Festa do Baptismo do Senhor (Ano B) O texto – Mc 1,7-11 7 8 E (João) proclamava dizendo: «Depois de mim vai chegar o mais forte do que eu, a quem não sou digno, baixando-me, de desatar as correias das suas sandálias. Eu baptizo-vos em água, Ele, porém, vos baptizará no ESPÍRITO SANTO.» 9 Aconteceu naqueles dias que veio Jesus de Nazaré da Galileia e foi baptizado por João no Jordão. 10 E de súbito, saindo da água, ele viu os céus abrindo-se e o ESPÍRITO como uma pomba descendo sobre ele e veio uma voz dos céus: «Tu és o meu filho predilecto: em ti pus o meu enlevo». Breve comentário Os vv. 7-8 já foram lidos no 2º Domingo do Advento. O reino de Deus estava próximo e, com a sua vinda, o perdão dos pecados. O baptismo pregado e realizado por João era um rito de iniciação duma nova comunidade («toda a região...») que, arrependida dos seus pecados, esperava o Reino concretizado no mais forte que ele. É com Jesus que vem o Espírito Santo, o dom dos últimos tempos, prometido pelo profeta Ezequiel (36,25-29). João, consciente do seu papel preparador e orientador, acredita que Aquele a quem anuncia comunicará essa força. O texto que se segue, na sua brevidade é profundamente teológico e merece especial atenção. Naqueles dias... – Uma fórmula bastante vaga para dizer: no tempo em que João pregava e baptizava. O pensamento do evangelista vai sobretudo para quanto foi dito nos vv. 4.7-8. Já é evidente para o leitor que aquele que é «mais forte» que João e que deve dar um baptismo «com o Espírito Santo» é Jesus Cristo, Filho de Deus (1,1). Do Baptista já se tinha dito que pregava no deserto «um baptismo de conversão para o perdão dos pecados» (1,4). O baptismo era um rito de conversão, ou seja, o retorno a Deus, de mudança de conduta, para o perdão dos pecados que viria com a instauração do Reino de Deus. Quem se aproximava do Baptista para ser baptizado, descendo nas águas do Jordão, «confessava os próprios pecados» em voz alta (Mc 1,5). Submeter-se àquele rito equivalia então a declarar-se necessitado de conversão e de perdão. É muito normal que um antigo ouvinte ou leitor de Marcos, vindo a saber que Jesus Cristo, o Filho de Deus, foi ter com João a pedir aquele baptismo de conversão, se tenha sentido incomodado. Como é que Jesus se submeteu a um rito «para a remissão dos pecados»? Que pecados podia ele ter? Havia aqui um problema de fé, um verdadeiro motivo de escândalo. Marcos regista impassível o acontecimento de humilhação. Fá-lo, todavia, com um verbo: «foi baptizado», enquanto reserva o que se segue para descrever a gloriosa teofania (vv. 10-11). E de súbito, ao sair da água ... – Marcos quer fazer entender ao leitor que Jesus, ao contrário dos outros, não ficou na água a confessar os seus pecados. Enquanto saía da água, Jesus viu os céus abertos e o Espírito descer sobre ele em forma de pomba. A visão é reservada só a ele; Marcos não fala de testemunhas. Viu os céus abrindo-se – Jesus viu no acto de abrir-se. Segundo o gosto semítico, o autor, que é judeu, fala de céus no plural. Entre as diversas passagens veterotestamentárias, algo próximo do nosso é o texto de Ezequiel: «Abriram-se os céus (plural) e vi visões divinas» (Ez 1,1). É a visão que consagra Ezequiel como profeta de Yahweh. Como Ezequiel, e bastante mais do que ele, Jesus é admitido à visão dos segredos de Deus; é-lhe revelada a predilecção que tem por ele o Omnipotente, predilecção do Pai pelo filho único; e recebe uma pessoalíssima comunicação do Espírito. Por esta razão ele é investido do carisma profético de modo extraordinário, que não tem paralelo em nenhum profeta do Antigo Testamento. E o Espírito descendo sobre ele como uma pomba – Está ainda em questão apenas Jesus. O autor não sugere a hipótese que outros tenham visto, nem João. A atenção de Marcos está fixa apenas sobre Jesus, para o qual é reservada a visão, assim como para ele é enviado o Espírito. O que poderia compreender Marcos na aparição do Espírito em forma de pomba? Que significado lhe dava? A resposta é também aqui difícil, já que não existem verdadeiros paralelismos no Antigo Testamento. Talvez a primeira ideia que podia surgir, num judeu habituado a escutar a Bíblia, fosse a da familiaridade, da amizade. «Pomba» é o termo que ocorre no Cântico dos Cânticos (1,15; 2,10.13.14; 4,1; 5,2.12; 6,9). A conhecida narração do dilúvio falava da pomba como de um animal familiar a Noé (Gn 8,8-12). Provavelmente a cena levava o pensamento também a uma outra recordação bíblica: Gn 1,2: «E o espírito de Deus pairava sobre as águas». O termo grego pneuma traduzia aí o hebraico ruah, que significa «vento», «sopro vital», mas também «espírito» (Santo). O Espírito de Deus pairava sobre as águas primordiais para dar início à criação e à vida: um início novo, uma nova criação se actuava também no Jordão. No AT, o termo «Espírito de Deus» é de extrema importância: é o sopro divino que dá vida a todo o vivente (Sl 104,30); é a realidade imperceptível e sobre-humana que dá sabedoria a reis e profetas (Is 11,1-2; 48,16); uma abundante efusão do Espírito do Senhor era esperada para a era escatológica, para o acontecimento do dia do Senhor (Jl 3,1-2; cf. Act 2,17-20). O Espírito de Deus era um dom concedido ao Servo de Yahweh (Is 42,1). Era um dom que a teologia judaica esperava para o Messias. Sobre Jesus desce o Espírito de Deus, aquele Espírito que se encontrava junto de Deus no início da criação, que tinha estado nos reis e profetas, prometido ao Servo de Yahweh e ao Messias. Desce sobre ele como sobre pessoa familiar, amiga. E veio uma voz dos céus: ‘Tu és o meu Filho predilecto: em ti pus o meu enlevo – A voz ressoa dos céus, há pouco escancarados. Na narração de Marcos esta voz proveniente dos céus abertos, depois que desceu o Espírito Santo, dirige-se pessoalmente a Jesus para lhe declarar o amor de predilecção que o Altíssimo nutre por ele. O meu filho predilecto - Se Marcos tem no pensamento um texto, este é provavelmente Gn 22, onde o apelativo predilecto/unigénito é dito repetidamente de Isaac. É evidente que o termo exprime antes de mais a ideia dum amor paterno, terno, sem rival. No Deutero Isaías a predilecção de Yahweh pelo Servo era expressa com o mesmo tom de doçura (Is 42,1). A proclamação é dirigida pessoalmente a Jesus. O diálogo entre Deus e o filho predilecto é sem intermediários e sem testemunhas, numa intimidade de amor. Para Jesus desceu o Espírito; para ele se abriram os céus; a ele fala o Pai: «tu és ...». Uma sensível diferença existe sobre este ponto entre o evangelho de Marcos e o de Mateus, que transcreve: «este é o meu filho», quase apresentando-o a terceiras pessoas. Num formidável encontro de afecto, Jesus é reconhecido por Deus não só como Messias davídico (alusão ao Sl 2) e Servo de Yahweh (alusão a Is 42) mas, bem mais, como Filho Único. Enquanto ele se submete em silêncio ao rito dos pecadores, Yahweh lhe atesta um amor sem comparação. Ele pertence a Deus; para ele é o amor de Deus; de Deus lhe é dirigida a palavra mais querida e agradável que um pai pode dirigir ao filho. Em ti pus o meu enlevo – A referência aos cantos do Servo de Yahweh, apenas acenada no adjectivo «predilecto», torna-se agora explícita. Do Servo sofredor o Deutero Isaías dizia: «Eis o meu servo que eu sustenho, o meu eleito em quem pus as minhas complacências. Eu pus o meu espírito sobre ele» (Is 42,1). Na passagem profética, Deus garantia ao Servo o seu sustento e o dom do Espírito; proclamava-o seu eleito e declarava comprazer-se nele. A afinidade com o texto de Marcos é grande e evidente. Descendo nas águas para o rito do perdão, Jesus tomou sobre os ombros a parte do Servo; o Pai confirma-o solenemente. As palavras que o Pai dirige a Jesus (Mc 1,11) desde o início do ministério, desde a primeira aparição em público entre os homens, estão na base de tudo o que leremos em seguida no evangelho de Marcos. O agir e o falar de Jesus terão constantemente a sua explicação aqui. Quando, com a liberdade do Filho e a consciência de dispor de uma autoridade ilimitada, Jesus perdoar os pecados (Mc 2,5.10), ou se declarar senhor do sábado (2,28), ou quando ousar ordenar aos ventos e ao mar (4,38-41), quando sobretudo se dirigir a Deus com o acento confidente do filho seguro de ser amado: «Abba» (14,36), nós viremos a intuir alguma coisa do significado, absolutamente superior à nossa compreensão, que tem a frase: «Tu és o meu Filho predilecto». A cada passo Jesus manifestará a convicção profunda, evidente, a. tranquila consciência de Filho de Deus. Para o antigo leitor de Marcos esta consciência tinha a sua origem exactamente no princípio do evangelho, na palavra do Pai. A grandeza do Filho, o seu amor pelo homem, a tarefa salvífica resultam, na realidade, no texto de Marcos, quase desconhecidos por todos até à cruz; e não se encontra nem o mais leve indício ou suspeita de alguma incerteza sobre a sua própria identidade. A ligação às profecias do Servo colora a teofania de novos significados. A palavra de Deus, atestação de afecto e declaração de paternidade, é também palavra de conforto, um assegurar a defesa, enquanto Jesus, humilde, escondido entre a massa pecadora já está no caminho que o levará ao Gólgota (cf. Mc 14,36). P. Franclim Pacheco Diocese de Aveiro