1 VII COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX ENGELS A CRÍTICA DA RELIGIÃO EM MARX GT 1 A OBRA TEÓRICA DE MARX GT 2 MARXISMO E CIENCIAS HUMANAS Renato Almeida de Oliveira1 A religião sempre foi uma realidade presente na vida de Marx. Descendente de uma família judaica, quase todos os seus ancestrais, desde o século XVI, foram rabinos. Tanto seu pai Heinrich quanto a sua mãe Henrietta foram educados na tradição rabínica, embora, posteriormente, tivessem que se “converter” ao cristianismo para que o pai de Marx pudesse continuar exercendo sua profissão como advogado na corte suprema de Trier, uma cidade de maioria cristã, inclusive o Estado. “Para o Estado prussiano, os membros da religião nacional estabelecida representavam um núcleo sólido, confiável e leal, numa Renânia predominantemente católica romana e meio perigosamente galicizada”. (Wheen, 2008, p. 18). Mas em que sentido a influência religiosa da família e sua pertença ao judaísmo marca o pensamento marxiano? Um certo sentimento de exclusão social dominava os judeus que viviam ma Alemanha do século XIX e, certamente, foi essa exclusão de uma maior participação social e política mais efetiva que fez Marx olhar, pela primeira vez, criticamente a ordem social. De fato, foi sua vivência no meio religioso que o fez desenvolver a idéia de que os homens vivem unilateralmente, pondo à frente de sua humanidade, as limitações da fragmentação religiosa. Antes de se ver como cidadão, o homem moderno se compreende como cristão, como judeu etc. É nesse sentido que Marx pensa que uma das condições para que o homem rompa os grilhões que lhe aprisionam é que ele livrese da tirania religiosa. É essa idéia que Marx desenvolverá em seus escritos que abordam o tema da religião. Porém, é importante frisar que a crítica da religião não aparece em primeiro plano nas obras marxianas. Marx a trata quando desenvolve sua crítica da política, 1 Professor Assistente do Curso de Filosofia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará. 2 especificamente nos escritos de juventude, no quais ele afirma que a crítica da religião é o pressuposto de toda crítica. É necessário ressaltar ainda que a crítica da religião não foi uma empreitada teórica exclusiva de Marx. Antes dele o movimento jovem hegeliano de esquerda já havia tratado criticamente a questão da religião. A teoria dos jovens hegelianos tinha como tarefa a superação da filosofia abstrata de Hegel e a crítica da religião que, posteriormente, se estenderia ao Estado cristão. Dentre os hegelianos de esquerda que se dedicaram à crítica da religião destacamos Bruno Bauer e Ludwig Feuerbach, com que posteriormente Marx travará uma ferrenha discussão. Bauer defendia a propositura segundo a qual a verdadeira emancipação humana advinha da laicização do Estado. Para ele, enquanto o Estado permanecesse detentor do privilégio de uma religião exclusiva, ele seria incapaz de emancipar seus cidadãos. Do mesmo modo, enquanto os judeus ou qualquer homem pertencente a uma religião determinada privilegiarem seu ser religioso em detrimento de sua existência como homem, como cidadão, serão incapazes de exercerem sua liberdade política porque os mandamentos de sua religião estarão sempre em primeiro plano e no caso de um conflito com o direito, as normas religiosas serão privilegiadas. O mérito de Bauer foi ter suscitado a questão da relação entre Estado e religião. Contudo, seu equívoco foi ter dado um caráter puramente teológico à questão, ou seja, Bauer analisou a questão judaica apenas do ponto de vista do judeu e da relação deste com o cristianismo. Faltou a ele, segundo Marx, ter transposto sua crítica religiosa para o campo da crítica política e social, onde a religião se engendra. Para Marx, os limites da religião não podem ser buscados nela mesma, mas, antes, nos limites e contradições da política e da sociedade burguesa. “Em carta escrita a Ruge em 30 de novembro de 1842, Marx já exigia que se tratasse as questões políticas e sociais com maior seriedade e, especificamente, que se analisasse a questão religiosa do ponto de vista político, em vez de transportar toda a política para o âmbito da religião” (CLEMESHA, 1998, p. 22). A filosofia de Feuerbach, por sua vez, é uma tentativa de resgatar o homem real, sensível, alienado em Deus. Para tanto, ele pretende formular uma nova filosofia, para pôr no lugar da especulação, das abstrações filosóficas dos sistemas modernos, cujas formulações não passam de uma racionalização da Teologia, de querelas banais, de arbitrariedades. Essa nova filosofia deve corresponder às exigências da humanidade. Uma filosofia que não corresponde às necessidades históricas dos homens é uma reação 3 ao desenvolvimento da própria humanidade. Conforme Feuerbach, os sistemas filosóficos da modernidade foram uma espécie de reação, mostraram-se insuficientes, porque não corresponderam às reais exigências da humanidade; tais sistemas restringiram-se a especulações sobre realidades abstratas, extramundanas. A verdadeira filosofia, nos moldes como é concebida pelo materialismo feuerbachiano, é aquela que tem a exigência do futuro, que é movimento para frente, que acompanha as exigências dos homens concretos (FEUERBACH, 1988, p.13-14); é aquela que penetra no coração do homem (Ibidem, p. 14), que torna-se humana. O coração simboliza a sensibilidade; nesse sentido, a verdadeira filosofia funda-se na sensibilidade (na natureza e no homem real) e não na abstração (no espírito e no homem teórico). Essa idéia aparece como pano de fundo no conjunto das obras de Feuerbach. Ao criticar a religião, o filósofo mostra que o divino deve ser substituido pelo mundano (homem) e, com isso, funda-se o princípio supremo sobre o qual se ergue o novo espírito da humanidade: o ateísmo, que significa o abandono de qualquer entidade absoluta distinta do homem e o reatamento dos laços que ligam os homens entre si. Feuerbach pretende fazer com que o homem retome a sua consciência genérica, a qual lhe foi alienada pela Teologia. Chegamos, desse modo, ao âmago da filosofia feuerbachiana, que pode ser sintetizada na assertiva a teologia é antropologia. (FEUERBACH, 1988, p. 19). Todos os atributos de Deus nada mais são do que atributos humanos tornados universais e postos acima do homem. Desse modo, Deus deixa de ser a gênese do homem e torna-se seu produto. É nessa inversão que consiste a crítica de Feuerbach à religião. A nova filosofia, como pensada por Feuerbach, introduz no âmbito do pensamento o princípio da finitude, da sensibilidade, que se opõe ao pensamento abstrato. Somente com essa introdução é que a Filosofia se tornará irrefutável, nãocontraditória, verdadeira, e, sobretudo, uma filosofia que corresponderá às necessidades da humanidade. Para Feuerbach, portanto, o homem é essencialmente sensibilidade (Sinnlichkeit). Desde sua crítica religiosa, ele desenvolve uma concepção antropológica, cujo cerne encontra-se na obra A Essência do Cristianismo, e é desenvolvido posteriormente em suas obras de maturidade. Em A Essência do Cristianismo, Feuerbach desvela a verdadeira essência de Deus. Este nada mais é do que a essência humana elevada ao universal, alienada em um ser fantástico, sobre-humano. Tal pensamento pode ser resumido no seguinte parágrafo do capítulo 2, intitulado A essência da religião em geral: E aqui vale sem qualquer restrição o princípio: o objeto do homem nada mais é que a sua própria essência objetivada. Como o homem pensa, como for intencionado, assim é o seu 4 Deus: quanto valor tem o homem, tanto valor e não mais tem o seu Deus. A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo, o conhecimento de Deus o conhecimento que o homem tem de si mesmo. Pelo Deus conheces o homem e vice-versa pelo homem conheces o seu Deus; ambos são a mesma coisa. O que é Deus para o homem é o seu espírito, sua alma, seu coração, isto é também o seu Deus: Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do Eu do homem; a religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais íntimos pensamentos, a manifestação pública dos seus segredos de amor. (FEUERBACH, 1997, p. 55-56). Anos depois, em 1846, em A Essência da Religião, e entre os anos de 1848-49 em suas Preleções sobre a Essência da Religião, ministradas a convite de alguns estudantes da Universidade de Heidelberg, Feuerbach revisa A Essência do Cristianismo, pois percebe na mesma um sério limite, uma falha; nesta obra, ele não considera devidamente a natureza e dá um excessivo tratamento à essência do homem. Consoante ele, essa falha deu margem a diversos mal-entendidos. O principal deles foi ter julgado que a essência humana surgisse do nada, sem nada pressupor à sua existência. Feuerbach reconhece nessas obras posteriores “que o homem não se faz por si mesmo, que ele é um ser dependente, surgido, logo tendo fora de si o fundamento de sua existência.” (FEUERBACH, 1989, p. 26). Qual é o fundamento que a existência humana pressupõe? A resposta é “a natureza”, com a qual ele deve relacionar-se, necessariamente, e fora da qual não podem ser pensadas a sua existência e a sua essência. A crítica da Religião como pressuposto de toda crítica A crítica da religião em Marx está diretamente atrelada a uma análise das condições materiais da sociedade moderna. Daí Marx observar que a religião possui uma dupla determinação. Por um lado ela é o grito da criatura oprimida, a alma de um mundo sem alma, ou seja, a religião aparece ao homem moderno, ao homem que vive sob os ditames da sociedade burguesa, como um meio de suportar a miséria social à qual está submetido; por outro lado, ainda consoante Marx, a religião apresenta-se como um ópio, um entorpecente, que paralisa a ação humana diante da mesma realidade que o oprime. Ao prometer uma vida no além, a religião faz do homem um ser da pura esperança, preso a um eterno esperar pela eternidade, onde poderá realizar-se como verdadeiro homem. Essa dupla determinação da religião em Marx é apresentada no texto Critica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. A Introdução tem como pressuposto teórico a crítica religiosa, tendo em vista que esta atingiu o seu termo, o que levou Marx a situar 5 suas considerações no campo sócio-político, no qual a religião é produzida. É na vida social que se funda a inversão dos atributos humanos. Nessa perspectiva, a crítica feuerbachiana mostra-se limitada, revelando seu aspecto negativo, pois não desceu à fonte do estranhamento religioso, que, consoante Marx, seria a própria sociedade civil em suas contradições. Feuerbach não atentou para o fato de que é a insuficiência secular, isto é, a insuficiência da sociedade e do Estado moderno, que conduz o homem ao estranhamento de sua essência, na medida em que não são garantidas as condições materiais necessárias à satisfação de suas carências básicas. Desse modo, Marx afirma que é o Estado e a sociedade quem criam a religião enquanto reflexo de sua insuficiência: o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d'honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião. (MARX, 1989, p. 77). A afirmação acima, de que o homem não é um ser abstrato fora do mundo, revela a compreensão marxiana do princípio antropológico de Feuerbach. Este princípio, porém, conforme Marx, é limitado, porquanto não atribui ao homem a determinação histórico-social. Desse modo, a superação do antropologismo abstrato de Feuerbach desemboca numa crítica sócio-política, uma crítica ao mundo invertido, à sociedade burguesa, a qual, respaldada pelo Estado, cria a religião como reflexo de sua insuficiência. Enquanto teoria geral do mundo, resumo enciclopédico, a religião revela as contradições e insuficiências seculares. O religioso que busca em Deus a paz, a satisfação, o bem, revela uma realidade social violenta, injusta e má. Por isso que a religião é a lógica em forma popular da sociedade. Enquanto sanção moral, a religião justifica os valores sociais que, em geral, encobrem as relações injustas e desiguais. Ela, por um lado, ameniza, conforta os homens de seus sofrimentos, por outro, justifica esses sofrimentos, como bem já expressara Holbach. É nesse sentido que ela é a base geral de consolação e justificação. Em suma, a religião constitui-se como reflexo da 6 genericidade humana não efetivada na vida concreta. Sendo assim, para Marx, a luta contra a religião é uma luta indireta contra as contradições da sociedade civil burguesa; a crítica à religião é uma crítica indireta ao modo de vida do homem na modernidade. Ao constituir-se como expressão da miséria real dos homens, a religião é, simultaneamente, um protesto contra essa miséria. É nesse sentido que Marx a define como “o suspiro da criatura oprimida, o íntimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma” (MARX, 1989, p. 78); em poucas palavras, é “o ópio do povo” (Idem). Desse modo, é preeminente a abolição da religião como felicidade ilusória, pois tal abolição pressuporia a abolição do estado de miséria social. Essa é a conditio sine qua non à efetivação da felicidade real dos homens, à liberdade de uma vida de ilusões. Assim a vida humana poderia fundar-se na vontade livre, na razão. O homem viveria de acordo com seus valores propriamente humanos, numa relação de eqüidade. Nas palavras de Marx: A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência de sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe a crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola. (MARX, 1989, p. 78). Resgatado o homem e desmitificada a religião, a tarefa fundamental da filosofia agora é explicitar a verdade deste mundo, isto é, o auto-estranhamento humano na vida social, no trabalho, na política e na economia. Marx está consciente dessa tarefa filosófica e o objetivo dos seus escritos pós 1844 é realizá-la. Superar as formas burguesas de relação, nas quais as esferas sociais pressionam-se umas as outras, imperando a estreiteza do espírito e uma política da insignificância, que não possui valor algum para a vida dos indivíduos, é o intuito da filosofia marxiana e um dos últimos passos do projeto moderno de compreensão da religião. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS