atividade musical:desmistificando o currículo de música na

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ATIVIDADE MUSICAL:DESMISTIFICANDO O CURRÍCULO DE
MÚSICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Fabianne Alves de Oliveira1 - UnB/SEE-DF
Grupo de Trabalho - Educação da Infância
Agência Financiadora: UnB/ESDEI
Resumo
A presente pesquisa buscou elucidar questões ligadas à experiências musicais na Educação
Infantil na perspectiva do Currículo em Movimento (DISTRITO FEDERAL, 2010), o qual
orienta, entre outras, tal atividade nesta etapa do ensino. O trabalho se justifica na medida em
que no Distrito Federal, onde a pesquisa foi realizada, a música ainda é praticada como
elemento secundário e não com o objetivo de desenvolver a musicalidade da criança como o
documento estabelece. Assim, o objetivo geral da pesquisa foi investigar como os professores
de educação infantil compreendem o currículo de música nessa etapa do ensino e se fazem
uso das orientações do documento. As impressões foram obtidas por meio de questionário e
entrevista semi-estruturada com sete professoras de uma escola pública do Distrito Federal,
atuantes na educação infantil. O referencial teórico e procedimentos metodológicos estão
fundamentados na perspectiva histórico-cultural de Vigotski, na qual o indivíduo é
potencialmente detentor de uma cultura criada e recriada pela humanidade. Os dados nos
levam a concluir que existe um certo distanciamento entre a abordagem do currículo sobre o
trabalho com música e a prática musical do professor generalista. Isso se dá pela interpretação
superficial que se faz do documento, demonstrando que a música ainda não é vista como um
conteúdo a ser seguido, sendo comumente praticada de forma opcional sem a organização e
planejamento inerentes aos outros componentes curriculares. Dessa forma, segue como
instrumento de apoio para se atingir objetivos outros que não contemplam pontualmente a
expressividade autêntica e a musicalidade latente na criança como ser histórico cultural.
Ainda sim, fica claro que o currículo traz uma abordagem um tanto técnica que dificulta a
compreensão por parte do professor, o que precisa ser observado na busca da efetivação da
atividade musical nas salas de aula da educação infantil.
Palavras-chave: Educação Infantil. Atividade Musical. Currículo.
1
Pedagoga pela Universidade Católica de Brasília (2002). Pós-graduada em Psicopedagogia pela Faculdade
Albert Einstein – Brasília, DF (2006). Concluindo curso de Especialização em Educação Infantil: Universidade
de Brasília – UnB. Professora da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal/SEE-DF. Possui o curso
técnico em flauta Transversal pela Escola de Música de Brasília- EMB/DF. E-mail: [email protected]
ISSN 2176-1396
3854
Introdução
A música e os sons são presença constante na escola como um todo, mas
principalmente, em turmas de Educação Infantil, cuja utilização é latente. Nesse sentido, a
pesquisa buscou elucidar questões ligadas a experiências musicais nessa etapa do ensino,
porém, na perspectiva de que a atividade seja pensada e organizada para além do cantar
canções em diversos momentos da aula, ou seja, que a música, como um dos conteúdos
constante nos documentos que regem a Educação Infantil, seja de fato, experienciada. A
principal justificativa para se pensar na prática efetiva da educação musical em turmas de
educação infantil nas escolas públicas deve-se ao fato de que não só no Distrito Federal, onde
a pesquisa foi realizada, como em outras partes da Federação, a música ainda é tratada como
elemento secundário na realização das atividades cotidianas da educação infantil: na condução
das crianças em fila, em momentos de volta à calma, introdução de novos conteúdos,
apresentações diversas, porém, não com o fim que lhe é devido, ou seja, o desenvolvimento
da musicalidade da criança, cuja exploração pontual favorece sua criticidade e expressividade
(BRASIL, 1998; MARTINEZ, 2012; CUNHA; LOMBARDI; CISZEVSKI, 2009).
A pesquisa buscou demonstrar que o papel secundário que a música perfaz no
cotidiano da Educação Infantil pode estar acontecendo pela interpretação superficial que o
professor faz na leitura do currículo que orienta as atividades a serem desenvolvidas com as
crianças. A crítica não se refere às práticas de ouvir e cantar, tão corriqueiras em nossas
escolas, mas sim, ao fato de que é preciso estar atento ao seu uso na medida em que a música,
pode sim, permear práticas e projetos, se essa for a conduta do professor, porém, para além
disso, que é um componente curricular e precisa ser tratado com a mesma intencionalidade
que outros conteúdos no cotidiano escolar.
Diante disso, fica evidente que existem alguns equívocos entre à prática da atividade
musical à luz do currículo e a compreensão que o professor demonstra sobre o trabalho com a
música. À vista dessa realidade é preciso refletir sobre como os professores de Educação
Infantil compreendem o currículo de música na Educação Infantil, dado que esse é o
documento norteador da atividade nessa etapa da educação básica.
Referencial teórico
A pesquisa expressa um grande esforço na busca de desmistificar algumas percepções,
concepções e práticas acerca da atividade musical desenvolvidas na Educação Infantil. No
3855
Distrito Federal o currículo inclui a música como um dos eixos de relevância no processo de
desenvolvimento da criança e podemos dizer, com segurança, que essa foi uma grande
conquista, pois inserir o conhecimento musical como atividade a ser vivenciada, é considerar,
acima de tudo, o contexto cultural que permeia os processos de desenvolvimento e as
impressões artístico-musicais na história de vida do ser humano desde tenra idade, passadas
por gerações, as quais acumulam em si um sentido histórico-social, como coloca Prestes
(2012, p. 21):
As funções psíquicas especificamente humanas, como o pensamento lógico, a
memória consciente e a vontade, não se apresentam prontas ao nascer. Elas formamse durante a vida como resultado da apreensão da experiência social acumulada por
gerações precedentes [...] num processo de ação externa coletiva e na relação com o
outro.
Nesse prisma, as manifestações musicais, inerentes à infância humana, precisam
adquirir um caráter de continuidade na escola, visto que este é o local onde atingimos um
número expressivo de seres em formação, que trazem consigo esse repertório de experiências.
Tais práticas musicais precisam estar em consonância com a nova concepção de criança
independente, autônoma e socializada muito antes de chegar à instituição de ensino. Ela é
sujeito e centro do processo educativo que necessita fazer valer as proposições curriculares,
pois os estudos e pesquisas que as fundamentam foram endereçadas à essa criança. Todavia, o
que presenciamos hoje na maioria das práticas escolares relativas ao tema, é um fazer musical
desvencilhado da real proposta curricular e, por esse fato, inexpressivo quanto aos objetivos
que se pode atingir com um trabalho musical pontual e preciso. Brito (2003, p. 52) nos alerta
sobre a inércia da prática musical vigente e contraposição à realidade que se descortina:
[...] estão cada vez mais distantes os dias em que se copiavam letras e números,
muitas e muitas vezes, de modo mecânico e desprovido de significados. Mas
continuamos apenas cantando canções que já vêm prontas [...] excluindo a interação
com a linguagem musical que se dá pela exploração, pela pesquisa e criação, pela
integração do subjetivo e objetivo, do sujeito e objeto, pela elaboração de hipóteses
e comparação de possibilidades, pela ampliação de recursos, respeitando as
experiências prévias, a maturidade, a cultura do aluno, seus interesses e sua
motivação interna e externa.
Assim, continuamos presos às práticas estagnadas de uso da música. Erramos ao
interpretar os documentos que nos regem e por isso, temos ignorado o fazer musical de forma
mais profunda. A pesquisa na qual se fundamenta o presente artigo traz, entre outras
observações, uma análise do Currículo em Movimento (DISTRITO FEDERAL, 2010),
documento que orienta as práticas pedagógicas no Distrito Federal e no qual este trabalho terá
3856
seu foco de atuação, a fim de identificar, nas entrelinhas e nas falas das professoras que
participaram da pesquisa, algumas causas da inconsistência do fazer musical nas salas de
Educação Infantil.
O currículo de música na Educação Infantil
O Currículo em Movimento do Distrito Federal (2010) inclui a música no campo das
linguagens artísticas, obedecendo às diretrizes do RCNEI (BRASIL, 1998). Na rápida
introdução ao assunto, o documento demonstra dois conceitos primordiais a essa pesquisa. O
primeiro deles é sobre a musicalização assim retratada:
A musicalização, segundo uma visão bastante comum, está restrita ao preparo para
algum aprendizado musical nos moldes tradicionais, ou definida mesmo como um
trabalho ‘pré-musical’, seja como o estudo de teoria musical ou mesmo como o
estudo de determinado instrumento (DISTRITO FEDERAL, 2010, p. 132).
Tradicionalmente existem os autores que compreendem o trabalho de musicalização
com o objetivo de contextualizar o indivíduo em conceitos e teorias musicais, a fim de que, ao
apreender os mesmos, se torne instrumentista ou intérprete (MED, 1996; PRIOLLI, 1993),
educação centrada na técnica musical e repercussão no aluno. Jeandot (1990, p. 15) reforça
esse ponto de vista: “durante séculos fomos condicionados a acreditar que a música é uma
combinação de notas dentro de uma escala, e temos dificuldade de concebê-la em termos
diferentes”. A ‘diferença’ colocada pela autora é retratada nas atuais pesquisas sobre o tema
(MARTINEZ, 2012; MARTINOFF, 2011; QUEIROZ; MARINHO, 2007; SPANAVELLO;
BELLOCHIO, 2005), os quais trazem uma nova visão sobre a musicalização e musicalidade.
Muitos profissionais acreditam que é preciso musicalizar a criança e torná-la um intérprete
vocal ou instrumental, porém, a proposta dos documentos não é essa propriamente, ponto que
fica claro no RCNEI (BRASIL, 1998, p.48), o qual contempla o trabalho musical para além
da musicalização no que diz respeito aos objetivos que se pode alcançar através da música:
“Garantir à criança a possibilidade de vivenciar e refletir sobre questões musicais, num
exercício sensível e expressivo que também oferece condições para o desenvolvimento de
habilidades, de formulação de hipóteses e de elaboração de conceitos”.
Já as DCNEIs, expõem as artes e, por conseguinte, a atividade musical na educação
infantil de forma bastante limitada, propondo “experiências que [...] favoreçam a imersão das
crianças nas diferentes linguagens e o progressivo domínio por elas de vários gêneros e
formas de expressão: gestual, verbal, plástica, dramática e musical” (BRASIL, 2010, p.25).
3857
O Currículo em Movimento do Distrito Federal, por sua vez, aborda o trabalho com
música da seguinte forma: “mais abrangente e sua amplitude pode atingir etapas do
desenvolvimento que ultrapassam as proporcionadas pela musicalização” (DISTRITO
FEDERAL, 2010, p. 133). Assim, a música assume o papel para o qual foi destinada e não
como um mero acessório de apoio para atingir objetivos outros que não contemplam o
desenvolvimento da musicalidade da criança.
Também é notável a preocupação do documento em tratar da exploração do mundo
sonoro das mais variadas formas, relacionando a música às brincadeiras, fundamental para
que o processo de desenvolvimento da musicalidade aconteça da forma mais espontânea
possível, tanto por parte da criança, como do professor, tendo em vista os processos de
imaginação dos quais a criança se utiliza para representar a situação concreta:
Quanto mais a criança viu, ouviu e vivenciou mais ela sabe e assimilou; quanto
maior a quantidade de elementos da realidade de que ela dispõe em sua experiência
– sendo as demais circunstâncias as mesmas - mais significativa e produtiva será a
atividade de sua imaginação (VIGOTSKI, 2009, p. 23).
Assim, os processos de imaginação e criação estão relacionados à liberdade que a
brincadeira propicia ao fazer musical da forma mais simples e exploratória, numa relação
recíproca entre a tríade música, criança e professor, levando-se em consideração as
experiências anteriores que possuem esses personagens, sobretudo da criança, centro do
processo. Nesse sentido, Brito (2003, p. 46) confirma a visão atual do documento:
[...] importa, prioritariamente, a criança, o sujeito da experiência, e não a música,
como muitas situações de ensino musical insistem em considerar. A educação
musical não deve visar à formação de possíveis músicos do amanhã, mas sim, a
formação integral das crianças de hoje.
A proposta do Currículo em Movimento apresenta um Quadro Organizativo, onde há
uma lista de atividades musicais a serem trabalhadas, delimitando-as por idade. Das vinte
atividades constantes na lista, apenas cinco delas não seriam, a princípio, realizadas com
crianças de zero a dois anos, devido à sua complexidade. Todas as outras atividades poderiam
ser desenvolvidas com crianças de três a cinco anos facilmente. Entretanto, o currículo
apresenta tais atividades por meio de uma linguagem um tanto técnica - como as expressões
“percussão corporal”, “identificação de elementos do som”, “exploração de ritmos”,
“improvisações, composições e interpretações sonoras”, “criação de partitura alternativa”
(DISTRITO FEDERAL, 2010, p.138-139), dificultando a interpretação, principalmente por
parte daqueles que não possuem o conhecimento musical específico: professores generalistas,
3858
que, em sua maioria, não passaram por uma formação musical no curso superior ou de outra
natureza que pudesse fornecer orientações para o trabalho.
Sabemos que existe uma gama de publicações que trazem atividades relativas à
linguagem, pensamento lógico-matemático, conhecimento de mundo, entre outras,
direcionadas a essa etapa do ensino e que apóiam o trabalho do professor, além da troca de
experiências entre os docentes, que contribuem para a realização prática do trabalho de forma
bastante assertiva, porém, não é o que acontece com o fazer musical. Além das publicações de
cunho prático ainda serem limitadas, tais produções não são ofertadas nos acervos que
chegam às escolas, o que ocasiona certa dificuldade de acesso por parte dos professores e a
troca de experiência. Assim, é preciso pensar neste profissional como organizador do
ambiente onde a proposta é realizada.
O professor de Educação Infantil
O profissional que está nas salas de aula atualmente é fruto de um longo e lento
processo de construção desde a sua formação. Desde a expulsão dos Jesuítas, em 1759, e a
partir da independência do país em 1822, há um esforço em implementar uma escola pública
de qualidade e professores formados para tal, então em 1835 é criada a primeira Escola
Normal, em Niterói, Rio de Janeiro. A formação do professor se dava pelo curso magistério, o
qual passou por consideráveis transformações desde seu advento, no século XIX. Tais
mudanças trouxeram avanços fundamentais no que tange à organização, tempo de formação
em espaços específicos. Apesar dos esforços, a lenta consolidação da formação ainda não
garantia a valorização integral do curso e, segundo Tanuri (2000, p.23) os prejuízos
resultantes são assim somados:
[...] a dicotomia entre teoria e prática, entre conteúdo e método, entre núcleo comum
e parte profissionalizante; à inexistência de articulação entre o processo de formação
e a realidade do ensino de 1º grau; ao desprestígio social do curso e à sua
inconsistência em matéria de conteúdo; à inadequação dos docentes ao curso, em
termos de formação, tendo em vista a inexperiência de muitos deles no ensino de 1º
grau e a necessidade de assumirem várias disciplinas; à insuficiência e à
inadequação dos livros didáticos; aos problemas pertinentes à realização do estágio
de Prática de Ensino.
Diante das mudanças intensas, várias lacunas se instauravam ao longo das décadas,
como relatado por Tanuri (2000), de maneira que a superficialidade do curso normal passa a
ser vista como o prenúncio de uma prática pouco fundamentada nos estudos teóricos e com
3859
uma tendência bastante mecanicista, que veio a ser refutada com o artigo 62 da LDB 9394/96,
que estabelece:
A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior,
em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos
superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do
magistério na educação infantil e nos 5 (cinco) primeiros anos do ensino
fundamental, a oferecida em nível médio na modalidade normal (BRASIL, 1996).
No Distrito Federal, onde foi realizada a pesquisa, a lei de 1996 só tem as primeiras
evidências em 2008, quando a formação superior passa a ser prerrogativa constante para se
concorrer ao cargo de professor da rede pública de ensino. Contudo, a medida não é garantia
de um fazer musical com maior consciência e preparo por parte do professor generalista2,
responsável por todas as áreas do currículo escolar, e, por esse motivo, as artes em geral têm
sido abordadas de forma superficial e insuficiente pelos cursos de formação, como menciona
Figueiredo (2004, p.56):
Os professores generalistas não são matemáticos mas incluem matemática em sua
prática cotidiana; não são cientistas mas abordam as ciências em suas atividades de
ensino; não são poetas nem escritores mas são responsáveis por questões de língua
portuguesa; mas normalmente não se sentem confiantes para aplicar questões
artísticas e musicais por se considerarem desprovidos de talento para tal. Essa
situação coloca a música e também as outras artes como pertencentes a um tipo
exclusivo de conhecimento humano, acessível apenas a um número restrito de
pessoas que nascem com dons necessários para usufruir essa condição.
Assim, ainda nos prendemos à crença do talento congênito, que concede a poucos
afortunados a dádiva de fazer música. Tunes (2013, p.18) coloca que “a crença no mito do
dom musical, no dom de poucos, implica um distanciamento entre seres humanos e a música.
Gera descrença nas possibilidades humanas e, assim, a exclusão”. Ou seja, aquele que não se
enquadra nesse nível de dimensão musical, não está apto a vivenciar a música, mesmo que de
outras maneiras não convencionais.
Chegamos assim ao ponto crucial da passiva aceitação de uma musicalidade
adormecida, onde não há possibilidade do reconhecimento dessa expressão. O homem que
com ela convive, é o mesmo que nega suas possibilidades ante ao fazer musical. Aragão
(2011, p.30) corrobora tal posição assim:
2
O termo generalista se refere a um professor apenas para ministrar os conteúdos constantes do currículo,
chamado, em outras pesquisas, de professor unidocente (SPANAVELLO; BELLOCHIO, 2005), generalista
(CUNHA;LOMBARDI;CISZEVSKI,2009;FIGUEIREDO,2004;MARTINOFF,2011) ou mesmo não-especialista
(QUEIROZ ;MARINHO, 2009).
3860
A musicalidade não é um dom concedido por uma fada madrinha a apenas alguns
afortunados. É a capacidade que todo indivíduo tem de se relacionar com a música.
Mas, se ela se deixar cair em sono profundo, poderá ficar adormecida por mais de
cem anos, enquanto não houver sequer um príncipe que a desperte com um beijo.
É preciso compreender que desenvolver a musicalidade do educando não é dar aula de
música, ensinar o conhecimento técnico, ou doutrinar um instrumento, mas fazer valer a
proposta curricular que é trabalhar a dimensão musical de forma exploratória e espontânea,
utilizando as próprias vivências das crianças, trabalhando com experiências e atividades
musicais, que busquem, não nos livros, mas na própria criança, a diversidade musical
intrínseca a ela, num diálogo voluntário e espontâneo com a musicalidade do próprio
professor, pois juntos, irão constituir sua própria história musical.
Procedimento metodológico
A intenção da presente pesquisa foi analisar como os professores de Educação Infantil
compreendem o currículo no que tange à área de música e se fazem uso do documento para
orientar a prática da atividade musical em turmas de educação infantil. A pesquisa se realizou
no universo de uma escola classe da rede pública de ensino do Distrito Federal, que tem como
documento orientador das atividades pedagógicas o Currículo em Movimento (DISTRITO
FEDERAL, 2010). O fato de a escola possuir turmas de Educação Infantil também foi
preponderante em vista de ser esse o universo da pesquisa a qual atende turmas de 1º e 2º
períodos da Educação Infantil, totalizando sete turmas, que funcionam nos turnos matutino e
vespertino. Apenas as professoras regentes dessas turmas participaram da pesquisa, por se
tratar do universo da Educação Infantil e por serem elementos essenciais que podem
esclarecer as possíveis causas da tímida realização da atividade musical na Educação Infantil.
O instrumento metodológico foi o questionário que se constituiu de treze questões,
sendo que cinco delas se referiam à matéria de cunho pessoal/profissional e as oito questões
abertas restantes se tratavam do tema da pesquisa, propiciando aos respondentes maior
liberdade de argumentação. Posteriormente, lançamos mão da entrevista semi-estruturada a
qual pôde garantir que o pensamento das entrevistadas fosse analisado de forma integral,
tendo em vista que o diálogo trouxe elementos não abordados nos questionários em sua
completude. Entre as questões sobre a atividade musical, vamos tratar daquelas alusivas ao
currículo, devido à pertinência do presente trabalho.
3861
Análise dos dados
Pode-se inferir que, apesar de todas as professoras colocarem que conhecem o
currículo, ao elencar suas impressões particulares, as respostas demonstraram que tais
opiniões são um tanto vagas. A música foi colocada como ferramenta, até mesmo de forma
imprecisa. Porém, o objetivo real da questão era perceber a forma bastante pessoal das
impressões ou opiniões que as professoras têm acerca do documento, o que, a princípio, não
ficou claro. Há inclusive, uma professora colocou que, a questão musical no currículo, está
implícita em outras atividades do cotidiano, e não de forma explícita, o que é uma inverdade.
Realizando as entrevistas, pôde-se identificar a verdadeira impressão sobre a proposta
curricular, a qual, apesar dos avanços, ainda demonstra limitações na forma como expõe o
tema musical, se utilizando de termos técnicos para apresentar as atividades. Como a maioria
dos professores unidocentes ainda não possui uma formação nesse sentido, o uso de termos
mais acessíveis poderia ser uma opção para o entendimento do tema. Brito (2003, p.46)
argumenta da seguinte forma:
Apesar de o currículo trazer interessantes considerações, a prática musical nas
turmas de educação infantil continua estagnada e isso pode se dar pela dificuldade
do professor em interpretar alguns termos ou propostas, uma possível razão que
dificulta a efetivação do trabalho.
Seria interessante que a proposta fosse um tanto mais clara para possibilitar ao
professor unidocente sua melhor compreensão, mesmo acreditando não possuir o “dom” no
qual muitos se apóiam, pois se sentem limitados para tal realização, basta que o professor se
reconheça como detentor de um saber musical próprio, fundamentado em suas vivências
musicais mais intrínsecas.
Além da interpretação textual, há ainda outra situação que dificulta a compreensão: o
fato de o documento elencar apenas as ações do professor e não as possíveis ações das
crianças. Se, na leitura, o professor pudesse vislumbrar as possibilidades de relação entre a
criança e a música, talvez essa análise fosse mais atrativa, sabendo que, a partir de
determinado aspecto a se trabalhar, a criança demonstraria possíveis reações.
No que tange às sugestões das professoras sobre o Currículo em Movimento, das sete
professoras participantes, apenas duas preencheram esse campo. Uma delas colocou o que
achou ser uma sugestão, porém, a leitura mostra que, de fato, é uma crítica ao documento:
3862
O currículo em movimento nos norteia em nossa prática em sala de aula, mas essa
prática depende muito de cada professor [...]. Infelizmente temos que nos moldar
com o que temos em nossas mãos e a nossa estrutura não é nada boa, parte do
professor improvisar com coisas recicláveis e utilização dos sons que podemos fazer
com o nosso corpo.
Outra professora sugere a aprendizagem de um instrumento específico, porém, não
detalha quem seria o professor a ministrar essa aula e, na medida em que cada criança
escolheria um instrumento, a presença de vários professores especialistas seria
imprescindível. A sugestão da professora é que aconteça na escola a própria musicalização,
porém, não é essa a recomendação do documento, o que fica claro nas palavras de Martinoff
(2011, p. 928):
As atividades musicais realizadas na escola não visam a formação de músicos, e
sim, através da vivência e compreensão da linguagem musical, propiciar a abertura
de canais sensoriais, facilitando a expressão de emoções, ampliando a cultura geral e
contribuindo pra a formação integral do ser.
A partir da entrevista, depreende-se das falas das professoras que, por se tratar de
termos técnicos, algumas atividades não são realizadas com as crianças. Tais expressões
poderiam ser elencadas com uma linguagem mais simples e, trazendo propostas de atividades,
a fim de que o professor pudesse constatar a viabilidade de concepção musical que o currículo
aborda.
Para concluir, as professoras foram questionadas sobre suas possibilidades para
trabalhar a atividade musical de forma a desenvolver a musicalidade do aluno de forma
pontual. A pergunta é pertinente na medida em que o currículo traz o conhecimento musical a
ser trabalhado pelo professor unidocente. Em nenhum momento o documento dispõe sobre a
opção do trabalho, mas sim, de sua realização, não se levando em consideração a formação
dos docentes na área. A maioria das professoras colocou que não se sentem preparadas para
desenvolver o trabalho, seja por ausência de material e estrutura ou pela falta de formação. A
preocupação do professor com relação à formação é legítima, pois, em sua visão, a instrução é
a prerrogativa de um trabalho um tanto mais consistente e coerente. De fato, a assertiva
procede, todavia, há que se considerar o ser histórico-cultural que é o professor, participante
de uma sociedade que cria e recria contextos de atuação inventados pelo próprio homem.
Interessante observar que as professoras demonstram compreender o que seja
desenvolver a musicalidade da criança. Porém, apesar de todas elas compreenderem a
presença e valor da música em sua prática, ainda assim, as atividades não são desenvolvidas
de forma a explorar essa musicalidade compreendida e citada. Como dito antes, a música é
3863
vista como “um meio”, “um instrumento” para atingir fins alheios à musicalidade
pontualmente. Assim, faltam situações intencionais de exploração da musicalidade. A música,
como elemento secundário, já está sacramentada, e é, como dito anteriormente, uma
ferramenta singular para atingir uma série de objetivos, porém, poderia alcançar seu mais
profundo significado na manifestação da musicalidade, viva na essência de cada criança. Esse
sim, é o resultado mais expressivo que podemos alcançar com a atividade musical nas turmas
de Educação Infantil, pensamento corroborado por Marinho (2007, p.70):
Somente promovendo experiências diversificadas de ensino da música no universo
das escolas de educação básica é que poderemos proporcionar a uma parcela
significativa da sociedade, a oportunidade de vivenciar, experimentar e compreender
o fenômeno musical nas suas distintas formas de expressão. Considerando que a
escola de educação básica é, a priori, o único espaço educacional verdadeiramente
democrático, o qual todos os cidadãos têm o direito de freqüentar, qualquer outro
universo de ensino da música será, de alguma forma, seletivo e, consequentemente
excludente.
A maioria dos professores unidocentes não é especialista na área musical, como já dito
anteriormente, porém, a sua experiência cotidiana lhe oferece a liberdade de realizar
importantes descobertas ao mesmo momento da própria criança. Ele trabalha no limite da
criatividade todos os dias e cada experiência musical pode ser o impulso para um futuro
momento de exploração da musicalidade, como elucida Vigotski (2009, p. 29):
Muitas vezes, uma simples combinação de expressões internas – por exemplo, uma
obra musical - provoca na pessoa que ouve um mundo inteiro e complexo de
vivências e sentimentos. Essa ampliação e esse aprofundamento do sentimento, sua
reconstrução criativa, formam a base psicológica da arte da música.
Broock (2013, p. 34) esclarece de forma contundente a questão:
[...] se a música tiver que estar na escola, que não seja subvertida em notas e
sufocada em cronogramas; que não se corrompa à facilidade das teorias, claves e
colcheias. Se a música tiver que estar na escola, que seja pelo seu potencial de
converter experiências com sons em oportunidades de articulação expressiva e
simbólica. Que conserve sua essência, tornando-se fortuitamente, símbolo de nós
mesmos.
Precisamos nos atentar se, de fato, estamos oferecendo à nossa criança, aquilo que os
documentos que nos regem recomendam, aqui citados, RCNEI (BRASIL, 1998), DCNEIs
(BRASIL, 2010), Currículo em Movimento do Distrito Federal (2010). Sobretudo, pois
nossas omissões terminam por cercear seu direito de explorar as possibilidades guardadas em
si, conhecer intimamente sua própria essência, construir hipóteses e experimentar o novo de
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forma leve, porém profunda. Aí está a concretude do fazer musical: na intencionalidade da
nossa prática.
Considerações finais
Diante do exposto, conclui-se que a música permeia todo o trabalho pedagógico, mas
não alcança seu verdadeiro objetivo. A forma como é utilizada nas escolas ainda se encontra
estagnada, mesmo com o passar dos anos. Essa situação pode estar relacionada à interpretação
que se faz do Currículo. No que tange ao conhecimento musical, o documento não é visto
como um programa a ser seguido, mas como uma opção de trabalho, realizado
superficialmente.
Nesse prisma, a musicalidade poderia ser desenvolvida de forma mais pontual nas
turmas de educação infantil se a lista de atividades propostas no documento trouxesse uma
linguagem mais acessível a aquele que possui um limitado (ou nenhum) conhecimento da
teoria da música. Além disso, a linguagem do documento precisa ser um tanto mais atrativa, a
ponto de envolver o professor que lança mão dessa ferramenta cotidianamente. Na leitura o
professor precisa sentir a praticidade e viabilidade da proposta, o que ainda pode ser um
desafio a ser vencido. Seria extremamente positivo que também houvesse exemplos de
atividades práticas, relacionadas aos termos citados para que o professor pudesse
compreender com maior clareza os objetivos que tal atividade busca atingir, cuja intervenção
culmina na própria musicalidade da criança.
Todavia, maior que facilitar o trabalho do professor, o objetivo das propostas
(BRASIL, 1998, 2010; DISTRITO FEDERAL, 2010) é fazer com que a música, de fato,
encontre seu lugar nas salas de Educação Infantil como uma habilidade com fins próprios e
não como ferramenta de apoio. Na realidade da tecnologia veloz e respostas dadas ao
movimento de um clique, há que se correr em direção ao que a alma do infante pode
expressar. A música é uma das possibilidades. Portanto, faço o convite:
Deixe, de fato, a música entrar!
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