UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS MARIA EUGENIA TROMBINI O PROJETO DE RECONSTRUÇÃO PÓS-CONFLITO DA ONU E A VERSÃO DA PAZ DEMOCRÁTICA NO HAITI EM TIMOR LESTE E SERRA LEOA CURITIBA 2014 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS MARIA EUGENIA TROMBINI O PROJETO DE RECONSTRUÇÃO PÓS-CONFLITO DA ONU E A VERSÃO DA PAZ DEMOCRÁTICA NO HAITI EM TIMOR LESTE E SERRA LEOA Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, para conclusão do curso e obtenção do grau de Bacharel em Ciência Política. Orientador: Profº. Dr. Alexsandro Eugenio Pereira CURITIBA 2014 RESUMO O objetivo do presente trabalho é discutir a teoria da paz democrática aplicada às operações de paz a partir de três estudos de caso. A hipótese da correspondência entre democratização e ausência de violência no pós conflito será investigada no Haiti, em Serra Leoa e no Timor Leste, tomando como lapso temporal o período entre 2000 e 2012. A análise dos dados será feita em duas etapas, uma qualitativa e outra quantitativa, tomando como fonte o banco de dados Polity IV e os direitos à integridade física do CIRI. Os resultados obtidos confirmam a relação entre paz e democracia em Serra Leoa e no Haiti. No Timor-Leste há relação verificada na análise subjetiva, porém limitações nos dados não permitem inferir a correspondência entre as variáveis. Palavras-Chave: Peacebuilding, Democratização, Haiti, Timor Leste, Serra Leoa SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 7 1.1. ANÁLISE COMPARATIVA ............................................................................................. 9 1.2. METODOLOGIA ....................................................................................................... 15 2. A TRANSIÇÃO PARA A DEMOCRACIA E A PAZ ................................................. 18 2.1. DEMOCRACIA E DEMOCRATIZAÇÃO ......................................................................... 18 2.2. PARTICIPAÇÃO DOS ATORES: A ADERÊNCIA DA ELITE POLÍTICA COMO REQUISITO ........ 20 3. AS FUNDAÇÕES INSTITUCIONAIS E O CONFLITO ............................................ 24 3.1. FRACASSO ESTATAL: O DESENVOLVIMENTO COMO PRÉ-REQUISITO? .......................... 24 3.2. DO PODER À AUTORIDADE: LEGITIMIDADE DAS INSTITUIÇÕES..................................... 26 3.3. ACCOUNTABILITY COMO FREIO À CONFUSÃO ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO .............. 28 4. AS OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU ....................................................................... 31 4.1. PEACEKEEPING COMO INSTRUMENTO DA MANUTENÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL ............................................................................................................. 31 4.2. GALTUNG E A PAZ “DE BAIXO PARA CIMA“ ................................................................ 32 4.3. OPERAÇÕES DE PAZ PÓS-VESTFALIANAS: A RECONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA .............. 34 4.4. BRAHIMI REPORT: A IMPOSIÇÃO DA PAZ VIA CAPÍTULO VII DA CARTA DA ONU ........... 36 5. DEBILIDADES DA PAZ LIBERAL .......................................................................... 38 5.1. DEMOCRATIZAÇÃO E RECORRÊNCIA DE GUERRA ...................................................... 38 5.2. REVISIONISTAS E O MODELO HÍBRIDO LOCAL-LIBERAL ............................................... 40 5.3. CONTRATO SOCIAL................................................................................................ 42 6. HAITI ........................................................................................................................ 45 6.1. CONTEXTO HISTÓRICO .......................................................................................... 45 6.2. CRISE DE LEGITIMIDADE ........................................................................................ 48 6.3. MINUSTAH ........................................................................................................ 52 6.4. O TERREMOTO, O CÓLERA E O VOTO ....................................................................... 56 7. SERRA-LEOA ......................................................................................................... 60 7.1. CONTEXTO HISTÓRICO .......................................................................................... 60 7.2. GUERRA CIVIL....................................................................................................... 62 7.3. UNAMSIL ........................................................................................................... 64 7.4. A TRAJETÓRIA DEMOCRÁTICA E A POLARIZAÇÃO ...................................................... 71 8. TIMOR LESTE ......................................................................................................... 76 8.1. CONTEXTO HISTÓRICO .......................................................................................... 76 8.2. ADMINISTRAÇÃO ONUSIANA ................................................................................... 77 8.3. RDTL .................................................................................................................. 80 8.4. A PERSISTÊNCIA DAS CAUSAS ORGINÁRIAS E A CRISE ............................................... 84 9. RESULTADOS ........................................................................................................ 92 10. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 99 LISTA DE SIGLAS AFRC - Armed Forces Revolutionary Council AMP - Aliança para Maioria Parlamentar APODETI - Associação Popular Democrática do Timor APC - All People’s Congress ASDT - Associação Social Democrata Timorense CEP - Conselho Eleitoral Provisório CEN - Conselho Eleitoral Nacional CI - Comunidade internacional CIRI- Cingranelli-Richards Human Rights Data Project CNE - Conselho Nacional Eleitoral CNRT - Conselho Nacional de Resistência Timorense CNRT’ - Congresso Nacional da Reconstrução Timorense CSNU - Conselho de Segurança das Nações Unidas DDR - Disarmament, demobilization and reintegration DPKO - Department of Peacekeeping Operations ECOMOG - Economic Community of West African States Monitoring Group ECOWAS - Economic Community of West African States EO - Executive Outcomes FAH - Forças Armadas Haitianas FALINTIL - Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor Leste F-FDTL - Forças de Defesa de Timor Leste FRETILIN - Frente Revolucionária de Timor Leste Independente ICG - International Crisis Group INTERFET - International Force in East Timor LURD - Liberians United for Reconciliation and Democracy MICIVIH - Mission Civile Internationale en Haïti MIPONUH - United Nations Civilian Police Mission in Haiti MICAH - International Civilian Support Mission in Haiti MINUSTAH - Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti OEA - Organização dos Estados Americanos ONU - Organização das Nações Unidas OTAN - Organização do Tratado do Atlântico Norte PBC - Peacebuilding Commission PIRI - Physical Integrity Rights Index PNH - Polícia Nacional Haitiana PNTL - Polícia Nacional de Timor-Leste PNUD - Programa de Desenvolvimentos das Nações Unidas RDTL - República Democrática de Timor-Leste SLPP - Partido do Povo de Serra Leoa SGNU - Secretário-Geral das Nações Unidas UDT - União Democrática Timorense UNAMSIL - United Nations Mission in Sierra Leone UNAMET - United Nations Mission in East Timor UNEF - United Nations Emergency Front UNIOSIL - UN Integrated Office in Sierra Leone UNIPSIL - United Nations Integrated Peacebuilding Office in Sierra Leone UNMIH - United Nations Mission in Haiti UNMISET - United Nations Mission of Support in East Timor UNMIT - UN Integrated Mission in Timor-Leste UNOMSIL - UN Mission of Observers in Sierra Leone UNOTIL - United Nations Office in East Timor UNSMIH - United Nations Support Mission in Haiti UNTAET - United Nations Transitional Administration in East Timor UNTMIH - United Nations Transition Mission in Haiti WGI - World Governance Indicator 8 1. INTRODUÇÃO O tema da presente pesquisa é a saída de conflitos civis, marcados pela violência intraestatal, e a implantação de segurança a longo prazo, também entendida como paz durável. A partir da redefinição das operações de paz, o pacote proposto pelos atores internacionais a fim de solucionar os assuntos domésticos passou a incluir o princípio democrático como norma. Desse modo, a atuação do Conselho de Segurança na proteção da segurança internacional aplicou o conceito de peacebuilding tencionando reduzir as fragilidades estatais nos conflitos internos. O problema teórico que se apresenta é identificar como a democracia vem sendo apresentada no modelo “onusiano” de construção da paz a partir de uma análise de estudos de caso. Considerando que o progresso do conflito para a paz não é linear, como se deslocar da incapacidade estatal para um nível maior de institucionalização do Estado capaz de promover estabilidade política e garantir segurança a longo prazo? O interesse de pesquisar tal tema se dá em virtude da demanda de analistas da área por esclarecimentos que contribuam para o tema da paz liberal. (BESLEY, 2009, THOMS, 2010, PEVEHOUSE, 2002) Sabendo-se que o objeto dessa investigação é recente e sofreu alterações após o fim da Segunda Guerra, e à medida que as Nações Unidas estabelecem o mandato de uma nova missão, é relevante olhar para o atual modelo empregado e suas implicações. A justificativa se funda na ordem intelectual, enquanto tentativa de investigar as fundações institucionais necessárias para uma democratização pós-conflito bem sucedida, articulando a agenda de peacebuilding com aquela de democratização. (CALL, 2003, p.236) Também há justificativa de ordem subjetiva, em razão de a pesquisadora conviver com duas perspectivas, por vezes complementares e por outras antagônicas: uma do âmbito jurídico e outra do da ciência política. Pretendo contribuir na intersecção entre as duas lógicas explicativas, trazendo a centralidade do Estado e a genealogia das instituições para onde faltarem, sem negligenciar o potencial reformador das políticas trazidas pela comunidade internacional, portanto posteriores ao conflito. A opção pela análise comparativa, englobando experiências de três casos distintos, justifica-se à luz da lacuna na literatura de comparações entre políticas de 7 construção da paz. O tema conta com pesquisas de casos individuais, porém faltam estudos estruturados de comparações cross-case capazes de oferecer conclusões genéricas e relevantes em termos de políticas de transição. (THOMS, 2010, p.7) Além disso, estudos circunscritos a países de uma mesma região, apesar de controlarem certas variáveis relevantes para o processo de democratização, tem aplicabilidade reduzida às demais regiões.1 O objetivo da presente pesquisa é investigar em que medida as operações de peacebuilding implementam a democracia e qual o efeito disso na estabilidade política. Compreender se a paz democrática da retórica do peacebuilding promove a paz em concreto e evita a retomada da violência. Especificamente, responder em que medida a promoção/estímulo à democracia contribui para a estabilidade politica em Timor Leste, Haiti e Serra Leoa? A hipótese a ser testada é que a democracia promove estabilidade política. Os períodos de ausência de violência devem coincidir com aqueles de diminuição no caráter autocrático do regime. Quanto mais inclusivas forem as reformas implantadas, mais sucesso terá a democracia. Se as elites políticas e a população perceberem como legítimas as decisões, então a paz se sustentará. Sendo a natureza das reformas voltada à participação, ou seja “de baixo para cima” (RICHMOND, 2010, p.20, CALL, 2003, p.239) o processo de paz terá melhores resultados. Espera-se que a operação que dê maior autonomia aos locais, criando ownership e flexibilizando a paz liberal terá resultados positivos. Em contrapartida, medidas deliberadas pela elite dominante e impostas à população tenderão a mitigar a democratização. Caso o modelo democrático liberal seja forçado pelos agentes internacionais, (RICHMOND, 2010, CALL, 2003, TADJBAKHSH, 2010, BELLAMY, 2004, PUREZA, 2011) reforçando o pressuposto da corrupção e inibindo o aumento da capacidade estatal, a paz tenderá a não se sustentar após a saída dos mesmos. O principal motivo para tanto é que os atores domésticos que sofreram as consequências da guerra civil merecem ser ouvidos se o projeto democrático pretende ser eficaz; ou seja, a legitimidade do contrato social depende de como a população percebe as instituições. 1 THOMS, 2010, p. 8. Os autores apresentam como exemplo o caso Latino Americano que conta com vários estudos sobre transição de autoritarismo para democracia, porém a aplicabilidade dos resultados é limitada para casos de conflito armado interno tais quais Serra Leoa e Uganda. 8 1.1. ANÁLISE COMPARATIVA O presente trabalho vai investigar a estabilidade política em sua relação com a democracia a partir de uma análise comparativa entre operações de paz. Os casos selecionados são: Serra Leoa, Timor Leste e Haiti, três cenários nos quais o mandato das operações de paz estabelecido pelo CSNU foi enquadrado no Capítulo VII da Carta das Nações Unidas.2 Apesar do período analisado contemplar uma pluralidade de operações em cada país, a referência ao Capítulo VII diz respeito à UNAMSIL, United Nations Mission in Sierra Leone, nos termos do mandato estabelecido pela Resolução 1289 de 2000, a UNTAET, United Nations Transitional Administration in East Timor, estabelecida pela Resolução 1272 de 1999 e a UNMIH3, United Nations Mission in Haiti, Resolução 940 de 19944 e, posteriormente, a MINUSTAH, Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, Resolução 1542 de 2004. Inclusive, a razão de operações estabelecidas fora do Capítulo VII se deve à tentativa de aplicar medidas pacíficas, e só então, na hipótese de não lograrem êxito, recorrer ao instrumento que independe do consentimento do país de destino. Esse foi o caso da UNAMET em Timor Leste, da MICIVIH no Haiti e da UNOMSIL em Serra Leoa.5 A atuação da comunidade internacional nos três casos envolveu o fortalecimento das instituições e a realização de eleições contou com o auxílio das Nações Unidas. Tratam-se de três casos de operações multidimensionais, da terceira geração, segundo a classificação de Oliver Richmond. (RICHMOND, 2010, p.22) Virginia Fortna define como missão multidimensional aquela que suplementa forças de peacekeeping tradicional com um componente civil para monitorar eleições, treinar e monitorar a polícia, monitorar os direitos humanos e, por vezes, administrar 2 "Ações relativas aos tratados de paz, rupturas da paz e atos de agressão": As decisões inspiradas nos dispositivos do Capítulo VII se distinguem das demais decisões do CSNU por não requererem o consentimento da parte às quais se aplicam (PATRIOTA, p.25) 3 É a Resolução 867 de 23 de setembro de 1993 que aprova as recomendações do SGNU para o estabelecimento de uma Missão das Nações Unidas no Haiti (UNMIH), porém sem fazer referência ao Capítulo VII 4 As referências ao Capítulo VII vinham sendo feitas desde antes, por exemplo na Resolução 875 de outubro de 1993, mas é a Resolução 940 que menciona “todos os meios necessários” para restaurar a legitimidade institucional no país. 5 Também a UNAMSIL entre outubro de 1999 e janeiro de 2000, portanto antes da Resolução 1289, tinha mandato de peacekeeping tradicional. 9 temporariamente o país. (FORTNA, 2004, p.270) No Haiti, ainda que a atuação internacional tenha-se iniciado em 1993, as eleições de 2000 foram particularmente importantes e o próprio governo convidou a mediação da OEA e da ONU. A crise de legitimidade iniciada após essas eleições é fundamental na explicação da instabilidade dos anos seguintes e da pressão que o presidente Aristide sofreu, culminando nos eventos de 2004 e na criação da MINUSTAH. No que toca a UNTAET, seu mandato visava preparar Timor Leste para a independência. Por isso a missão é encarregada de realizar eleições parlamentares e presidenciais, que ocorrem em 2002. Após o Acordo de Paz de Lomé, a UNAMSIL foi estabelecida para assegurar sua observação e oferecer apoio para as eleições, que ocorreram em 2002. Ainda sobre o processo eleitoral, o voto é facultativo nos três países. A Orientação da ONU sobre Peacebuilding refere-se à retomada da violência após as missões onusianas nos casos timorense e haitiano para justificar a emergência de operações multidimensionais e a necessidade de estratégias de retirada bem planejadas para evitar o retorno do conflito e estabelecer as fundações da paz sustentável.6 Apesar de Serra Leoa não ter sido mencionada nesse ponto específico, também lá a primeira missão da ONU, a UNOMSIL, teve de ser evacuada após retomada da violência em 1999.7 Desse modo, justifica-se a escolha desses três casos paradigmáticos na tentativa de investigar a relação entre estabilidade política e o modelo de democracia promovido pelas operações multidimensionais. Cumpre destacar que o mandato das operações e sua execução reflete uma percepção ventilada pela CI, a de que os países receptores de missão multidimensional, em particular os aqui selecionados, eram terra nullius8 antes da chegada da ajuda onusiana. Assim, as operações seriam dirigidas a Estados vazios com o objetivo de state-building em sentido literal, ignorando a ossatura estatal anterior ao início da crise. Em paralelo a isso, as operações de peacebuilding em contextos 6 UNITED NATIONS, “UN Peacebuilding: An Orientation”, Peacebuilding Support Office, Setembro 2010, p.45 7 UNITED NATIONS, UNOMSIL, Background, Department of Public Information, 2000. Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unomsil/UnomsilB.htm Acesso em 13/11/2014 8 Terra nullius era a doutrina aplicada quando os ingleses chegaram na Australia e consideraram o terreno vazio, para que a terra fosse apropriada pela Coroa. Tal argumento anulava os direitos que os povos locais poderiam invocar sobre a posse da terra. (TIDWELL, 2004, p.58) 10 recém saídos da violência como os selecionados parecem atribuir pouca importância à disputa por poder entre as elites políticas que ocorre no interior do Estado ainda mal formado. A saber: o Haiti teve a primeira experiência democrática em 1991 com Aristide e em seguida, em 1993, a OEA e a ONU passaram a intervir; o Estado timorense foi inaugurado com ajuda da ONU e as divisões políticas ressurgiriam no pósindependência sob a forma de conflito. Em Serra Leoa apesar da criação da UNAMSIL a violência foi retomada em 2000 em reação do RUF contra Foday Sankoh. (KEEN, 2005, p.265) Em todos os três casos, o comprometimento dos atores à paz é questionável e merece ser investigado. O que sugere um distanciamento entre o discurso segundo o qual as origens do conflito político são adereçadas pelas operações de peacebuilding, e a maneira que elas são levadas à cabo. Ainda sobre a seleção dos casos, o Haiti é conhecido como “cemitério de projetos” e apontado como exemplo de fracasso do modelo das operações de construção da paz pós-conflito. (CAREY, 2010, p. 235, CALL, 2008, p. 173) Sobre os outros dois países escolhidos, Alex Bellamy sugere que apesar do estudo da RAND, think tank responsável pelas políticas de defesa norte-americanas9, considerar o Timor Leste e Serra Leoa exemplos de operações da ONU bem sucedidas, uma análise mais rigorosa poderá classifica-las como fracassos. (BELLAMY, 2010, p.195) Também Cook e Call mencionam os três casos como exemplos de países que receberam operações de peacekeeping entre 1988 e 2002 e eram classificados como regime autoritário em 2002. (CALL, 2003, p.234) Ainda, o índice de fragilidade estatal, antigo índice de estado falido, considera todos os três países com valores preocupantes em 2012.10 Sendo o máximo de fragilidade 120, o Haiti apareceu em 7º lugar com 104.9, seguido pelo Timor Leste em 27º com 92.7 e por último Serra Leoa em 31º com 90.4.11 Por essa razão uma análise da versão da paz liberal implementada nos três países pode acrescentar ao debate. Outro ponto que aproxima os casos selecionados é o índice de 9 Para mais informações consultar ABELLA, Alex, Soldiers of Reason: The Rand Corporation and the Rise of the American Empire, Harcourt, Orlando, 10 MARSHALL, Monty, COLE, Benjamin, State-Fragility Index and Matrix 2013, Center for Systemic Peace 11 2012 The Fund for Peace, Washington, Disponível em: http://ffp.statesindex.org/rankings-2012-sortable Acesso em 24/11/2014 11 desenvolvimento humano, elaborado pelo Programa de Desenvolvimentos das Nações Unidas no início da década de 1990 baseado em três variáveis: renda, expectativa de vida e realização educacional. A literatura reputa o IDH como um indicador mais preciso do desenvolvimento do que o PIB per capita. (LIJPHART, 2003, p.80) Sabendo-se que o desenvolvimento está fortemente relacionado a experiência democrática, como será discutido pelos autores da Economia Política a seguir, é preciso controlar essa variável para que a análise comparativa possa ser realizada. No ano de 2000, data a partir da qual a estabilidade política será avaliada, os três países apresentavam índices de desenvolvimento humano baixo nos termos do PNUD, ou seja, próximos de 0.403 (Timor Leste 0.465, Haiti 0.433 e Serra Leoa 0.297) Em 2012 o ranking era diferente, o Timor Leste aparecia com 0.616 em 129o, o Haiti com 0.469 em 168o, e Serra Leoa com 0.368 em 184o, sendo 0.484 o critério para o países menos desenvolvidos. Ainda que Timor Leste esteja com IDH médio (próximo de 0.612), os três países apresentam índices abaixo da média mundial, de 0,700 em 2012.12 Outro ponto de convergência é a parcela da população abaixo dos 15 anos. No ano de 2000, prazo inicial para a construção da paz na presente investigação, Timor Leste tinha 50% de sua população abaixo dos 15 anos, Serra Leoa tinha 43% e o Haiti 40%.13 Tal fator é relevante pois populações jovens são mais afetadas pelo analfabetismo e desemprego, sendo facilmente recrutadas por grupos rebeldes. (FEARON, 2001, p.84) O sucesso de grupos armados tende a persistir no pós-conflito a menos que o Estado seja capaz de oferecer aos jovens, em particular, algo diferente da guerra. Assim, o número de jovens representa um “dividendo demográfico” que pode aumentar a força de trabalho do país e auxiliar na transição, mas quando mal aproveitado compromete o processo de construção da paz. (UNITED NATIONS POPULATION FUND, 2010, p.49) Por fim, um último ponto que merece destaque é que os países selecionados são ex-colônias, nos quais a participação ativa de seus ex-colonizadores nas operações 12 UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME, Human Development Reports, Table 2: Human Development Index trends, 1980-2013. Disponível em: http://hdr.undp.org/en/content/table-2-humandevelopment-index-trends-1980-2013 Acesso em 12/10/14 13 Em 2012, ao final do marco aqui estabelecido, os dados eram os seguintes: Timor-Leste - 46% da população entre 0 e 14 anos; Serra Leoa - 42%; e Haiti – 35%. 12 de paz é um padrão- Portugal no Timor Leste, França no Haiti e Reino Unido em Serra Leoa. A escolha de Serra Leoa (UNAMSIL) se explica pois o fracasso estatal na região africana guarda relação com a reverberação que os conflitos internos tem nos vizinhos. (TULL, 2008, p.110) A natureza de extrapolar fronteiras (cross-border) das milícias, como entre Liberia e Serra Leoa, torna as guerras civis ameaças regionais. Também, porque em seu auge a UNAMSIL foi a maior missão de peacekeeping já coordenada pela ONU14 e a operação mais cara, custando aproximadamente U$700 milhões por ano.(KEEN, 2005, p.272) As seguintes missões ocorreram em Serra Leoa: QUADRO 1 - OPERAÇÕES DE PAZ EM SERRA LEOA Missão Resolução Duração UNOMSIL S/RES/1181 Julho 1998- Janeiro 1999 UNAMSIL S/RES/1270 Outubro 1999 a Dezembro 2005 UNIOSIL S/RES/1620 Janeiro de 2006- Setembro 2008 UNIPSIL S/RES/1829 Agosto 2008-Março 2014 FONTE: Elaboração Própria com Base nos Dados da Onu O Haiti, por situar-se na América Latina, foi eleito como exemplo de fracasso estatal que vem até hoje sofrendo as consequências de uma independência precipitada e pouco reconhecida. (SEITENFUS, 2014, p.38) Único estado frágil da região, o caso haitiano foi considerado sui generis para evitar ingerência internacional em assuntos domésticos. Aquilo que o Brasil tentou aplicar sob o nome de “doutrina 6 e meio”, o enquadramento do mandato da MINUSTAH entre o Capítulo VI e VII da Carta da ONU reflete uma possível mudança de paradigma na diplomacia solidária, assim discutida por Antonio Patriota. A primeira missão da ONU instalada no país foi em 1993, a sequência de operações é a seguinte: QUADRO 2 - OPERAÇÕES DE PAZ NO HAITI 14 ADH Genève, Sierra Leone, Rule of Law in Armed Conflict, Disponível em: http://www.genevaacademy.ch/RULAC/peace_operations.php?id_state=200 Acesso em 20/09/2014 13 Missão Resolução Duração MICIVIH A/RES/47/20 Fevereiro 1993- Março 2000 UNMIH S/RES/867 Setembro 1993-Junho 1996 UNSMIH S/RES/1063 Julho 1996-Junho 1997 UNTMIH S/RES/1123 Agosto a Novembro 1997 MIPONUH S/RES/1141 Dezembro 1997- Março 2000 MICAH A/54/193 Março 2000-Fevereiro 2001 MINUSTAH S/RES/1542 Junho 2004- Maio 2014 FONTE: Elaboração Própria com Base nos Dados da Onu Finalmente, o Timor Leste é exemplo no qual o mandato das Nações Unidas visava à construção de um novo Estado, e, por isso, assumiu autoridade sobre o território, encarregando-se de sua administração.15 Sua peculiaridade reside no fato de que o grupo beligerante, os indonésios, desocupou totalmente a região, depositando nas mãos das Nações Unidas o projeto de state-building. Nas palavras de Richmond, o tipo de paz implementado no Timor Leste situa-se entre as formulações ortodoxa e a conservadora. (RICHMOND, 2007, p.4) Parte da literatura considera a formação do Estado timorense como sucesso,16 mas esse posicionamento não é unânime. As seguintes missões ocorreram em Timor Leste: QUADRO 3 - OPERAÇÕES DE PAZ EM TIMOR LESTE Missão Resolução Duração UNAMET S/RES/1246 Junho- Outubro 1999 INTERFET S/RES/1264 Setembro 1999- UNTAET S/RES/1272 Outubro 1999- Maio 2002 UNMISET S/RES/1410 Maio 2002- Maio 2005 UNOTIL S/RES/1599 Maio 2005- Agosto 2006 UNMIT S/RES/1704 Agosto 2006-Dezembro 2012 FONTE: Elaboração Própria com Base nos Dados da Onu 15 UNTAET: responsável pela ‘…overall responsibility for the administration of East Timor and was empowered to exercise legislative and executive authority, including the administration of justice.” (RES1272/1999) 16 ADH Genève, East Timor, Rule of Law in Armed Conflict, Disponível em: http://www.genevaacademy.ch/RULAC/peace_operations.php?id_state=200 Acesso em 17/09/14 14 1.2. METODOLOGIA A análise comparada da relação entre ausência de violência e democratização em cenários pós-conflito no período de 2000 a 2012 será promovida a partir da ótica da teoria da paz liberal. A estabilidade política será mensurada a partir do índice de integridade física (Physical Integrity Rights Index) compilado pelo Cingranelli-Richards Human Rights Data Project, que leva o nome dos pesquisadores que coordenam o banco de dados, David L. Cingranelli and David L. Richards. Entende-se por índice “o valor agregado final de todo um procedimento de cálculo onde se utilizam, inclusive, indicadores como variáveis. (SICHE, 2010, p.139) No PIRI, o valor agregado considera tortura, assassinatos, desaparecimento forçado e prisões políticas. O direito à integridade física são as atribuições garantidas aos indivíduos pelo direito internacional de estarem livres de ofensa física e coerção por seus governos. (CINGRANELLI, 1999, p.407) Os dados encerram em 2011, portanto para obter o valor correspondente ao ano de 2012 o número do ano anterior foi repetido. Em relação aos países selecionados, há omissão dos dados para o Timor Leste em 2000 e 2002. Serra Leoa está incompleto em 2000 e 2009. Já os valores de PIRI para o Haiti estão completos no período em tela. Outro indicador da estabilidade política e ausência de violência é aquele do Banco Mundial (World Governance Indicators), que estabelece um valor agregado tomando por base fontes de dados individuais, tais quais o CIRI. Como o valor apresentado difere daquele do PIRI, uma segunda análise da relação entre democratização e ausência de violência será feita para controlar eventuais divergências. A vantagem dos dados de estabilidade política apresentados no WGI é o valor do ano de 2000 para o Timor Leste e Serra Leoa, diferente do PIRI. Em contrapartida, os dados de 2001 não vêm contemplados nos indicadores de governança, e o método para suprir a ausência desses foi o mesmo referido no tratamento da fonte acima. Já a democracia será observada conforme o índice Polity IV, em particular o Polity2, a medida mais usada para avaliar o regime politico de um país. (PLUMPER, 15 2010, p.208) Tal índice é obtido da subtração do quão autocrático um governo é pelo quão democrático, variando de +10 (altamente democrático) a -10 (altamente autocrático). Será considerado democrático o país que apresentar Polity entre 6 e 9, sendo 10 democracia plena.17 As incompletudes desse banco de dados são menos significativas: para o Timor Leste os dados do Polity começam em 2002, portanto ausentes os valores de 2000 e 2001. Em contrapartida, os dados de Haiti e Serra Leoa estão completos Em um primeiro momento serão consideradas reformas sobre a transição do regime e eventuais episódios de violência ocorridos no curso do período. O método aplicado será histórico-bibliográfico. Essa primeira etapa, de teor qualitativo, pretende contribuir à discussão subjetiva, das consequências da construção da paz no dia-a-dia dos atores. Posteriormente, a análise objetiva da correspondência ou não entre as variáveis nos casos selecionados será acompanhada da comparação entre os resultados de cada país. O lapso temporal escolhido para a presente pesquisa é entre 2000 e 2012, haja vista o mandato de duas operações principais (UNAMSIL em Serra Leoa e UNTAET no Timor Leste) ter iniciado no final de 1999, sofrendo assim influência da reformulação do peacebuilding e das disposições do Brahimi report. No caso do Haiti, 2000 foi ano de eleições que elegeram Aristide e a participação da comunidade internacional, apesar de datar de momento anterior, permaneceu desde então e aumentou com o estabelecimento da MINUSTAH em 2004. Reconhecendo que a democracia é processo, o espaço de tempo para avaliar mudanças no regime tem de ser suficientemente longo para permitir que as alterações sejam implantadas e suficientemente curto para atribuir a democratização às reformas impostas de fora. (DOWNES, 2013, p.105) O marco de cinco anos é um teste crítico aos cenários pós-conflito, pois há registro que a metade dos países saídos da guerra retomam a violência nesse prazo. (COLLIER 2008, apud WYROD, 2008, p.70) A probabilidade de retomada de guerra civil diminui em função do tempo, a saber: quanto mais tempo a paz se mantiver depois de findo o conflito menos provável será que a violência retorne, ceteris paribus. 17 Para acesso a legenda consultar: http://www.systemicpeace.org/polity/polity4.htm 16 (QUINN, 2005, p.23) Por isso, a opção por lapso temporal maior que dez anos, a fim de capturar de que maneira o processo de transição se deu. Sobre o término do prazo, em 31 de dezembro de 2012 foi encerrado o mandato da UNMIT, e o Timor Leste foi deixado ao seu próprio governo. Ainda que a UNIPSIL e a MINUSTAH tenham permanecido até 2014, o prazo final aqui investigado é o fim do último mandato da última operação em qualquer dos três países, portanto 2012. 17 2. A TRANSIÇÃO PARA A DEMOCRACIA E A PAZ 2.1. DEMOCRACIA E DEMOCRATIZAÇÃO A definição oferecida por Robert Dahl de democracia é “um sistema político que tenha, como uma de suas características, a qualidade de ser inteiramente, ou quase inteiramente, responsivo a todos os seus cidadãos.” (DAHL, 1997, p.25) Em sua obra, sugere que apesar de, na prática, a democracia não corresponder aos seus ideais, ela permanece sendo a alternativa mais desejável que qualquer alternativa viável a ela. Entre seus benefícios está o de impedir o governo de autocratas e seus desmandos, assegurar os direitos fundamentais dos cidadãos e promover igualdade política. Outra vantagem dessa forma de governar um Estado seria o fato de que o governo da lei estabelece menor grau de intervenção arbitrária do governo e dos políticos. (DAHL, 2001, p.72) De acordo com o autor instituições que protejam oportunidades e direitos democráticos essenciais são necessárias “não simplesmente na qualidade de condição logicamente necessária, mas de condição empiricamente necessária para a democracia existir.” (DAHL, 2001, p.63) Ao estabelecer que as democracias representativas não guerreiam entre si, Dahl também apresenta a busca pela paz como mais uma consequência positiva desse tipo de regime. Em “Poliarquia”, ao tratar das condições para a democratização, o mesmo autor menciona a contestação pública e o direito de participação, sublinhando a dificuldade de encontrarmos tipos puros no mundo real, como sintetiza na seguinte passagem: as poliarquias são regimes que foram substancialmente popularizados e liberalizados, isto é, fortemente inclusivos e amplamente abertos à contestação pública. (DAHL, 1997, p.31) Nesse elogio, o autor sugere que graças às condições acima, maior a dificuldade do governo lançar mão do uso da coerção física; ao passo que em regimes hegemônicos e mistos o risco de coerção maciça é significativo. Em paralelo a isso, ao especular sobre a interação recíproca entre o tipo de regime e fatores comportamentais, culturais e atitudinais, Dahl apresenta uma alternativa ao tratamento destes como variáveis intervenientes, contribuição relevante para quem pretende fazer uma análise partindo da premissa de que as instituições importam. (DAHL, 1997, p.48) 18 Przeworski lança mão de uma definição minimalista segundo a qual “democracia é o sistema no qual os partidos perdem as eleições” (PRZEWORSKI, 1991, p.10). Ou seja, será democrático o regime que realizar eleições, desde que a oposição tenha alguma chance de vencer e tomar posse. Em “O que mantém as democracias?” (1996) Przeworski et al. rebatem a suposição de que tais regimes seriam produzidos pelo desenvolvimento de ditaduras, demonstrando, a partir dos resultados empíricos, que as transições para a democracia ocorrem aleatoriamente em relação ao nível de desenvolvimento, pois nenhuma delas pode ser prevista tendo em vista apenas o nível de desenvolvimento econômico do país. A respeito da experiência anterior com democracia, os autores argumentam: “se um país teve um regime democrático (note-se o tempo pretérito) ele é um veterano não apenas da democracia mas da subversão bem sucedida da democracia.” Ou seja, o aprendizado político seria uma faca de dois gumes: apesar de amparar a tarefa da consolidação em tradições do passado, também apresenta lições aprendidas pelas forças antidemocráticas. (PRZEWORSKI, 1996, p.11), tornando-se elemento potencialmente perigoso. Samuel Huntington considera que um sistema político do século vinte será democrático na medida em que os decisores mais poderosos forem selecionados através de eleições justas, honestas e periódicas, nas quais os candidatos competem livremente pelos votos e em que virtualmente toda a população adulta tem direito ao sufrágio. (HUNTINGTON, 1991, p.7) O autor reconhece que a definição de democracia em termos de eleições é uma definição mínima. Apesar de mencionar a questão de superar a dicotomia entre democrático e autoritário, por meio de uma gradação que diferencie as democracias e não-democracias entre si, opta pela versão dicotômica, pois seu objeto de estudo são as transições. Em relação à mudança de regime, estabelece o conceito de democratização com três elementos: 1) fim de um regime autoritário; 2) instalação de um regime democrático; e 3) consolidação do regime democrático. (HUNTINGTON, 1991, p.35) O critério do two-turnover test considera a democracia consolidada caso o partido ou grupo que assume o poder na primeira eleição pós-transição perde uma eleição subsequente e entrega o poder aos vencedores destas, e se os vencedores posteriormente o transferem pacificamente aos vencedores de eleições seguintes. (HUNTINGTON, 1991, p.267) 19 De acordo com Charles Tilly para definirmos democracia as abordagens mais pertinentes são aquelas que identificam um conjunto mínimo de processos os quais precisam estar continuamente presentes para que uma situação possa ser considerada democrática. Em sua definição, os processos necessários para a promoção da democratização são: 1) a integração das redes de confiança interpessoal nos processos políticos públicos; 2) o isolamento dos processos políticos públicos em relação às desigualdades categóricas; e 3) a redução dos centros autônomos de poder coercitivo. Para além desses elementos o autor aponta que tanto uma capacidade do Estado extremamente alta quanto uma capacidade extremamente baixa inibem a democracia, pressuposto que reflete a preocupação dos avaliadores da Freedom House de estabelecer um meio-termo entre elas. Assim como outros institucionalistas, Tilly reforça a relevância das trajetórias dos regimes nas perspectivas em relação à democracia bem como ao caráter da democracia se a ela o regime chegar. Outro fator que identifica é a velocidade com que a desdemocratização se dá historicamente, sobrevindo muito mais rápido que a democratização anterior ou subsequente. (TILLY, 2013, p. 30-53) 2.2. PARTICIPAÇÃO DOS ATORES: A ADERÊNCIA DA ELITE POLÍTICA COMO REQUISITO Como elucida José Alvaro Moisés, os processos de transição são tarefas de engenharia institucional, cuja dificuldade é fruto da competição entre diferentes visões de mundo sobre como o conflito deve se processar. Sobre a ação política e a autorização de uma opção social em detrimento de outra, lembra: “O consenso normativo é sempre um consenso sobre normas, regras de procedimento e valores compartilhados pelos diferentes grupos que formam a sociedade.” (MOISÉS, 1988, p.50) Portanto, os processos de transição política decorrem da interação mútua entre mudança nas instituições e mudança na cultura política, reconhecendo que uma sem a outra tem baixa capacidade de reforma. Ainda segundo o autor, a transitologia que mobiliza a atuação de atores estratégicos baseia-se nas teorias da escolha racional, na maximização dos interesses do grupo ao qual pertencem. (MOISÉS,1989 ,p.89, apud, 20 QUINALHA, 2013, p.56) As três condições, assinaladas por Tilly, capazes de produzir entre os cidadãos e o Estado as relações amplas, igualitárias, vinculantes e protegidas que constituem a democracia, surtem efeito quando em conjunto.(TILLY, 2013, p.110) Especialmente o terceiro elemento, a redução dos centros autônomos de poder coercitivo, merece ser considerado tendo em vista a participação dos atores no processo de democratização. Na hipótese de luta armada pelo controle do governo, os atores aqui referidos podem ser tanto a elite política quanto o grupo rebelde, que ao desertarem reduzem as chances de êxito do jogo democrático. Aliás, a respeito da rápida desdemocratização, o próprio autor sugere que seria resultado não da insatisfação popular, mas da defecção da própria elite, de modo a manter ou restaurar seu poder em face de uma ameaça à sua segurança e aos seus ganhos. (TILLY, 2013, p.164-167) Stepan e Linz (1999) em “A Transição e Consolidação da Democracia” trazem contribuições ao tema, discutindo as tarefas que os diferentes países têm de enfrentar ao iniciar a luta para tornarem-se democracias consolidadas. Entendem que a democracia acontece quando as dimensões comportamentais, atitudinais e constitucionais apresentam tal forma de regime como “o único jogo disponível” na sociedade.18 Desse modo, quando: 1) em termos comportamentais: nenhum ator nacional de importância significativa, quer social, econômica, política ou institucional, despenda recursos consideráveis na tentativa de atingir seus objetivos por intermédio da criação de um regime não democrático 2) em termos de atitudes: a maioria da opinião pública mantém a crença de que os procedimentos e as instituições democráticas são a forma mais adequada para o governo da vida coletiva, e quando o apoio a alternativas contrárias ao sistema é bastante pequeno, ou mais ou menos isolado das forças pródemocráticas 3) em termos constitucionais: tanto as forças governamentais quanto as nãogovernamentais em todo o território do estado, sujeitam-se e habituam-se à resolução de conflitos dentro de leis, procedimentos e instituições específicas, sancionadas pelo novo processo democrático. (LINZ, 1999, p.24) Ou seja, se todos os atores na comunidade política habituam-se ao fato de que os conflitos serão resolvidos de acordo com as normas estabelecidas e que as violações dessas normas provavelmente serão ineficazes e sairão caro, então há democracia. No 18 Atribuem a Giuseppe di Palma a expressão “the only game in town” p. 274 21 que toca à participação dos atores, Stepan e Linz identificam as elites políticas como um possível obstáculo à consolidação da democracia dada sua ambivalência quanto às instituições democráticas. Além disso, alertam para um problema típico dos períodos de transição, que se verifica quando: “Os detentores do poder não-democrático argumentam que algumas mudanças liberalizantes introduzidas por eles são, em si, suficientes para a democracia.” Ao analisar a consolidação da democracia, os autores sugerem: A questão principal, para a democracia, é que uma crise de governo seja resolvida de forma razoavelmente rápida, antes que se transforme numa “crise do regime”, para que uma nova coalizão política se forme visando tentar de novo combinar a eficácia das políticas com a legitimidade democrática. (LINZ, 1999, p.207) Tal detalhe é relevante pois distingue entre “crise de governo”, à qual todo regime democrático está sujeito, e sua evolução, a crise do regime, esta sim, efetivamente um risco à consolidação da democracia. Cook e Call condenam a negligência da literatura de peacebuilding no que se refere à tensão entre os interesses da elite e aqueles da população enquanto as reformas estatais vão sendo introduzidas no pós-conflito. (CALL, 2003, p.237) Os autores consideram que os especialistas em democratização são menos propensos a fazer o mesmo, apesar de muitas de suas prescrições presumirem que proteção aos direitos humanos, aos interesses da elite, participação em massa e Estado democrático de direito possam conviver sem afetar negativamente um ao outro. 19 Proponentes de uma definição de peacebuiding enquanto “esforços para transformar relações sociais potencialmente violentas em relações e resultados pacificos e sustentáveis.”, procuram enfatizar tanto a paz positiva quanto a negativa e contemplar “a elite e a não-elite”. A partir dessa matriz, pretendem superar a ineficácia que decorre da implementação de modelos externos que negligenciam as instituições locais preexistentes. Como agenda de pesquisa sugerem maior articulação, para benefício de ambos, entre estudos de processos conduzidos pelas elites, e aqueles focados em peacebuilding no nível local, conduzidos pela comunidade. (CALL, 2003, 240-241) Esse diagnóstico é determinante para a análise do grau de dificuldade do 19 Em nota de rodapé citam Linz e Stepan, Przeworski e Paris como exceções. 22 projeto de paz, que será tanto maior quanto os atores ficarem excluídos da decisão sobre as regras de funcionamento da democracia. Para que tenha maiores chances de sucesso, o pacto terá de permitir o convívio entre as forças políticas no novo regime, equilibrando interesses antagônicos. Enquanto o custo da obediência às regras democráticas for maior do que os ganhos garantidos no emprego da violência, a paz não será duradoura e a democratização falhará. 23 3. AS FUNDAÇÕES INSTITUCIONAIS E O CONFLITO 3.1. FRACASSO ESTATAL: O DESENVOLVIMENTO COMO PRÉ-REQUISITO? Paul Collier em “Political Economy of State Failure” relaciona o fracasso estatal com a incapacidade de oferecer segurança e accountability, bens públicos determinantes para o desenvolvimento. Da perspectiva do cidadão, falta de capacidade institucional e intenção perniciosa (dos governantes) gerariam fracasso em termos de bem-estar. A novidade do trabalho é a interconexão estabelecida entre os dois elementos. Três circunstâncias seriam determinantes na análise de Collier: 1) O tamanho das colônias, em particular na África, dificulta o fornecimento eficiente de segurança e accountability; 2) A diversidade étnica como fator que compromete a cooperação; 3) A disponibilidade (ou não) de recursos naturais.20 O autor menciona o problema das táticas ilícitas empregadas nas eleições e a vantagem que tal mecanismo confere aos lideres de “estados falidos”, desestimulando o investimento nas instituições. Como solução, sugere que a ajuda externa com segurança seja condicionada a eleições livres e justas, assim a ameaça de coup d´état faria os governantes abdicarem de táticas ilícitas. Para ilustrar, usa as intervenções militares empregadas para reinstalar governos legitimamente eleitos, bem vindas em Serra Leoa e no Haiti. (COLLIER, 2009, p.234) O argumento ventilado é que na ausência de um Estado eficiente, o desenvolvimento econômico é frustrado, e o risco de rebelião aumenta em resposta à estagnação econômica. Isso se daria pois enquanto a guerra internacional dura em média seis meses, a guerra civil dura entre 7 e 15 anos. (COLLIER, 2009, p.222) Ao longo de um periodo tão longo, tanto a economia quanto as instituições do Estado sofrem as consequências, diminuindo a capacidade estatal de oferecer serviços públicos. Em 1958, Lipset investigou os determinantes sociais capazes de dar suporte à democracia, sugerindo como resposta o desenvolvimento econômico e a legitimidade política.(LIPSET, 1958) De acordo com sua pesquisa, o nível de renda de uma nação afetaria a receptividade ou não às normas políticas democráticas. Um dos exemplos 20 Para Besley et Persson (2008) a disponibilidade de recursos naturais serve como incentivo para a tomada do governo por aumentar os ganhos dos rebeldes e favorecer a insurgência 24 referidos como próprio dos países pobres é o nepotismo, que impede a formação de uma burocracia, da qual depende o Estado moderno. Na tentativa de confirmar através de pesquisa empírica o ratio “promover a democracia para evitar conflito interno”, Collier e Rohner em “Development, Democracy and Conflict” (2008) partem da premissa de que a democracia tem, a priori, efeitos líquidos (net effects) ambíguos. Os autores testam a hipótese de que tornar o governo mais responsivo evitaria a oposição violenta da parte dos cidadãos, o dito “accountability effect”, questionando o desempenho de tais mecanismos no que diz respeito à manutenção da segurança.21 Partindo da premissa de que em países nos quais a renda é baixa os payoffs da via violenta são maiores do que os bônus da democracia, apontam a pilhagem “loot-seeking” como motivação predominante dos rebeldes, justificando sua resistência aos mecanismos de accountability. Desse modo, confirmam nos resultados a relação entre desenvolvimento e democracia22, submetendo a potencialidade do accountability a uma renda mínima, que seria de aproximadamente U$2,750 per capita. Por reconhecerem na accountability uma das formas de melhorar a eficiência dos gastos públicos, não descartam a democracia como alternativa, apenas consideram que nos países com renda baixa tal regime deve ser complementado por um componente de fortalecimento da segurança, sob pena de aumentar a inclinação à violência política. (COLLIER, 2008, p.534) O trabalho de Quinn et al. Também confirma a hipótese de que o bem-estar econômico, a partir do PIB per capita, é capaz de prevenir a probabilidade de rebelião, associando a paz ao desenvolvimento econômico. (QUINN, 2005, p.25) Parece razoável afirmar que o desenvolvimento econômico não é condição suficiente para a democratização, mas componente necessário para incrementar a eficiência estatal. A gestão dos recursos tem de permitir a identificação do Estado com a capacidade de oferecer serviços públicos aos cidadãos. No entanto, essa tarefa torna-se difícil na conjuntura do pós guerra civil, quando as consequências para o 21 Apresentam como exemplo o caso de Saddam e Stalin que conseguiram manter a segurança apesar de (e possivelmente em razão de) não serem constrangidos por mecanismos de accountability. (p. 531) 22 Nesse trabalho democracia é tratada como uma variável dummy com base no dataset Polity IV, o critério aplicado é igual ou acima de 6 para configurar democracia, o que torna os resultados coerentes com a classificação do próprio Polity. 25 Estado são perniciosas e o modus operandi dos doadores internacionais não contribuiu para mitiga-las. Mas nem o desenvolvimento nem o aumento na capacidade estatal são suficientes, sendo necessária uma justificação que vincule os cidadãos às instituições para que o regime se distancie do autoritarismo. 3.2. DO PODER À AUTORIDADE: LEGITIMIDADE DAS INSTITUIÇÕES Lipset, ao falar sobre a legitimidade, seu segundo requisito para a democracia, define-a como capacidade de um determinado sistema político engendrar e manter a crença nas instituições políticas como as mais apropriadas para aquela sociedade. Um determinado grau de legitimidade interessa pois permite que o sistema democrático atravesse crises. Ele explica as crises de legitimidade como momentos de mudança estrutural, sendo que à nova estrutura social estabelecida caberá manter as expectativas dos “maiores grupos” (entendidos aqui como elite política) durante um período longo o bastante para se estabelecerem. (LIPSET, 1985, p.87) Isso aproveita aos contextos das operações de paz, onde soluções que atravessem a via local, emanadas do governo eleito, tenderão a ser mais legítimas e bem-sucedidas que as medidas impostas pelos internacionais, de fora para dentro. Ainda quanto a inclusividade, Dahl elogia o governo que promove a participação da população por intermédio do voto; porém, a insistência na regra da maioria, por si só, não é suficiente para o processo democrático. Sendo necessária uma justificação capaz de tornar o processo correto e lícito para a população, ou seja, legitimidade. (DAHL, 1997, p. 28) Giovanni Sartori explica a transformação do poder (vis coactiva) em autoridade (vis directiva), a substituição dos “detentores do poder” pelos “detentores da autoridade”, como o objetivo principal da democracia. A capacidade de mandar fazer, autoridade, será tanto mais eficaz quanto a aderência for espontânea, e não imposta. Trata-se, então, de uma questão de legitimidade. Nesse binômio repousam os regimes políticos, sujeitos a solaparem ou a tornarem-se autoritários se a legitimidade se perder. O autor recorre à distinção entre ter autoridade e ser autoritário, a primeira fundamento 26 para a democracia e a última para “o que a democracia não é”. (SARTORI, 1994, p.253257) Stepan e Linz insistem na noção de estatalidade à qual o governo democrático moderno está vinculado, ao submeter um regime democrático moderno consolidado à existência de um Estado, já que sem ele não pode haver cidadania, e sem cidadania não pode haver democracia. (LINZ,1999, p.47) O critério constitucional, segundo o qual tanto as forças governamentais quanto as não governamentais sujeitam-se à resolução de conflitos dentro de leis, aplica-se também aos cidadãos. O consenso nas democracias garante a exigência de obediência, e reforça a necessária legitimidade da qual o governo deve gozar. Caso os governantes se coloquem à margem da lei, a consolidação da democracia não estará completa. No limite, entre os tipos de governos não democráticos, o sultanismo figura como o poder personificado no governante, sendo a administração sua ferramenta pessoal, portanto a fusão do poder pessoal e público. Nesse tipo de regime patrimonialista, o caminho democrático seria virtualmente impossível sem monitoramento e garantias externas. Linz e Stepan chegam a mencionar como melhor perspectiva para a transição democrática o levante revolucionário por líderes inspirados pelo ideal democrático “que contem com o apoio internacional, que determinem uma data para as eleições e que permitam a livre competição pelo poder”. O que aparece como um elogio às operações de paz cujo mandato contemple a realização de eleições na hipótese de regime anterior sultanista. A ressalva apresentada é que apesar da exigência da realização de eleições para a transição, a consolidação democrática requer muito mais do que eleições e mercados. (LINZ, 1999, p.82-83) Na literatura específica sobre peacebuilding, a importância da legitimidade é reforçada. Melissa Lebonte sugere que “onde percepções de legitimidade institucional forem altas, o potencial para a longevidade institucional é bom.” (LEBONTE, 2003, p.271) Em igual medida o Manual do Banco Mundial de Suporte ao state-building refere às duas ferramentas citadas, recomendando a análise de determinada instituição em 27 três dimensões: a) autoridade; b) capacidade; e c) legitimidade.23 3.3. ACCOUNTABILITY COMO FREIO À CONFUSÃO ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO A centralidade da separação liberal e republicana entre o público e o privado, entende-se pela falta dela nas autocracias. Quando ausente, governantes consideramse desobrigados a obedecer à lei, ao mesmo tempo que invocam o discurso do bem comum da população. O’Donnel em “Accountability Horizontal e Novas Poliarquias”, critica os governantes de legibus solutus que ignoram o republicanismo a favor de vantagens pessoais, referindo-se a regimes neopatrimonialistas, quando não sultanistas.24 O autor destaca que muitos regimes emergiram, no entanto, poucos tornaram-se poliarquias, apesar de alguns terem realizado eleições para “dar um ar de legitimidade a seus governantes”, registrando a influência forte da tradição democrática e alinhando-se aos autores precedentes.25 Para entender a que se referem os componentes liberais e republicanos, precisa: Todos os cidadãos tem direitos iguais de participar na tomada de decisões coletivas dentro do quadro institucional existente; uma declaração democrática à qual se acrescenta o preceito republicano de que ninguém, inclusive aqueles que governam, deve estar acima da lei; e a salvaguarda liberal de que certas liberdades e garantias não devem ser infringidas. (O’DONNEL, 1997, p.30) Nesse sentido, a separação entre público e privado justifica a demanda por mecanismos capazes de pressionar os governantes, tornando-os responsivos aos cidadãos. É por esse motivo que o Banco Mundial apresenta como estratégia para aperfeiçoar a legitimidade política dos “estados frágeis” o apoio à medidas de accountability e integridade. 23 THE WORLD BANK GROUP, Guidance for Supporting State- Building in Fragile and Conflict-Affected States: A Tool-Kit, Public Sector and Governance Group, 2012. Disponível em: http://siteresources.worldbank.org/PUBLICSECTORANDGOVERNANCE/Resources/2857411343934891414/8787489-1347032641376/SBATGuidance.pdf Acesso em 30/11/14 24 O´Donnel remete a Weber e Linz em Totalitarian and Authoritarian Regimes ao mencionar o sultanismo (p. 39) 25 O autor se refere aquelas democracias políticas ou poliarquias que “mesmo tendo realizado eleições, não satisfazem as condições de competição livre e justa estipulada pela poliarquia.” (p. 27) 28 De acordo com O’Donnel, são dois os vértices da accountability: vertical e horizontal. O canal principal da primeira são as eleições, processo com o qual a própria ideia de democracia nos tempos modernos passou a ser identificada. Já a segunda define-se pela supervisão que agências estatais exercem das ações de outros agentes ou agências de Estado a fim de evitar práticas delituosas. (O’DONNEL, 1997, p.40) Entre os mecanismos de accountability horizontal pontuados no estudo estão: “ações realizadas individualmente ou por algum tipo de ação organizada e ou coletiva, com referência àqueles que ocupam posições em instituições do Estado, eleitos ou não.” Com base nesse conceito, identifica a deficiência de accountability horizontal nas poliarquias em que se opera uma oposição entre as regras formalmente prescritas e a prática (pays legal VS. pays réel): “A fragilidade de accountability horizontal significa que os componentes liberais e republicanos de muitas novas poliarquias são frágeis.” (O’DONNEL, 1997, p.28-30) Baseando-se no argumento da accountability, Carothers contesta a tese de sequenciar o processo de democratização à construção de capacidade estatal, desmistificando a crença no melhor desempenho dos governos autocratas comparativamente às democracias fracas. O autor reconhece entre os sintomas das democracias jovens o funcionamento subótimo das eleições como mecanismo eficaz na criação de accountability e de legitimidade, recorrentemente menores do que o esperado pelos proponentes desse regime. Porém, ainda assim, maiores do que nas autocracias.(CAROTHERS, 2007, p.21) Apesar de tais limitações, argumenta a favor da alternância no poder, cujo efeito é romper com a concentração nas mãos de um único grupo e favorecer o rule of law. O fluxo de responsividade entre cidadãos e o Estado criado pelas eleições, mesmo se imperfeito, submete os administradores à lei e seus atos à publicidade. É provável que graças à realização das mesmas um desempenho estatal bom seja objeto de preocupação dos governantes, visando a manutenção do poder pela via dos votos. Tal efeito não se consegue se a autocracia perdurar. Portanto, apesar de seus defeitos, as eleições ainda promovem resultados melhores do que a ausência delas, sob o argumento da “democratização gradual” caro aos governos autoritários. (CAROTHERS, 2007, p.18-26) Um estudo de 800 eleiçoões em 97 países confirma que a população usa dessa oportunidade para remover líderes com 29 desempenho ruim, sempre que possível. (International IDEA and Kofi Annan Foundation, 2012, apud LEKVALL, 2013, p.46) Veremos no caso de Serra Leoa, Haiti e Timor Leste as consequências das eleições na aderência ou não ao projeto democrático, e se o argumento aludido pelos autores se confirma. Em que pese a importância das eleições em termos de accountability, outros mecanismos de fiscalização se fazem necessários para a transição democrática bem sucedida. Por isso, eleições são condição necessária na consolidação da democracia, mas não suficiente. Apesar das críticas tecidas, a realização de pleitos tem papel fundamental na construção de legitimidade em dada comunidade política. Por isso, é de suma importância no caso das operações de peacebuilding, nas quais, a menos que os esforços na administração do mandato tenham a legitimidade em vista, a paz autosustentável não será alcançada e a dependência externa não cessará. 30 4. AS OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU 4.1. PEACEKEEPING COMO INSTRUMENTO DA MANUTENÇÃO DA PAZ E SEGURANÇA INTERNACIONAL Durante o período compreendido entre 1945 a 1990 a divisão do mundo em esferas de influência fez com que a URSS se retirasse do CSNU permitindo que em 1950 fosse autorizada uma intervenção norte-americana no conflito das Coréias. (S/RES/84) Mesmo se a invenção do ‘peacekeeping’ não seja atribuída exatamente a esse momento histórico, Bellamy et al. (2004) argumentam que esta iniciativa já demonstrava a capacidade da ONU em organizar operações de paz. 26 Posteriormente, em resposta à Crise de Suez de 1956, mesmo com o CSNU travado a Assembleia Geral determinou que fosse designada a primeira missão armada de manutenção da paz, a UNEF. (GOMES, 2009, p.290) Por não se enquadrar no Capítulo VII da Carta da ONU, a operação dependeu do consentimento do país destinatário, o Egito, a quem foi assegurado que sua soberania seria respeitada. Outro ponto de preocupação foi o período de permanência das forças estrangeiras, sendo que o Secretário Geral das Nações Unidas (SGNU) estabeleceu que as Forças deveriam oferecer uma garantia de retirada, além de reiterar a sujeição da permanência das mesmas ao consentimento do Egito.27 Um dos requisitos do mandato da UNEF era não submeter o país a qualquer tipo de controle externo. A operação teria, portanto, caráter neutro, evitando se envolver nas questões domésticas além de não poder recorrer ao uso da força, com exceção de caso de legítima defesa. (PARIS, 2003, p.449) O terceiro evento significante no período assinalado foi o ano de 1960 com a operação da ONU no Congo, na qual as tropas foram enviadas para restaurar a lei e a ordem e promover estabilidade econômica e política – aquilo que se convencionou chamar de operação de paz. (DOBBINS, 2005, apud, GOMES, 2009, p.290) Fundavam-se, conforme as palavras do então SGNU Dag Hammerskjöld, na neutralidade, renúncia ao uso da força, imparcialidade e não 26 Peacekeeping é uma subcategoria de operação de paz, a categoria genérica. Ao longo do presente trabalho o termo “operação” e “missão” serão usados indistintamente. No entanto, em virtude do caráter militar do segundo eles não se confundem, conforme ensina Kenkel (2013). O nome United Nations Department of Peacekeeping Operation é, segundo ele, um anacronismo e não deve prejudicar a opção pelo termo “operação de paz” que se refere ao empreendimento mais inclusivo. 27 First United Nations Emergency force UNEF (November 1956 - June 1967), Department of Public Information, United Nations, 2003 31 interferência nos assuntos internos do país hospedeiro.28 Nesse sentido, uma definição que explica o escopo das operações de peacekeeping, proposta por Marrack Goulding, é a seguinte: Operações das Nações Unidas em campo nas quais efetivos internacionais, civis e/ou militares, são enviados com o consentimento das partes e sob o comando das Nações Unidas para auxiliar a controlar e resolver atual ou potencial conflito internacional ou interno que tem uma dimensão internacional clara. (GOULDING, 1993, p.4) Destacam-se os requisitos do consentimento das partes e do caráter internacional do conflito na definição apresentada, aspectos essenciais nessa primeira geração de teorias sobre a paz e o conflito segundo a classificação proposta por Oliver Richmond. Trata-se de uma abordagem influenciada pelo realismo político e pela crença de que o conflito seria biológico, privilegiando soluções que perpassavam a estrutura estadocentrista das Relações Internacionais, resultando na construção de uma paz restrita. (RICHMOND, 2010, p.17) 4.2. GALTUNG E A PAZ “DE BAIXO PARA CIMA“ Atribui-se à Johan Galtung a origem do termo “peacebuilding” em seu ensaio “Three Approaches to Peace: Peacekeeping, Peacemaking and Peacebuilding”29, no qual advoga pela criação de estruturas capazes de promover a paz sustentável, adereçando as causas principais “root causes” do conflito.30 De acordo com o autor, a paz como “ausência de violência” teria inspiração na medicina, onde a saúde é vista como a ausência de doença; não obstante, tal definição negativa teria dado margem ao surgimento de outra, gêmea, a de paz positiva, que na metáfora corresponde à construção de um corpo saudável, capaz de resistir às doenças. (GALTUNG, 1985, p.145) Com efeito, Galtung identifica dois discursos opostos sobre como lidar com a 28 ÅHLÉN, David, Dag Hammerskjöld achievements, Government Offices in Sweden. Disponível em: http://www.government.se/sb/d/15110/a/174768 Acesso em 29/11/14 29 Ver UNITED NATIONS, UN Peacebuilding: An Orientation, Peacebuilding Support Office, Setembro 2010, p.45 30 UNITED NATIONS PEACEBUILDING SUPPORT OFFICE, Peacebuilding & The United Nations, What is peacebuilding? Disponível em: http://www.un.org/en/peacebuilding/pbso/pbun.shtml Acesso em 12/11/14 32 violência: o da segurança e o da paz. (GALTUNG, 2004, p.1) No primeiro paradigma estariam presentes quatro componentes, apresentados a seguir: Discurso da Paz Discurso da Segurança 1) uma parte potente e mal intencionada 1) um conflito, que ainda não foi resolvido; 2) um perigo claro de violência, real ou potencial 3) força, para derrotar ou deter a parte má; produzindo 2) perigo de violência para solucionar o conflito 3) transformação do conflito, empática/criativa/não-violenta; produzindo 4) segurança, a melhor abordagem para “paz”. 4) paz, a melhor abordagem para “segurança” O próprio autor reconhece que a abordagem da paz é melhor, porém a da segurança é, por vezes, necessária. Invocam-se vantagens como a legitimidade que o paradigma que visa transformação proporciona, além de adereçar as causas originárias do conflito, evitando que a violência se reproduza. Os estudiosos da paz procuram identificar as condições para que se promovam ambos aspectos da paz, o primeiro ligado ao conflito propriamente dito e o segundo à justiça social, por acreditarem poder contribuir melhor sem priorizar nem um nem outro, igualmente importantes. (GALTUNG, p.1969, p.180) Desse modo, paz durável não se confunde com a inexistência de conflito. (ANNAN, 2001, p.2) mas quando os conflitos naturais à sociedade podem ser resolvidos pacificamente, através de vias legais. A tentativa de entender as causas originárias do conflito, pressupondo tratar-se não mais de fenômeno biológico mas social e psicológico, é própria da segunda geração das teorias identificadas por Richmond. Como solução, a construção da paz positiva, capaz de lidar com a repressão das necessidades humanas que deu origem ao conflito em um primeiro momento. Nessa segunda classificação opera-se um deslocamento da ênfase no Estado para incluir atores da sociedade civil, que seriam agentes da paz de baixo para cima (bottom-up). A engenharia social, política e econômica da qual os interventores devem se ocupar a fim de remover as condições que criam a violência que essa teoria pressupõe é o fundamento da construção da paz liberal, conforme sugere o autor. (RICHMOND, 2010, p.20) 33 4.3. OPERAÇÕES DE PAZ PÓS-VESTFALIANAS: A RECONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA Oficialmente, foi no relatório do então SGNU, Boutros Boutros-Ghali, Agenda pela Paz, que o peacebuilding foi apresentado como uma ferramenta capaz de responder à natureza dinâmica dos conflitos contemporâneos. (A/47/277) A Peacebuilding Orientation menciona como razões para esse conceito de paz revisitado o fracasso de acordos de paz nos anos 90, como em Angola, a retomada da violência, tal qual no Haiti, e as guerras prolongadas, à exemplo do Sudão.31 Na análise de Bellamy et al. essa nova espécie de operações de paz seria a pós-Vestfaliana, que se caracterizaria pela crença dos líderes ocidentais de que o liberalismo e a democracia trariam a mesma prosperidade e paz para as áreas de instabilidade que trouxeram para seus países. (BELLAMY, 2004, p.4) Trata-se de um modelo datado, do final da Guerra Fria e da vitória do modelo liberal capitalista estadounidense. (LEKVALL, 2013; PARIS, 2003; BELLAMY, 2004) Nas palavras de BoutrousGhali, cujo mandato coincidiu com a adaptação da ONU ao mundo pós Guerra Fria, a accountability e a legitimidade próprios à democracia reaparecem : A accountability e a transparência de governos democráticos aos seus cidadãos, os quais, compreensivelmente, podem estar altamente preocupados com a guerra já que são quem terá de suportar seus riscos e encargos (...) A legitimidade conferida aos governos democraticamente eleitos impõe o respeito às pessoas de outros estados democráticos e nutre expectativas de negociação, compromisso, e respeito ao Estado de direito. (A/51/761). Ou seja, nessa redefinição, os tratados de paz passaram a ser implementados, abrangendo questões mais amplas, deslocando-se, pois, do objetivo anterior de se restringir ao monitoramento de acordos de paz já existentes. Assim, o novo escopo das operações de paz passa a incluir a proteção e disseminação do modelo de governança liberal e democrático, abraçando um projeto mais ambicioso. Outra distinção das operações do modelo Vestfaliano, agora estados com guerra civil em andamento poderiam recebê-las, como foi o caso da Somália e da Bósnia. Remonta dessa época a origem do termo peacebuilding, ou construção da paz, que traduz uma evolução do 31 UNITED NATIONS, UN Peacebuilding: An Orientation, Peacebuilding Support Office, Setembro 2010, p.45 34 peacekeeping e reflete a institucionalização da paz. Para Alex Bellamy (2004), peacebuilding é um gênero do qual state-building, estabelecimento do Estado de direito, democratização e reconstrução econômica são espécies. (BELLAMY, 2004, apud, GOMES, 2009, p.313) Sendo state-building, segundo a definição da DAC, International Network on Conflict and Fragility (INCAF), um processo endógeno para melhorar a capacidade, as instituições e a legitimidade do Estado a partir da interação entre o Estado e a sociedade. (PARIS, 2003, p. 450) Nessa reformulação do escopo das operações de paz vieram: a necessidade de convocar eleições, garantir liberdades civis e estabelecer um liberalismo de mercado, traduzidas nas políticas das agências de assistência, tais quais USAID, FMI, Banco Mundial, que condicionam o financiamento às reformas supracitadas. (PARIS, 2003, p.447) Marina Ottaway chama tal empreendimento de “modelo de reconstrução democrática”. Segundo diagnostica, seus proponentes se preocupam mais em coincidir o prazo das eleições com a estratégia de saída às pressas, em detrimento de considerar o tempo necessário para a realização de eleições bem-sucedidas. (OTTAWAY, 2003, p.314) Tal modelo de reconstrução amplamente aceito está imbuído no termo “consenso peacebuilding” proposto por Richmond. O autor aponta a evolução rápida do peacekeeping multidimensional para statebuilding como resultado da pretensão dos agentes internacionais em contribuir na democratização de estados falindo e falidos. Ou seja, o caráter multidimensional entende-se pela intervenção no desenvolvimento, direitos humanos, reforma econômica e política, tornando a atividade do peacebuiding parte da governança global. A principal limitação dessa terceira geração é seu projeto de construção da paz insistir na via de cima para baixo, cujo efeito é reificar a violência estrutural, reforçando a paz dos vencedores. De maneira análoga, a insistência “dos doadores de alimentar uma engenharia de fora para dentro, presume a existência da paz universal, e ignora as especificidades do país que a recebe”, possibilitando a ingerência da comunidade internacional. (RICHMOND, 2010, p.22-25) 35 4.4. BRAHIMI REPORT: A IMPOSIÇÃO DA PAZ VIA CAPÍTULO VII DA CARTA DA ONU Em 2000 um Painel sobre as Operações de Paz foi dirigido por Lakhdar Brahimi, antigo Ministro das Relações Exteriores da Argélia, com o intuito de rever as operações de peacekeeping. Dele se originou o Brahimi Report, que define “peacebuilding” como: “atividades adotadas no final do conflito para reagrupar as fundações da paz e oferecer as ferramentas para construir, nessas fundações, algo além da mera ausência da guerra” (A/55/305, S/2000/809), retomando a definição de paz sustentável discutida por Galtung. Posteriormente, em 2001, o então SGNU Kofi Annan firmou os termos do término das operações de paz enfatizando a importância de atingir uma paz durável e um desenvolvimento sustentável: “construindo instituições e atitudes políticas, sociais e econômicas que irão prevenir os conflitos”. (S/2001/394) O nome do documento “No exit without strategy” revela a preocupação com a dependência que os países destinatários de operações vinham criando em relação aos agentes internacionais. Como solução, sugere perguntas a serem respondidas pelos agentes do peacebuilding antes da decisão definitiva pela retirada. A mesma preocupação em diminuir as chances de recorrência da guerra no pós-conflito motivou a criação da Comissão de Consolidação da Paz das Nações Unidas (PBC) durante o World Summit de 2005. O documento procurou sanar defeitos das operações, sugerindo o uso de forças de peacekeeping robustas o suficiente para representar uma ameaça aos beligerantes impedindo-os de descumprir tratados de paz já assinados. Além disso, recomendava ao CSNU que não enviasse uma missão a menos que tivesse os meios para alcançar seus objetivos. O mandato da PBC destacase nos seguintes pontos: (a) oferecer estratégias para a consolidação da paz pósconflito; (b) ressaltar os esforços de desenvolvimento institucional necessários à superação dos conflito; e (c) incrementar a coordenação dos atores relevantes dentro e fora da ONU. Em paralelo a isso, foi criada uma divisão internacional de policiais civis (CivPol) vindos de 80 países participantes. (BELLAMY, 2010, p.202) O atual presidente da PBC, Antonio Patriota, discorre sobre a maior atenção 36 dedicada às manifestações de instabilidade no interior dos Estados a partir do novo paradigma da segurança coletiva. (PATRIOTA, 2010, p.8) Sugere que as ferramentas coercitivas do sistema de enforcement, o núcleo do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, sejam submetidas a maior disciplina. Para tanto, insiste no caráter excepcional das medidas para restabelecer a paz dispostas no artigo 42, as quais devem ser aplicadas como última ratio, após tentativa via embargo e/ou sanções econômicas. Conforme discutido, essas duas alternativas representam enfoques opostos para a retomada da paz: o do isolamento e o da intervenção, sendo ambos incompatíveis com o princípio de não intervenção32, pois independem do consentimento do Estado a que se destinam. Por esse motivo, a regulação do uso da força faz-se necessária, consoante o comentário do ora presidente da Corte Internacional de Justiça, Mohamed Bedjaoui: a tarefa é submeter o uso da força a uma disciplina cada vez mais rigorosa, para confirmar e desenvolver as regras que fortalecem o justo recurso a ela, eliminar as práticas que a levam a se perder, e dotar esse recurso do respeito e reconhecimento que ele necessariamente desperta quando funciona para fundar a ordem em cima de justiça. (BEDJAOUI, 1994, p.6, apud, PATRIOTA, 2010, p.193) Ou seja, é preciso limitar o uso da força para evitar seu mau uso e subsequente descrédito. Para que tenha sucesso, a coerção tem de fundar a ordem em cima de justiça, portanto não pode prescindir de uma estratégia de pacificação política Nesse sentido, o uso da força tem de ser submetido à “uma concepção autenticamente multilateralizada da segurança coletiva”, para que o empreendimento dos agentes internacionais não se restrinja, na prática, ao imediatismo. (PATRIOTA, 2010, p.187193) A dificuldade do elemento militar nas missões onusianas deriva de sua legitimidade a fortiori, em descompasso com o processo longo e não necessariamente linear que é a construção da paz pós-conflito. Após seis décadas de operações de paz da ONU, o modelo de intervenção de atores internacionais na realidade doméstica dos 32 Artigo 2.7 :"Nenhum dispositivo da presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervirem em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado ou obrigará os membros a submeterem tais assuntos a uma solução, nos termos da presente Carta, este princípio, porém, não prejudicará a aplicação de medidas coercitivas constantes do Capítulo VII". 37 países que ainda estão em guerra ou recém saídos dela tem sido objeto de críticas e estudo a seguir expostos. 5. DEBILIDADES DA PAZ LIBERAL 5.1. DEMOCRATIZAÇÃO E RECORRÊNCIA DE GUERRA A propensão dos países recém saídos de guerras civis a retomarem a violência é um dos fundamentos da crítica ao modelo de reconstrução democrática. Quinn et al. (2005) pesquisaram os determinantes da recorrência de guerra civil, partindo dos Correlates of War entre 1944 e 1997. Encontraram que mesmo quando presentes bemestar econômico e democracia, países no pós guerra estão fortemente condicionados a retomarem a violência. Os resultados demonstram que a democracia não afetou a recorrência de guerra civil, talvez porque o universo dos países estudados apresentava baixa democratização se comparada com o resto do mundo, então as diferenças entre eles não foram significantes o bastante. Os autores identificam duas pré-condições para que o conflito se reinicie: 1) a ‘dupla soberania’ (dual sovereignty), entendida como a aparição de duas coalizões com propostas alternativas de controle do governo; e 2) a crença de um dos combatentes ou de ambos que a retomada do conflito armado é preferível à paz. (QUINN, 2005, p.7) Com base na primeira condição entende-se a hipótese de que as transições negociadas são mais propensas à violência renovada do que os conflitos que encerram com vitória militar, já que na primeira delas tanto os rebeldes quanto o governo retém sua capacidade organizacional de retomar a guerra. (CALL, 2008, p. 187) Um fator capaz de desmobilizar os protagonistas dissolvendo a “dupla soberania” seria o mecanismo de power-sharing nas negociações, que dialoga com o estudo de Tilly em relação à dissolução dos centros de poder autônomos. (QUINN, 2005, p.10-24) Os resultados encontrados na pesquisa confirmam que a presença de operações de peacekeeping em casos de transição negociada é uma variável capaz de minimizar as chances de retorno à violência. Nesse tipo de transição, tais agentes servem para garantir a segurança das negociações firmadas, evitando que uma das partes descumpra o combinado e retome as violações. Outro discussão sobre a mesma temática é a de Cook e Call em “On Democratization and Peacebuilding”. No artigo os autores apresentam o seguinte dado: 38 dos 18 países que receberam operações de peacekeeping com componente de construção de instituições entre 1988 e 2002, treze (72%) foram classificados como alguma forma de regime autoritário em 2002. (CALL, 2003, p.234) Rebatendo a presunção de que peacebuilding e democratização andam necessariamente juntos e que as transições são lineares. Entre os 18 países estão Haiti, Serra Leoa e Timor Leste. Besley e Persson, baseados no dataset Polity IV, reiteram o ceticismo no que se refere aos efeitos da democratização na prevenção do conflito. Os resultados obtidos mostram 37% de democracias entre os países que sofreram guerra civil, contra 49% na amostra dos países que não sofreram, portanto uma diferença pequena. É importante frisar que os autores tratam democracia como uma variável dummy, considerando regimes com valores de Polity2 acima de zero como democráticos. (BESLEY, 2008, p.18) Não obstante, de acordo com a legenda estabelecida no Polity, democracias seriam aquelas entre 6 e 9, sendo 10 considerado democracia plena e 1-5 anocracia aberta.33 A relevância das instituições democráticas parece importar no seguinte dado sobre a presença de “checks and balances”: 12% nos países que atravessaram guerras civis contra 31% nos que não tiveram incidência, reforçando a necessidade de reformas institucionais para evitar o retorno da violência. Mansfield e Snyder (2005) indicam os perigos de uma democratização precipitada (hasty democratization) ao sustentar que os efeitos, a curto prazo, de uma transição democrática frequentemente dão origem a guerra ao contrário de paz. Os autores introduzem uma nova variável ao Polity III: concentração central de autoridade estatal, para dizer que uma combinação de aspectos de transição incompleta para a democracia e instituições centrais fracas é o que torna a guerra provável. Demonstram que tentativas de transição sem instituições de public accountability estão fadadas a recorrência de violência nacionalista, uma vez que as elites cujos privilégios estão ameaçados encontram nessa ideologia um apelo tremendo. Chegam a afirmar que “Estados em vias de democratização são altamente inclinados a guerra” objeto de críticas a pesquisa e ao método pelo qual os resultados foram encontrados. (MANSFIELD, 2005, p.2-37) 33 Consultar legenda Polity IV em http://www.systemicpeace.org/polity/polity4.htm 39 Tanto a participação da elite quanto a importância de mecanismos de accountability na democratização, anteriormente apresentadas, ressurgem na discussão sobre a durabilidade da paz. Tal constatação mostra o quão próximas as duas áreas do conhecimento estão, recomendando estudos em que ambas se articulem. 5.2. REVISIONISTAS E O MODELO HÍBRIDO LOCAL-LIBERAL Com um empreendimento amplo e pretencioso, a tarefa adiante das Nações Unidas é complexa e sofre críticas à luz de casos concretos. Um dos principais pontos criticados é a exclusão da população local e a incapacidade de considerar suas particularidades no projeto de peacebuilding. Então, parece razoável adaptar o conceito de Galtung tendo em vista as críticas às operações onusianas. Uma alternativa seria a paz-auto-sustentável (RICHMOND, 2010, FORTNA, 2004), pois se o projeto diz respeito à construção de Estados, então não basta que a paz perdure durante a presença dos agentes internacionais, mas cumpre objetivar a sustentabilidade da paz pelos nacionais. Isso é confirmado pela literatura que se ocupa do fim das intervenções, matéria do documento “No Exit without Strategy”, no qual a análise da persistência das políticas em caso de retirada é um dos critérios que possibilitaria o encerramento de uma dada missão. (S/2001/394) Ottaway descarta a opção pelo modelo maximalista de “reconstrução democrática”, propondo sua substituição por um mais modesto e realista com objetivos possíveis. São duas as alternativas discutidas em “Promoting Democracy after Conflict: The Difficult Choices”. A primeira delas é uma versão atenuada do presente modelo, que se reflete na resposta à seguinte indagação: Que tipo de sistema político minimamente aceitável pode desenvolver nesse país, baseado na atual distribuição de poder, nas forças contrabalanceadoras que podem surgir com algum incentivo e ajuda, e no nível de apoio externo- político e financeiro- que pode ser mobilizado para esse país em particular?” A segunda é mais drástica: abandonar a abordagem da engenharia social, esperar e assistir quais sistemas políticos vão sendo criados pelos envolvidos na 40 tentativa de entendê-los para, só então, oferecer-lhes suporte. Essa última solução seria “aceitar que existem comunidades - ou, talvez mais precisamente territórios - onde a comunidade internacional não pode reconstruir um Estado moderno, quanto menos um Estado moderno que seja minimamente democrático.” (OTTAWAY, 2003, p.321) Como exposto no título do artigo, para que a democracia no pós-conflito tenha objetivos possíveis é necessário fazer escolhas difíceis, e menos generalizantes. Oliver Richmond fala em um projeto de peacebuilding de quarta geração, marcado pelo hibridismo e apropriação de práticas locais como mecanismo de superação da paz hegemônica para a paz do cotidiano, emancipatória, fundamentada na autonomia. O argumento defendido é que a paz liberal, espécie de paz virtual, mais coerente vista de fora para dentro do que de dentro para fora, construiria “Estados sombra“, com carcaça mas sem conteúdo. (RICHMOND, 2010, p.28) Pureza, em “O Desafio Crítico dos Estudos para a Paz” critica a “canonização da paz liberal como resposta única para a conversão das periferias turbulentas” ao propor a descolonização radical dos estudos para a paz e a construção de uma paz cultural. (PUREZA, 2011, p.19) A abordagem “híbrido local-liberal” defendida por Richmond opera favorecendo o protagonismo dos atores na determinação da sua paz ao equilibrá-lo com a construção da paz liberal. (PUREZA, 2011, p.31) Assim, os críticos promovem um rompimento com visão hard da paz democrática, em um revisionismo que questiona a paz única e universal defendida por seus predecessores, propondo “pós-colonizar a paz˜ (BLANCO, 2010) Autores como Herman Schmid (1968), que conversa com Richmond, denunciam o “reducionismo dos conflitos” associado à visão negativa dos conflitos em sua pretensão de torna-los administráveis, passíveis de uma solução. Em consequência, a ONU vem reconsiderando certos posicionamentos, haja vista os documentos “A more secure world: our responsability” (2004) e “In larger freedom” (2005). Outro crítico da ideologia da paz liberal é Michael Pugh em “Political Economy of Peacebuilding”, no qual sugere caminhos para romper com a tradição ortodoxa aplicada às operações de paz da ONU. A proposta que vincula a paz ao liberalismo defendida pelos desenvolvimentistas entende o desenvolvimento como capaz de libertar as sociedades das "armadilhas de conflito". (COLLIER, 2003, apud, PUGH, 2005, p.24) Não obstante, o fracasso do modelo de transformação econômica em áreas 41 de conflito como Serra Leoa e Iraque fez com que a paz liberal fosse reavaliada a partir de uma análise crítica. (PUGH, 2005, p.26) O autor registra a patologização da população dos países recém-saídos do conflito como resultado do peacebuilding , que por sua vez, propõe como solução a “governança terapêutica”, modalidade de tratamento psicossocial dos estados falidos. (PUGH, 2005, p.34) Para uma teoria crítica do peacebuilding internacional o autor insiste na indagação: para quem é o peacebuilding e a quais propósitos serve? Alternativamente à paz liberal ortodoxa, sugere uma ênfase maior em projetos que evitem subjugar as populações e passem a emancipá-las. A renovação dos mandatos das operações de paz nos casos selecionados, bem como a substituição de uma por outra tendo em vista episódios de instabilidade política sugere “o quão frágil a construção da paz pós-conflito e a construção do Estado liberal são e o quão insustentável até mesmo a segurança básica é sem peacekeeping internacional e uma força de polícia.” (RICHMOND, 2007, p.3) Os autores criticam o projeto da paz liberal, intervencionista e cosmopolita, referindo a Timor Leste, Haiti e Serra Leoa na compilação de artigos editada por Richmond “Advances in Peacebuilding: critical developments and approaches”. 5.3. CONTRATO SOCIAL Alternativamente ao universalismo implícito da paz democrática, a noção de um contrato social é que deve ser priorizada para evitar “Estados sombra.” Ao sintonizar o projeto de peacebuilding e as tradições existentes, anteriores ao conflito e à intervenção, o conteúdo do Estado abrangerá elementos comportamentais e institucionais, potencializando o processo de construção da paz. Em 2006, Roland Paris teceu uma crítica aos estudiosos contemporâneos da paz liberal que ao invés de iniciar suas pesquisas na hipótese de não-governo, do prisma enfatizado pelos contratualistas, isolam características de Estados já constituídos e exploram a relação entre tais características e a incidência de conflito. (PARIS, 2006, p.431) Segundo o autor é necessário resgatar o Leviatã de T. Hobbes 42 para tentar explicar a emergência de conflito intraestatal e sua ligação com a eficácia das instituições a partir da ótica do Estado. Ou seja, encoraja a produção de pesquisa acerca das fundações institucionais necessárias para uma democratização pós-conflito bem sucedida. De maneira análoga, Agné (2010) cita os contratualistas para referir que não importa o quão democrático o processo decisório possa ser em dada comunidade, seus resultados serão determinados pela decisão anterior e inescapável que definiu a comunidade no primeiro momento. (AGNÉ, 2010, p.383)34 Já Tull e Englebert (2008) apontam falhas nos esforços de reconstrução financiados externamente para explicar suas conquistas limitadas na região Africana. São três as presunções falaciosas que sugerem como justificativa para o fracasso dos esforços de reconstrução até então realizados: 1) a ideia de que as instituições estatais ocidentais podem ser transferidas para a África; 2) a crença em um entendimento comum de fracasso e reconstrução entre os doadores e as autoridades africanas; e 3) a certeza de que os doadores são capazes de reconstruir os Estados africanos. (ANDERSON, 2004, apud TULL, 2008, p.111) Segundo os autores, a primeira presunção se confirma a partir da quase inexistência de Estados na acepção moderna no continente africano: trata-se de “Estados que são falidos antes de serem formados” (TULL, 2008, p.112), portanto não há que se falar em “reestruturação”, “reconstrução”, “reestabelecimento” pois implicam existência de instituições públicas efetivas aguardando para serem ressuscitadas. Denomina-se “universalismo implícito” essa pretensão da comunidade internacional. A segunda se entende vis-à-vis uma má leitura feita pelos doadores, que negligencia o fato de que reconstrução, para as elites locais, significa a continuação da guerra e competição por recursos usando novos meios. Eles são, como anteriormente discutido, freqüentemente hostis a construção de instituições públicas fortes. Finalmente, o problema de objetivos ambiciosos pode ser compreendido haja vista sua incompatibilidade com os meios financeiros, militares e simbólicos oferecidos. Os autores reconhecem a possibilidade das sociedades africanas se recuperaram. No entanto, para ter sucesso é necessário encorajar esforços 34 Ressalta argumentos como o de Tocqueville no qual a máquina democrática é algo inexplicável, mantida pelos “hábitos do coração” e, portanto incapaz de ser traduzida em uma cartilha, para argumentar que o momento de fundação da democracia é um paradoxo- tanto em novos Estados quanto em novas constituições de Estados já existentes 43 dos nativos por meio de um processo de barganha entre as forças sociais e governamentais. Para eles só assim seria possível resolver a questão dos Estados falidos na África. Para essa corrente de contratualistas, a legitimidade não pode ser comprada, deve ser conquistada. (MENKHAUS, 2014) Portanto os esforços de construção da paz devem se concentrar não só no aumento da capacidade estatal, mas na criação de confiança, na inclusividade e no diálogo com os locais. Ao final da violência, além das instituições existentes sofrerem colapso a população encontra-se fragilizada, por isso a transição terá maiores chances de sucesso se for gradual, aos moldes de um contrato social. Pensar a construção da paz pós-conflito a partir da ótica do Estado resgata um pressuposto da democracia discutido pelos transitólogos, a saber: a concordância sobre a estatalidade. (LINZ, 1999, p.47) Para que o projeto de transição tenha maiores chances de lograr efeito, parece razoável submetê-lo à necessária justificação capaz de tornar o processo correto e lícito para a população. Nos casos a seguir investigados em que os agentes internacionais aplicaram o conjunto de presunções falaciosas baseando-se na crença de uma paz única e universal (RICHMOND, 2010, p.22) a abordagem do contrato social foi negligenciada. Em consequência disso, é possível antecipar que decisões marcadas pela ingerência externa, as quais anulem os atores locais, darão margem à retomada da violência, justificando a deserção dos excluídos. Os estudos de caso discutidos a seguir pretendem desenvolver a temática. 44 6. HAITI 6.1. CONTEXTO HISTÓRICO O Haiti é a terceira maior ilha caribenha, com 27,750 quilômetros quadrados de área, e população de 10.317.461 habitantes. É uma das nações mais pobres do continente americano. A prática do vodu, um “equívoco religioso”, integra a cultura haitiana, na qual a religião é a única “estrutura generalizada e de total eficácia”. (SEITENFUS, 2013, p.55) A língua oficial é o kreyòl, versão adaptada do francês com influência de dialetos africanos. Nas palavras de Samuel Huntington, o Haiti é um “vizinho indesejado” nas Américas. Suas características étnicas, culturais e linguísticas provocam repulsão e medo, distanciando-o tanto da América Latina como do Caribe anglófono e da América do Norte.35 No final do século XVI, em 1697, a Ilha de Hispaniola, descoberta e nomeada por Cristóvão Colombo, foi dividida entre os espanhóis e franceses que vinham disputando o território. O tratado Ryswick atribuiu aos primeiros a parte da ilha que é a atual República Dominicana e aos últimos a parte ocidental, renomeada de Saint Domingue. Na administração francesa, a ilha funcionou como entreposto comercial entre a América e a Europa, que graças à produção de açúcar tornou-se a mais próspera das colônias francesas no século XVIII, conhecida como “Pérola das Antilhas”. (MARQUES, 2002, p. 140) Nesse período, a população haitiana era constituída de 60.000 brancos e 465.000 escravos, divisão que culminou na primeira revolta negra em Santo Domingo em 1791, quando escravos abandonaram as plantações, destruindo engenhos e agredindo os brancos proprietários. (MARQUES, 2002, p. 140) Sob a influência das ideias iluministas e do pensamento anti-escravista da Revolução Francesa, Toussaint Louverture ganhou ascendência em 1794 e protagonizou a revolução dos “jacobinos negros”. (GORENDER, 2004, p.300) Em 1801, sob o comando do general Leclerc, enviado por Bonaparte, a luta armada teve início. Apesar da captura de Toussaint em 1802 e seu envio para morrer na França, a batalha prosseguiu e acabou com vitória dos haitianos em 18 de novembro de 1803 na batalha de Vertières, a primeira derrota de 35 O autor, em Clash of Civilizations (1996), chama o Haiti de “lone country” 45 colonizadores por um povo não-branco, mesmo se a historiografia não a reconheça enquanto tal. (SEITENFUS, 2013, p. 33) Quando a metrópole francesa perdeu a colônia, nasceu o Haiti, a primeira república de negros do mundo. Não obstante, dois séculos transcorreram até que o processo de independência se concluísse, sendo que para Ricardo Seitenfus “O Haiti não terminou ainda de pagar o tributo pela ousadia de 1804”. Apesar do voto universal ter sido introduzido em 1957, a eleição de 22 de outubro foi marcada por fraudes e pela onipresença das Forças Armadas. Até então não havia tradição democrática, podendo votar todos “exceto as mulheres, os criminosos, os idiotas e as pessoas em condição servil”, excluindo 97% da população. Graças à utilização de tinta lavável para identificar os que já haviam votado, juntamente da compra de votos e da montagem de currais eleitorais, a elite política continuou monopolizando o destino político do país. (SEITENFUS, 2013, p. 67) Em 1957, François Duvalier, o Papa Doc, chegou ao poder e organizou sua milícia privada, os Tonton Macoutes, instituindo uma república hereditária no Haiti. A Era Duvalier, um governo classificado como Sultanista nos termos de Weber, (LINZ, 1999) prosseguiu nas mãos de Baby Doc quando do falecimento de seu pai em 1971. Na década de 80 foi fundado o movimento Lavalas, (Lavalas significando “A avalanche” em kreyòl) cuja base católica mobilizou-se contra o regime militar. Finalmente, em 1986 os militares forçaram Baby Doc a abandonar o poder, encarregando-se da reforma política. A tarefa diante do Haiti era complexa: passar de um modelo que excluía a imensa maioria da população do jogo político para um modelo que a incluísse. (SEITENFUS, 2013, p.66) Uma nova Constituição foi adotada em 1987, e as eleições vieram em seguida. Com a ajuda da OEA e da ONU, o pleito de 1990 deu vitória a Jean Bertrand Aristide, um padre influenciado pela Teologia da Libertação do movimento Lavalas, com a maioria expressiva de 67% do eleitorado, ficando o segundo colocado com 14%. (PATRIOTA, 2010, p.120). Não obstante, em janeiro de 1991, Roger Lafontant, ministro de Duvalier, declarou nula a eleição, empreendendo um golpe de Estado. Apesar da estabilidade política ser tênue, em 7 de fevereiro o país assistiu a primeira experiência democrática se concretizar com a posse de Aristide, apelidado de Titid pelo povo. Seu discurso ao tomar posse enfatizava que: 46 A ruptura de hoje é a mesma que ocorreu no início do século. A mudança política de 1804 desembocou numa colonização maquiada. Com a segunda independência, precisamos realizar uma revolução social, pondo fim à confusão entre o Estado e os interesses da oligarquia. Para o povo explorado só houve a independência formal. (ARISTIDE apud SEITENFUS, 1994, p.42) Por isso, seu discurso era fundamentado em um esquerdismo religioso, distante portanto daquele dos tradicionais detentores do poder no país. É importante notar que ao assumir o governo, Titid deparou-se com indicadores sociais catastróficos e um Estado em ruínas: a dívida externa alcançava 747 milhões de dólares, a produção agrícola e o produto nacional bruto vinham decrescendo, ao passo que a população crescia exponencialmente. Aristide governou apoiado pelas pressões das ruas, e seu governo foi marcado pela tensão entre o Executivo e o Legislativo. No entanto, a democracia não criou raízes, pois em 30 de setembro um novo golpe militar coordenado por Raul Cédras destituiu Aristide. (SEITENFUS, 1994, p.40-42) Conforme antecipado, a transição de um regime sultanista para a democracia é sensível e por vezes exige ajuda externa (LINZ, 1999, p.82), nesse caso a comunidade internacional atendeu ao pedido e procurou reempossar o presidente eleito. Em que pese a pressão exercida pela OEA, um desfecho pacífico que assegurasse o retorno do presidente eleito não foi conseguido, já que o governo golpista descumpriu todos os acordos de paz que firmou. Em resposta à isso, o Presidente Aristide e o sistema interamericano foram levados à conclusão de que as sanções regionais eram insuficientes. A universalização do conflito ocorreu por intermédio da ONU em junho de 1993, ao opor embargos ao Haiti, e prosseguiu em setembro com o estabelecimento da Missão das Nações Unidas no Haiti (UNMIH) pela resolução 867. Cumpre mencionar que a insistência no caráter sui generis do caso haitiano no CSNU visava evitar precedente de interferência em questões de política interna. (PATRIOTA, 2010, p.120-127) Frustradas essas tentativas, em julho de 1994 a resolução 940 delegou à força multinacional o recurso a “todos os meios necessários” para restaurar a legitimidade institucional no país e facilitar a partida da liderança militar. A decisão de setembro de 1994 inaugurava importante precedente ao prever pela primeira vez na história da organização o uso da força contra país americano. Suas medidas surtiram efeitos 47 quando, em 15 de outubro, Aristide retornou e a resolução 948 determinou a suspensão das sanções, encerrando a primeira inserção da situação do Haiti sob o Capítulo VII da Carta da ONU. (PATRIOTA, 2010, p.120-127) Ricardo Seitenfus entende que a solução encontrada em 1994 não foi nem via OEA nem ONU, mas um acordo bilateral entre as partes, militares e governo legítimo, sendo que a comunidade internacional, em particular os EUA, desempenhou papel determinante na intermediação. (SEITENFUS, 2013, p.126) De fato, fatores externos como a vitória do Partido Democrata nos Estados Unidos permitiram o retorno de Aristide em 1994 numa operação militar definida como “invasão consentida”. 36 Não obstante, a intervenção militar justificou-se, em grande medida, graças ao seu propósito de restaurar o cargo da presidência ao candidato democraticamente eleito. (COLLIER, 2009, p.234) No ano de 1995 Aristide extinguiu, por decreto, as Forças Armadas do Haiti (FAH), substituindo-as pela Polícia Nacional Haitiana (PNH). Em 1996, nas segundas eleições presidenciais, a vedação constitucional impedia Aristide de permanecer no poder. René Préval, primeiro-ministro entre fevereiro e outubro de 1991 durante a breve experiência democrática, foi eleito o sucessor de Titid com 51,15% dos votos. As eleições presidenciais de fevereiro de 1996 marcaram a primeira transição política ocorrida entre dois presidentes eleitos. (SEITENFUS, 2013, p.130) 6.2. CRISE DE LEGITIMIDADE As eleições legislativas e municipais de maio de 2000 foram observadas pela OEA, que se encarregou do registro de eleitores, e constatou um importante nível de participação e ausência de violência no dia da votação. Entretanto, o Conselho Eleitoral Permanente (CEP), adotou um método de tabulação de votos que excluía aproximadamente 1,2 milhão de eleitores, infringindo a regra básica de um voto a cada eleitor e desfavorecendo os partidos de oposição não filiados ao Lavalas. Além disso, Manus, presidente da CEP admitiu que na noite anterior às eleições, pessoas, entre elas policiais, substituíram urnas vazias por urnas cheias de votos para os candidatos 36 19 setembro 1994: operação Uphold Democracy 48 do Lavalas. Lembrando Paul Collier, o apelo às táticas ilícitas nas eleições e a vantagem que tal mecanismo confere tem como resultado desestimular o investimento nas instituições. (COLLIER, 2009) A reação dos oposicionistas foi exigir que a votação fosse anulada; a da OEA foi decidir não observar o segundo turno das eleições municipais que não tiveram as falhas sanadas. Tendo se tornado uma disputa política, o pleito de maio de 2000 comprometeu a consolidação democrática e desembocou no boicote às eleições presidenciais no mesmo ano e na crise de legitimidade subsequente. (SEITENFUS, 2013, p.87-88) Segundo a definição minima de Przeworski (1996), o Haiti não pode ser considerado democrático pois em 2000 a oposição não teve nenhuma chance de vencer e, menos ainda, tomar posse. As eleições seviram meramente para “dar um ar de legitimidade a seus governantes”, mas o regime permaneceu autocrático, marcado por uma oposição entre as regras formalmente prescritas e a prática (pays legal VS. pays réel). (O’DONNEL, 1997) Ao terminar seu mandato presidencial, Préval foi o segundo chefe de Estado haitiano a deixar o poder por consequência do término do mandato e não por golpe militar ou morte. Após ter rompido com seu antigo partido político, o Organisation Politique Lavalas- OPL e fundado o Fanmi Lavalas (Família Lavalas), Aristide se elegeu presidente em 2000. As eleições presidenciais tiverem a participação de 66% do eleitorado. Desse universo, Aristide obteve 71,8% dos votos, os candidatos de oposição somaram 6,5% e brancos, nulos e abstenções alcançaram 21,7%, haja vista o boicote promovido pelos partidos de oposição. Com o objetivo de tentar substituir o presidente eleito, a Convergência Democrática indica que o opositor, Gérard Gourgue, é o presidente do Haiti apesar da vitória acachapante. (SEITENFUS, 2013, p.91) Além dessa, outras manifestações dos derrotados nas urnas consideraram o novo governo ilegítimo, contestando a vitória do presidente. Tais reações deram origem a uma crise de legitimidade iniciada nas eleições municipais de maio de 2000 que perduraria até 2004 conforme será detalhado na sequência. No ano de 2000, a ausência de violência (PIRI=5) em cenário de autocracia (Polity2= -2) é um ponto de partida que merece destaque por dizer respeito à cultura política haitiana: somente governos autoritários conseguem manter a estabilidade 49 política.37 Essa tendência inicial representada abaixo mostra uma correspondência entre autocracia e ausência de violência no ano de 2000 e 2001, contrariando a ideia de paz democrática. GRÁFICO 1.1 - DEMOCRATIZAÇÃO E ESTABILIDADE POLÍTICA NO HAITI 2000-2012 Haiti 6 5 3 2 PIRI 1 Polity2 0 -1 -2 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Polity2/PIRI 4 -3 FONTE: CINGRANELLI, David, RICHARDS, David, CIRI Human Rights Dataset 2014 e MARSHALL, Monty, GURR, Ted, Polity IV Project: Political Regime Characteristics and Transitions, 1800-2013 O pleito de maio de 2000 comprometeu a consolidação democrática e desembocou no boicote às eleições presidenciais no mesmo ano e na crise de legitimidade subsequente. Outra razão para os traços de autocracia no regime é que Aristide sofreu, no segundo mandato, da “maldição do Palácio Nacional”38, organizando a violência com milícias paralelas, integradas inclusive por crianças, e perdendo apoio das forças que o conduziram ao poder. A comunidade internacional estava entre as forças que retiraram o apoio ao segundo governo do ex-padre, consoante a declaração de Paul Farmer, enviado especial de Bill Clinton ao Haiti, ao Congresso americano: 37 Segundo Seitenfus, a estabilidade “é alcançada somente quando o regime é ditatorial, pois diante do emaranhado confuso que caracteriza a política haitiana – resultante de uma ruptura e não de um pacto- o poder somente pode impor-se sendo absoluto” (SEITENFUS, 2013, p.68) 38 Termo proposto em SEITENFUS, Ricardo, Análise de Conjuntura Observatório Político Sul-Americano, n. 8, 2009. Entrevista. Disponível em: http://www.seitenfus.com.br/arquivos/65_analises_AC_n_8_ago_2009.pdf Acesso em 20/10/14 50 bloquear ajuda bilateral e multilateral ao Haiti, em objeção às políticas e visões de Jean-Bertrand-Aristide […] cortar a assistência ao desenvolvimento e aos serviços básicos tirou o oxigênio do governo, que era a intenção todo o tempo: 39 desalojar a administração de Aristide A administração de Aristide hipotecava o desenvolvimento democrático, e o país conservava traços de autocracia; então, a OEA criou um comissão especial sobre o Haiti. Apesar dos esforços na busca por uma solução pacífica, a oposição insistia em desfazer-se do presidente que confundiu autoridade do regime com regime autoritário. (SARTORI, 1994, p.253). Na segunda metade de 2001, a crise política converteu-se em violenta. Para agravar, o presidente Aristide proferiu um discurso que acabou por incitar a violência entre os membros do Fanmi Lavalas, mobilizando o povo contra o “veneno que mata a democracia”, dando margem à vingança generalizada. (SEITENFUS, 2013, p.97-99) Isso explica a queda no respeito aos direitos de integridade física no ano de 2001. O regime era autocrático conforme demonstra o polity em -2, classificado como autoritarismo competitivo de acordo com Diamond (2002). Em 2002, o país estava caminhando para a anarquia. (SEITENFUS, 2013, p.99) Apesar da retórica em prol do interesse popular, Aristide considerava-se um governante de legibus solutus, desobrigado a obedecer a lei em favor de vantagens pessoais. (O’DONNEL, 1997) Não houve movimento no sentido de democratização, e o regime permaneceu tão autocrático quanto no ano anterior, já que para a democracia existir não bastam instituições na qualidade de condição logicamente necessária, mas de condição empiricamente necessária. (DAHL, 2001, p.63). O resultado da polarização entre apoiadores e opositores de Aristide foi o aumento da violência em 2002. Tal aumento é confirmado pelo PIRI em curva descendente, tendência repetida no WGI. Em 2003, manifestações populares por um projeto republicano articuladas pelos estudantes da universidade pública reuniram mais de 100 mil pessoas. (CHARLES, 2004, p.212) Um segundo grupo da sociedade civil que pressionou pela saída de Aristide foi o G-184, financiado pelo empresário haitiano-americano Andre Apaid. A terceira força de oposição era a Convergência Democrática, que agregava partidos de 39 WEISBROT, Mark, U.S. Government Still Not Ready for Democracy in Haiti, Huffington Post: The Blog. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/mark-weisbrot/us-government-still-not-r_b_1342584.html Acesso em 21/09/14 51 oposição sob a liderança do intelectual ex-exilado Gérard-Pierre Charles. A quarta compunha-se de ex-militares sob o commando de Guy Philippe, das antigas FAHextintas por Aristide em 1995- que reunem-se na República Dominicana e ingressam no país buscando revanche. A PNH, penalizada pela falta de organização e equipamento, foi incapaz de conter a campanha militar, que nas palavras de Seitenfus transocrreu como um “passeio”. (SEITENFUS, 2013, p.98-101) A violência contra os simpatizantes do Fanmi Lavalas e a persistência da instabilidade no ano de 2003 justifica o aumento da violência em relação ao ano anterior, e o PIRI ter chegado a marca 2. Em 2004, ano do bicentenário da Independência, a crise constitucional desembocou na queda de Aristide em 28 de fevereiro. Afastado do cargo e exilado na República Centro-Africana, o presidente teria renunciado em documento formal redigido em kreyòl no qual afirmava: “Por isto, se esta noite minha demissão evitar um banho de sangue, eu aceito partir com a esperança que haverá vida e não morte.” (SEITENFUS, 2013, p.85) Contudo, haja vista a pressão exercida pelos americanos e franceses contra o presidente e sua declaração de ter sofrido golpe, as circunstâncias de sua saída admitem múltiplas interpretações. Horas depois da partida de Aristide, Boniface Alexandre presta juramento como presidente provisório em cerimônia na qual estiveram presentes os embaixadores dos Estados Unidos e da França. (SEITENFUS, 2013, p.147) O regime atravessa um período de transição, registrado pela variável Polity, por isso o aumento de -2 para 0.40 O indicador de violência do PIRI não demonstra alteração, porém o WGI registra queda nesse ano. 6.3. MINUSTAH O CSNU decidiu pela criação de uma Missão de Estabilização do Haiti em junho de 2004, recorrendo ao uso da força para fazê-lo. Rescucitando o conceito de “população em perigo” e a ameaça à segurança da região que a antiga “Pérola das Antilhas” representava para os vizinhos, o mandato da MINUSTAH é enquadrado sob o Capítulo VII. (S/RES/1542) Entre as justificativas para a intervenção estava que o Estado haitiano era a expressão de uma oligarquia esclerosada (de militares, 40 O zero do Polit2 aqui representado corresponde ao -88 do Polity, que codifica as transições 52 empresários e políticos), deficiente de legitimidade e representação real dos cidadãos. (CHARLES, 2004, p. 212) Seu funcionamento era débil, repousando sobre a base da pilhagem, comprometendo a entrega de serviços públicos aos cidadãos, um dos traços dos estados falidos. (COLLIER, 2009, p.237) Ademais, as eleições eram incapazes de operar como mecanismo eficaz de accountability ou legitimidade, (CAROTHERS, 2007) impedindo os conceitos ocidentais de representatividade e democracia de ingressarem na cultura política haitiana. Isso bastou para que os estrangeiros os introjetassem à força, enxergando na cruzada democrática a solução para o imbróglio haitiano. (SEITENFUS, 2013, p.152) Em 2005 o crime organizado, em particular a onda de sequestros, sugeria um descompasso entre a proposta da operação de paz e a realidade da crise haitiana. Uma conquista do contingente militar brasileiro ao aplicar a doutrina 6 e meio foi a pacificação do bairro Bel-Air, até então considerado perigoso. Uma segunda incursão no mês de julho foi programada pela Minustah, a fim de capturar o líder Dread Wilmé, responsável pelas gangues de Cité Soleil. A ação terminou em tragédia, pois além da morte do líder, 50 civis foram vitimados.41 Sobretudo, os prejuízos gerados pela estratégia dos internacionais, principalmente aos mais pobres, indica o descomprometimento da operação em construir a paz emancipatória tal qual preconizada por Richmond. A continuação da onda de sequestros em Porto Príncipe é um segundo elemento que atesta a dificuldade do peacebuilding em melhorar a vida dos sujeitos diretamente afetados pelo conflito. Tal perspectiva é confirmada pelo apelido de “Turistah” que a operação recebeu dos locais.42 No caso da Minustah, a análise de seus resultados parece revelar a quem serve o peacebuilding. (PUGH, 2005, p.38) Há indícios de aumento na estabilidade em 2005 pelo WGI, mas tal tendência deve ser atenuada, pois o PIRI não demonstra diminuição da violência. No que toca à democratização, as eleições estavam originalmente previstas no cronograma do CEP para outubro/novembro de 2005. Contudo, a nova legislação eleitoral só foi aprovada em fevereiro, sendo que em abril iniciou-se o registro dos eleitores. Eram 870,000 pessoas registradas em agosto, o correspondentes a 1/5 da 41 Segundo a organização Médicos Sem Fronteiras, apud SEITENFUS, 2013, p.162 CARRANCA, Adriana, Minustah ou Turistah?, Estadão, 30 de marco de 2010. Disponível em: http://internacional.estadao.com.br/blogs/adriana-carranca/minustah-ou-turistah/ Acesso em 23/11/14 42 53 população, porém as identidades não tinham sido entregues.43 Em razão dos atrasos, as eleições que colocariam fim ao governo provisório de Latortue, imposto de fora para dentro, foram marcadas para Fevereiro de 2006. Tais avanços dão feição menos autocrática ao regime, conforme atesta o aumento no Polity2 no ano de 2005. Sobretudo o ano de 2006, data da transição para o governo legitimamente eleito, renovou as esperanças na democracia e eventual contenção da crise no Haiti. Inclusive, o partido de René Préval, antigo presidente da República quando successor de Aristide, levava o nome Lespwa, esperança em kreyòl. A participação no pleito de 7 de fevereiro dobrou a media histórica, com 63% dos inscritos comparecendo para votar em eleições tranquilas, com incidentes isolados de violência. (S/2006/592) Préval obteve 48,76% do total dos votos, ao passo que o candidato do Lavalas conseguiu 0,68%. Apesar do resultado ser insuficiente para decidir a eleição no primeiro turno, manifestantes denunciaram uma suposta fraude que tentaria impedir a vitória de Préval desde logo. (SEITENFUS, 2013, p.185) Em reflexo dos protestos, o CEP decide lançar mão da “cláusula belga”, segundo a qual os votos brancos são distribuídos na porcentagem de cada candidato. Com isso, Préval foi eleito presidente com 51,15% dos votos.44 Cabe mencionar o comentário de Celso Amorim para rebater as críticas à decisão controvertida: “as eleições no Haiti não ocorrem como na Suíça” (SEITENFUS, 2013, p.186) que respeita a real vontade dos locais e favorece o ownership (TADJBAKHSH, 2010, p.129). O polity2 em 5, anocracia aberta, confirma a boa notícia da eleição de Préval para a transição haitiana. Sobre a diminuição da violência, a retomada do patamar anterior à crise foi uma conquista. Assim, desde o estabelecimento da Minustah o aumento no caráter democrático do regime é acompanhado de melhora nos indicadores de segurança. A relação entre o regime e a estabilidade política segundo o banco de dados dos indicadores de governança confirma tal correspondência a partir de 2005 e 2006. 43 INTERNATIONAL CRISIS GROUP, Latin America/Caribbean Briefing N°8, Can Haiti Hold Elections in 2005? Disponível em: http://www.crisisgroup.org/en/regions/latin-america-caribbean/haiti/b008-can-haitihold-elections-in-2005.aspx Acesso em 14/11/14 44 MARRA, Ana Paula, Agência Brasil, Itamaraty elogia decisão de proclamar René Préval como novo presidente do Haiti, Disponível em: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2006-02-16/itamaratyelogia-decisao-de-proclamar-rene-preval-como-novo-presidente-do-haiti Acesso em 13/11/14 54 GRÁFICO 1.2 - DEMOCRATIZAÇÃO E ESTABILIDADE POLÍTICA NO HAITI 2000-2012 0,8 0,7 0,6 0,5 0,4 0,3 0,2 0,1 0 -0,1 -0,2 -0,3 Polity2 WGI 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Polity2/WGI Haiti FONTE: KAUFMANN, Daniel, KRAAY, Aart, MASTRUZZI, Massimo, Worldwide Governance Indicators 1996–2013 e MARSHALL, Monty, GURR, Ted, Polity IV Project: Political Regime Characteristics and Transitions, 1800-2013 A despeito do progresso no sentido da construção da paz liberal, a ação dos grupos armados na capital continuou representando uma ameaça ao processo de paz no Haiti. Após fracassados esforços de negociar o desarmamento com as gangues em Porto Príncipe, Préval pediu ajuda à ONU em 2007. Nesse ano o Polity2 se manteve em 5. O mesmo se deu com a ausência de violência, a despeito do aumento nos efetivos da PNH de 5,700 para 7,000, ainda aquém da meta de 15,000. 45 Em abril de 2008, protestos contra o alto custo da comida ocorreram e pelo menos 5 civis e um peacekeeper foram mortos. Os senadores oposicionistas aprovaram um pedido pela remoção do primeiro ministro Jacques-Édouard Alexis do cargo, responsabilizando-o pela crise.46 Além disso, no mesmo ano uma onda de tempestades tropicais matou 700 pessoas e Préval fez um pedido à CI que não se esquecesse do 45 FREEDOM HOUSE, Freedom in the World 2008, Haiti. Disponível em: http://freedomhouse.org/report/freedom-world/2008/haiti#.VFbMDdTF800 Acesso em: 24/10/2014 46 DELVA, Joseph, LONEY, Jim, Haiti's government falls after food riots, Reuters, 12 April 2008. Disponível em: http://www.reuters.com/article/2008/04/13/us-haiti-idUSN1228245020080413 Acesso em 22/11/14 55 Haiti.47 O regime não sofreu mudanças em relação ao ano anterior, permanecendo como anocracia aberta. A violência mensurada pelo PIRI e WGI também se manteve. As eleições parlamentares para o Senado em 2009 foram objeto de impasse, vez que os candidatos do partido Lavalas não tiveram suas candidaturas aceitas pelo CEP e o próprio CEP teve sua composição questionada. Mais uma vez, pouca ou nenhuma chance de vencer foi dada à oposição, infringindo a definição mínima de democracia. (HUNTINGTON, 1991, PRZEWORSKI, 1996). Por conseguinte, tanto a accountability vertical quanto a legitimidade do pleito foram mitigadas. Assim, não houve crescimento em direção à democracia em 2009, e o Polity2 se manteve em 5. Em relação ao ano anterior, o PIRI permaneceu em 6 e o WGI também não oscilou. No entanto, Seitenfus afirma que após 5 anos da presença da Minustah, “apesar de frágil, houve um extraordinário incremento da segurança pública com a redução sensível da incidência de sequestros.” (SEITENFUS, 2013, p.187) 6.4. O TERREMOTO, O CÓLERA E O VOTO O terremoto de janeiro de 2010, que fez 200 mil mortos e arrasou 80% das construções da capital,48 responde em parte pela queda no Polity2, indicando colapso da autoridade central nesse ano. A segunda razão atribui-se ao surto de cólera que recaiu sobre 30% do povo haitiano após o sismo, graças ao contingente de capacetes azuis vindo do Nepal. (SEITENFUS, 2013, p.310) Ambos motivos concorreram para a queda também do PIRI relativamente ao ano anterior. Segundo registros, o presidente Préval teria ficado prostrado após o ocorrido, concorrendo para a inoperância governamental no período que a população mais precisava de acesso aos serviços básicos: Por um lado a falta de transparência, de efetividade e a pouca governabilidade do país, e por outro o fato de que a comunidade internacional sustenta financeiramente o Estado haitiano resultaram em desconfianças mútuas, 47 MENDEL, Gideon, 'We are going to disappear one day', The Guardian: Global Development. Disponível em: http://www.theguardian.com/world/2008/nov/08/haiti-hurricanes Acesso em 27/08/2014 48 FREEDOM HOUSE, Freedom in the World 2011, Haiti. Disponível em: http://freedomhouse.org/report/freedom-world/2011/haiti#.VFbSXtTF800 Acesso em 14/09/2014 56 críticas veladas, ressentimentos (SEITENFUS, p.326) incontidos e oposições intransigentes. Essa conjuntura tornou as eleições presidenciais de novembro de 2010 motivo de crise e disputa entre os atores locais e os internacionais. As dificuldades incluíam: a) o registro dos eleitores e a retirada dos mortos da lista dos votantes a fim de mensurar a participação nas eleições e inferir a legitimidade dos eleitos; b) a substituição das cédulas de identidade nos casos de extravio; e c) a própria infraestrutura necessária para a realização das atividades do CEP e das eleições.49 Apesar dos desafios, as eleições de 28 de novembro transcorreram normalmente, com somente 4% das seções afetadas por manifestações e ou problemas técnicos. Com a participação de apenas 22,7% do eleitorado no primeiro turno, Mirlande Manigat teve 31,37% dos votos, seguida por Jude Célestin com 22,48% e Michel Martelly com 21,87%. Porém, o desfecho das eleições já havia sido definido pela CI, reforçando a tese do pleito enquanto combustível politico na ilha caribenha. Seitenfus, então representande da OEA na Haiti denunciou a tentativa de remover Préval da presidência às vésperas das eleições para “fazer tábula rasa do sistema politico haitiano” e “tornar possível o advento de uma nova classe política”. Tal iniciativa teria sido proposta por Edmund Mulet, o representante do SGNU, cujo candidato era Martelly, a quem teria prometido “fazer presidente da República”. (SEITENFUS, 2013, p.369-381) No início de 2011, com o objetivo de descartar Célestin, o sucessor de Préval, do segundo turno de modo aparentemente legal e em conformidade com a Lei Eleitoral haitiana, a Missão de Observação da OEA foi transformada em Missão de Recontagem. Após aplicar uma metodologia que descartava 38.541 votos de Célestin, deixando-o com 21,9%, a recontagem propos um segundo turno entre Manigat, com 31,6% e Martelly, 22,2%. (SEITENFUS, 2013, p.424) Em repúdio aos escândalos patrocinados pela CI, no primeiro segundo turno da história do Haiti, as abstenções atingiram 77,6%, e Martelly, “herdeiro do duvalierismo, coveiro da democracia e aspirações populares”, 49 INTERNATIONAL CRISIS GROUP, Latin America/Caribbean Report N°35, Haiti: The Stakes of the Post-Quake Elections, 27 October 2010. Disponível em: http://www.crisisgroup.org/en/regions/latinamerica-caribbean/haiti/035-haiti-the-stakes-of-the-post-quake-elections.aspx Acesso em 25/11/14 57 foi eleito com apenas 15,2% dos votos válidos. (SEITENFUS, 2013, p.363) A promessa de Mulet foi cumprida. A ingerência dos internacionais e o “imperialismo eleitoral” deu causa ao período de interregno que fez o regime relativamente democrático despencar. O seguinte comentário ilustra o fracasso completo desse modelo de pseudo-democracia importado e imposto à força no Haiti: O Representante da União Europeia e o Embaixador dos Estados Unidos dispõem de um enorme poder de decisão sobre o que acontece no Haiti. São eles que dizem se teremos ou não eleições. E pouco importa a vontade do povo haitiano. São eles que decidem eftivamente, fraude ou não, qualquer que seja o índice de participaçào, se o resultado deve ser aceito ou não. (TROUILLOT, 2013, apud SEITENFUS, 2013, p.370) A transparência e legitimidade do governo, conseguidas por meio de mecanismos de accountability e tão elogiadas no âmbito do discurso do peacebuilding, foram suspensas pelos próprios agentes que pretendiam ensiná-las. O pressuposto democrático da concordância sobre a estatalidade (LINZ, 1999, p.47) sofreu afronta na versão de “reconstrução democrática” adotada pela Minustah. A assistência prestada pelos internacionais fez um desserviço aos haitianos, violando as condições de competição livre e justa necessárias às eleições.(O’DONNEL, 1997) Tendo fracassado no plano vertical, associado ao processo eleitoral, a versão de democracia aplicada ao Haiti em 2010 e 2011 comprometeu o processo de paz e anulou a vontade da população. A participação dos eleitores relativamente alta em 2000, diminuiu em 2006 e caiu mais ainda em 201150, reiterando a desconfiança crescente dos haitianos em relação ao governo. Isso comprova que o Haiti não é palco de uma guerra civil, mas de um conflito doméstico de baixa intensidade que vem desde 1986, no cerne do qual está a temática eleitoral. Apesar da experiência anterior com a democracia, as lições aprendidas pelas forças antidemocráticas funcionaram na política haitiana tal qual a faca de dois gomes referida por Przeworski. (PRZEWORSKI, 1996, p.11) Ademais, a estratégia de resistir à reconstrução nacional conduzida pelas autoridades haitianas torna ainda mais difícil reforçar a capacidade do Estado, pois emana de fora para dentro e não de dentro para fora, como a abordagem do contrato 50 IDEA, Voter turnout data for Haiti. Disponível em: http://www.idea.int/vt/countryview.cfm?id=99 Acesso em 22/11/14 58 social ensina que deveria. À trajetória haitiana é possível aplicar o comentário de Tull e Englebert sobre os países africanos: “Estados falidos antes de serem formados” (TULL, 2008, p.112), pois trata-se de ”um quase-Estado” (SEITENFUS, 2013, p.445). A prestação da maior parte dos serviços públicos pelas ONGs e pelo setor privado impede o aumento na capacidade institucional do Estado haitiano. (COLLIER, 2009, p.237) Em que pese o país ser, proporcionalmente ao número de habitantes, o que mais recebe ajuda externa, enquanto a gestão não atravessar as instituições domésticas, a identificação do Estado como prestador de serviços não ocorrerá. Sem isso, a paz-auto-sustentável fica no plano das ideias e a dependência crônica segue comprometendo ainda mais a situação. 59 7. SERRA-LEOA 7.1. CONTEXTO HISTÓRICO Serra Leoa é um país da África Ocidental com território de 71.740 quilômetros quadrados delimitados a norte pela Guiné, ao sudeste pela Libéria e a sul e oeste pelo Oceano Atlântico. Com regiões montanhosas ao Norte e ao Leste, nelas se dá a extração de diamantes, principal atividade econômica do país. A população de 3.786.000 indivíduos se divide em duas etnias principais: Mendes, ao sul, e Temnes, ao norte. No equador religioso da África, a composição religiosa em Serra Leoa é 60% muçulmanos, 10% católicos, e 30% tradições africanas, porém não desempenha papel central na identidade étnica nem nas afiliações políticas. Inclusive, a tolerância entre as duas religiões se verifica no número de conversões e casamentos inter-religiosos que levou ao uso do termo “CrisMus”, cristão-muçulmano.51 Freetown, a província da liberdade e atual capital, deve seu nome aos eventos de 1787, quando os britânicos ajudaram 400 escravos libertos dos Estados Unidos, Nova Scotia (atualmente, parte do Canadá) e Grã-Bretanha a ir para Serra Leoa. Em 1807, ao abolir o tráfico de escravos, a Grã Bretanha assume a responsabilidade pelo território usando-o como base para a campanha contra os navios negreiros. Em consequência disso, outros grupos de escravos libertos mudaram para a região e optaram por permanecer em Freetown, entre eles africanos de todas as partes do continente, que ao retornarem eram chamados de Krio. (TAYLOR, 2014, p.132) Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a administração do protetorado foi percebida como inadequada, e o auto-governo baseado no sufrágio universal acabou sendo introduzido em 1951. Dez anos depois, no dia 27 de abril de 1961, Serra Leoa tornou-se independente, e Sir Milton Margai, do Partido do Povo de Serra Leoa (SLPP), seu primeiro-ministro. A opção, pactuada em reunião em Londres anteriormente naquele ano, foi pelo parlamentarismo integrado à Comunidade Britânica de Nações (Commonwealth). Foram agendadas para o ano seguinte as primeiras 51 THE ECONOMIST, All things happily to all men: Sierra Leone bucks a west African trend by celebrating its religious tolerance, 31 de maio de 2014. Disponível em: http://www.economist.com/news/middle-eastand-africa/21603015-sierra-leone-bucks-west-african-trend-celebrating-its-religious-tolerance-all Acesso em 11/08/2014 60 eleições pós-independência, e o SLPP foi desafiado pelo recém Partido do Congresso de Todo o Povo (APC - All People”s Congress Party). formado 52 A base de ambos partidos sempre se distinguiu em linhas regionais: o primeiro ao sul com Cristãos da etnia Mende, o segundo ao norte com Muçulmanos Temnes. (DENNEY, 2009) Em eleições consideradas justas e livres, Sir Margai foi reeleito presidente no ano de 1962, colocando a estrutura do setor público em Serra Leoa entre as melhores da África durante os anos 60. (WYROD, 2008, p.72) Em 1964, Sir Margai morre e a polarização em Serra Leoa começa a aumentar. Nas eleições parlamentares de 1967, o APC vence a maioria dos votos, primeiro caso de um partido de oposição derrotar partido da situação via eleições na Africa Subsaariana, correspondendo ao primeiro turnover de Huntington. Entretanto, uma década de instabilidade seguiu com golpes e contragolpes que conduziram Siaka Stevens, do APC, ao poder em 1968. Apesar de ter feito campanha sob a plataforma socialista, a tendência autoritária do líder restou clara ao assumir, e seu governo foi marcado pela a promoção de violência estatal para eliminar a dissidência. (TAYLOR, 2014, p.22) Os traços do regime hegemônico baseado na coerção acirraram após a autorização de um governo de um único partido em 1978, sob a presidência de Stevens. (WYROD, 2008, p.72) Durante o governo autoritário o presidente tornou o comércio de diamantes uma questão política e encorajou, tacitamente, a prática da exploração ilegal. As receitas obtidas do produto mais valioso da região eram repassadas a Stevens e a seus comparsas, à exemplo de regimes políticos que monopolizam o comércio do diamante, definidos pelo termo “gemocracia”.53 A distribuição dos recursos obedecia aos interesses do partido, e não aos da nação, comprometendo a legitimidade estatal. Do fracasso total das instituições compreende-se o início da guerra civil de 1991. (NDUMBE, 2001, p.93) Ao se aposentar em 1985, Stevens deixou um “Estado sombra”, marcado pelo patrimonialismo e ineficiência econômica, nas mãos de seu sucessor, o comandante do Exército Joseph Momoh. (WYROD, 2008, p.72) A continuidade do governo do APC significou a persistência do favorecimento dos interesses da oligarquia 52 O All People’s Congress foi fundado em 1957 por ex-membros do SLPP (GOLDMAN, p. 460) GOLDMAN menciona o termo gemocracy atribuindo-o a JALLOH, “The May 25, 1997 Coup and the Bur- den of Democratic Survival in Sierra Leone”, L’Afrique Politique 5 (1999). 53 61 em detrimento ao desenvolvimento nacional. Em consequência disso, a maioria vivia de agricultura de subsistência e as condições sociais intensificaram as práticas dos rebeldes. Graças ao crescente antagonismo entre o APC e o SLPP, o Exército foi dividido e a “política das forças armadas” proliferada. Posto de outro modo, o apoio a alternativas contrárias ao sistema passou a ser maior e menos isolado do que aquele às forças pró-democráticas, (LINZ, 1999, p.) favorecendo a emergência de centros autônomos de poder (TILLY, 2013). Nem a decisão de restaurar o multipartidarismo foi capaz de deter a primeira invasão no leste do país ocorrida em 23 de março de 1991. (NDUMBE, 2001, p.94) 7.2. GUERRA CIVIL A dissidência de Serra Leoa, ao lado de tropas leais a Charles Taylor e mercenários de Burkina Faso deram início a guerra civil, e invocaram a tirania dos líderes eleitos e a corrupção como justificativa para o uso da força. (WYROD, 2008, p,72) As incursões através da fronteira eram promovidas pelo Fronte Revolucionário Unido (RUF), sob a liderança de Foday Sankoh. Oficialmente, tinham por objetivo retirar o APC do poder, julgando tratar-se de um governo corrupto tribal e sem legitimidade popular. Suas práticas terrorizavam civis visando demonstrar o fracasso do governo nacional na proteção de seus cidadãos. Não obstante, os reais interesses dos rebeldes parecem ter sido: a) retaliar a participação de Serra Leoa no ECOMOG- contrária aos interesses de Taylor na Liberia, e b) tomar posse da reserva de diamantes do país vizinho, portanto mais oportunistas do que o discurso democrático sugeria. (NDUMBE, 2001, p.94) A relação estabelecida por Besley et Persson (2008) entre a disponibilidade de recursos naturais e a insurgência é uma das razões da guerra civil em Serra Leoa, onde os diamantes serviram como incentivo para a tomada do governo pelos rebeldes. Tendo em vista a insatisfação generalizada com o governo, o RUF teve facilidade de recrutar tanto civis quanto militares e deles obter apoio. Destacam-se dois atores em particular: os jovens- desempregados e analfabetos (FEARON, 2001, p.84) -; e os membros do Exército: 'sobels'- soldados de dia e rebeldes à noite. (VINCENT, 2012, p. 10) Após uma tentativa frustrada de solicitar o auxílio dos britânicos, Momoh 62 abandona o poder em abril 1992, temendo sofrer golpe dos militares. O Capitão Stresser, que o substituiu no cargo, pediu assistência externa a uma força privada de segurança baseada na África do Sul (EO), que favoreceu uma das milícias locais, os Kamajors, alternativamente às forças governamentais, vistas como corruptas e incompetentes. (NDUBE, 2001, p.95) No início de 1996 o RUF tinha sofrido baixas e consentiu em negociações com o governo. As eleições, as primeiras multipartidárias em 23 anos, foram agendadas para o mesmo ano. Apesar das práticas dos rebeldes de amputar os braços dos eleitores para evitar que votassem, Ahmed Tejan Kabbah, do SLPP, foi eleito com 59% dos votos. A condução de eleições relativamente justas e livres em meio a guerra civil pode ser entendida como um pequeno milagre, atribuindo importância ao exercício do direito ao voto entre os serra leonenses. Em novembro de 1996, o Acordo de Abidjan entre Kabbah e RUF, e a retirada da EO permitiram que se estabelecesse um governo de unidade nacional. Apesar das altas expectativas, o clima de desconfiança resultante da indecisão de Kabbah sobre os militares deu margem ao golpe de 1997 que significou o “colapso das instituições, estruturas e operação do governo” (NDUMBE, 2001, p.9596). Ao destituir Kabbah, Johnny Paul Koroma assumiu o poder e estabeleceu o Conselho Revolucionário das Forças Armadas (Armed Forces Revolutionary CouncilAFRC) presidido por ele e vice-presidido por Foday Sankoh. (GOLDMAN, 2005, p.462) A tentativa de um cessar-fogo em outubro de 1997, promovida pela ECOWAS em Conakry, Guiné, não teve o resultado esperado pois a junta o ignorou. (NDUMBE, 2001, p.98) Foi a ECOMOG, com o auxílio das tropas nigerianas, que em março de 1998 conseguiu o retorno de Kabbah ao poder. (GOLDMAN, 2005, p.463) Não satisfeitos, os rebeldes do AFRC e RUF retomaram as técnicas de guerrilha, levando o CSNU a estabelecer a Missão de Observadores em Serra Leoa (UNOMSIL) em 13 de julho de 1998. O retorno da violência com ataques à Freetown no final daquele ano obrigou a missão a evacuar seu pessoal em janeiro de 1999. (NDUMBE, 2001, p.97) Tal caso de peacekeeping é considerado um fracasso pois não cumpre o requisito mínimo da paz negativa. (CALL, 2008, 179) Tendo chegado a um impasse, a opção por negociação de power-sharing entre Kabbah e o RUF, intermediado por atores internacionais, foi privilegiada no Acordo de 63 Lomé, ratificado em julho de 1999. O acordo determinava um governo de unidade nacional sob Kabbah, sendo que um cargo na recém criada Comissão para a Gestão de Recursos Minerais seria dado a Foday Sankoh e as eleições ficariam marcadas para 2002. (GOLDMAN, 2005, p. 463) 7.3. UNAMSIL Com o intuito de monitorar o cessar-fogo, auxiliar no desarmamento, desmobilização e reintegração dos combatentes, e oferecer apoio para as eleições, o CSNU estabeleceu a Missão das Nações Unidas em Serra Leoa (UNAMSIL) em outubro de 1999 por sua resolução 1270. A missão tinha um mandato misto, com elementos de peacekeeping tradicional combinados a tarefas de peacebuilding, nos termos do Relatório Brahimi. (GOLDMAN, 2005, p. 477) Apesar da resolução 1289 do CSNU em 7 de fevereiro de 2000 ter aumentado o caráter de peace enforcement, a operação sofria de falta de recursos e pessoal mal-treinado. Em razão dessas fragilidades, foi alvo de ataques recorrentes. Quando 500 peacekeepers foram sequestrados em maio de 2000 pelo RUF, a impotência da operação ficou clara e a demanda por um mandato enquadrado no Capitulo VII da Carta da ONU aumentou. (KEEN, 2005, p.272) Ocorre que uma vez estabelecido o governo de transição em Lomé, Sankoh não demonstrou real interesse no exercício do poder via instituições. A despeito de suas reclamações sobre obstáculos da administração de Kabbah para evitar a participação do RUF no governo, Sankoh envolveu-se no tráfico de diamantes, acreditando estar à margem do direito. (GOLDMAN, 2005, p.464) Outro indício de que o RUF não pretendia respeitar o acordo era sua insistência na luta armada, rejeitando o jogo democrático da via das eleições como alternativa. Desse modo, o novo desafio tornou-se conseguir que o RUF recobrasse o apoio ao cessar fogo estabelecido em Lomé. Tal cenário confirma o argumento da maior probabilidade de recorrência de guerra nas transições negociadas, quando os rebeldes (RUF) retém sua capacidade organizacional de retomar a guerra, o fenômeno da “dupla soberania”. (QUINN, 2005) 64 O conjunto dos fatores formais - infraestrutura deficitária- e materiaisdescomprometimento do RUF com a paz - indicava o fracasso da manutenção do cessar-fogo. Inclusive, Goldman sugere que a UNAMSIL reflete a dificuldade, registrada no Brahimi Report, no que se refere ao envio de missões mal-equipadas para contextos nos quais os combatentes não estão interessados em respeitar a paz. Uma explicação potencial para o descrédito da operação reside na conjuntura internacional, em particular na participação da OTAN na intervenção no Kosovo em 1999 que consumia as atenções e os recursos do CSNU. (GOLDMAN, 2005, p. 482) A despeito das negociações em Lomé e do retorno de Kabbah ao poder em 1998, o descumprimento do acordo de paz e a defecção de uma das partes impediu que a democracia se tornasse o único jogo disponível em Serra Leoa. (TILLY, 2013, LINZ, 1999) Em razão disso, o Polity2 em 2000 registra colapso da autoridade central, portanto ano de interregno, e o WGI estabilidade política baixa, em razão da persistência da guerra.54 GRÁFICO 2.1 - DEMOCRATIZAÇÃO E ESTABILIDADE POLÍTICA EM SERRA-LEOA 2000-2012 1 0,9 0,8 0,7 0,6 0,5 0,4 0,3 0,2 0,1 0 Polity2 WGI 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Polity2/WGI Sierra Leone FONTE: KAUFMANN, Daniel, KRAAY, Aart, MASTRUZZI, Massimo, Worldwide Governance Indicators 1996–2013 e MARSHALL, Monty, GURR, Ted, Polity IV Project: Political Regime Characteristics and Transitions, 1800-2013 54 Em razão da ausência de valor para o PIRI em 2000, nesse ano a medida do WGI é a que vale; em contrapartida, em 2001 não há dado no WGI, portanto o valor do PIRI é que deve ser considerado 65 No entanto, ao longo do ano de 2000 uma mudança na postura dos atores envolvidos passou a indicar maiores chances de sucesso em Serra Leoa. A primeira delas foi a intervenção do Reino Unido tornando possível a derrota do RUF na ofensiva de maio. (GOLDMAN, 2005, p.464) A segunda, também decisiva na cessação da violência, ocorreu em agosto do mesmo ano, com a resolução 1313 na qual o CSNU solicitou a UNAMSIL que respondesse de maneira robusta a qualquer ato hostil praticado pelo RUF. (S/RES/1313) As duas reformulações deram início a um novo período de maior êxito do peacebuilding em Serra Leoa. Com a alteração no mandato da operação, as mudanças no terreno seguiram. Há registro de um maior esforço na conquista da confiança dos atores envolvidos na guerra, o que Keen chama de “construção de pontes”. Seu novo comandante a partir de novembro de 2000, Daniel Opande, viajou pelo país e auxiliou na desconstrução da imagem da UNAMSIL como uma ameaça, aumentando sua credibilidade e a segurança a ela atribuida pelos locais. (KEEN, 2005, p.272) A fala de um ex-combatente do RUF confirma a quebra do paradigma: Assim que alteraram a estrutura de comando da UNAMSIL, a situação mudou. Eles tentaram entender a situação do terreno. O RUF está cooperando por completo com eles. (KEEN, 2005, p.272) Esse comentário indica a conexão entre dois pontos interdependentes: a construção da paz e a construção de confiança interpessoal (TILLY, 2013, p. 30). Sem a adesão das partes engajadas no conflito ao jogo democrático, o “consenso normativo” entre os diferentes grupos que formam a sociedade inviabiliza essa opção. (MOISÉS, 1988, p.50) A criação de confiança no pós-conflito entre a população e as novas instituições é fundamental, porém insuficiente. (MENKHAUS, 2014) É preciso que os grupos engajados no conflito confiem no projeto de transição pacífica e naqueles que o conduzem, sob pena de dele desertarem. Entre as razões que auxiliaram no enfraquecimento do RUF está o convencimento de que a guerra por Freetown era impossível de vencer e o controle do comércio de diamantes por intermédio de resoluções da ONU. Principalmente, a captura de Foday Sankoh no final de 2000 e sua substituição por Issa Sesay, que era “genuinamente pela paz”, diferente de seu antecessor, revelou a vontade dos rebeldes 66 de contribuir ao processo de paz. (KEEN, 2005, p.271-273) De fato, no Acordo de Cessar-fogo de Abuja, na cidade de mesmo nome na Nigéria, Sesay, na condição de representante do RUF, reafirmou o comprometimento ao Acordo de Paz de Lomé. Nessa oportunidade, o potencial do mecanismo de power-sharing na dissolução da “dupla soberania” – ora ineficaz na negociação anterior – foi reiterado. (QUINN, 2005, p.10) A postura de Sesay e uma eventual fadiga dos combatentes contribuíram para o sucesso da engenharia institucional desenhada em Abuja. Entre as provisões do Acordo, o governo teria de controlar os Kamajors e remover os impedimentos à transformação do RUF em um partido politico. (BAH, 2013, p.16-17) Cumpre mencionar que a insistência dos rebeldes na continuidade da Guerra também pode ser explicada se o RUF, mais do que um movimento, for entendido como um ambiente no qual diversos grupos conseguiam se safar com violações.55 Inclusive, o registro da Comissão da Verdade e Reconciliação aponta que 59,2% das violações atribuem-se ao RUF e as demais a outros grupos.56 O principal argumento para a rejeição ao processo de paz parece ser a incapacidade da operação de oferecer algo novo, diferente do combate. A partir do momento que o desarmamento e a reintegração receberam maiores investimentos e a presença de tropas da ONU aumentou no terrreno, os rebeldes passaram a levar a sério a transição e a confiar na operação. (KEEN, 2005, p. 272) O diagnóstico mudou pois aos locais foi dada maior participação, aumentando a percepção de que seus interesses vinham sendo contemplados no projeto de paz. Em 2001 uma segunda reunião revisou o Acordo de Abuja e aumentou os esforços no DDR. Ao final desse ano, 75.000 ex-combatentes tinham sido desarmados e o RUF organizado como um partido politico. (BAH, 2013, p.17) Para diminuir a interferência da Libéria no conflito, um embargo de armas e sanções internacionais foram mobilizados, bem como a proibição à saída de Charles Taylor do país. (S/RES/1343) Também, em setembro o Parlamento decidiu pela postergação do Estado de emergência, em efeito desde o retorno de Kabbah, por outros seis meses. (KEEN, 2005, p.283) Goldman destaca que o componente civil da UNAMSIL melhorou a 55 “The RUF is not as much a movement as an environment.” KEEN, 2005, p. 267 9.8%- AFRC, 6.7% ao Sierra Leone Army (SLA), 5.9% ao Civil Defence Forces (CDF), e 0.7% ao ECOMOG. BAH, op. cit, p.3 56 67 infraestrutura do país e ajudou a criar boa vontade entre a população; assumindo um papel de mediação, preponderantemente, ao invés de condução. (GOLDMAN, 2005, p.485) Conforme discutido, a legitimidade deve ser conquistada, portanto a opção por reformas inclusivas, assim percebida pelos locais, é importante na construção da paz sustentável. (MENKHAUS, 2014) Essa combinação de esforços se comprova na melhora tanto no Polity2 quanto na ausência de violência em 2001. Na classificação proposta por Larry Diamond, Serra Leoa ao final de 2001 é um regime ambíguo. (DIAMOND, 2002, p.31) Em janeiro de 2002 a ”normalidade” retornava a Serra Leoa em consequência da conclusão do desarmamento e do retorno dos refugiados.(GOLDMAN, 2005, p.465) Kabbah declarou o fim do estado de emergência no mês março, sinalizando que a guerra estava encerrada.57 Do universo de 5,2 milhões, estima-se que a guerra tenha deixado 70.000 mortos e metade da população desabrigada. (HUMAN RIGHTS WATCH, 2005) Ao longo de um periodo tão longo – de 1991 a 2002 – tanto a economia quanto as instituições do Estado sofreram as consequências da Guerra civil (COLLIER, 2009, p.222) Se a falência estatal for definida pelo fracasso das instituições públicas de oferecer bens políticos positivos aos cidadãos em uma escala provável de comprometer a legitimidade e existência do Estado ele próprio, Serra Leoa pós-guerra pode ser considerado um estado falido. (GOLDMAN, 2005, p.465) Portanto, nos anos imediatamente após o fim do conflito o apoio internacional era fundamental para evitar os riscos de rebelião renovada em resposta à baixa capacidade estatal. Duas grandes conquistas em 2002 foram o Ato Eleitoral estabelecendo uma Comissão Eleitoral Nacional nova e independente, e a realização de eleições consideradas justas e livres. Em maio, com o apoio da ONU, ocorreu o primeiro pleito eleitoral pós-conflito em Serra Leoa. O sucesso do partido dominante de encerrar a guerra foi retribuído com votos que tornaram Ahmed Tejan Kabbah novamente presidente. (WYROD, 2008, p.74) A maioria do SLPP se deu tanto no Executivo quanto no Parlamento; em contrapartida, a asa política do RUF não conseguiu nenhum assento. Oportunizar a participação do grupo rebelde na política demonstra que nem 57 FREEDOM HOUSE, Freedom in the World 2003, Sierra Leone. Disponível em: http://www.freedomhouse.org/report/freedom-world/2003/sierra-leone#.VFJvi9TF800 Acesso em 26/10/14 68 sempre é necessário remover as a violência, pois a sociedade por ela mesma dá conta de escolher o projeto de transição que julga ser melhor. As tropas britânicas foram evacuadas em julho desse ano, após terem permanecido dois anos na ex-colônia. Já a UNAMSIL ao final de 2002 contava com 17,455 peacekeepers, custando aproximadamente US$700 milhões ao ano. (KEEN, 2005, p.272-283) Em 2002, a transição democrática avançou e o Polity2 subiu de 2, no ano anterior, para 5. Também a violência foi minimizada, sendo que o respeito aos direitos de integridade física alcançou o máximo de 8. A tendência das duas variáveis sugere correspondência entre democracia e estabilidade política no pós-conflito em Serra-Leoa; ou seja, redução da violência à medida que o regime torna-se democrático. No entanto, a situação não se manteve em 2003. Com o estabelecimento da Corte Especial de Serra Leoa para apurar os crimes cometidos durante a guerra, foram indiciados 12 pessoas, entre eles Foday Sankoh- que morreu em julho aguardando o julgamento - e Charles Taylor. Ansiosos para declarar a missão um sucesso, o CSNU planejava a retirada da operaçãoo de paz, desconsiderando os alertas sobre o perigo do vácuo de segurança que a saída da UNAMSIL poderia causar. Foi assim no dia seguinte ao indiciamento de Taylor, com o ataque do grupo de rebeldes LURD (contra quem Taylor vinha lutando desde que foi eleito presidente da Liberia em 1997) à Monrovia, capital da Liberia. O ICG tentou persuadir os agentes internacionais a considerarem os eventos na Liberia antes de determinar o passo e a extensão geográfica da retirada, denunciando o desempenho complacente do governo e a dependência de doadores cuja interação ignorava a realidade da população. 58 Aqui, é possível verificar a manifestação do paradigma da segurança como melhor abordagem para a “paz”, distante do ideal da paz positiva de Galtung e mais ainda da paz emancipatória de Richmond. Além dessas, outra ameaça ao processo de paz em 2003 advinha da dificuldade de reintegração dos ex-combatentes desempregados graças à falta de recursos do DDR, planejado para 33.000 combatentes, porém surpreendido com 72.000. Há indícios de que muitos esperavam a retomada da guerra após retirada da 58 INTERNATIONAL CRISIS GROUP, Sierra Leone: The State of Security and Governance, Africa Report N°67, 2 Sep 2003, Disponível em: http://www.crisisgroup.org/en/regions/africa/west-africa/sierraleone/067-sierra-leone-the-state-of-security-and-governance.aspx Acesso em 10/09/14 69 UNAMSIL, um alerta para a não-sustentabilidade da paz à esse momento. (KEEN, 2005, p.287-288) Apesar do Alto Comissário de Direitos Humanos da ONU ter declarado em novembro a diminuição da violência59, graficamente o PIRI caiu de 8 para 5 em comparação com o ano anterior. Em contrapartida, o regime manteve a tendência do ano anterior, de anocracia aberta (Polity2= 5). Em maio de 2004 ocorreram eleições locais que deram ao APC o controle ao norte de Freetown. Em setembro, no juízo da CI a situação da segurança tinha melhorado de tal forma que a responsabilidade pela segurança de todo o território foi transferida para o governo. Em outubro a Comissão de Verdade e Justiça divulgou seu relatório final (GOLDMAN, 2005, p.486-490) Nesse ano, as Nações Unidas divulgaram documento referindo-se a UNAMSIL como uma história de sucesso.60 O ICG, no entanto, manifestou a preocupação com a dependência externa e o tratamento da construção da paz tal qual uma lista de itens, recomendando um comprometimento a longo prazo, ao DPKO e ao Reino Unido.61 No registro dos indicadores houve diminuição da violência em relação a 2003 e o PIRI chegou a 6. O regime se manteve estável, como anocracia aberta. Em maio de 2005, Christiana Thorpe, líder da sociedade civil, assumiu a presidência do Conselho Eleitoral Nacional (CEN), aumentando a credibilidade da instituição. (WYROD, 2008, p.74). Ao final desse ano, em 31 de dezembro, o mandato da UNAMSIL expirou e suas últimas tropas, dentre as 17,300 mil, foram evacuadas e tiveram suas atribuições repassadas aos locais. Os efeitos da saída são melhor apreendidos nos anos seguintes, mas de acordo com o Polity a estabilidade do regime se manteve. Já a ausência de violência diminuiu no PIRI, mas não no WGI. Ainda assim, Kofi Annan, em abril, alertou para a persistência dos problemas que deram causa ao conflito, mencionando os jovens como atores importantes na construção de uma paz que se pretenda durável, resgatando a discussão de Fearon (HANLON, 2005, 59 FREEDOM HOUSE, Freedom in the World 2003, Sierra Leone. Disponível em: http://www.freedomhouse.org/report/freedom-world/2003/sierra-leone#.VFJvi9TF800 60 UNITED NATIONS PEACE OPERATIONS, UNAMSIL: A success story in UN peacekeeping, Year in Review, 2004. Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/publications/yir/2004/ch3.htm Acesso em 15/09/2014 61 INTERNATIONAL CRISIS GROUP, Africa Report N°87, Liberia and Sierra Leone: Rebuilding Failed States, 8 Dec 2004. Disponível em: http://www.crisisgroup.org/en/regions/africa/west-africa/sierraleone/087-liberia-and-sierra-leone-rebuilding-failed-states.aspx Acesso em 25/11/14 70 p.11) Um dado interessante sobre esse ano é o survey do IRCBP sobre como a guerra afetou o modo de trabalhar em conjunto dentro das comunidades, no qual 60% dos entrevistados disseram que os impactos foram positivos. Esse ponto indica o aumento na mobilização política nas comunidades afetadas pela violência, reconhecendo um potencial transformador na guerra. (BELLOWS, 2006, p. 398) No início de 2006, em janeiro, o CSNU estabeleceu o UNIOSIL, voltado à consolidação da paz em Serra Leoa. Em abril, Charles Margai rompeu com o SLPP e formou um novo partido, o People’s Movement for Democratic Change (PMDC). Tal novidade ofereceu uma terceira opção na política dominada pelo binômio APC e SLPP e incrementou a democracia partidária. Tanto o PIRI quanto o Polity se mantiveram no mesmo nível do ano anterior. 7.4. A TRAJETÓRIA DEMOCRÁTICA E A POLARIZAÇÃO Em 2007 ocorreram as primeiras eleições democráticas sem presença internacional, marcando a transição pós-conflito entre governos civis. A derrota do partido dominante (SLPP) em favor da oposição (APC) sinalizou a rejeição do modo que Kabbah vinha administrando a paz, negligenciando os problemas de corrupção e pobreza que deram origem ao conflito. (WYROD, p.70) Ernest Bai Koroma venceu no segundo turno com 54,6% dos votos contra 45,4% de Solomon Berewa, vitória que corresponde ao primeiro turnover nos termos de Huntington. Apesar da estação da chuva e do temor de baixo comparecimento, 2/3 dos eleitores registrados compareceu ao pleito marcado por divisões regionais. A CEN contribuiu ao sucesso das eleições que foram consideradas justas e livres pela comunidade internacional (FREEDOM HOUSE) A realização do pleito contribuiu à transição: de acordo com o Polity, o regime em Serra Leoa tornou-se democrático nesse ano (Polity2 ≥ 6) e houve melhora no respeito aos direitos à integridade física segundo o PIRI. Episódios de violência em resposta à vitória de Koroma foram minimizados quando o candidato derrotado compareceu à cerimônia de posse do presidente eleito em 17 de setembro. (WYROD, 2008, p.77) Tal gesto parece indicar um esforço das elites políticas em apresentar o 71 regime democrático como “o único jogo disponível” na sociedade, combinando dimensões comportamentais, atitudinais e constitucionais nesse sentido. (LINZ, 1999) No ano seguinte (2008) foram realizadas eleições locais que repetiram a tendência de divisão regional entre o SLPP, ao sul, e o APC, ao norte e oeste – os 13 distritos foram divididos em 6 para um partido e 7 para o outro. (FREEDOM HOUSE, 2008) No mês de setembro, Koroma estabeleceu uma nova Comissão Anti-Corrupção, substituindo o ato de 2000 que deu origem à primeira versão do órgão. Em outubro, os 70 funcionários da UNIPSIL, estabelecida em agosto pelo CSNU, começaram a operar, visando a consolidação política, a construção de instituições democráticas e a promoção dos direitos humanos. (S/RES/ 1829) Tanto o Polity quanto o PIRI se mantiveram nesse ano. No mês de março de 2009 a polarização entre os principais partidos se converteu em violência entre simpatizantes do APC e o SLPP na capital. O crédito pela conciliação foi do representante da UNIPSIL, Michael von der Schulenburg, que pressionou as lideranças dos dois partidos a assinarem um “Joint Communiqué” comprometendo-se a prevenir disputas políticas. O resultado foi a visita do presidente Koroma à sede da oposição, oportunidade na qual proferiu discurso sobre a não violência. Além disso, uma coalizão entre jovens de ambos partidos reuniou esforços em torno do debate conjunto, em detrimento das acusações mútuas e da postura combativa adotada até então. (DENNEY, 2009) A contestação pública e o direito de participação são condições da Poliarquia, segundo Dahl, por isso a atitude dos jovens é relevante para a democracia. Em setembro, o mandato da UNIPSIL foi renovado por mais um ano. (S/RES/1886) Os dados sobre o regime se mantiveram no mesmo patamar do ano anterior, e a violência praticada não foi registrada pelo PIRI ou WGI, os quais se mantiveram estáveis. Segundo a Anistia Internacional, 2010 deu lugar ao ressurgimento de políticas de identidade e ao acirramento da polarização em linhas adversariais: APC X SLPP.62 O governo anunciou o plano de uma investigação sobre os crimes cometidos pela junta militar em 1992; não obstante, a iniciativa foi criticada pela sociedade civil e pelos 62 ANISTIA INTERNACIONAL, Annual Report http://www.amnesty.org/en/region/sierra-leone/report-2011 2011, Serra Leoa. Disponível em: 72 agentes da UNIPSIL por incitar a intolerância entre os partidos, e o governo, mesmo contrariado, silenciou. (FREEDOM HOUSE, 2011) Em decorrência disso, as relações entre Schulenburg e Koroma foram se deteriorando.63 No mês de setembro, a ONU levantou as últimas sanções contra Serra Leoa que estavam em efeito desde 1997, mantendo o peacekeeping apenas para observar as próximas eleições. Não houve alteração no regime e o Polity se manteve estável. Porém, a queda do PIRI em um ponto no ano de 2010 sugere aumento da violência em relação ao ano anterior. GRÁFICO 2.2 - DEMOCRATIZAÇÃO E ESTABILIDADE POLÍTICA EM SERRA-LEOA 2000-2012 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0 PIRI Polity2 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Polity2/PIRI Sierra Leone FONTE: CINGRANELLI, David, RICHARDS, David, CIRI Human Rights Dataset 2014 e MARSHALL, Monty, GURR, Ted, Polity IV Project: Political Regime Characteristics and Transitions, 18002013 Em julho de 2011, Julius Maada Bio, herdeiro do passado autoritário de Serra Leoa, tornou-se o líder do SLPP. Popular entre os jovens e os militares, Maada Bio foi vítima de um ataque na cidade de Bo em setembro no qual membros do APC atiraram pedras contra o presidenciável. Em represália, prédios do APC foram atacados, demonstrando a distância entre o discurso de unidade do communiqué de 2009 e o desafio da construção da paz na prática. (FREEDOM HOUSE, 2011) Na sequência da onda de violência, o mandato da UNIPSIL foi renovado por mais um ano. (S/RES/2005) 63 SECURITY COUNCIL REPORT, March 2012 Monthly Forecast: Sierra Leone, Disponível em: http://www.securitycouncilreport.org/monthlyforecast/201203/lookup_c_glKWLeMTIsG_b_7996429.php?p rint=true Acesso em 18/10/14 73 Em dezembro, o representante permanente de Serra Leoa na ONU, Shekou M. Touray, apresentou uma solicitação formal do presidente Koroma a Ban Ki-moon de que Schulenberg fosse substituído.64 A principal acusação contre ele era de favorecimento da oposição, e como o APC se recusou a negociar caso a substituição não fosse feita, o pedido foi atendido. Ao ceder à solicitação do país receptor da operação, a CI acolheu a vontade do governo legitimamente eleito, distanciando-se da ingerência praticada no Haiti no mesmo período. No ano de 2011 o regime não sofreu alterações, mantendo-se democrático segundo o critério do Polity. Já o PIRI retomou a marca 6, melhora também registrada pelo WGI comparativamente ao ano anterior. A solução rápida é um sinal de recuperação importante para a transição bem sucedida, pois previne que uma nova coalizão política se forme visando tentar combinar a eficácia das políticas com a legitimidade democrática. (LINZ, 1999, p.207) Em 2012 os esforços se concentraram na realização das eleições presidenciais e parlamentares de novembro. É importante destacar que essas foram as primeiras eleições nas quais a maior parte do orçamento era oriundo de Serra Leoa, e não de doações. Outra novidade foi a simultaneidade das eleições presidenciais, parlamentares e dos conselhos locais, que até então ocorriam em datas distintas. De janeiro até março, o CEN foi responsável pelo registro dos eleitores e a implantação do sistema biométrico. Foram registrados 2,692,635 serra leonenses para escolherem seus candidatos. Em janeiro ocorreu um episódio de violência partidária em eleições parciais em Freetown no qual a polícia teve de intervir, sendo que no mês seguinte o SLPP acusou o partido da situação de armar e mobilizar ex-combatentes para atrapalhar as eleições. Em maio, todos os partidos assinaram um acordo comprometendo-se com eleições justas, livres e pacíficas. Chegada a data, as eleições transcorreram normalmente e a participação dos serra-leonenses foi em torno de 88%.65 Koroma, candidato à reeleição, obteve 58.7% dos votos, e Bio 37.4%. O APC manteve a maioria nas eleições parlamentares, ampliando o número de assentos, ao 64 NEW AFRICAN MAGAZINE, Politics, Sierra Leone: The Shape Of Things To Come? 01 de Abril de 2012. Disponível em: http://newafricanmagazine.com/sierra-leone-the-shape-of-things-to-come/ Acesso em 30/09/2014 65 IDEA, Voter turnout data for Sierra Leone. Disponível em: http://www.idea.int/vt/countryview.cfm?CountryCode=SL Acesso em 23/11/14 74 passo que o SLPP não aumentou nem diminuiu sua representatividade. Inicialmente, o SLPP se recusou a aceitar os resultados, alegando irregularidades no processo eleitoral. No entanto, Bio e Koroma emitiram uma declaração em dezembro reconhecendo a vitória do APC, descartando a opção pelo boicote do SLPP. A importância da tomada de posse dos eleitos e anuência dos derrotados é requisito da transição democrática, anteriormente discutido por Przeworski e Huntington. Ainda assim, o banco de dados Polity não registrou melhora no regime em 2012. A violência registrada pelo WGI também se manteve estável em relação a 2011. A alternância do poder entre SLPP e APC em 2007 e a aquiescência com o resultado eleitoral em 2012 pelos derrotados tornam Serra Leoa uma democracia na definição de Przeworski. (PRZEWORSKI, 1991, p.10) Ainda que a definição seja mínima, o alto comparecimento às eleições de 2002, 2007 e 2012 é outro indício que confirma a receptividade dos serra-leonses à transição. No curso do período 20002012, a democratização registrada pelo Polity foi expressiva, sendo que os momentos de melhora coincidiram com as eleições (2002, 2007). A transição do regime é acompanhada de incremento na segurança, haja vista a tendência do PIRI e WGI próxima do Polity2. Segundo Goldman, o desafio pós-conflito em Serra Leoa era redefinir de maneira positiva a relação entre o governo e os governados a fim de assegurar a legitimidade das novas instituições estatais. (GOLDMAN, p.466) Ao final da guerra civil, a ossatura do Estado estava para ser construída, inoportuno se falar em reconstrução. Porém, as elites políticas já atuavam no país, administrando os recursos naturais em benefício próprio. Negligenciar tal conjuntura poderia comprometer o processo de paz, favorecendo a insurgência. Pode-se dizer que o desafio do consenso normativo foi alcançado pois nem a guerra em 1996, nem a estação da chuva em 2007 impediram a realização de processo eleitoral relativamente justo e livre. A versão híbrida da construção da paz articulada entre os internacionais e locais permite afirmar: ˜Serra Leoa demonstra como os problemas africanos podem ser solucionados por soluções predominantemente africanas.”66 66 frase popularizada após genocídio em Ruanda quando muitos africanos concordaram que o melhor seria resolver seus próprios problemas, sem depender do mundo Ocidental e da Onu (GOLDMAN, p.459) 75 8. TIMOR LESTE 8.1. CONTEXTO HISTÓRICO Com pouco mais de um milhão de habitantes e compreendendo aproximadamente 14,600 quilometros quadrados de território, Timor Leste é uma pequena ilha montanhosa que alcançou a independência em 2002. Ainda em 2010 a maioria da população, cerca de 70.4%, vivia nas zonas rurais.67 Trata-se de uma população jovem, na qual pessoas abaixo de 15 anos representavam 46% do total em 2012.68 A ilha do Timor está dividida em duas partes: a República da Indonésia, situada ao Oeste, cuja capital é Kupang, e a República Democrática de Timor Leste, ao Leste, cuja capital é Dili. Enquanto colônia portuguesa, a partir da metade do século 16, poucos investimentos em infraestrutura foram realizados. Em 1941, a ilha tornou-se um microcosmo da segunda Guerra, tendo sido invadida por tropas japonesas e austroholandesas. Encerrada a guerra, a administraçãoo portuguesa foi restaurada em 1945. Entre 1962 e 1973 a Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu o direito à autodeterminação do Timor Leste e de outras colônias portuguesas. No entanto, somente após a Revolução democrática de 1975 em Portugal tal direito foi reconhecido pela metrópole, e com ele a autorização de partidos políticos. Surgiram a União Democrática Timorense (UDT), a Associação Social Democrata Timorense (ASDT) – que meses depois, torna-se FRETILIN – e a Associação Popular Democrática do Timor (APODETI), cujo objetivo era a integração autônoma com a Indonésia. Em 20 de agosto de 1975 foram criadas as FALINTIL (Forças Armadas de Libertação de Timor-Leste) enquando um braço militar do FRETILIN. Em 28 de novembro de 1975, o FRETILIN proclamou unilateralmente a independência do território com relação a Portugal. Em seguida, Portugal reconheceu perante a ONU a incapacidade de levar a bom termo os conflitos no Timor, sendo que ao dia 30 do mesmo mês ocorreu a Declaração de Balibó ou “Proclamação da 67 GOVERNO DO TIMOR-LESTE, Resultados do Censos 2010: crescimento populacional de Timor-Leste é mais lento do que esperado, 22 de outubro de 2010. Disponível em: http://timorleste.gov.tl/?p=4144&n=1 Acesso em: 12/08/2014 68 THE WORLD BANK, Data, Population ages 0-14 (% of total), Timor Leste. Disponível em: http://data.worldbank.org/indicator Acesso em 22/12/14 76 Integração”, na qual partidos contrários à FRETILIN, em particular a UDT, solicitaram a integração do território à Indonésia. Em meio a instabilidade, em dezembro de 1975, por meio da Operação Komodo, inicia-se a segunda fase da história do Timor-Leste: a ocupação indonésia. Durante esse período, que durou entre 1975 e 1999, os vizinhos da Indonésia tornaram-se sua 27ª província, denominada Timor Timur. Operou-se a javanização do Timor português, sendo a homogeneização lingüística uma das políticas fundamentais. Com os indonésios, a promoção do desenvolvimento por meio de investimentos em infraestrutura e subsídios para a agricultura foi muito maior do que aquela dos portugueses. (ENGEL, 2011, p.9) Não obstante, o Estado indonésio praticou um genocídio contra seus vizinhos enquanto as Falintil, organizadas sob a liderança de Xanana Gusmão, recorriam a técnicas de guerrilha para lutar contra a ocupação. Em 1987 opera-se o divórcio entre FRETILIN e Falintil que terá implicações no Timor pósconflito. (ICG, 2006) O estopim para o movimento de solidariedade internacional em relação ao Timor ocorreu em novembro de 1991 com o Massacre de Santa Cruz, desencadeando um “efeito CNN”. (PUREZA, 2001, p.11) Tais eventos culminaram na renúncia do General Suharto em 1998 cedendo às manifestações e pressão generalizada. Em 5 de maio de 1999, Indonésia e Portugal assinaram um acordo visando a transição para a independência timorense sob os auspícios da ONU. A opção acordada foi de realizar um referendo a fim de mensurar o apoio popular pela autonomia do Timor. O resultado do referendo de 30 de agosto foram 78,5% dos votos pela independência, porém a autonomia conquistada teve um alto custo conforme será discutido abaixo. 8.2. ADMINISTRAÇÃO ONUSIANA Como havia sido alertado, o resultado da consulta popular desagradou aos grupos pró-integração, em particular o Exército indonésio e milícias a ele próximas. A UNAMET, força militar internacional que criou as condições para a realização do referendo, vinha sofrendo ameaças da milícia e reconheceu estar ciente que as consequências do referendo poderiam ser violentas. (STANKOVITCH, 2000, p.24) De 77 fato, após a divulgação do resultado a favor da independência, a UNAMET, que já vinha sofrendo da falta de recursos, não conseguiu conter as represálias naquilo que ficou conhecido como “Setembro Negro”. (PUREZA et al., 2009, p. 288) O objetivo dos paramilitares pró-integração era destruir a infraestrutura até então existente e despovoar o Timor Leste. (DUNN, p.350, apud RICHMOND, p.6) Estima-se que 1,400 pessoas foram mortas, centenas estupradas, e 500.000 deslocadas de suas casas (ICTJ e UNTAET). Ao final, as milícias destruíram 70% da infraestrutura então existente. (GOVERNMENT OF TIMOR-LESTE, 2003, p.12) Nesse ponto, críticos com Roland Paris apontam uma insistência da comunidade internacional na liberalização precipitada ao introduzir a democracia em um ambiente volátil e perigoso, sugerindo que a ONU nunca se recuperou desse contratempo.(PARIS, 2004) Os perigos da democratização precipitada e os efeitos a curto prazo da transição foram alertados por Snyder e Mansfield (2005) conforme referido no item (5.1) Em consequência da crise, a UNAMET foi evacuada, tendo apenas uma pequena parte do contingente permanecido. A solução encontrada para conter a violência pós referendo e viabilizar o retorno da UNAMET foi o envio da INTERFET, sob o comando australiano, em setembro de 1999. Nesse momento, a ONU destituiu a polícia indonésia da função de proteger a porção leste da ilha, repassando-a à força armada internacional. Trata-se de uma operação que combinava elemento de peacekeeping tradicional com peace enforcement, já que as forças militares afastavam-se da função meramente observadora desempenhada pela missão predecessora.69 Ao assumir o funcionamento dos serviços básicos à população, a UNAMET obteve sucesso pois “ofereceu administração interina, assistência humanitária urgente e ganhou os corações e as mentes dos timorenses ao afastar o Exército e as milícias indonésios.” (DUNN, 2003, p.367, apud RICHMOND, 2007, p.7) É possível estabelecer um paralelo entre a percepção dos locais recepcionando o recurso ao uso da força nessa oportunidade, e no Haiti quando do retorno de Aristide. A resposta repousa na legitimidade popular, a justificação capaz de tornar o processo correto e lícito para a população, (DAHL, 1997, p. 28) presente no referendo pela independência e na eleição democrática de Aristide. 69 BELLAMY, Alex, WILLIAMS, “INTERFET Case Study,” Polity. 2010, Disponível https://www.polity.co.uk/up2/casestudy/INTERFET_case_study.pdf Acesso em 17/10/14 em: 78 Recobrada a estabilidade, o CSNU estabeleceu em outubro de 1999 a United Nations Transitional Administration in East Timor (UNTAET) com o intuito de administrar o Timor Leste em sua transição para a independência. (S/RES/1272) Seu mandato, enquadrado sob o Capítulo VII da Carta da ONU, previa uma operação multidimensional com objetivos amplos desde “estabelecer uma administração efetiva” até “assistir ao estabelecimento de condições para o desenvolvimento sustentável. 70 Em suma, gozava de soberania para administrar temporariamente o território, com autoridade legislativa, executiva e judiciária, por isso, em termos coloniais, era administração direta, não indireta. (SUHRKE, 2001, p.6) Para tanto, ficava encarregada de auxiliar os timorenses nas seguintes tarefas: formular a constituição, organizar o sistema de justiça, e realizar eleições parlamentares e presidenciais. Nesse sentido, a UNTAET foi um experimento único em matéria de administração transicional, sendo a mais compreensiva operação do tipo coordenada pela ONU pois não competia com nenhuma outra autoridade. (SUHRKE, 2001, p.1) Uma segunda novidade introduzida pela UNTAET foi a administração distrital, visando descentralizar a autoridade política para melhorar as vidas dos cidadãos ordinários, nos moldes do que havia ocorrido no Kosovo e em Cambodia. Na teoria, tal modelo era promissor por proporcionar maior agência aos atores locais, porém a “janela de oportunidade para o sucesso” foi mal aproveitada quando a demanda pela centralização em Dili venceu e as estruturas locais foram desperdiçadas. (CHOPRA, 2002, p.985-988) Dissolvida em maio de 2002, a UNTAET fez das eleições para a Assembleia Constituinte de 2001 sua estratégia de saída. (CHOPRA, 2002, p.994) Conforme relata Engel, o Conselho Nacional de Resistência Timorense (CNRT)71 representado por seu Presidente, Xanana Gusmão, era favorável a um modelo de transição gradual para a independência, que durasse cerca de dez anos. Porém, a CI tinha pressa e ansiava por resultados para divulgar. (ENGEL, 2011, p.4) Essa postura confirma que os proponentes do modelo de reconstrução democrática se preocupam mais em coincidir o prazo das eleições com a estratégia de saída às pressas, em detrimento de considerar o tempo necessário para a realização de eleições bem-sucedidas. (OTTAWAY, 2003, 70 UNITED NATIONS, UNTAET, Background, Department of Public Information, 2002. Disponível em: http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/etimor/UntaetB.htm Acesso em 30/08/2014 71 SUHRKE se refere o CNRT como o “guarda-chuva das forças pró-independência”. 79 p.314) A tentativa inicial de favorecer a participação local foi considerada secundária na prática, e em março de 2001 somente algumas dentre as 13 Administrações Distritais eram timorenses. (SUHRKE, 2001, p.13) Em preparação para as eleições de 2001, a UNTAET foi responsável pelo registro de 742,461 pessoas em um período de 3 meses. Tal número correspondia a praticamente a totalidade da população timorense (excluindo refugiados) segundo os dados oferecidos pelo DPKO.72 Somente após a questão das Falintil ter se tornado incontornável é que a UNTAET decidiu por sua dissolução e criação das Forças de Defesa de Timor-Leste (FFDTL) no início de 2001. (GORJÃO, 2004, p. 1057) Apenas 650 dos 1500 membros das F-FDTL eram ex-Falintil, decisão cujas consequências reverberam no pós-conflito timorense. (ICG, 2006) A UNTAET também foi responsável pela criação da Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL). Em agosto do mesmo ano 91% do eleitorado compareceu às urnas para decidir quem os representaria na Assembleia Constituinte. (PARIS, 2004, p.219) Nelas, o FRETILIN obteve 57% dos votos e garantiu 55 dos 88 assentos, refletindo larga vitória eleitoral. Isso permitiu a aprovação de uma “Constituição Fretilin”, da qual emanava a subordinação do Presidente ao governo, formulação que prejudicou a separação dos poderes traduzida pelo checks and balances. Uma segunda provisão da Consetituição decidia pela transformação da Assembleia Constituinte em Assembleia Nacional, descartando a necessidade de uma segunda eleição. O resultado foi um Parlamento ilegítimo, comprometendo o processo democrático e alimentando o ressentimento nos partidos que não o FRETILIN. (RICHMOND, 2007, p.10) Em razão da omissão dos valores de 2000 e 2001 no banco de dados Polity, a análise da democratização não pode ser operacionalizada usando essa fonte. Como parâmetro, pode-se recorrer ao estudo de Larry Diamond, no qual o regime em Timor Leste ao final de 2001 foi classificado como autoritarismo competitivo. (DIAMONS, 2002, p.31) 8.3. RDTL 72 UNITED NATIONS TRANSITIONAL ADMINISTRATION IN EAST TIMOR, UNTAET’S 25 Major Achievements, April 2002 80 Na sequência, as eleições presidenciais ocorreram em 14 de abril de 2002 e foram consideradas livres, justas e pacíficas pela ONU. Xanana Gusmão, do Partido Democrático, foi o primeiro presidente eleito no Timor-Leste. No entanto, o primeiro ministro Mari Alkatiri, do FRETILIN, “monopolizou o poder político e estagnou o governo”, usando da Constituição para dificultar, ao lado de sua base aliada, a governabilidade de Gusmão. (RICHMOND, 2007, p. 11) Eleito o presidente, a República Democrática do Timor-Leste foi restaurada em 20 de maio de 2002 e dissolvida a UNTAET.73 Para Richmond, a administração pública timorense teria que começar do início em razão da lacuna existente entre as instituições, e entre a experiência daqueles operando-as. No entanto, a UNTAET durou menos de três anos. (RICHMOND, 2007, p.5) Ao nascer, dois aspectos normalmente ausentes nas missões de paz estavam presentes em Timor Leste, a saber: a) o poder beligerante- Indonésia- tinha evacuado por completo; e b) um único interlocutor com quem negociar- o CNRT. (RICHMOND, 2007, p.7) Tais condições deveriam ter conduzido a um resultado de sucesso; não obstante, Chopra, líder da administração distrital da UNTAET até 2000, afirma “ainda assim deu errado”. Conforme o relato da RENATIL, grupo opositor às conquistas da UNTAET divulgadas às vésperas do fim do mandato: “Timor Leste será deixado pelas Nações Unidas em um estado muito mais pobre do que o que a ONU havia prometido ao país em seu mandato.” (CHOPRA, 2002, p. 999) Ressaltando a necessidade de um diálogo popular sobre a ineficiência da autoridade governamental e o conflito entre dois projetos: o ideal onusiano e o ideal local. Suhrke considera as dificuldades encontradas resultado da contradição que a UNTAET sofreu, desde o início, entre sua estruturabaseada em técnicas de peacekeeping – e seu mandato, preparar os timorenses para a independência- portanto state-building. (SUHRKE, 2001, p.1) De todo modo, nota-se a insistência na via de cima para baixo, que acaba por reificar a violência estrutural e reforçar a paz dos vencedores. (RICHMOND, 2010, p.25) Uma segunda operação, a UNMISET, foi estabelecida em maio de 2002 para dar suporte aos primeiros anos do Estado timorense. Seu mandato, prevendo componentes militar, policial e civil, pretendia substituir o protagonismo da operação anterior por um simples auxílio ao processo de autoconstrução levado a cabo pelos 73 “restaurado” e não criado pois em 28 de novembro de 1975 houve a proclamação unilateral 81 timorenses. (SILVA, 2012, p.49) Segundo o Polity, em 2002, o regime timorense era democrático (Polity2=6), e a não variação em relação aos dois anos anteriores deve ser compreendida com cautela em razão da ausência dos dados. No que se refere à violência, em dezembro de 2002 houve um incidente em Dili no qual a polícia atirou contra 18 manifestantes, matando dois deles e deixando outros 26 feridos. 74 Ainda assim o WGI não foi alterado, e a estabilidade política verificada desde 2000 se manteve. GRÁFICO 3.1 - DEMOCRATIZAÇÃO E ESTABILIDADE POLÍTICA EM TIMOR LESTE 2000-2012 0,9 0,8 0,7 0,6 0,5 0,4 0,3 0,2 0,1 0 Polity2 WGI 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Polity/WGI Timor-Leste FONTE: KAUFMANN, Daniel, KRAAY, Aart, MASTRUZZI, Massimo, Worldwide Governance Indicators 1996–2013 e MARSHALL, Monty, GURR, Ted, Polity IV Project: Political Regime Characteristics and Transitions, 1800-2013 A alta estabilidade política apresentada nos primeiros anos do gráfico parece não se confirmar nos registros históricos, demonstrando uma limitação do banco de dados consultado. Inobstante, o episódio do confronto entre os civis e a polícia em Dili no ano de 2002 prevalece em detrimento dos dados numéricos pois ressalta a dificuldade de se incorporar a vontade coletiva e os efeitos colaterais da estratégia da paz liberal executada no Timor Leste. Ainda assim, o representante do SGNU Jean-Christian Cady afirmou em 2002: “na história caótica das operações de peacekeeping da ONU, onde 74 ARAÚJO, Marito et al, Joint Statement of Civil Society Organizations in Timor Lorosa'e, “Never sacrifice people for certain political ambition”, Dezembro 2002, Disponível em: http://www.etan.org/et2002c/december/01-7/07civsoc.htm Acesso em 11/10/14 82 os resultados nem sempre correspondem aos esforços da CI, o Timor-Leste figura como um sucesso inequívoco.” (apud GOLDSTONE, 2004, p.83) Em 2003, no aniversário da independência, ocorreu a Reunião de Timor-Leste com os Parceiros do Desenvolvimento (RTLPD), promovida pelo governo e pelo seção do Banco Mundial local. Nessa oportunidade, Alkatiri declarou: Assumimos a direção deste país com pouca experiência de governação. A agravar, como Estado, estava vazio de memória e carente de competências, de disciplina, e de vida e cultura institucionais (ALKATIRI, apud SILVA, 2012, p.80) aludindo à tese do terra nullius em termos de Administração Pública. (CHOPRA, 2002, p.981) Kelly da Silva, antropóloga cuja pesquisa etnográfica foi realizada no terreno, compara a reunião com uma arena de disputa, sublinhando a demanda do governo aos doadores por maior autonomia na gestão dos recursos. (SILVA, 2012, p.80) Um ano após a independência, cerca de 80% das despesas públicas eram pagas com recursos dos doadores.(SILVA, 2012, p.81) A dependência de assistência externa do jovem Estado timorense e a falta de auto-governo justificam o emprego do termo “Estado fantasma”. (BLANCO, 2010, p.187) A metáfora é próxima daquela de “Estados sombra“, com carcaça mas sem conteúdo. (RICHMOND, 2010, p.28) Sobre a estabilidade política, em janeiro e fevereiro desse ano, forças anti-timorenses e pró-milicia conduziram ataques na região próxima da fronteira com a Indonésia.75 A violência aumentou em relação ao patamar que se encontrava desde 2000, com queda no WGI e no índice PIRI. Não houveram alterações no regime registradas pelos dados do Polity. Em abril de 2004, Kofi Annan recomendou a manutenção da UNMISET por mais um ano. O CSNU consentiu, porém ressaltou que essa seria a última postergação. No final do ano, as relações entre os timorenses e seus vizinhos indonésios tomaram um novo rumo. Os países iniciaram diálogo que continuou até fevereiro de 2005 e possibilitou a criação de uma Comissão da Verdade para apurar as violações aos direitos humanos cometidas em 1999 bem como outros acordos bilaterais. (GORJÃO, 2008, p.1-5) De acordo com o PIRI a violência foi minimizada retornando ao nível 75 UNITED NATIONS, Press Release, Recent Violence, Rise In Armed Groups Threaten Success In Timor-Leste, Peacekeeping Under-Secretary-General Tells Security Council, 10 de março de 2003. Disponível em: http://www.un.org/press/en/2003/sc7683.doc.htm Acesso em 13/11/14 83 observado entre 2000 e 2002. A classificação do regime segundo o Polity2 não sofreu alterações nesse ano. Entre dezembro de 2004 e setembro de 2005 foram realizadas eleições locais em 442 aldeias (sucos). A função dos líderes eleitos nesse nível é mobilizar e informar os membros das comunidades, tarefa particularmente importante nas regiões inóspitas. Nessas eleições o monitoramento costuma ser menor, e a violência eleitoral registrada também. Uma provável razão para tanto é a dificuldade dos observadores externos de controlar a autoridade exercida pelos líderes comunitários, que pode servir como meio de intimidação.76 Apesar da declaração do CSNU de 2004, em 2005 a renovação do mandato da UNMISET voltou ao debate. Em resposta ao pedido do primeiro ministro Alkatiri de janeiro, Annan recomendou ao CSNU a manutenção da presença da ONU em Timor Leste. A UNOTIL foi estabelecida no mês de abril, com a intenção de permanecer até maio de 2006. Outro ponto importante é que entre 2005 e 2006 o governo deixou de gastar 1/4 de seu orçamento, demonstrando estar mais preocupado em manter a centralização do que em melhorar a prestação de serviços. (CURTAIN, 2006, p.9) Da perspectiva do cidadão, falta de capacidade institucional e intenção perniciosa dos governantes gerarm fracasso em termos de bem-estar e aumentam a possibilidade de recorrência da guerra, antecipando os eventos do ano seguinte. (COLLIER, 2009, p.234) A violência medida pelo PIRI e WGI aumentou em 2005 comparativamente ao ano anterior, ao passo que a estabilidade do regime se manteve. 8.4. A PERSISTÊNCIA DAS CAUSAS ORGINÁRIAS E A CRISE Desde 2001 o FRETILIN “transformou democracia em ditadura ao se estabelecer como o único mandatário do poder político”, e as consequências de tal favorecimento, ratificado pela UNTAET (CHOPRA, 2002, p.996), ressurgiram na crise de 2006. (RICHMOND, 2007, p. 11) Foi a disputa por poder político entre as lideranças 76 TIMOR LESTE ARMED VIOLENCE ASSESSMENT, Electoral violence in Timor-Leste: mapping incidents and responses, 2009. Disponível em: http://www.genevadeclaration.org/fileadmin/docs/focuscountries/Issue_Brief_3_-_Electoral_violence_in_Timor-Leste.pdf Acesso em 26/11/14 84 das frentes da resistência à ocupação indonésia –Gusmão e Alkatiri- que desestabilizou o Estado timorense. A UNTAET, encarregada da construção do país ab initio, negligenciou as elites locais pré-existentes, para as quais mudar significou continuar a competir pelos mesmos recursos, apenas usando novos meios. (TULL, 2008) O recurso à violência 4 anos após a restauração da RDTL justificou-se à luz de antigas feridas não curadas. A destruição de propriedade, por exemplo, apareceu como reação à má distribuição das terras. (ROTBERG, 2010, p.398) Assim, uma multiplicidade de causas ocasionou a violência em Dilli na primeira metade de 2006. Sobre os agentes internacionais, a preocupação de Gorjão com a retirada precipitada das tropas da UNMISET criar um vácuo de segurança provou-se acertada. (GORJÃO, 2008, p.1) Outro ponto foi o acirramento das divisões regionais entre Lorosae (nascer do sol em Tetum) e Loromonu (pôr do sol), traduzido no mote “Leste vs. Oeste” dos protestos subsequentes. (CURTAIN, 2006, p,12) Tal divisão teria sido alimentada pelos líderes comunitários ao não rebaterem os rumores de que a origem dos problemas estava nas diferenças regionais. (CURTAIN, 2006, p.5) Além disso, a percepção da corrupção vinha aumentando, e com ela o descontentamento da população com o governo do FRETILIN.77 Finalmente, e sobretudo, a causa motriz do início dos protestos se deve aos cerca de 600 militares liderados por Gastão Salsinha protestando contra a discriminação, o recrutamento e as medidas disciplinares aplicadas nas F-FDTL. Após frustradas tentativas de negociação e aumento nas deserções, os “peticionários” foram dispensados por Taur Matan Ruak – chefe das Forças Armadas – com o apoio de Alkatiri, porém contra a vontade de Gusmão. (ICG, 2006) Inconformados, organizaramse exigindo a saída do primeiro ministro do poder, demanda recebida com simpatia pelo público timorense, também insatisfeito. A crise no setor de segurança dialoga com a incapacidade da polícia (PNTL) na manutenção da ordem, que comprometeu ainda mais a situação, levando 148,000 pessoas a abandonarem suas casas. (CURTAIN, 2006, p.13) Estima-se que 38 pessoas foram mortas nos incidentes. (ANISTIA INTERNACIONAL, 2008) Em junho, Alkatiri cedeu à pressões abandonando o cargo de 77 UNITED NATIONS OFFICE IN TIMOR-LESTE, Strengthening Accountability and Transparency in Timor-Leste, Dili, 2006. Disponível em: http://siteresources.worldbank.org/INTTIMORLESTE/Resources/Report_of_the_Alkatiri_Initiative_Review _Mission.pdf Acesso em 26/11/14 85 primeiro ministro. José Ramos Horta, vencedor do Nobel da paz, assumiu em seu lugar. O aumento na violência em 2006 foi registrado pelo WGI, mas não pelo PIRI. GRÁFICO 3.2 - DEMOCRATIZAÇÃO E ESTABILIDADE POLÍTICA EM TIMOR LESTE 2000-2012 Timor-Leste 8 Polity2/PIRI 7 6 5 4 Polity2 3 PIRI 2 1 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 0 FONTE: CINGRANELLI, David, RICHARDS, David, CIRI Human Rights Dataset 2014 e MARSHALL, Monty, GURR, Ted, Polity IV Project: Political Regime Characteristics and Transitions, 1800-2013 Nesse ano o Polity2 subiu para 7, sugerindo que o regime tornou-se mais democrático do que vinha sendo desde a independência. No entanto, cumpre mencionar que o relatório do Polity considera iniciado em 2006 um período de faccionismo em Timor graças à polarização regional e política. (POLITY IV- Country Report 2010, Timor-Leste) A crise nacional de 2006 fez com que lideranças timorenses – Ramos Horta, Alkatiri, Gusmão – solicitassem nova missão da ONU. (S/2006/651) Em resposta à solicitação, a UNMIT foi estabelecida em agosto, planejada para permanecer até 2012. (S/RES/1704) Na gestão do pós-crise foram ofertados cargos políticos e compensação monetária aos culpados, minimizando o rule of law no país graças ao sentimento de que os políticos estavam à margem da lei. (MOLNAR, p.141) A estratégia aplicada foi anti-democrática, já que a substituição dos “detentores do poder” pelos “detentores da autoridade” figura entre os objetivos principais da democracia. (SARTORI, 1994, p.253) Uma segunda consequência da sensação de impunidade foi violar o preceito republicano de que ninguém deve estar acima da lei. (O’DONNEL, 1997, p.30). O SGNU, em relatório de agosto, reconheceu que os eventos de abril foram os 86 precursores da crise política, humanitária e securitária de dimensões maiores com graves consequências ao jovem estado timorense. (S/2006/628) A preocupação crescente da CI após a crise tem de ser compreendida à luz da transformação vertiginosa do Timor Oriental de um caso exitoso em um projeto onusiano em declive. (PUREZA et al., 2009, p.291) É interessante notar que nos anos subsequentes a 2006, em razão da instabilidade pós-independência, começam os discursos de Timor Leste enquanto um “estado falido” (MOLNER, p.154) A incapacidade de adereçar as causas originárias dos protestos levaram à continuação da crise no ano eleitoral. Em 2007, meses antes das eleições, Xanana Gusmão fundou o Partido Congresso Nacional para a Reconstrução Timorense (CNRT), com a mesma sigla do Conselho Nacional de Resistência Timorense. Com o auxílio do monitoramento de 85 organizações, dentre as quais 56 timorenses, e da polícia da ONU, o dia da votação transcorreu pacificamente, sendo que a Comissão Nacional Eleitoral (CNE) recebeu apenas 5 queixas de violência.78 A despeito da ajuda internacional, essas foram as primeiras eleições nacionais conduzidas pelo governo Timorense, regidas pelas leis locais.79 Cerca de 81% do eleitorado compareceu às urnas em 9 de abril para escolher o presidente. Sem maioria no primeiro turno, as eleições presidenciais foram decididas em maio. Ramos Horta, concorrendo como candidato independente, foi eleito com 69% dos votos, contra 31% de Lu-Olu, candidato do FRETILIN. Em julho foi a vez das eleições para o Parlamento, nas quais o CNRT’ conseguiu 18 assentos, contra 21 do FRETILIN. A fim de obter a maioria dos assentos, o CNRT’ formou uma coalizão com partidos menores, a Aliança para Maioria Parlamentar (AMP), e decidiu sobre a composição do governo (HOLLEKIM, 2007, p.13) Diante disso, Gusmão foi nomeado primeiro ministro pelo presidente eleito em agosto. Após a divulgação dos resultados, Alkatiri e o FREITLIN consideram o governo inconstitucional, ilegal e ilegítimo, iniciando uma onda de protestos. No entanto, 78 TIMOR LESTE ARMED VIOLENCE ASSESSMENT, Electoral violence in Timor-Leste: mapping incidents and responses, 2009. Disponível em: http://www.genevadeclaration.org/fileadmin/docs/focuscountries/Issue_Brief_3_-_Electoral_violence_in_Timor-Leste.pdf Acesso em 26/11/14 79 INTERNATIONAL CRISIS GROUP, Timor-Leste’s Parliamentary Elections, Asia Briefing N°6512 Jun 2007. Disponível em: http://www.crisisgroup.org/en/regions/asia/south-east-asia/timor-leste/B065-timorlestes-parliamentary-elections.aspx Acesso em: 20/08/2014 87 posteriormente declararam aceitar os resultados “com dignidade”, participando ativamente no Parlamento.80 O resultado de ambas eleições demonstrou a rejeição ao modo que o FRETILIN vinha conduzindo o país, confirmando as demandas veiculadas nos protestos de 2006. A alternância do poder e a aquiescência do partido derrotado foram uma conquista para a democracia, se aplicados os critérios de Huntington e Przeworski. A preponderância dos timorenses na condução das eleições também sugere maior autonomia em relação aos doadores. De acordo com o Polity, o regime em Timor se manteve democrático, repetindo o 7 do ano passado. Tanto o PIRI quanto o WGI registraram aumento na violência nesse ano, indicando a dificuldade do Estado timorense em manter a estabilidade em ano de eleição e eventual não correspondência entre democratização e ausência da violência. Além dessa, outra possível explicação para a queda na estabilidade política é que os efeitos da crise de 2006 tenham sido registrados pelas fontes consultadas apenas no ano subsequente, portanto 2007. No início de 2008, em fevereiro, Alfredo Reinado liderou ataques contra o presidente Ramos-Horta e o primeiro ministro Gusmão. No confronto com a polícia, Reinado, quem coordenou os protestos dos peticionários a partir de maio de 2006 tornando-se um herói entre os críticos à elite política desde então, foi morto. Anteriormente, o governo de Ramos-Horta tinha feito tentativas de dialogar para persuadi-lo a abandonar as armas, porém o líder recusou-se a menos que os 600 combatentes dispensados por Alkatiri fossem reintegrados ao Exército e as tropas estrangeiras deixassem o país.81 O fracasso na redução desse centro autônomo de poder coercitivo permitiu a retomada da violência, prejudicando o processo democrático. (TILLY, 2013) Em decorrência do ataque, foi declarado estado de emergência até que a situação no Timor-Oriental se normalizasse. Apesar da maior autonomia da condução das eleições, a segurança ainda dependia em grande medida dos agentes internacionais. Tanto que em resposta ao pedido do presidente, o mandato 80 THE ECONOMIST, Timor-Leste's fresh start, 11 de maio de 2007. Disponível em: http://www.economist.com/node/9171315?zid=306&ah=1b164dbd43b0cb27ba0d4c3b12a5e227 Acesso em 15/11/14 81 THE ECONOMIST, Dawn raids, 14 de fevereiro de 2008. Disponível em: http://www.economist.com/node/10696227?zid=306&ah=1b164dbd43b0cb27ba0d4c3b12a5e227 Acesso em 4/11/14 88 da UNMIT foi postergado por mais um ano para ajudar o país a superar as causas da crise iniciada em 2006. (S/RES/1802) Ao final de abril, os seguidores de Reinado tinham sido capturados, viabilizando o fim do estado de emergência e a inibição do poder coercitivo autônomo fora do Estado. (TILLY, 2013, p.151) Nesse ano o ICG declarou, pertinentemente, que os problemas associados ao setor de segurança eram a causa e o sintoma do impasse político em Timor. Apesar do incidente do início do ano, a violência mensurada pelo PIRI e WGI diminuiu, retornando ao patamar anterior à crise de 2006. Em fevereiro de 2009 o CSNU estendeu o mandato da UNMIT por mais um ano. (S/RES/1867). No mês de agosto, Maternus Bere, líder de milícia indiciado por crimes contra a humanidade, foi preso pela PNTL. Ao final do mês, oficiais ordenaram ilegalmente a soltura de Bere, provocando reações contra a impunidade em todo o país, exigindo que a justiça não fosse sacrificada pelos interesses da diplomacia. 82 A ausência de mecanismos de accountability em relação aos atos do Exército e da polícia, bem como a insistência em não apurar as violações cometidas ao longo de 10 anos, continuaram sendo objeto de denúncia dos observadores e da sociedade civil em 2009. (ANISTIA INTERNACIONAL, 2009) A incapacidade de adereça-las teve como efeito reproduzir as condições originárias do conflito, afastando-se da proposta do paradigma da paz galtungiano. Nesse ano um novo Código Penal entrou em vigor, no qual as provisões do Estatuto de Roma foram adotadas. (ANISTIA INTERNACIONAL, 2011) Também, repetiram-se as eleições nas aldeias (sucos). Houve diminuição de um ponto no respeito aos direitos da integridade física comparativamente ao ano anterior. Já o regime permaneceu com a mesma avaliação que vinha apresentando desde 2006, confirmando a necessidade de maior responsividade para a democracia tornar-se consolidada. (O’DONNEL, 1997) Em outubro de 2010 foi realizada uma conferência do Diálogo de Consenso Nacional para a Verdade, Justiça e Reconciliação. Duas leis visando a implementação de um programa de reparações nacionais e a criação de um “Instituto da Memória” foram apresentados à consulta pública; no entanto, o Parlamento adiou por duas vezes 82 LA’O HAMUTUK, Maternus Bere arrested by PNTL, then released to Indonesia by Timor-Leste political leaders, 13 November 2009. Disponível em: http://www.laohamutuk.org/Justice/99/bere/09MaternusBere.htm Acesso em 24/11/14 89 o debate das mesmas. (ANISTIA INTERNACIONAL, 2011) Em 2010 o PIRI voltou ao nível de 2008, recuperando a queda do ano anterior. O Polity, manteve-se em 7. Em 2011 iniciaram-se discussões entre o governo e a ONU para que a retirada da UNMIT permitisse uma transição entre peacekeeping e segurança sustentável.83 A estratégia foi elaborada no “Plano Conjunto de Transição”. Em junho foi aprovada uma emenda à legislação eleitoral determinando a obrigatoriedade de que um a cada três candidatos fosse mulher, um avanço na temática de gênero. A estabilidade do regime e a ausência de violência mantiveram-se no mesmo nível de 2010. As eleições de 2012 são descritas como as primeiras eleições ocorridas em condições estáveis no Timor Leste. Nesse ano parece ter ocorrido um consenso entre as elites políticas de que a condução de eleições pacíficas era necessária para o rompimento da dependência externa e a retirada da ONU. (EU, 2012, p.15) Nas eleições presidenciais, ocorridas em abril, “Lu-Olu” do FRETILIN obteve 38,8% dos votos contra 61,2% de Taur Matan Ruak, ex-chefe das Forças Armadas que competiu como candidato independente mas contava com o apoio do CNRT’. Em julho foi a vez das eleições para o Parlamento, nas quais o CNRT’, conseguiu 30 assentos, contra 25 do FRETILIN, rompendo a maioria do partido até então hegemônico na RDTL pósindependência.84 Essa transformação indica o primeiro turnover tal qual proposto por Samuel Huntington, e o abandono ao projeto de construção da paz elaborado imediatamente após encerrado o conflito, segundo decisões da UNTAET. Ao final de dezembro foi encerrado o mandato da UNMIT. Em 2012, ano em que conclui-se a análise da construção da paz, o Polity se manteve em 7. O PIRI não foi registrado, porém o WGI demonstra que a violência se manteve no nível dos dois anos precedentes. Recentemente, 15 anos após o referendo pela independência timorense, Ramos-Horta declarou: 83 LA’O HAMUTUK, The UNMIT mission in Timor-Leste: August 2006 - 20 December 2012. Disponível em: http://www.laohamutuk.org/reports/UN/06UNMITcreation.html 84 EVERETT, Silas, Will Timor-Leste’s Elections Result in a Grand Coalition?, Asia Foundation. Disponível em: http://asiafoundation.org/in-asia/2012/07/11/will-timor-lestes-elections-result-in-a-grand-coalition/ 90 Ninguém deve ter ilusões de que podemos consolidar a paz, transformar vidas de violência e pobreza extrema em paz duradoura, paz como cultura, como 85 estilo de vida, e livre das amarras da pobreza em uma única geração. O comentário resgata a discussão do paradigma da paz de Galtung e o consenso normativo preconizado por Moisés, sem o qual a transição não se consolida. As críticas apresentadas indicam a necessidade de rediscussão do modelo de paz implantado em Timor Leste e, em particular, a dificuldade de tornar o Estado timorense auto-sustentável e sua provável relação com a democratização apressada. “O descompasso entre atores nacionais e internacionais tornou impossível o consenso em torno de um projeto de state-building que ambos pudessem implementar.” (ENGEL, 2011, p.8) Há indícios de que a explicação encontra-se no fracasso de incluir timorenses no processo político (Timorização) e de prestar contas à eles, aumentando o power-sharing entre locais e internacionais. 85 GILLES, Shannon, East Timor yearns for real independence 15 years after the UN referendum, The World Age, 15 de julho de 2014. Disponível em: http://www.theage.com.au/world/east-timor-yearns-forreal-independence-15-years-after-the-un-referendum-20140715-zt9to.html 91 9. RESULTADOS Sobre a transição para a democracia, considerada a partir do índice Polity2, a operação em Serra Leoa foi a que teve maior êxito. Quando o Reino Unido interveio em 2000, a guerra civil persistia e o governo sob a liderança de Kabbah, reinstalado em 1998, era frágil e dependia do contingente internacional. Isso justifica o 0, que nesse caso equivale à anarquia ou interregno.86 A tendência de democratização nesse país verifica-se durante todo o período analisado, sem que tenham ocorrido quedas no regime politico em direção à autocracia ao longo dos 13 anos. Na classificação convencionada pela literatura, valores de Polity2 superiores a 6 são considerados democracias liberais. (DRURY, 2008, p.13) Por isso, no ano de 2007 o processo de democratização em Serra Leoa conquistou o objetivo inerente à paz liberal. GRÁFICO 4 – DEMOCRATIZAÇÃO DOS REGIMES EM HAITI, TIMOR LESTE E SERRA LEOA DE 2000 A 2012 8 7 6 5 4 3 2 1 0 -1 -2 -3 Haiti Timor-Leste Serra Leoa 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Polity2 Democracia 2000-2012 FONTE: MARSHALL, Monty, GURR, Ted, Polity IV Project: Political Regime Characteristics and Transitions, 1800-2013, Center for Systemic Peace. 86 Aqui o zero do Polity2 deve ser lido em conjunto com o Polity, que em 2000 é -77. Foi para facilitar o tratamento dos dados que o Polity foi convertido em Polity2, transformando -66: interrupção, -77: interregno e -88: transição em valores dentro da série -10 a +10 92 O Timor Leste já iniciou o período classificado como democracia liberal, e a mudança em um regime um ponto mais democrático ocorreu em 2006. A ausência de alterações no sentido da autocracia ao longo dos anos também sugere a estabilidade do regime. Porém, a progressão foi limitada, com melhora de um ponto ao longo dos 13 anos estudados. No curso desse período, a transição poderia ter sido mais acentuada, aproximando o regime timorense de uma democracia consolidada – assim considerada caso o 7 tivesse sido ultrapassado. A ausência de valores do Polity em 2000 e 2001 não permite avaliar a situação do regime ab initio. Uma segunda limitação que se deve mencionar é a incapacidade dos dados de apreender a crise de 2006, na qual as consequências do projeto de paz da UNTAET e o favorecimento ao FRETILIN vieram à baila justificando a retomada da violência. A situação política do Haiti foi a que sofreu maior variação no período observado. Entre 2000-2003 o regime tinha traços de autocracia, com Polity2 igual a -2. Em decorrência da crise constitucional iniciada com a queda de Aristide em 2004, o regime passou por um ano de transição.87 A partir de então, durante a MINUSTAH, caminhou no sentido da democracia, tendo atingido o 5, anocracia aberta, em 2006. Porém, a estabilidade durou quatro anos e terminou em 2010, ano do terremoto e da crise eleitoral, quando se iniciou um período de interregno, o qual permaneceu até 2012. Os dados do Haiti no período observado indicam que a atuação da ONU em matéria de implementação da democracia foi um fracasso. O apoio do peacebuilding internacional no preparo e na realização de eleições se mostrou positivo em todos os casos, prevenindo episódios de violência e facilitando o registro dos eleitores. Tais garantias cumpriram papel fundamental na inclusividade e participação dos eleitores. Porém, o critério não deve ser a ajuda nela própria, mas quando a assistência prestada não mais for necessária: “somente a morte de uma Missão de Paz comprova sua utilidade e pertinência.” (SEITENFUS, 2013, p.453). As eleições de 2012 em Serra Leoa e no Timor Leste foram conduzidas pelas próprias autoridades e o mérito da ajuda externa prestada nos pleitos anteriores explica, em parte, o sucesso da autonomia nesses. Já não se pode dizer o mesmo sobre o Haiti, onde 75% do financiamento das eleições ainda provém do exterior. (SEITENFUS, 2013, 87 O -2 de 2004 no gráfico tem de ser lido em conjunto com o Polity que indica ano de transição 93 p.75) A dependência faz com que as financiadoras atuem intensamente no embate eleitoral, chegando a influenciar seu resultado como o fizeram nas eleições presidenciais de 2010/11. Trata-se de um exemplo daquilo que se deve evitar: o autoritarismo eleitoral e a escolha pela continuação da dependência dos doadores. Nesse caso, ainda que o registro dos eleitores tenha sido um sucesso e a jornada eleitoral tranquila, as autoridades internacionais foram responsáveis pelo resultado que ignorou a vontade popular e desrespeitou as instituições nacionais. Se aplicado o critério de Przeworski e Huntington, no qual o regime aproxima-se de uma democracia se a oposição tem chances de vencer e assumir, a população passa a ter um mecanismo de retirada do poder de líderes cujo projeto é incompatível com a vontade popular. A realização de eleições democráticas pode acirrar divisões e favorecer a polarização; no entanto, entender que a democracia é o regime em que partidos políticos perdem é inerente ao consenso normativo desse regime. (PRZEWORSKI, 1997) Estando os eleitos comprometidos com a resolução dos conflitos pelas vias legais, segundo a percepção da população, tal consenso tende a ser facilitado. A eleição de Préval no Haiti (2006), de Koroma em Serra Leoa (2007) e de Ramos-Horta no Timor Leste (2007) confirma a opção por projetos de transição legitimamente comprometidos com a paz. Mesmo que Ramos-Horta tenha enfrentado a crise Alfredo Reinado, Koroma tenha atravessado a polarização violenta entre SLPP e APC e Préval tenha paralisado seu governo após o terremoto, o jogo democrático sobreviveu às suas presidências. A hipótese da correspondência entre democratização e redução da violência se confirma, pois no mesmo ano ou no ano seguinte às referidas eleições, o respeito aos direitos da integridade física melhoram nos três países. Em relação à ausência de violência, o índice de integridade física mostra três tendências ao longo do período. Em Serra Leoa, a violência não aumentou do patamar de 2000 durante os 13 anos avaliados, tendo alcançado o mínimo possível na escala em 2002 (PIRI=8). Entre altas e baixas, ao final do prazo em 2012 a estabilidade era maior do que aquela do início por dois pontos. Já em Timor Leste a estabilidade política estava perto do máximo em 2000 e, apesar das variações para pior ao longo dos anos investigados, em 2012 o mesmo valor do início do lapso se manteve. Isso significa que não houve melhora na redução da violência, apesar da presença da ONU. A crise no 94 setor de segurança não foi apreendida pelas fontes observadas, porém a relação entre o embate político e a violência foi demonstrada na discussão subjetiva. Em termos de ausência de violência, o Haiti oscilou para pior entre o início e o término do prazo, sugerindo o desempenho ruim do peacebuilding internacional alí. Tal resultado deve ser entendido tendo em vista suas limitações. Diferentemente dos dois países anteriores, o Haiti não recebeu operação de paz no início do prazo, e 2000 se refere ao ano no qual Aristide foi democraticamente eleito. Assim, uma interpretação mais razoável atribui a queda nos direitos à integridade física entre 2000 e 2004 aos atores locais. Já a melhora nos anos posteriores à crise (2004-2006), quando do envio da MINUSTAH, é resultado da interação entre agentes nacionais e internacionais, sendo que os últimos se sobrepõem aos primeiros em episódios como o embate eleitoral de 2010/11. Em relação a 2004, a estabilidade de 2012 demonstrou melhora, autorizando afirmar um efeito positivo da operação no incremento da segurança, porém sem recobrar a estabilidade política anterior a 2000. GRÁFICO 5 – RESPEITO AOS DIREITOS DE INTEGRIDADE FÍSICA EM HAITI, TIMOR LESTE E SERRA LEOA DE 2000 A 2012 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0 Haiti Timor-Leste Serra Leoa 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Physical Integrity CIRI PIRI 2000-2012 FONTE: CINGRANELLI, David, RICHARDS, David, CIRI Human Rights Dataset 2014. A correspondência entre estabilidade política e democratização é maior em Serra Leoa e no Haiti. No primeiro, os períodos de redução da violência são acompanhados de 95 maior democratização no regime. No Haiti, a transição para um regime mais democrático iniciou em 2004 e foi seguida por uma melhora na estabilidade política em 2006. Quando da crise de 2010 e piora do regime, a violência segundo o PIRI aumentou, confirmando a relação entre as variáveis. Em Timor Leste as limitações dos dados no início do prazo não permitem inferir a correspondência entre as variáveis, ainda que exista relação. O critério de sucesso para os agentes internacionais é, como indicado pelos críticos, diverso daquele das populações locais. Os 50 civis vitimados na pacificação em Cité Soleil atestam a distância entre as prioridades dos internacionais e as da população no caso haitiano, comprovada em uma pesquisa recente na qual apenas 10,9% da opinião pública haitiana confia e respeita (n)a Minustah. (SEITENFUS, 2013, p.453) Diferentemente, a alteração no mandato da UNAMSIL e a postura do comandante Opande em Serra Leoa funcionou como uma medida bem sucedida, aumentando a confiança entre os agentes internacionais e locais. Mas a confiança, de regra, não é o principal critério da CI para aferir o sucesso de operações de paz. Sobre a diferença na avaliação dos resultados do peacebuilding, Paul Wolfowitz, presidente do Banco Mundial que visitou o Timor Leste em abril de 2006 e considerou um exemplo de recuperação pós-conflito serve de exemplo. (CURTAIN, p.3) Meses depois, em agosto, os timorenses assistiram à violência renovada. Os episódios de retomada da violência no Haiti (2010/11) e em Timor (2006/7) guardam relação com a criação de “Estados sombra” e a má gestão, ou não gestão, das causas originárias do conflito. Por mais tentador que seja culpar o terremoto e o cólera pela crise de 2010, os relatos demonstram que a CI foi a principal responsável pela “febre eleitoral”, distanciando-se do princípio democrático para aderir ao autoritarismo. Os dilemas políticos antecedem o desafio de segurança e a estratégia usada transformou o Haiti em um “protetorado de fato sob a tutela das Nações Unidas”, sem resolver a materialidade do Estado, que se tornou mera ficção jurídica. (SEITENFUS, 2013, p.446) Ainda sobre a disputa entre internacionais e as elites, o estabelecimento da UNMIT, em resposta à solicitação dos líderes timorenses pós-crise, foi positivo. Contudo, atender irrestritamente a tais pedidos pode trazer consequências negativas, então o alcance das decisões deve ser projetado a longo prazo. Essa 96 reflexão não foi priorizada quando a UNTAET consentiu com a formulação da Constituição FRETILIN. Não havendo favorecimento ao partido, eventualmente a crise política de 2006 poderia ter sido evitada, afastando a necessidade de nova missão. Garantir a segurança no pós-conflito quando as autoridades nacionais, legítimas para tanto, não conseguem fazê-lo justifica-se temporariamente; mas o uso da força não pode ser irrestrito, ou o fundamento da segurança coletiva se perde. (PATRIOTA, 2010) Insistir na via da imposição anula a possibilidade de auto-governo dos estados destinatários das operações, diminuindo as chances de aumento na capacidade estatal e na entrega de serviços públicos aos cidadãos pelos reais titulares dessa obrigação. Diferente do exemplo do Haiti, o acolhimento ao pedido de remoção de Schulenberg em Serra Leoa é um exemplo de aquiescência que delimita os limites da atuação internacional tal como deveria. São as autoridades e os locais que devem protagonizar o processo de reconstrução nacional, não os burocratas internacionais. Já a pressa da CI em encerrar as missões e declará-las um sucesso após a realização de eleições dá margem a episódios violência renovada, comprometendo a construção da paz auto-sustentável. A unilateralidade da decisão de encerrar a UNTAET e declará-la um sucesso em menos de três anos é um exemplo. Pouco importou se o CNRT já havia manifestado sua preferência por um modelo de transição gradual para a independência, que durasse cerca de dez anos. Também o fracasso da UNAMET na prevenção às represálias contra o referendo ora indicam falta de infraestrutura ora de planejamento. Caso a conjuntura tivesse sido melhor apreendida, o mandato teria sido mais robusto ou o pleito teria sido postergado para apaziguar os ânimos dos adeptos à unificação. Em Serra Leoa, a saída da UNOMSIL deixando um vácuo de segurança em 1999, e o sequestro de 500 peacekeepers no ano seguinte, reforçam a desconsideração dos atores envolvidos, recomendando um diagnóstico mais cauteloso nas decisões do mandato de cada operação. O processo de diálogo e barganha com os atores não pode limitar-se ao momento da chegada da missão, devendo ser contínuo sob pena da paz não subsistir após a partida dos internacionais. Se as missões de peacebuilding pretendem estabelecer a paz durável, o caráter multidimensional deve ser respeitado empiricamente. Excusar-se de tratar o problema da distribuição de terras no Timor – fonte de conflito em razão do passado português e 97 indonésio somado ao tamanho do território – teria conduzido à violência em 2006 segundo Fiona Rotberg (2010). No caso do Haiti, o projeto internacional de construção da paz também foi omisso no que se refere aos conflitos por terra, tendo passado a contemplar um plano de habitação somente após provocado pelo terremoto.88 Tais circunstâncias tem de ser contempladas no projeto de paz, sob pena de emergirem posteriormente na forma de violência. A importância do DDR em Serra Leoa é outro caso cujo sucesso vinculava a aderência ou não dos rebeldes à transição. Negligencialo teria levado os combatentes a crer que a retomada do conflito armado era preferível à paz, como ocorreu após o Acordo de Lomé. (QUINN, 2005, p.7) Tratar a construção da paz como um empreendimento que se completa caso uma lista de itens seja preenchida provou-se um equívoco. A reforma institucional, por si só, não da conta de introjetar o consenso normativo. Aderir ao jogo democrático perpassa a agência dos atores, aos quais compete legitimar ou não as instituições criadas. Assim, a transição do regime depende das escolhas da elite e da aderência da população, ainda que a única ferramenta da qual disponha nos anos imediatamente após o conflito seja o voto. Se o boicote é um instrumento de contestação das regras do jogo mobilizado pela elite política, o comparecimento também o é para o povo. A médio prazo, realizar eleições competitivas submete os governantes ao critério constitucional, e em última instância permite que os conflitos sejam resolvidos pela via legal, diminuindo o recurso à violência. O risco da desdemocratização existe, mas espera-se que a trajetória do país pós-conflito permita o desenvolvimento de mecanismos de accountability horizontal, no âmbito institucional, e de uma cultura política democrática, no âmbito comportamental. A teoria da paz liberal tem razão ao vincular a segurança ao tipo de regime, mas a forma, a velocidade e o grau nem sempre são aqueles que a CI determina em sua cartilha. Tampouco os interlocutores elegidos para a condução do processo garantem a durabilidade da paz, por isso o hibridismo ora referido é uma estratégia a ser incorporada ao peacebuilding. A democracia é, sim, preferível às demais alternativas inclusive no pós conflito, porém enquanto esse sistema não responder às necessidades das pessoas, sua ineficácia justificará a insurgência. 88 CARRANCA, Adriana, Minustah ou Turistah?, Estadão, 30 de marco de 2010. Disponível em: http://internacional.estadao.com.br/blogs/adriana-carranca/minustah-ou-turistah/ Acesso em 23/11/14 98 10. CONSIDERAÇÕES FINAIS Democratização não é um processo linear e depende dos atores envolvidos, do desenho da operação, da cultura política do país a que se destinam e das estruturas anteriores ao conflito. A segurança, por sua vez, nem sempre combina com instituições democráticas recém criadas e pode depender de assistência externa nos anos imediatamente após o conflito. Entre os regimes em transição para a democracia, as variações de aumento na violência associam-se à conjuntura política, justificando o tratamento simultâneo concedido a uma e outra. Como a transição depende da democracia tornar-se o único jogo possível na sociedade, quando as novas estruturas não mantiveram as expectativas da elite política durante um período longo o bastante para se estabelecerem a violência será retomada. (LIPSET, 1985, p.87) Encontrar o equilíbrio tênue entre um componente militar capaz de suprir as deficiências do setor de segurança do país, porém sem prevenir que tal setor se desenvolva autonomamente deve ser objetivado pelas operações – do desenho do mandato até sua execução. Decisões cujo efeito é prevenir o aumento na capacidade estatal devem ser combatidas pois em todos os três casos analisados, a legitimidade estatal no início do prazo não estava fortemente relacionada à prestação de serviços críticos e apoio aos cidadãos. Serra Leoa e o Haiti antes de 2000 tiveram governos autocráticos que usaram a máquina pública em benefício próprio, contrariando o preceito republicano conforme enunciado por O’Donnel. A disputa entre as elites políticas obedecia o modelo “o vencedor leva tudo”, verificado pelos sucessivos golpes em Serra Leoa entre 1967-1978 e no Haiti em 1956, com 5 ditadores em menos de 10 meses. Os regimes de um único partido dos Duvalier no Haiti (1957-1986), de Stevens em Serra Leoa (1978-1985) e a ocupação indonésia no Timor (1975-1998) justificam a relação negativa entre governados e governantes. O desafio pós-conflito foi redefinir, quando não criar, legitimidade entre a população e as novas instituições. Apesar de novas, a novidade deve ser relativizada, pois inserem-se em um cenário já existente, e não tábula rasa como os internacionais parecem preferir. Reconhecer as práticas tradicionais, a estrutura anterior no terreno da maneira que a UNTAET originalmente tentou com as administraçoes distritais é uma boa estratégia para o sucesso da 99 reconstrução. No entanto, o ethos daqueles que conduzem o processo decide por determinadas práticas em detrimento de outras: a lógica da adequação à cultura global, nos termos de Roland Paris (2009). A exigência de obediência depende de um consenso sobre as regras, sob pena de reproduzir a lógica da dominação e do autoritarismo anteriores. Mais ainda, caso as reformas não sejam consideradas legítimas, aumenta o risco de que “uma nova coalizão política se forme visando tentar de novo combinar a eficácia das políticas com a legitimidade democrática.” (LINZ, 1999, p.207) Entender o envio de determinada operação segundo a ótica do terra nullius tende a ignorar os jogos de poder anteriores ao conflito e inerentes a ele. Ao aplicar um critério objetivo e universal, os agentes internacionais consideram cumprida a missão quando seus objetivos tenham sido preenchidos, a despeito da opinião dos locais. Porém, o sucesso da operação em termos de auto-governo depende do aumento da capacidade de agência dos envolvidos. Aceitar e incentivar o protagonismo dos locais não equivale a favorecer apenas as elites, reproduzindo a lógica do poder anterior e alimentando o ressentimento da população. Essa queixa foi apresentada no caso do Timor pela RENATIL, rebatendo as supostas conquistas da UNTAET. Também o ICG denunciou a interação entre governo e doadores em Serra Leoa por ignorar a realidade da população. É preciso reconhecer, por exemplo, que a inadaptabilidade à democracia não provém do povo haitiano, mas da elite que não se submete às regras do jogo democrático. (SEITENFUS, 2013, p.445) Permitir que o relacionamento internacional com o Haiti tenha como interlocutores apenas a elite, e que a imensa maioria, historicamente excluída, continue negligenciada é mais grave do que abandoná-las ao próprio destino. Nesse caso parece mais razoável seguir a recomendação de Ottaway: “aceitar que existem comunidades onde a CI não pode reconstruir um Estado moderno, quanto menos um Estado moderno que seja minimamente democrático.” (OTTAWAY, 2003, p.321) Ao menos se abstendo de intervir, a mera hipótese de remoção do presidente – quer Aristide quer Préval – não será tentada, e a crise de poder segue seu curso nas mãos dos nacionais. Enquanto as potências não respeitarem as regras democráticas em suas relações externas a opção drástica enunciada por Ottaway parece preferível à ingerência. 100 REFERÊNCIAS Artigos AGNÉ, Hans, Why democracy must be global: self-founding and democratic intervention, International Theory, v. 2, n. 3, 2010, p. 381–409. 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RESPEITO AOS DIREITOS DE INTEGRIDADE FÍSICA (CIRI) Número na Desaparecimento Morte Prisão Tortura 0 Nenhum Nenhum Nenhum Nenhum 1 Parcial Nenhum Nenhum Nenhum 2 Parcial Parcial Nenhum Nenhum 3 Total Parcial Nenhum Nenhum 4 Total Parcial Nenhum Parcial 5 Total Parcial Parcial Parcial 6 Total Total Parcial Parcial 7 Total Total Total Parcial 8 Total Total Total Total escala FONTE: CINGRANELLI, 1999 116