem-estar, o equilíbrio e até hoje vive nessa ilusão de poder alcançá-lo por meio de
bens materiais ou atividades religiosas e continua percebendo o quanto isso não passa
de uma ilusão.
Freud, no seu texto “O mal estar na civilização” (1930), dá continuidade à
discussão iniciada em seu artigo “O futuro de uma ilusão” (1927). Ele nos lembra que
a vida humana caracteriza-se pela busca do gozo e tentativa de evitar a dor, mas os
objetivos da busca do prazer não poderão ser atingidos devido à própria ordem do
universo, dizendo que o homem está muito mais apto a vivenciar a infelicidade,
aquela que é infligida pelo sofrimento do corpo, hostilidade do mundo externo e pela
insatisfação que lhe proporcionam as relações com os outros, submetendo-se ao
princípio de realidade, procurando meios de atenuar ou eliminar o sofrimento, e é
exatamente isso que a religião e a cultura procuram suprir ao propor uma adaptação à
realidade.
Em “O futuro de uma ilusão” (1927), Freud nos diz que um dos mais antigos
anseios da humanidade é de nos proteger da magnitude das forças da natureza, sem
termos que suportar as limitações e as privações trazidas pela cultura, mas que esse
resultado é sempre da ordem do impossível. Sendo assim, só poderá tratar-se de uma
ilusão. Ele vai mais adiante, dizendo que a ilusão não é um erro, mas se caracteriza
4
SÊNECA, L. A. Da tranquilidade da alma. Coleção: Os Pensadores. V Tradução e notas Giulio
Davide Leoni.1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 207.
7
pelo fato de ser um produto dos desejos humanos e que, para se manter, não precisa
ser confirmada. Nesse sentido todas as doutrinas religiosas são ilusões e é tão
impossível refutá-las quanto prová-las.
Vale ressaltar outra passagem do trabalho com a inquieta paciente apresentada
para esta discussão, em que sua mãe não economizava palavras negativas sobre a filha
e nem poupava as comparações entre sua gestação e a do primeiro filho, que era
quietinho, educado, oposto da menina. Por esta razão, proponho chamá-la aqui de Ma
e ao irmão de Max. Por meio da escuta analítica, desde as primeiras entrevistas, foi
ficando cada vez mais forte a impressão de que havia lugares marcados para ambos os
filhos nessa família.
Partindo do pressuposto que todo sofrimento em forma de inquietação é ainda
uma tentativa de estabelecimento de um equilíbrio do organismo que não consegue
enfrentar as tensões internas ou externas às quais o mesmo está submetido, através do
caso de Ma, ficam evidentes os muitos fatores em jogo na constituição psíquica de
uma criança e a complexidade dos mesmos. Assim, só poderemos escutar a patologia
infantil, se tivermos a compreensão das fantasias familiares ligadas a ela e se
levarmos em consideração os conflitos dos pais correlatos aos da criança.
No texto “O Estranho” (1919), Freud nos mostra o que é assustador e provoca
medo e horror, e o que já é há muito conhecido, familiar. Ele se pergunta em que
circunstâncias o familiar pode tornar-se estranho e ameaçador e parte da palavra na
língua alemã Unheimlich, que é obviamente o oposto de Heimlich (doméstica)/
Heimisch (nativo), sendo que aquilo que não é conhecido, e sim novo, pode se tornar
facilmente estranho e atemorizador.
Através dos atendimentos clínicos, Freud foi levado a fazer uma articulação
entre o estranho e o secretamente familiar (Heimlich-Heimisch) que foi submetido à
repressão e depois retornou sob esta outra face. Nesta perspectiva, os elementos que
têm sua origem nas primeiras experiências dizem respeito à solidão, ao silêncio e à
escuridão, e são sensações tão primitivas das quais a maioria dos seres humanos
jamais se libertou.5
Tanto é assim que, se retornamos à filosofia, podemos reconhecer no trabalho
destinado à busca de equilíbrio a ideia de se libertar desse estranho, segundo a
perspectiva de crescimento, de evolução no mundo exterior e interior para obtenção e
5
FREUD, S. (1919). O estranho. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XVII. p. 196, 237, 269. (Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud).
8
permanência do equilíbrio, educação do espírito, onde a alma deverá prosseguir de
modo igual e no mesmo ritmo, como nos mostra o filósofo buscando uma explicação
para esta tranquilidade jamais alcançada.
Podemos notar que, seja qual for a abordagem teórica, tanto os que incluem o
estranho como parte de nossa experiência quanto os que buscam o equilíbrio, se
deparam com a evidência de sua impossibilidade.
Aos poucos e sem pressa, por meio do trabalho analítico que estava sendo
feito, respeitando o seu tempo, a inquietude de Ma foi dando lugar a uma outra
menina que já se ocupava, embora muito precariamente, com as questões de uma
criança de sua idade. Através de suas produções, tais como brincadeiras em que
incorporava o lugar de mãe, podia experimentar brincar de ser mãe e se reconhecer
como uma “boa mãe”. Uma mãe “cuidadora”, atenciosa, e que, no cuidado de sua cria
e através dos seus sonhos, podia manifestar o desejo de ser uma boa mãe.
A psicanálise nos ensina que não há bem supremo, felicidade paradisíaca, e
que a completude é da ordem do imaginário, pois o sujeito é marcado pela falta, faltaa-ser: seu complemento está perdido para sempre. Na verdade, o sujeito nunca estará
presente de forma positiva, mas por seus efeitos, o que é condição própria ao
inconsciente e ao desejo. A inacessibilidade ao bem supremo é o que Freud articulou
com a lei de proibição do incesto. O objeto que poderia completar imaginariamente o
sujeito, trazendo-lhe a satisfação total de sua demanda de amor, é um objeto mítico,
metonímico.
Sendo assim, em seu lugar resta um furo, designado como a Coisa Freudiana,
produto da operação de linguagem sobre o real do vivente, em que a invenção do
inconsciente apenas reatualiza o antigo debate sobre a alma e o corpo, dando
prioridade à pulsão, conceito que incide entre o psíquico e o somático.
Retomando o caso clínico, podemos pensar que a paciente buscava esse
caminho, gozar de uma tranquilidade, algo que garantisse uma ataraxia, pois nas
sessões, naquele momento buscava ficar quieta e ao mesmo tempo demandava que o
Outro também ficasse e, assim, embora de modo precário e limitando sua inquietude,
já ensaiava um novo destino.
Como nesse caso, quando o analista compreende que tem que se calar, ele
realiza não só uma intervenção técnica adequada, mas também testemunha a
existência de um outro lugar bem diferente do consultório analítico, onde outro
silêncio reina. Trata-se de um silêncio vivo.
9
O silêncio, aqui revelado, é muito mais que um calar-se, pois o próprio ato de
calar e calar-se ostenta uma face dupla, por ser ao mesmo tempo um fato clínico
primeiro e também a manifestação última da natureza muda da vida psíquica. Em
determinados momentos desta análise, o silêncio por parte do analista, não somente
serviu para dar lugar às formações do inconsciente pulsional, mas também para
convocá-lo, novamente, com seus desdobramentos.
Na obra “Escritos” de Lacan, mais precisamente no texto “Variantes do
tratamento padrão”, o autor nos mostra que o analista só está verdadeiramente
disponível para a escuta, quando ele consegue separar-se do seu Eu. Ou seja, de fazer
calar em si e se permitir ouvir as cadeias das palavras verdadeiras do paciente,
proposição que ele chamou de “fazer calar em si o diálogo, o discurso
intermediário”6.
Neste contexto, podemos nos perguntar: a hiperatividade/inquietude é uma
doença? Acho que a psicanálise não se propõe a interrogar-se ou responder sob essa
perspectiva, mas dialogar com campos de pensamento que considera a hiperatividade
como uma doença, seja através de diagnósticos, como o TDAH, seja através dos
tratamentos medicamentosos ou comportamentais. Talvez a contribuição da
psicanálise seja justamente a de ser aquela a procurar os motores inconscientes na
falta de ataraxia, como diziam os estoicos. A falta de tranquilidade, transportando tal
conceito para a psicanálise, implica, então, outro campo, em que seu maior
compromisso é com as relações de gozo e desejo que, se escutados, poderão levar o
paciente a produzir sentidos não comuns ou universais, mas, ao contrário, sempre
particulares e singulares. “[...] o que havia quando ainda não havia coisa alguma,
quando não havia nada?” pergunta Vernant em seu livro “O universo, os deuses e os
homens”. A essa pergunta os gregos responderam com histórias e mitos. No início de
tudo o que existiu foi abismo, que eles chamam de Kháos. O que é um Caos? É um
vazio, um vácuo escuro onde não se distingue nada. Espaço de queda, vertigem e
confusão, sem fim, sem fundo. 7
Não são essas mesmas questões que continuam inquietando o ser humano, e
que não respondemos mais com mitos, mas com fantasias, numa tentativa de
6
LACAN, J. Escritos. Variantes do tratamento padrão. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998. p. 354.
7
VERNANT, J. P. O universo, os deuses e os homens. Tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo:
Cia.das Letras, 2000. p. 17.
10
tamponar esse abismo, e vivemos em busca da tranquilidade da alma sem jamais
alcançá-la?
Assim, com a intersecção entre os campos da Filosofia e da Psicanálise, é
possível seguir com Sêneca: “Deve-se aprender a viver por toda a vida e por mais
que tu talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer” 8.
Penso que a busca de uma alma inquieta tem como objetivo um lugar de
silêncio, de certa morte e luto. Isto pode servir como condição de possibilidade para
que as tensões da vida, próprias às circunstâncias das escolhas e suas implicações,
possam ganhar voz. Nesta perspectiva, conjugam-se morte e vida. Como Freud nos
adverte ao final de seu texto “Reflexões para os tempos de guerra e morte” (1915):
“se queres suportar a vida, prepara-te para a morte” 9.
Ao propor uma forma de escuta das inquietações do ser humano, além e
aquém dos avanços científicos, o presente trabalho pretendeu reatar uma aliança com
os médicos da Antiguidade que estabeleceram uma prática desprovida de rótulos e
tecnologia, como uma reflexão sobre a existência do ser humano na sua integridade,
desta forma não reduzindo a prática médica à agilização de diagnósticos que impedem
a escuta clínica, como ocorre muitas vezes nos tratamentos modernos. Evidentemente,
os avanços científicos são de grande valia, mas há uma parte do sofrimento humano
que permanece, insiste em desdobrar-se como um enigma irredutível.
Não são raros os casos nos quais os diagnósticos acabam por reforçar o
afastamento do paciente de seu sofrimento, impedindo a oportunidade de dar um lugar
a este, explorá-lo em seus possíveis caminhos.
Nesse sentido, acolher a experiência da condição de cada paciente é acolhê-lo
em seu desamparo, em suas excitações e hesitações, e, ao sustentar a disposição de
escuta do mal-estar do paciente, o clínico implica sua condição de suportar seu
próprio mal-estar, uma vez que, mais do que nunca, é preciso fazer deste encontro um
lugar de pouso no qual o ser fragilizado encontre condições de refazer-se, criar novas
saídas para seu sofrimento.
Estou cada vez mais convencida de que a relação paciente e clínico se dá
como um ato de artesão, tecendo palavras, levando o paciente a criar ou inventar sua
8
9
SÊNECA, L. Anneo. Sobre a brevidade da vida. v. VII. São Paulo: Nova Alexandria, 1995. p. 3-4.
FREUD, S. (1914-1916). Reflexões para os tempos de guerra e morte. (1915) Rio de Janeiro: Imago,
1996. v. XIV, p. 309. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud).
11
própria maneira de suportar o mal-estar que o assola, diante de seu mundo obscuro
que se revela em sua inquietude.
Desta forma, ao investigar sobre o diagnóstico dito hiperativo, deflagramos a
relevância de poder ouvir essas manifestações como mensagens, tornando assim
possível encontrar outros modos de intervenção que não visassem suprimir seus
sintomas (suas mensagens). Caso contrário, só restaria medicá-la e tratá-la como
louca. Só foi possível avançar no tratamento a partir da leitura do sintoma portador de
uma mensagem em busca de sentido. Tal é a diferença que a psicanálise pode
oferecer.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DEL CORSO, M. G. R. O que busca uma alma inquieta? 2011. Tese (Mestrado em
Psicologia Clínica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011.
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______. (1930[1929]). O mal- estar na civilização. (1927-1931). Rio de Janeiro:
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de Sigmund Freud).
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Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
SÊNECA, L. A. (ca.4 a.C-ca. 65d.C). Da tranquilidade da alma: precedido da vida
retirada e seguido da felicidade. Tradução Lúcia Sa Rebello e Ellen Itanajara Neves
Vranas. Porto Alegre: L&PM, 2009. Coleção L&PM Pocket, v. 789.
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