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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO
DE 9 A 12 DE OUTUBRO
A EXPERIÊNCIA, O LUGAR, A CIDADE: O LUGAR-SAMBA EM UMA SÃO
PAULO
THIAGO RODRIGUES GONÇALVES1
Resumo
O presente artigo procura avançar no debate sobre a ―cidade possível‖ a partir da
consideração do saber experiencial na cidade e da permanência do passado enquanto
tempo vivido – a memória. Busca por uma compreensão dos lugares na cidade enquanto
centros de significado e de que maneira é possível olhar-pensando a cidade em termos de
planejamento e gestão. Propõe, acima de tudo, um desafio aos geógrafos na busca por
essa utopia.
Palavras-chave: Lugar-samba; saber experiencial; Geografia Humanista
Abstract
This paper aims to advance the debate about the "possible city", considering the experiential
knowledge in the city and the permanence of the past as lived time – memory. Search for an
understanding of the places in the city as centers of meaning and how is possible to lookthinking the city in terms of planning and management. Proposes, above all, a challenge to
geographers in the search for this utopia.
Keywords: Place-samba; experiential knowledge; Humanist Geography
1 – Introdução
O presente artigo se propõe a desdobrar alguns resultados obtidos ao longo
da produção do trabalho de dissertação intitulado ―O lugar-samba no Bixiga:
memória e identidade‖, apresentado para a avaliação do Programa de PósGraduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista (UNESP – Rio Claro)
em outubro de 2014. Esse trabalho emergiu de algumas preocupações e interesses
que precisam ser citados.
Em primeiro lugar, um interesse pelo samba paulista enquanto expressão
cultural costumeiramente ignorada (ou sumariamente desconhecida, no pior dos
casos) diante de outras formas de expressão associadas ao Estado de São Paulo.
Uma intenção de ouvir as vozes daqueles que encontram nessa encarnação do
samba um esteio norteador de práticas identitárias, afim de compreender a relação
que existe entre essa expressão cultural, seu papel identitário e os seus lugares de
prática – de existência.
1
- Mestre em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista
(UNESP–Rio Claro). E-mail de contato: [email protected].
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Num segundo momento, em função da própria história do samba paulista, tal
como ela é normalmente contada, pareceu importante buscar por uma abordagem
metodológica que privilegiasse a experiência dos lugares associados ao samba
paulista. No entanto, muitos desses lugares – conforme constatado – vão além da
experiência presente das práticas atuais. Em muitos casos, essa experiência está
imersa numa relação ontológica com o passado. O passado dos lugares, o
passado das práticas, o passado do próprio samba.
Porém, essa relação ontológica com o passado é tratada como um fato
inescapável na história do samba paulista. Ou seja, sempre que o samba paulista é
considerado, a atenção baseia-se na aparente extinção dessa expressão cultural,
restando pouca conexão com o presente. No trabalho, entretanto, ficou demonstrado
que este não é o caso, na medida em que o passado, na relação entre samba
paulista e seus lugares, permanece. E que essa permanência dá-se no par
ontológico memória-experiência.
A esse encontro entre memória, experiência e lugar chamo ―lugar-samba‖
(GONÇALVES, 2012a; 2012b; 2014a; 2014b).
Por fim, o lugar-samba no Bixiga emerge a partir da experiência que tem no
samba paulista o seu pivô, no lugar do bairro em que historicidades e
geograficidades assim compreendidas confluem: a quadra do Grêmio Recreativo
Cultural Escola de Samba Vai-Vai, testemunha da memória que permanece.
Considerando esses pontos, a pergunta que instiga é a que procura pelo
sentido da experiência da cidade que considere em um mesmo patamar aquilo
que é possível extrair do saber comum – a partir da experiência do lugar como dado
essencial para a reflexão – e a própria reflexão acadêmica, refratária, no mais das
vezes, às vozes tradicionalmente consideradas desimportantes.
Esse artigo, portanto, parte dos resultados obtidos no trabalho de pesquisa
citado e procura avançar no esforço de construção de uma ponte compreendida
como necessária entre a tarefa de reflexão e o saber experiencial.
2 – Lugar-samba: historicidades e geograficidades
O Bixiga não existe oficialmente. A divisão administrativa oficial da cidade de
São Paulo termina no nível dos distritos. O Bixiga é, então, um trecho relativamente
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pequeno do Distrito da Bela Vista, na região central da cidade. Convém lembrar, no
entanto que, antes de tudo, ―[…] o Bixiga é um estado de espírito‖ (LUCENA, 1983;
o negrito é meu).
A história do Bixiga estende-se por mais de três séculos de ocupação e
disputas entre proprietários de terras, comerciantes, quilombolas, imigrantes,
cortiços, pensões, ladeiras e vielas. O bairro, que hoje não existe formalmente, é
resultado de camadas e camadas de histórias sobrepostas. Há toda uma
arqueologia importante sobre o Bixiga produzida no âmbito acadêmico, já há
algumas décadas.
No mais das vezes, nos acostumamos a pensar o Bixiga como um bairro de
imigrantes. Um espaço de disputa e reafirmação de tradições herdadas e mantidas
por aqueles que precisaram encontrar-se consigo mesmos e com o novo lugar onde
passaram a viver. Não é diferente naquele bairro paulistano. As marcas da presença
imigrante estão ali.
Porém, a história – em suas várias camadas – vai além da presença
calabresa no Bixiga. Na medida em que aquele é, também, um bairro negro da
cidade de São Paulo. Um ―território negro‖, de acordo com Jesus (2010), Rolnik
(1986; 1989) e Simson (1991; 2007), que expressam de modo mais acertada a
condição do bairro, uma vez que atentam às disputas que de maneira geral
constituem os territórios.
A presença negra no Bixiga é atestada desde pelo menos o século XVIII,
quando nos ermos daquela área, então periférica, organizou-se uma comunidade
quilombola (CARRIL, 2006; KOGURAMA, 1999; ROLNIK, 1989). O relativo
isolamento da área, distante do núcleo central da cidade, associado às
características do terreno – um baixio alagável, formado pela confluência de pelo
menos três cursos d’água (os ribeirões Bexiga e Saracura e o rio Anhangabaú) –
permitiu que para ali concorressem as condições ideais para o refúgio e a
organização da população negra frente ao escravismo brasileiro. Desde então, e
apropriando-se de diversas estratégias de territorialização, a população negra
mantem sua presença no Bixiga.
No momento do loteamento da antiga Chácara do Bexiga – embrião
urbanizador do bairro atual –, em meados do século XIX, à população negra restou a
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ocupação de vilas e cortiços, que viriam a se tornar a principal marca das habitações
no bairro. A maneira como se dispuseram tais habitações respeitou em grande
medida as condições adversas do terreno, a ponto de Grünspum (1979, p. 27-28)
afirmar em seu relato que ―[…] o bairro não tinha becos ou meandros mas sim ruas
largas e bonitas, mesmo sem verde. O que tinha becos, vielas, subvielas, meandros,
nichos e escaninhos eram suas casas‖. Nessas habitações coletivas, em que várias
famílias dividiam um mesmo imóvel, um cômodo por família, era onde residia a
maioria da comunidade negra do Bixiga, mesmo antes da abolição do sistema
escravista no Brasil (ROLNIK, 1989).
É necessário, portanto, considerar a presença marcante e antiga do
componente negro na recuperação das historicidades do Bixiga. Caminhando para
além da imagem atualmente associada ao bairro (e mesmo à cidade de São Paulo2),
em que se festeja apenas a herança dos imigrantes europeus, essas historicidades,
atentas à resistência negra em São Paulo, contam uma história mais rica do trama
que subjaz no tecido da experiência cotidiana do bairro. As historicidades do Bixiga,
adensadas pelo papel decisivo da presença negra no bairro, se relacionam, num
âmbito mais amplo, com as historicidades do samba paulista – porque também uma
forma de expressão da cultura afro-brasileira, fundamentada na resistência e na luta
por representatividade.
A encarnação paulista do samba tem origens distintas das origens de seus
congêneres baiano e carioca. Muito próximo do jongo e das congadas, o samba
paulista surge como música de trabalho nas lavouras do interior do estado
(MARCOS, 1977). Os instrumentos tradicionalmente associados ao samba paulista
o aproximam de formas mais rurais de expressão da cultura afro-brasileira: o bumbo
– ou zabumba – e o tambú – instrumento construído com o tronco oco de uma
árvore – dão o compasso, marcado pelo tom grave e profundo (MANZATTI, 2005;
CUÍCA; DOMINGUES, 2009). Em função dessas particularidades sonoras e
rítmicas, o samba paulista também é conhecido como samba de bumbo, sambalenço, samba de umbigada ou, simplesmente, batuque.
2
Ver, p. ex., AZEVEDO, 2012; 2014.
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É possível afirmar que a cidade de Pirapora do Bom Jesus (SP) foi a principal
vitrine do samba paulista (CUÍCA; DOMINGUES, 2009). Ainda que o samba fosse
praticado em várias regiões do estado, era em Pirapora, a cada mês de agosto, que
os grupos de ―sambeiros‖ (SIMSON, 2007) se encontravam para os festejos em
louvor ao Bom Jesus.
Os sambeiros eram romeiros pobres, em sua imensa maioria negros, que se
hospedavam em alguns barracões, distantes alguns quilômetros do santuário
localizado às margens do rio Tietê. Nesses barracões, após as obrigações
religiosas, o samba acontecia.
Essa função dos barracões de Pirapora do Bom Jesus, e mesmo das festas
religiosas que ano após ano congregavam na pequena cidade um grande número de
sambeiros, são de fundamental importância para compreender a experiência
daqueles que, hoje, no Bixiga, identificam-se com a música e com o lugar de sua
prática.
O encontro de sambeiros em Pirapora do Bom Jesus teve seu auge entre o
final do século XIX e princípios do século XX, ainda que o descoberta da imagem
que motivou a criação do santuário date do final do século XVIII. Após esse apogeu,
em função de determinações oriundas do alto clero da Igreja Católica em Roma
(PETERS, 2012), o culto ao Bom Jesus perde espaço para a devoção em nome de
Nossa Senhora da Conceição Aparecida, tornada, por um lado, a imagem sagrada
do povo mestiço do Brasil e, por outro, uma ferramenta da Igreja para a manutenção
de fiéis em face do novo regime laico instalado pela República Velha, recémproclamada (PETERS, 2012, p. 8).
Os festejos em Pirapora contrariavam essas intenções do clero católico a tal
ponto que logo no início do século XX, alegando questões de segurança, a Igreja
proíbe a utilização dos barracões pelos romeiros. Se por um lado a intenção clerical
de alteração do foco de devoção foi conquistado, por outro, o fechamento da
hospedagem acessível pôs um fim ao encontro dos sambeiros naquela cidade.
O que se pretende com esse rápido mergulho em certa política territorial
eclesiástica, no entanto, é ressaltar o papel basilar do fim do encontro de Pirapora
como lugar de reunião para o samba. Em função das recomendações e intenções
da Igreja Católica, a festa de Pirapora deixa de ser a vitrine do samba paulista e sua
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relevância migra para o passado, compondo a memória daqueles que por lá
passaram, daqueles que relembram os encontros e, por fim, do próprio lugar.
Nesse mesmo movimento, convém lembrar que ―samba‖ deriva de ―semba‖
ou ―massemba‖, termos originários do mbundo e do kikongo, línguas faladas pelos
povos bantos do Congo e de Angola, na África. Ademais, esses termos referem-se,
ao mesmo tempo, a um ritmo musical, a um conjunto de estilos de dança (as
umbigadas) e, especialmente, ao ato de reunião em um lugar para a prática da
música e da dança.
É possível, portanto, depreender da própria origem do termo samba a
importância da reunião para a afirmação de determinadas práticas de caráter
identitário.
Mário de Andrade, em 1933, testemunhou alguns momentos da reunião dos
sambeiros em Pirapora. Como resultado desse encontro, nos legou um dos nomes
pelos quais o samba paulista é conhecido – ―samba rural‖ – e uma vívida descrição
da festa:
No grupo em consulta, um solista propõe um texto-melodia. Não há rito
especial nesta proposta. O solista canta, canta no geral bastante incerto,
improvisando. O seu canto, na infinita maioria das vezes, é uma quadra ou
um dístico. O coro responde. O solista canta de novo. O coro torna a
responder. E assim, aos poucos, desta dialogação, vai se fixando um textomelodia qualquer. O bumbo está bem atento. Quando percebe que a coisa
pegou e o grupo, memorizando com facilidade o que lhe propôs o solista,
responde unânime e com entusiasmo, dá uma batida forte e entra no ritmo
em que estão cantando. Imediatamente à batida mandona do bumbo, os
outros instrumentos começam tocando também, e a dança principia.
(ANDRADE apud CARNEIRO, 2005)
Porém, em 1936, por ordem da Igreja, a reunião em Pirapora fica proibida e o
panorama do samba paulista se altera.
Edward Relph (2012) afirma que lugar como reunião é um dos possíveis
aspectos de lugar, e lembra que ―lugar […] tem em si o conceito de especificidade e
abertura, que acontece em virtude da reunião‖ (RELPH, 2012, p. 22). A
especificidade e a abertura de que fala Relph corresponde à possibilidade de
agência do lugar no processo de construção identitária de grupos e indivíduos.
Reunir-se significa estar neste lugar, que, em função de sua circunstancialidade,
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especificidade
e
abertura,
permite
esta
maneira
de
ser-e-estar-no-mundo
(MARANDOLA JR., 2014; RELPH, 2012).
Quando, então, a reunião em Pirapora desaparece e o que sobrevive é a
memória da reunião, o passado compreendido como um tempo passado vivido –
porque lembrado – permanece na experiência daqueles que tinham ali uma âncora
geográfica de suas identidades. Os sambeiros, a quem se proibiu Pirapora,
procuraram manter vivo exatamente esse tempo passado que permanece, ainda que
em outros lugares. A esses lugares, de Pirapora aos mais recentes, deu-se a
denominação ―lugares-samba‖.
Os lugares-samba são compreendidos como ―[…] condição de existência em
função da reunião [para o samba] – [que] existem porque existe (ou resiste) a
reunião e, dessa forma, unem geografia, identidade e memória‖ (GONÇALVES,
2014b, p. 24).
A memória concorre para a significação dos lugares-samba. A experiência
atual desses lugares é enriquecida pelo tempo passado que permanece como traço
essencial da relação estabelecida entre indivíduos, grupos sociais e o mundo. Tratase, então, de outra condição que requer a atenção da Geografia que se preocupe,
acima de tudo, com a geografia em ato, a ―geograficidade‖ dardeliana (DARDEL,
2011). E então, conforme desenvolvido no trabalho de dissertação, ―[…] propomos,
junto a Lowenthal (1975; 1985) e Bachelard (2007), [que] a experiência do lugar não
é apenas a experiência do espaço geográfico dardeliano, mas é, também,
qualificada pela experiência do tempo intuído da memória, que traz em si as
marcas do passado, não como o tempo morto da história, mas como o tempo vivido
do sentido de passado‖ (GONÇALVES, 2014b, p. 24-25; o grifo é meu).
É no Bixiga – e não por acaso – que se encontra a sede social, a quadra do
Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Vai-Vai. Nas várzeas do Saracura se
organizou, no princípio do século XX, um cordão carnavalesco que tinha como
características fundamentais as tradições do samba de bumbo. Muitos de seus
participantes eram romeiros assíduos de Pirapora. O Cordão do Vai-Vai foi, até 1972
(ano em que oficialmente se converte em escola de samba), uma reminiscência
fincada no tempo passado vivido do lugar-samba em Pirapora do Bom Jesus. E é,
hoje, com todas as transformações pelas quais passou, uma referência importante
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não apenas no contexto do bairro do Bixiga, mas para toda a comunidade daqueles
que enxergam no samba um fator identitário decisivo.
A quadra do Vai-Vai, enquanto lugar-samba por excelência no Bixiga,
congrega à fruição da festa e do encontro, a memória, que pode ser compreendida
como um traço essencial que permanece na experiência daquele lugar e, por
extensão, da própria cidade.
3 – Do samba à cidade: geografias da experiência
A experiência da cidade está intimamente associada à imagem da cidade que
construímos social e coletivamente. A maneira como nos relacionamos com a ideia
que temos da cidade deriva daquilo que é nosso conhecimento sobre a cidade ou
aquilo que imaginamos sobre a cidade. Os lugares de nossa experiência – aqueles
que compõem a colcha de retalhos de lugares topofílicos – são a expressão do
relacionamento íntimo entre imagem e cidade.
Caminhar pelo caminho sempre trilhado traz segurança existencial. Sair
desse caminho desde sempre conhecido exige um amálgama de atitudes individuais
(de curiosidade, de necessidade, de obrigação, etc.) e de conhecimento produzido
tanto individual quanto coletivamente. Ou seja, a descoberta de novos caminhos na
cidade está associada ao próprio caminhar, que emana de vontades individuais, mas
que são enriquecidas pelas informações coletadas pela comunidade à qual
pertencem as pessoas.
Que significa pensar a cidade a partir da perspectiva da experiência? Essa
pergunta, que é pergunta fundante na busca pelo traço essencial da experiência da
cidade, vai também procurar pela cidade possível.
Como pensar a partir do Bixiga uma São Paulo? Note-se: não ―São Paulo‖,
enquanto entidade geográfica abstrata – um corpo político-administrativo –, nem
―outra São Paulo‖, enquanto alternativa-miragem em um aparente deserto em que
tudo o que está é limitado ou limitante. Mas ―uma São Paulo‖, expressão da cidade
enquanto experiência individual e coletivamente significada. A cidade enquanto a
própria imagem de si. Como considerar essa ―uma São Paulo‖ na relação entre
experiência e memória a partir do lugar-samba no Bixiga para a reflexão em direção
a uma cidade que se humaniza naquilo que o humano lhe confere?
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Uma das formas de pensar as questões propostas é através da consideração
dos problemas colocados pela visibilidade e pela identidade dos grupos sociais, no
contexto de cidades. Visibilidade e identidade remetem, enquanto termos de busca,
ao par ontológico experiência e memória.
Mobilizar a ideia de visibilidade pressupõe estar atento, diante da imagem da
cidade, às vozes que comumente estão à margem. ―Estar à margem‖ pode ser
compreendido de algumas maneiras: (i) uma sinalização de posição relativa, no
interior de uma sociedade segregada e segregadora, que determina posições e
relega vozes a um lugar de silêncio por vezes institucionalmente produzido; (ii) pode
significar não estar sujeito de maneira direta a determinações consideradas normais
por imposições e acordos sociais.
Qual é a imagem de cidade que emerge quando a atenção recai sobre as
vozes à margem? Quais as possibilidades de cidade aparecem se as vozes à
margem deixam de ser ignoradas? Essas questões aparecem se se considera a
cidade a partir da experiência de cidade, que não é a mesma para todos os
indivíduos ou para todas as comunidades urbanas.
Nesse sentido, aquilo que a quadra do Vai-Vai representa no Bixiga pode
servir como uma forma de compreensão da cidade que se funda na experiência
urbana visceral. Imaginar a cidade a partir da experiência dessa cidade por aqueles
que vivem essa cidade numa constância de disputa por visibilidade, pode permitir
um novo olhar sobre elementos da administração e planejamento urbanos.
Que seria uma cidade planejada e gerida, em primeiro lugar, em função da
experiência? Cabe ressaltar a ambiguidade entre a urgência com que as ações do
poder público ocorrem – uma vez que são pensadas como respostas a
necessidades mapeadas de uma cidade-entidade – e aquilo que poderia acontecer
caso os instrumentos de participação política privilegiassem a proximidade e a
intimidade daqueles que experienciam a cidade. O futuro aparente da quadra do VaiVai é um exemplo dessa cidade que não é considerada a partir da experiência.
A quadra, que representa também a luta por visibilidade de uma comunidade,
está no caminho da expansão do metrô de São Paulo. Uma nova estação de uma
nova linha será construída exatamente no lugar da quadra. Em função disso,
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representantes do poder público e da escola de samba têm discutido um novo
endereço para o Vai-Vai.
No movimento que expande as possibilidades de circulação na cidade e em
alguma medida a democratiza, um lugar de reiterada importância história, identitária
e, mesmo, política é arrasado. Será esta, de fato, a única possibilidade de
compreensão da experiência urbana? Ou será possível conjugar esforços de
democratização da cidade com os vários – e importantes – significados de seus
lugares?
A presença da quadra do Vai-Vai no Bixiga tem um papel fundamental no
processo de formação identitária da comunidade que ali se reúne para o samba. Um
processo que é um ato individual, na medida em que é possível singularizar as
relações estabelecidas entre as pessoas e o lugar. Porém, ao considerar esse papel
do Vai-Vai em processos individuais é preciso relembrar a proposta de Relph (1976),
quando fala sobre o ―comum-pertencer‖ heideggeriano para pensar uma identidade
que é, antes de tudo, fluida. Uma identidade construída em bases experienciais e
geográficas e que emerge
[…] do pertencimento a uma comunidade (daí a identidade com lugar
emergindo na experiência) e a partir da possibilidade de diferenciação do
ser perante o mundo […], permitindo o aparecimento da identidade de lugar
(GONÇALVES, 2014b, p. 119-120).
A quadra do Vai-Vai, vista individualmente no contexto da metrópole ―[…]
alarga-se a tal ponto, transbordando suas paredes limitadoras, para configurar-se
como centro de significados, memórias, vivências, identidades e esperanças‖
(GONÇALVES, 2014b, p. 121).
O que se propõe aqui é um tratamento mais cuidadoso dos lugares da cidade.
Um cuidado que verdadeiramente considere a amplidão de sentidos de existir que
se enraízam em cada lugar. Reconhecer a cidade – qualquer cidade – como o
acontecer essencial de existir na cidade. Em certo sentido, significa humanizar a
relação entre cidadãos e cidade. Trazer à tona tesouros escondidos na trama
complexa do cotidiano. Uma cidade reaproximada de si mesma – a partir da
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experiência e da compreensão radical dos lugares enquanto centros poderosos de
significados (TUAN, 2013).
Fossem a Prefeitura de São Paulo ou o Governo do Estado ouvir
verdadeiramente os frequentadores do Vai-Vai, teriam planejado para aquele exato
lugar uma nova estação de metrô? Estivesse o planejamento da cidade ancorado no
saber experiencial, não teríamos cidades mais humanas, tornadas eminentemente
casa, habitação – lugar de segurança e conforto?
Que cidade temos construído? A que imperativos temos respondido,
enquanto sociedade? A cidade impessoal e ―eficiente‖ precisa dar lugar a um projeto
civilizatório que recupere a cidade como epítome da convivência e do encontro.
Encontro entre distintas identidades e distintas realidades.
Olhar o Vai-Vai no Bixiga, inserido no contexto de uma metrópole autofágica,
que via de regra se destrói para abrir caminho para a próxima destruição, significa
considerar outras formas de relacionamento das pessoas com seus lugares e, a
partir disso, desse reconhecimento, é possível almejar uma cidade possível – uma
São Paulo.
O desafio está posto. Algumas respostas já se vislumbram no horizonte. O
tempo de olhar-pensando para a trama que subjaz ao que de óbvio se apresenta
como inevitável e imóvel parece ter chegado.
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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO
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