Rev Bras Cardiol. 2014;27(6):434-436 novembro/dezembro Ponto de Vista Figueredo e Brandão Terapia com BRA e Desenvolvimento de Câncer Ponto de Vista Os Bloqueadores dos Receptores de Angiotensina II Estão Relacionados à Ocorrência de Câncer? Are Angiotensin II Receptor Blockers Linked to Cancer? Fábio Santiago Figueredo1,2,3, Andréa Araujo Brandão3,4 Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Faculdade de Ciências Médicas - Departamento de Patologia Geral e Laboratórios - Rio de Janeiro, RJ - Brasil Instituto Nacional de Câncer - Laboratório de Genética Aplicada - Rio de Janeiro, RJ - Brasil 3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Faculdade de Ciências Médicas - Programa de Pós-graduação em Ciências Médicas - Rio de Janeiro, RJ - Brasil 4 Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Faculdade de Ciências Médicas - Disciplina de Cardiologia - Rio de Janeiro, RJ - Brasil 1 2 Resumo Abstract A associação entre os bloqueadores dos receptores da angiotensina (BRA) e câncer mostrou resultados conflitantes em estudos clínicos e meta-análises. Meta-análises subsequentes, envolvendo maior número de estudos clínicos e de pacientes em uso de BRA e outros anti-hipertensivos, não foram capazes de demonstrar aumento do risco da incidência e da mortalidade por câncer. Estudos prospectivos mostram que a hipertensão arterial, por si só, ou fatores relacionados a ela como a idade e a obesidade associam-se à ocorrência e mortalidade por câncer. Assim sendo, os BRA foram considerados fármacos seguros e eficazes para o tratamento anti-hipertensivo. The association between angiotensin receptor blockers (ARBs) and cancer has shown conflicting results in clinical studies and meta-analyses. Subsequent meta-analyses with larger numbers of clinical trials and patients taking ARBs and other anti-hypertensives have not been able to demonstrate increased risk and mortality from cancer. Prospective studies show that high blood pressure alone, or related factors such as age and obesity, are associated with cancer and mortality. Thus, ARBs have been considered as safe and effective drugs for anti-hypertensive treatment. Palavras-chave: Anti-hipertensivos; Neoplasias; Bloqueadores do receptor tipo 2 de angiotensina II Keywords: Antihypertensive agents; Carcinoma; Angiotensin II type 2 receptor blockers Introdução desenvolvimento de câncer. A segurança de outros fármacos anti-hipertensivos, no que diz respeito ao risco de desenvolvimento de câncer, também já foi questionada pela comunidade científica, como é o caso da reserpina, dos diuréticos, dos bloqueadores dos canais de cálcio (BCC) e dos inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA)1. Os bloqueadores de receptores de angiotensina II (BRA) foram aprovados para comercialização nos Estados Unidos em 1995 e, atualmente, são amplamente utilizados no tratamento da hipertensão arterial (HAS), da insuficiência cardíaca e da nefropatia diabética. Em 2010, a segurança desse fármaco foi colocada em dúvida com a publicação de meta-análise que associava o tratamento com BRA ao maior risco de Neste trabalho, será discutida a associação entre tratamento anti-hipertensivo e aumento da incidência de câncer, com enfoque para a associação entre os BRA e o câncer. Correspondência: Fábio Santiago Figueredo Av. Vinte e Oito de setembro, 77 - 4º andar - Vila Isabel - 20551-030 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil E-mail: [email protected] Recebido em: 15/04/2014 | Aceito em: 14/09/2014 434 Figueredo e Brandão Terapia com BRA e Desenvolvimento de Câncer Ponto de Vista BRA e a fisiopatologia do câncer Estudos experimentais sugerem que receptores da angiotensina II desempenhem papel na regulação da angiogênese, proliferação celular e, desta forma, na regulação da progressão dos tumores. Estudos pré-clínicos suportam a teoria de que o antagonismo do receptor de angiotensina tipo 1 (AT-1) pelos BRA, com a estimulação sem oposição dos receptores de angiotensina tipo 2, seja uma possível via de proliferação celular e angiogênese2. Assim, justifica-se a preocupação teórica sobre o risco de câncer associado ao uso dos BRA3. Contudo, foi demonstrado in vivo, em murinos, que metástases pulmonares de carcinoma de pulmão tiveram redução do seu tamanho com a injeção de bloqueadores de receptor AT-1. Outro estudo demonstrou que o bloqueio do receptor AT-1 reduz a produção de fator de crescimento endotelial vascular (VEGF), reduzindo assim a angiogênese e o tamanho do tumor4. Assim, há dados experimentais que sugerem até mesmo um efeito protetor da inibição da angiotensina II, através do bloqueio AT1, em relação ao câncer. Estudos clínicos com anti-hipertensivos e o risco de câncer Preocupações clínicas surgiram pela primeira vez com o estudo CHARM5 que avaliou o papel dos BRA na insuficiência cardíaca. Observou-se uma significativa associação entre a mortalidade por câncer em pessoas que fizeram uso de candesartana vs. uso de placebo: 86 (2,3%) indivíduos contra 59 (1,6%) (p=0,038). Contudo, não foram observadas diferenças significativas na incidência de cânceres entre os dois grupos. A primeira meta-análise que estudou a associação entre BRA e câncer foi publicada em 2010. Foram analisados dados de incidência (5 estudos, n=61 590) e mortalidade (8 estudos, n=93 515) por câncer 1. Comparou o uso dos BRA, telmisartana em 85,7% dos casos, em relação ao grupo-controle, em uso de placebo ou outras classes de anti-hipertensivos. A meta-análise descreveu um fraco, porém significativo aumento do risco no desenvolvimento de câncer em pacientes randomizados para BRA em comparação ao grupo-controle (RR=1,08; IC95% 1,01-1,15), mas não houve diferença para mortalidade por câncer (RR=1,07; IC95% 0,97-1,18). Já Bangalore et al.6 publicaram meta-análise com 70 ensaios clínicos randomizados (148 grupos de comparação) com anti-hipertensivos (BRA, IECA, betabloqueadores, BCC e diuréticos), com Rev Bras Cardiol. 2014;27(6):434-436 novembro/dezembro 324 168 pacientes. Na análise dos dados (modelo de efeito fixo), não houve aumento no risco de câncer com os BRA (OR=1,01; IC95% 0,93-1,09) ou com outros anti-hipertensivos vs. placebo. Contudo, observou-se aumento do risco com a combinação de IECA mais BRA (OR=1,14; IC95% 1,02-1,28), não confirmado no modelo de efeitos aleatórios (OR=1,15; IC95% 0,92-1,38). Não foram observadas também diferenças na mortalidade por câncer e o uso de BRA (taxa de mortalidade de 1,33%; OR=1,00; IC95% 0,87-1,15) ou de outros anti-hipertensivos vs. placebo. Em uma terceira meta-análise, ARB Trialists Collaboration, os autores analisaram dados de 15 ensaios clínicos envolvendo 138 769 pacientes7. O objetivo primário do estudo foi avaliar a incidência de câncer em usuários dos BRA vs. tratamento controle não BRA. A incidência de câncer no grupo não BRA (6,31%) foi superior ao grupo que fez uso dos BRA (6,16%), sem significado estatístico (OR=1,00; IC95% 0,95-1,04). Em análise secundária, não foi observada diferença significativa na ocorrência de casos novos de câncer para cada tipo de BRA (candesartan, irbesartan, losartan, valsartan, telmisartan), nem associação entre o tratamento combinado, IECA e BRA, e a incidência de câncer. A mortalidade por câncer não foi diferente significativamente entre os que usaram BRA vs. outros tratamentos (OR=1,03; IC95% 0,95-1,12). Em análises de subgrupos oncológicos por localização anatômica, estudo de Pasternak et al. 8 observou aumentou do risco de câncer com a duração do uso de BRA (0,99, IC95%, 0,99-1,00). Contudo observou-se uma discreta associação entre o uso de BRA e câncer dos órgãos genitais masculinos (OR=1,15, IC95%, 1,02-1,28), não sendo descrita associação em outros 15 subgrupos de câncer, incluindo o câncer de pulmão (OR=0,92, IC95% 0,82-1,02). Cabe lembrar que estudos prospectivos epidemiológicos mostram que a HAS ou fatores a ela relacionados, como idade e obesidade, estão associados a aumento da incidência e mortalidade por câncer. Trabalho sueco observou que o carcinoma de células renais relacionavase ao índice de massa corporal e à pressão arterial elevada. Isto indica que a obesidade e a HAS, isoladamente ou em combinação, possivelmente estejam associadas ao desenvolvimento de câncer9. Agências reguladoras Nenhum tratamento farmacológico é totalmente isento de riscos, sendo portanto, necessário quantificar seu risco-benefício por agências reguladoras. baseado em ensaios clínicos controlados. 435 Rev Bras Cardiol. 2014;27(6):434-436 novembro/dezembro A FDA conduziu estudo com 31 ensaios clínicos randomizados e não foram encontradas diferenças significativas na incidência de cânceres (RR=0,99; IC95% 0,92-1,06) ou morte por câncer (RR=1,04; IC95% 0,96-1,13) em usuários de BRA, em comparação com usuários de outros anti-hipertensivos. Não houve evidência também de associação entre os BRA e câncer de pulmão, mama ou próstata. Assim, o FDA declarou que o tratamento com BRA não aumenta o risco de câncer e que seus benefícios continuam a ser superiores a um potencial risco10. Conclusão Embora os resultados das meta-análises não sejam totalmente concordantes, a grande maioria não relaciona o aumento da incidência e a mortalidade por câncer ao uso dos BRA ou de outros anti-hipertensivos. Dessa forma conclui-se que os BRA são fármacos úteis e seguros para a abordagem da HAS. Potencial Conflito de Interesses Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes. Fontes de Financiamento O presente estudo não teve fontes de financiamento externas. Vinculação Acadêmica Este artigo foi desenvolvido como parte das atividades do PGCM–FCM/UERJ Ponto de vista As opiniões apresentadas neste artigo são somente as dos autores. A Revista Brasileira de Cardiologia acolhe pontos de vista diferentes a fim de estimular discussões com o intuito de melhorar os diagnósticos e os tratamentos dos pacientes. 436 Figueredo e Brandão Terapia com BRA e Desenvolvimento de Câncer Ponto de Vista Referências 1. Sipahi I, Debanne SM, Rowland DY, Simon DI, Fang JC. 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Antihypertensive drugs and risk of cancer: network meta-analyses and trial sequential analyses of 324,168 participants from randomised trials. Lancet Oncol. 2011;12(1):65-82. 7. ARB Trialists Collaboration. Effects of telmisartan, irbesartan, valsartan, candesartan, and losartan on cancers in 15 trials enrolling 138,769 individuals. J Hypertens. 2011;29(4):623-35. 8. Pasternak B, Svanström H, Callréus T, Melbye M, Hviid A. Use of angiotensin receptor blockers and the risk of cancer. Circulation. 2011;123(16):1729-36 9. Chow WH, Gridley G, Fraumeni JF Jr, Järvholm B. Obesity, hypertension, and the risk of kidney cancer in men. N Engl J Med. 2000;343(18):1305-11. 10. U.S. Food and Drug Administration. [Internet]. FDA Drug Safety Communication: No increase in risk of cancer with certain blood pressure drugs–angiotensin receptor blockers (ARBs). 2011. [cited 2014 Apr 4] Available from: < http:// www.fda.gov/Drugs/Drugsafety/ucm257516.htm>