Violência das instituições: resquícios do passado ou expressão da sociabilidade humana? Uma das estratégias mais funestas do pensamento sociológico actual é a concertação consensualizada sobre a manutenção dos segredos sociais. Ao invés de romper com o senso comum, conceitos e disposições, a teoria social conforma-se às necessidades da popularidade e reforça práticas de auto-satisfação ansiosa, frequentemente mórbida, próprias da condição humana. Claro que é compreensível e natural que os sociólogos sofram dos mesmos enviesamentos epistémicos do comum dos mortais. Cabe à sociologia, como ciência, avaliá-los, criticá-los e encontrar formas de lhes resistir. O que não se têm manifestado fácil. O primeiro conselho a reter será o de suspender o juízo sociológico, não apenas perante factos observáveis de uma crueza inconsistente com as teorias e preconceitos estabelecidos, mas também perante as tentativas – quiçá desajeitadas – de romper as cataratas epistémicas a partir de dentro da própria sociologia. Um conselho, claro, comporta um apelo à alteração das disposições subjectivas. Mas também às condições objectivas, em particular, dos processos de avaliação e de subdivisão da disciplina, cf. Lhiare (2012??). A emergente sociologia da violência pode, evidentemente, conformar-se em estabelecer para si mesma um quadro de fronteiras defensivas susceptíveis de credibilizarem práticas científicas subdisciplinares, através de revistas, autores inspiradores, quiçá associações ou manifestos, apesar da constatação da insuficiência da disciplina mãe indiciada e manifestada pela própria criação de mais uma subdisciplina. A ponto de se poder ficar na dúvida se existe uma teoria social dominante ou central, pois praticamente todos os autores relevantes se reivindicam da superação dos limites e da actualização desta ciência multiparadigmática cujo domínio – à moda de Talcott Parsons – ninguém reclama (pelo contrário, repudia, às vezes sem convicção). A sociologia da violência pode ser, também, uma oportunidade para tornar evidente uma espécie de doença bipolar espalhada entre os sociólogos, que tanto entendem estar esta temática (como outras susceptíveis de serem tratadas em subdisciplinas, como as emoções, os corpos, as mulheres e as crianças, entre outras) suficientemente encaminhada pelos parâmetros normais de entendimento da teoria social como entendem ser necessário uma atenção especial para certos objectos de estudo, como os referidos, sob pena de se lhes não fazer justiça. Está talvez na altura de, vivendo a mudança estrutural em curso na Europa e no ocidente de forma tão consciente quanto possível, nomeadamente organizando esforços para organizar a paz e – o que é o mesmo – o respeito pela dignidade humana de todos e cada um, cf. Honneth (??) numa sociedade de riscos aparentando poder sofrer um colapso a qualquer momento, cf. Diamond (??). A sociologia da violência pode ser entendida como uma forma de tratar casuisticamente casos excepcionais de maior crueldade, cf. Collins (2013??), ou como um processo de repensar a sociologia no seu todo, cf. Goulth (??) propôs décadas atrás, sem eco. Os bairros ditos problemáticos, os asilos, os quartéis, as esquadras e as prisões podem ser tratados como sociedades à parte, como instituições totais, no sentido de ser inverosímil a extensão de laços de sociabilidade semelhantes a toda a sociedade – sob pena de extinção, quanto mais não seja por razão do controlo da sexualidade sistematicamente associado – ou como partes integrantes das sociedades que as imaginam, desenham, constroem, activam, mantêm, estimulam e defendem. Podemos continuar a conceber as sociabilidades ou as urbanidades como metafísicas positivas de uma modernidade anunciada mas que tarda em se concretizar, precisamente por não se conseguir desfazer da canga da natureza animalesca, selvagem, bárbara, tradicional, parasita de tão grande parte da humanidade – sobretudo a mais distante dos favores dos sociólogos. Quiçá, por isso – isto é, por culpa ou incapacidade próprias – atrasada do progresso e do devir que já deveria ter chegado e ameaça esvair-se antes de se concretizar plenamente. Podemos, ao invés, entender este argumentário como uma forma de exclusão das responsabilidades próprias dos modernizadores, entre os quais muitos sociólogos se contam, das obras de modernização. Como fazem os governos mais radicalmente pró-mercado, se o Estado cresce e se torna mais importante – e mesmo cada vez mais próximo de um Estado totalitário – como consequência das políticas pró-mercado, a única lembrança que têm é de que isso se deve ao modo tímido como as receitas de destruição do Estado têm sido aplicadas. Quando a teoria não responde à realidade, há que enquistar a teoria para que definitivamente a realidade se lhe conf(i-o)rme. Outra possibilidade, a científica, é a de procurar entender a natureza humana não como nos gostaríamos de apresentar a um juízo final mas, antes, enfatizando os defeitos constituintes que haveremos eventualmente de superar (caso disso e para isso tenhamos a plena consciência e competência), em nome de uma sociedade melhor. Efectivamente, toma-se por certo estar fixada por muitos anos, a perder de vista, a constituição física de cada indivíduo da nossa espécie. O mesmo não se pode dizer dos tipos de sociedade e da construção social de culturas, competências, disposições. Exactamente o que mais caracteriza a espécie humana é a sua capacidade de adaptação às circunstâncias, sendo grande parte delas a parte social da vida, mediadora das relações entre as pessoas, a natureza e as necessidades. É, pois, nas sociedades e na sua extrema capacidade de transformação onde havemos de procurar e eventualmente encontrar pistas para resolver dos problemas mais complicados e importante, que é como evitar suficientemente a violência na vida humana? Randall Collins Dostoiévski escreveu um dia ser possível saber o grau de civilização de uma sociedade observando as suas prisões. Quer isto dizer que as prisões não apenas seriam parte integrante da sociedade como seu melhor mostruário, pronto para ser indicador único e suficiente para qualquer método científico. Certamente o grande escritor russo, com experiência pesada de viver em prisões russas, contra as quais organizou denúncias ainda hoje ecoantes, se referia à compatibilização da moral social partilhada por todos os cidadãos com aquilo que fosse admitido serem as práticas penitenciárias em cada momento. Estas seriam a concretização despojada de artifícios e de ilusionismos da moral colectiva. Um espelho plano e lustroso, fiável, da moral social, especialmente visível onde não havia néones: as cadeias. É certo que Durkheim preferiu observar os aborígenes australianos como sociedades simples, alegadamente mais transparentes para quem esteja à procura da natureza humana, tipo “bom selvagem”. Mas talvez as prisões lhe sejam um complemento hobbesiano ou até uma expressão mais despojada ainda da natureza humana, proibida de exercer a sua natureza convivial e existencial. Sem dúvida, tanto Robinson Crusoe como o prisioneiro ou o actor racional são agentes míticos que ninguém conhece fora dos mundos da ficção. No caso do personagem do meio, essa ficção infernal é imposta como castigo por toda a sociedade a pessoas cujas características sociais são conhecidas – jovens, masculinos, sem qualificações e recursos, sobretudo abandonados pela sociedade, em geral muitos anos antes da prisão – independentemente da justiça que se procura fazer nos tribunais. Que sentido faz falar de mundo à parte a respeito de um mundo imposto pelo imaginário social – processo de ressocialização capaz de fazer pagar (trocar) o culpado, através de um ritual sacrificial racionalmente calculado, o sofrimento (ou o risco) da vítima, como se fosse sempre possível e lógico e fácil encontrar um processo causal na origem de todos os males ou pelo menos de todos os crimes? Esse imaginário é alimentado por miríades de série televisivas de todo o tipo – de aventuras, de polícias e ladrões, de reality shows, de propaganda da brutalidade oficial e de intimidação de qualquer contestação à legitimidade de tal tipo de brutalidade – com grandes audiências ou pelo menos com muita exposição nos écrans por cabo. Dificilmente se poderá falar de uma modernização pacificadora, pelo menos no plano do imaginário. Embora a tese do aumento da repugnância social perante a violência de Norbert Elias (??) faça todo o sentido. Porém, como o próprio notou, a incorporação de disposições civilizadas não significa a contenção da violência social. É possível transformar a sociedade mas em tensão com a natureza espontânea da humanidade, e essa é frequentemente brutal, cf. Girard (??).