A facticidade e o tempo no pensamento do jovem Heidegger, p. 63 - 74 A FACTICIDADE E O TEMPO NO PENSAMENTO DO JOVEM HEIDEGGER Marcos Suel Zanette* RESUMO Tomando-se por base o texto El concepto de tiempo (Heidegger, 1889 1976), apresentamos as considerações que Martin Heidegger elaborou sobre o tempo, de modo sucinto, sob a perspectiva dos estudos realizados nas culturas hebraica, cristã e grega. Mesmo que a ênfase da concepção de temporalidade seja desenvolvida posteriormente, em outra obra Ser e Tempo, de 1927, nesse contexto do início de produção acadêmica já aponta abordagem pertinente para se refletir e pensar o sentido do Dasein na perspectiva fenomenológica. Palavras-chave: Fenomenologia. Facticidade. Tempo e Dasein. ABSTRACT In this study, the assumptions Martin Heidegger elaborated about time are shown in a summarized way based on the text El concepto de tiempo (Heidegger, 1889 - 1976) and in the perspective of studies done in the Hebraic- Christian and Greek cultures. Even having the emphasis on the conception of temporariness been established in another piece of his Ser e Tempo (1927), there is a pertinent approach at the beginning of this academic production to analyze and think about the meaning of Dasein in a phenomenological perspective. Keywords: Phenomenology. Weight. Time and Dasein. 1 INTRODUÇÃO Martin Heidegger é uns dos pensadores que mais inovou o modo de pensar na filosofia do século XX. O seu início acadêmico foi marcado por um caminho de investigação, de estudo e de pesquisa na Teologia e na Filosofia. Dentre os escritos anteriores ao Ser e tempo1, principalmente o curso Natorp-Berich de 1922, encontramos uma fenomenologia da temporalidade que se emerge pouco a pouco pela descrição do conceito de vida factual (facktische Leben). Esse tema constitui-se como um fio condutor nas suas análises teóricas * Marcos Suel Zanette é mestre em Ciências da Religião – UFJF. Professor de Filosofia do Direito no Instituto Vianna Junior e de História da Filosofia e Antropologia da Religião no Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora – CES/JF. 1 HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1988. 2 v. 63 Juiz de Fora, 2008 Marcos Suel Zanette desse período do início acadêmico na juventude. Já no curso de 1919/1920 e na conferência sobre El concepto de tiempo 2 de 1924, pronunciada na Sociedade Teológica de Marburg, Heidegger aponta decisivamente o lugar do Dasein como temporalidade (Zeitlichkeit). A noção de tempo que Heidegger estudou na cultura grega, hebraica e cristã lhe proporcionou fundamentar a compreensão da questão da essência no ser humano. O contato com os textos de Aristóteles sobre a questão do ser lhe proporcionou abrir caminho para compreender que o Homem é um ser que se desvela enquanto ente cuja permanência se localiza na temporalidade histórica. A história acadêmica de Heidegger foi marcada por rupturas e posições que testemunham seus conflitos vivenciados em cada etapa de sua vida (efetiva) ou fáctica3. O encantamento para o saber filosófico aponta a direção do percurso assumido na vida de investigador e de alguém marcado pelas idéias que foram despertadas através dos textos pesquisados. Nessa direção, os anos do primeiro ensinamento em Freiburg (1919 a 1923) são marcados por um constante confronto com o método fenomenológico e com o pensamento de Husserl e por se desenvolverem principalmente através de um exame dos fundamentos filosóficos da tradição cristã; os anos de Marburg (1923-1927), por sua vez, são caracterizados por uma orientação à experiência de pensamento grega que se concretiza em uma interpretação fenomenológica de Aristóteles. Contudo o nosso objetivo não é apresentar o amplo percurso em que nasceu a formalização do projeto ontológico de Ser e tempo (1927), mas em pensar que algumas estruturas fundamentais das categorias da vida, manifestadas na experiência religiosa cristã, podem servir de reflexão para o pensamento filosófico. Buscaremos tratar pelo menos de duas categorias trabalhadas na perspectiva de uma compreensão fenomenológica, que são a da vida factual e a do tempo. 2 HEIDEGGER, M. El concepto de tiempo. Prólogo, traduccíon y notas de Raúl Gabás Pallás y Jesús Adrián Escudero. Madrid: Trotta, 2001. 3 As pesquisas de Heidegger sobre a vida, nos anos que se seguiram a 1920, passam a ser interpretada pelo termo facticidade ou o seu modo efetivo. Nesse período ele fala de experiência da vida factual e, ainda, não em Dasein. (A palavra facticidade é derivada do latin factum, que quer dizer atividade e produção humana. Factum é um artefato da prática humana). Em Ontologia. Hemenêutica da facticidade. (1923) GA. 63. Tracucción e introducción de Manuel Jiménez Redondo. Disponível em: http://www.personales.ciudad. com.ar/M_Heidegger. Acesso em: 22 jul. 2004.,Heidegger utiliza o termo ex-sistência (aquilo que é próprio de cada um) – Existenz - para designar Dasein: Da significa aí e sein, significa ser. Esse termo também foi traduzido pela Editora Vozes por pré-sença. Cf. HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1988. 2 v. 64 CES Revista, v. 22 A facticidade e o tempo no pensamento do jovem Heidegger, p. 63 - 74 2 NOTAS SOBRE AS CATEGORIAS DE FACTICIDADE E DE TEMPO Na década de 1920, Heidegger põe em relevo a importância primordial do pensar na filosofia. Segundo John D. Caputo (1993, p. 66-68) desde o início Heidegger foi um filósofo revolucionário, propenso a efetuar uma revolução radical da existência e do pensamento, “a reconduzir a vida às suas fontes e recursos mais profundos”. A sua renovação do pensamento foi concebida em termos de dificuldade (Schwierigkeit) e de luta (Kampf). As conferências dos anos 20 sobre Aristóteles e sobre o Novo Testamento já demonstram os conflitos que o jovem Heidegger estabelece com a vida fáctica, ao criticar duramente a concepção acadêmica prevalecente da filosofia como ciência pura, separada e teorética. Aqueles que pretendem uma paz imperturbada têm de compreender que nunca entrarão na radicalidade do pensamento filosófico. A filosofia anda a par da perturbação e do desassossego (Unrube, GA 61, 93). Provoca problemas e cria a desordem. A filosofia é Kampf, uma batalha. Isto é algo que aprendemos com Aristóteles, que determinou o Ser da Vida em termos de movimento e agitação (Kinêsis, Bewegtheit), e com o Novo Testamento, que adverte contra o amor à paz e à segurança. [...] As primeiras comunidades do Novo Testamento viviam com um sentido da incerteza das coisas, da contingência radical e da incognoscibilidade do tempo por vir (Kairos), da hora marcada, do dia do Senhor, e realçaram a necessidade de cuidado e de vigilância permanentes, (CAPUTO, 1993, p. 68). Segundo o testemunho de Gadamer (1998), antes de Heidegger, pensar significava relacionar, ou seja, colocar alguma coisa em determinada relação e sobre ela se fazer uma afirmação que se chama juízo. O pensamento avançava de uma relação à outra e de um juízo a outro. Porém, a nova experiência introduzida por Heidegger indicou que pensar significa mostrar, isto é, fazer com que algo se mostre. Heidegger (2003, p. 79) introduz uma nova maneira de abordar a coisa ao fazer um giro no pensamento, ao remeter a uma ou à mesma coisa. Ele mostrou que, em outras circunstâncias, o pensamento só avançava de um caso a outro; nesse sentido, o pensar centrava-se insistentemente na mesma coisa. O 65 Juiz de Fora, 2008 Marcos Suel Zanette seu estudo científico questionável passa a ser o campo próprio e permanente do seu pensar. Fazer filosofia, nesse aspecto, significa permanecer sempre em busca dos últimos fundamentos, mesmo sendo aqueles que perpassam pelo campo das questões teológicas. Como o próprio Heidegger afirmou, foi a “proveniência da teologia” que o fez chegar ao caminho do pensamento. Destacam os anos do primeiro ensinamento como professor substituto na Universidade de Freiburg (1919 a 1923), marcados por um constante confronto com o método fenomenológico husserliano4 e que se desenvolvem, principalmente, a partir das literaturas da tradição cristã. Mesmo administrando curso sobre o conteúdo teológico, Heidegger inaugura uma nova forma sobre o perguntar, unindo ensinamento e investigação, especificamente sobre questão do ser. E os anos de professor em Marburg (1923 a 1927), por sua vez, são caracterizados por uma orientação à experiência de pensamento grega que se caracteriza em uma interpretação fenomenológica de Aristóteles. Nesse curso de 1923, ele o denomina de ontologia5. Heidegger, seguindo os traços da tradição da metafísica ocidental, que havia dado respostas à pergunta pelo ser, inaugurou um sentido diferente do perguntar sobre esse ser. Essa necessidade de um novo perguntar delineia uma investigação em reconstruir o sentido do ser que ainda não havia sido perguntado. Mas perguntar pelo começo é, na verdade, perguntar por nós mesmos e por nosso futuro. Nessas aulas de 1923, cuja produção do texto foi a Ontologia. 4 Edmund Husserl nasceu em Prossnitz, na Morávia, no antigo Império Austríaco (hoje Prostejov, na República Checa), em 8 de abril de 1859, e morreu em Freiburg, em 27 de abril de 1938. A fim de completar seus estudos de matemática, iniciados nas universidades alemãs, foi, em 1884, para Viena, onde, sob a influência de Franz Brentano, desenvolveu sua pesquisa filosófica. Em 1887, Husserl, que fora judeu, converteu-se à Igreja Luterana. Ensinou filosofia, como livre docente, em Halle, de 1887 a 1901; em Göttingen, de 1901 a 1918; e, em Freiburg, de 1918 a 1928, quando se aposentou. Ele foi professor de Martin Heidegger, por isso sua filosofia exerceu profunda influência no seu pensamento. 5 Segundo Willian J. Richardson (1970), quando Heidegger estava com a idade de 18 anos, no seu último ano de Gymnasium em Konstanz, um sacerdote amigo lhe deu uma cópia da dissertação do doutorado de Franz Brentano Sobre o significado múltiplo do ente segundo Aristóteles (1862). Nessa obra, Brentano cita a frase de Aristóteles: tò ón légetai pollachós – um ente (seiendes) se faz manifesto em múltiplos significados. A pergunta que o move é “se o ente é expresso em múltiplos significados, qual será, então, o determinante significado fundamental? Que quer dizer ser?”, (Martin Heidegger: in memorian. Publicado en Stromata, nº 2, Universidade del Buenos Aieres, 1970. Disponível em: http://www.personales.ciudad. com.ar/M_Heidegger. Acesso em: 25 jun. 2004., p. 2). Para Heidegger nem Aristóteles nem Brentano problematizaram efetivamente sobre a questão do ser. “A primeira questão – o que quer dizer ser? – é a questão fundamental pela qual toda metafísica submete entender o sentido do ser. A segunda questão, a questão diretiva da metafísica: Em qual medida (porque e como) o ser do ente se desponta segundo os quatros modos estabelecidos por Aristóteles, porém deixados indeterminados em sua comum procedência?” [Tradução livre], (HEIDEGGER, M. Questions III et IV. Paris: Gallimard, 1976, p. 341). 66 CES Revista, v. 22 A facticidade e o tempo no pensamento do jovem Heidegger, p. 63 - 74 Hermenêutica da facticidade (1923)6, Heidegger articula sua reflexão ao oferecer a primeira análise exaustiva da articulação categorial da vida factual. A questão da facticidade, com efeito, representa a via através da qual unicamente é possível e necessário responder a pergunta sobre o ser. Jean Grodin, (1996, p. 187-188) a propósito destas preleções de 1923, observa que Heidegger introduz imediatamente o seu conceito de Dasein com a finalidade de explicar a facticidade. O termo facticidade permanece ligado, como uma oposição platônica, à ordem universal, fato que teria condenado a hermenêutica heideggeriana a não ser nada além de um platonismo invertido. O termo efetividade teve que ser substituído paulatinamente por aquele de Dasein. Mas é em Aristóteles, segundo John Caputo, que Heidegger vai construir uma nova abordagem ao afirmar que a vida fáctica é determinada como algo que se automove, com um ser movida em si mesmo, aquele cujos movimentos procedem de si mesmo. [...] A filosofia escolheu para si própria uma alvo em movimento, algo cujo Ser é o próprio movimento, e é isto que introduz a dificuldade na filosofia. [...] Segundo Aristóteles, todo o ser em movimento é marcado por uma privatio, carentia, pela falta de algo de que necessita, uma falta que o leva a movimentar-se para a culminar. [...] Como Ser de cuidado, a vida fáctica tem necessidade e quereres e movimenta-se (bewegt) constantemente por forma a satisfazer essas necessidades, vivendo em contínua instabilidade, em Kinêsis. (CAPUTO, 1993, p. 72). A vida mantém sempre ocupada por um ir e vir numa luta constante em conservar o que se é e por não deixar avançar pelo que virá. Em Heidegger, encontramos duas categorias para falar sobre esse processo dialético que são: a relucência e a prestrução; tais categorias são de movimento, formas de a vida fáctica se manter ocupada, agitada, em movimento. Diz Caputo (1993), se a relucência é um movimento para trás (do mundo para a vida), prestrução é um movimento para frente (da vida para o mundo). Como tal, “re” e “prae” referem-se a uma espécie de movimentos para frente e para trás entre a vida e o mundo, constituindo, em conjunto, a estrutura-movimento da vida perdida no mundo, num ciclo incessante de excesso e defeitos. Ao movimento assim exibi6 HEIDEGGER, M. Ontologia. Hemenêutica da facticidade. (1923). GA. 63. Traducción e introducción de Manuel Jiménez Redondo. Disponível em: http://www.personales.ciudad.com.ar/M_Heidegger. Acesso em: 22 jul. 2004. 67 Juiz de Fora, 2008 Marcos Suel Zanette do, chama Heidegger “ruína”, [...] decadência. (CAPUTO, 1993, p. 76). A vida compreendida pelo horizonte de fáctica não lhe dá descanso, não oferece tempo de ficar parado, esperando as coisas acontecerem. O próprio conceito vida, afirma Heidegger (2002, p. 34), é histórico, no sentido em que trabalharam os gregos. A dificuldade de investigar um sentido rigoroso do termo vida está na não possibilidade de redução da dimensão originária ao âmbito lógico-teórico, isto é, não é possível uma única direção de explicação desse termo, pois ele possui uma multiplicidade de sentidos. Mas o tempo na vida, segundo Heidegger, não é o mesmo tempo dos objetos ou coisas. Essa concepção de tempo enquanto Ruinanz é o tempo cairológico7. Cairós é o tempo indicado ou oportuno, o tempo que chegou, que foi cumprido, como em Marcos 1, 158. É o tempo a que Kierkegaard, e Heidegger depois dele, chamou Augenblick, o momento da decisão. O cairológico é a esfera das decisões tomadas ou evitadas. A vida fáctica é descrita como exposta a uma queda, um (Sturz) ou uma ruína (Ruinanz) específica,a tentação de se compreendê-la a partir de um ente do momento; o cairós não é um tempo cronologicamente verificável - crônos - onde se encontra o poder de escolher a si mesmo segundo a sua própria finitude. O tempo cairológico é caracterizado enquanto a ocasião, o momento propício, o favorável ou não, ou seja, é o aqui e o agora de cada instante; é o tempo lógico do momento; é a pontuação em cada situação em que manifesta a existência. O movimento fundamental da ruína é retirar o tempo, extinguir o caráter temporal e histórico do tipo de vida que atinge o alvo. A ruína é sedutora porque nos afasta do nosso verdadeiro cuidado e nos empurra para o nada. “A queda no nada da ruína não é uma propriedade objetiva, observável de um objeto, mas uma característica de um ser cujo ser é movimento”, (CAPUTO 1993, p. 76). Nesses primeiros anos, a questão da relação entre filosofia e cristianismo (teologia) não representa simplesmente um tema entre tantos outros do pensamento de Heidegger, mas seu pensamento nasce e se constitui através de um diálogo constante e uma permanente tensão com os autores da tradição cristã. A interpretação do cristianismo é parte integrante do percurso que a partir 7 Confira, também, o artigo de Michel Haar intitulado: Le moment (Kairós), l’instant (Augenblick) et le temps-du-monde (Weltzeit) [1920-1927], na obra. : Heidegger 1919-1929. De l’herméneutique de la facticité à la métaphysique du Dasein. Paris: J. VRIN, 1996, p. 67-90. 8 Evangelho de São Marcos 1, 15. “Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus esta próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho”. A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1985. 68 CES Revista, v. 22 A facticidade e o tempo no pensamento do jovem Heidegger, p. 63 - 74 do escrito sobre Duns Scotus9 levou Heidegger a levantar as questões sobre a temporalidade e historicidade da vida. Por isso afirma que a filosofia deve manter-se a si mesmo como um questionar radical que responde às questões de modo a mantê-las em aberto e de modo a abrir esferas sempre novas de questionabilidade. O questionar contraria a tendência da vida para a decadência, perturba a sua inclinação para se estabelecer, provoca problemas onde a vida quer paz e segurança. A filosofia é uma batalha porque a vida é uma batalha. A interpretação do texto da primeira epístola de Paulo aos Tessalonicenses segue o fio condutor – que serve de indicação formal (formale Anzeige) de duas determinações fundamentais do proto-cristianismo: “1. A religiosidade cristã das origens está na experiência de vida do cristianismo originário e é esta experiência mesma; 2. A experiência da vida fáctica é histórica. A religiosidade cristã vive a temporalidade (Zeitlichkeit) como tal”, (HEIDEGGER, 1997, p. 108). A experiência fáctica do proto-cristianismo é determinada historicamente na medida em que inicia com um evento – o anúncio (Verkündigung) – que constitui o princípio a partir do qual toda espiritualidade cristã é determinada em seu desenvolvimento temporal. Um princípio que remete a um passado vivo, pleno de efeitos e promessas para o futuro. Afirma Heidegger, A experiência cristã da vida fáctica é historicamente determinada por seu surgir com o anúncio, que colhe os homens em um determinado momento e depois acompanha constantemente suas vidas em sua atualização. Esta experiência de vida determina, por sua vez, ulteriormente as referências que nela têm lugar. (HEIDEGGER, 1997, p.145-146). O cristianismo se funda em uma relação histórica e concreta com um Deus que se encarnou e que não deve ser pensado somente de modo especulativo. Segundo Decleve (1983), Heidegger ao ler Lutero percebeu aquilo que o peso da filosofia grega havia ocultado. Nesse sentido, Heidegger investiga como os textos da tradição teológica cristã, descrita no Novo Testamento, viviam e expressavam o sentido do tempo, enquanto cairós; e qual possível relação pode ser estabelecida com esse mesmo conceito, através da filosofia aristotélica sobre a problemática existencial da ontologia fundamental, que, no curso de inverno de 1920/21, foi 9 Heidegger defende a tese de habilitação em 1916, denominada Traité des catégories et de la significations chez Duns Scot (1916). Trad. F. Gaborieu, Gallimard, 1970. 69 Juiz de Fora, 2008 Marcos Suel Zanette intitulado Introdução à fenomenologia da religião, - publicado em 1995 junto com o projeto dos cursos de 1918/19: Os fundamentos filosóficos da mística medieval e Agostinho e o neoplatonismo.10 Foi na leitura do verbete e do comentário de K. Barth sobre a Epístola aos Romanos, que Heidegger elabora uma abordagem fenomenológica da esperança escatológica, - tema principal das duas cartas aos cristãos de Tessalônica11, escritas por Paulo. Conforme atesta Decleve (1983) esses fenômenos se tornam o fio condutor da explicação fenomenológica do jovem pensador. Em Heidegger, o problema do tempo deve ser separado da questão da constituição da temporalidade por parte da consciência pura, de um eu transcendental. O filósofo deve-se perguntar: o que é originariamente a temporalidade na experiência da vida fáctica? O que significa na experiência fáctica o passado, o presente e o futuro? Por isso o jovem acadêmico vai balizar suas questões teóricas, relativas à temporalidade, numa interpretação fenomenológica nas epístolas de Paulo, Santo Agostinho, B. Pascal, Lutero e Kierkegaard.12 Todos eles ensinaram a Heidegger que o ser não se reduz à presença estática conforme alguns pensadores gregos estabeleceram, mas enquanto movimento histórico. É na esteira desse horizonte que se apresentará de modo sucinto o avanço teórico de Heidegger sobre o conceito de tempo. 3 NOTAS SOBRE A COMPREENSÃO DE TEMPO NA CONFERÊNCIA DE 1924 Na conferência - El concepto de tiempo - pronunciada em 25 de julho de 1924 na Sociedade Teológica de Marburg, evidenciam-se as duas principais linhas temáticas das quais conflui a interpretação do cristianismo nos anos sucessivos às preleções do primeiro período de Freiburg. Heidegger apresenta a hipótese de uma compreensão do tempo a partir da eternidade, a fim de responder a essa questão. Mas a filosofia nunca poderá dispor da eternidade que, assim, não pode ser utilizada como perspectiva metodológica para compreender o tempo. É pela fé que o teólogo pode falar do tempo a partir da perspectiva 10 DECLEVE, Henri. Théologie et histoire de l’être. Revie Philosophie Louvain. Ag., 1983, p. 421-422. Essa obra foi traduzida em Português, intitulada: HEIDEGGER, M. Estudo sobre a mística medieval. Trad. de Jacobo Muñoz. 2ª ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1997. 11 A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Carta aos Tessalonicenses 4, 13ss. Paulo fala da esperança sobre a qual se fundamenta a vida dos cristãos: da esperança do regresso de Cristo. 12 Observamos a influencia que esses pensadores tiveram na vida acadêmica do jovem Heidegger na obra: PÖGGELER, Otto. A via do pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p. 39-47. 70 CES Revista, v. 22 A facticidade e o tempo no pensamento do jovem Heidegger, p. 63 - 74 da eternidade porque está marcada pela perplexidade. Segundo Heidegger, a teologia trata da questão do tempo em diversos aspectos. Em primeiro lugar, a teologia trata da existência humana enquanto ser diante de Deus e de sua temporalidade em sua relação com a eternidade. Deus mesmo não necessita da teologia; sua existência não está fundamentada na fé. Em segundo lugar, a fé cristã deve ter em si mesma uma relação com algo que aconteceu no tempo; em um tempo que, segundo a mensagem que temos escutado, foi o “da plenitude dos tempos”. [Tradução livre] (HEIDEGGER 2001, p. 24). Já na filosofia, o campo de investigação se constrói em outra direção. Ela procura conhecer os princípios que estão por trás de todas as coisas. Quando o filósofo se interroga acerca do tempo, então ele está disposto a compreender “o tempo a partir do tempo”, conforme afirma Heidegger nessa conferência (HEIDEGGER, 2001, p. 25). Heidegger não pretende também construir uma investigação filosófica no sentido tradicional com o termo, entende-se uma disciplina que tem como escopo uma abordagem sistemática do tempo. A fenomenologia, por sua vez, pode oferecer uma discussão preliminar sobre os limites de filosofia e ciência, nela compreendida a teologia. Para ele, as reflexões que se podem elaborar seguem parte de uma ciência prévia, cuja tarefa consiste em investigar o que o discurso interpretativo do Dasein diz acerca do mesmo e do mundo. Heidegger propõe nessa fala analisar as estruturas fundamentais do ser do homem. Dasein expressa literalmente o aí (da) no que se manifesta o ser (Sein) ou como pode ser entendido como: pré-sença, existência, ser-aí, ser atual. O tempo que se encontra no quotidiano e que a ciência transforma em seu tempo, sublinha Heidegger, deve ser compreendido com base no Dasein, entendido como aquele ente que “respectivamente-em-cada-momento (Jeweiligkeit) do seu ser, o ente que cada um de nós é, que cada um de nós acerta ao dizer no enunciado fundamental ‘eu sou’” [Tradução livre] (HEIDEGGER, 2001, p. 34). A retomada da estrutura da temporalidade, já evidenciada na interpretação do proto-cristianismo, enriquece-se com ulteriores considerações. Em primeiro lugar a equação entre a calculabilidade do transcorrer, a concepção inautêntica da temporalidade e o tempo da física, colhido através da mensuração e 71 Juiz de Fora, 2008 Marcos Suel Zanette compreendido em relação ao movimento. Em segundo, a compreensão que o presente é o êxtase da temporalidade que aí tem predomínio. O tempo da física representa um primado do agora inautêntico: o futuro se torna o futuro do presente, não é deixado ser na sua qualidade de futuro. Agora, o porvir (Zukunft) é aquilo de que pende o cuidado (Sorge), não o ser-porvir em sentido autêntico (o transcorrer), mas sim o futuro que o presente constrói como seu, uma vez que o transcorrer, enquanto porvir em sentido autêntico, nunca pode ser presente. Se o fosse, seria o nada. [Tradução livre], (HEIDEGGER, 2001, p. 35). A manifestação do tempo na física é marcada pelo tempo do relógio que é mensurável, homogêneo. Assim, como o espaço em si não existe, não é nada; só existe através dos corpos e das energias contida neles. Tampouco o tempo é nada em si, só existe como consequência dos acontecimentos que tem lugar no mesmo. O tempo é aquilo no que se produz acontecimento. O relógio indica o tempo. É um sistema físico que se repete constantemente à mesma sequência temporal. É uma repetição cíclica, pois cada período tem a duração temporal. Diz Heidegger (2001, p. 30 -31): O relógio oferece uma duração idêntica a qual sempre pode recorrer. A distribuição desta duração é arbitrária. O relógio mede o tempo na medida em que a extensão da duração de um acontecimento se compara com as seqüências idênticas do relógio e, a partir da aí, é determinada em sua quantidade numérica. [Tradução livre] Ao compreender a experiência de vida do tempo, diversa da concepção aristotélica, Heidegger encontra nessas passagens a chave da concepção da temporalidade (Zeitlichkeit) da existência humana. Trata-se de uma interpretação fenomenológica da vida efetiva à luz da experiência cristã13. Nesse contexto, encontra-se o conceito de tempo, enquanto cairológico, no respectivo instante (Jeweiligkeit) em que digo eu sou. “A afirmação ‘eu sou’ é a autêntica enunciação do ser que ostenta o caráter do ser-aí (Dasein) do homem. Este ente é no respectivo instante como meu”. [Tradução livre] (HEIDEGGER, 2001, p. 34). O ser-aí (Dasein) é o ente que se caracteriza pelo fato de ser-no13 Além dos conceitos de tempo enquanto cairós e crônos há, também, o termo aion (que significa tempo, duração da vida, eternidade) nomeado por Heráclito no Fragmento 52. Heidegger aborda essa categoria na obra: Heráclito: a origem do pensamento ocidental. Lógica. A doutrina heraclítica do logos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1990. 72 CES Revista, v. 22 A facticidade e o tempo no pensamento do jovem Heidegger, p. 63 - 74 mundo; por ser-com; é um falar com o outro sobre algo, expressando-se; o seraí é um ente que determina com eu sou; eu sou com os outros; e, por fim, pela auto interpretação. Afirma Heidegger, “[...] o modo como o ser-aí fala em seu mundo, sobre a forma de tratar com o seu mundo, é justamente a interpretação do ser-aí acerca de si mesmo [...]”,[Tradução livre], (HEIDEGGER, 2001, p. 37). Portanto, para ele o tempo é o próprio Dasein. Nessa conferência, Heidegger apresenta a estrutura do Dasein que implica como elemento indispensável para falar da temporalidade do Dasein. O tempo é na temporalidade. O tempo para cada sujeito vai depender de como, no comportamento; o tempo é para si. Esse tratado titulado El concepto de tiempo, de 1924, aponta antecipadamente a articulação fundamental ontológica na obra Ser e tempo (1927) que será publicado posteriormente à luz de todas as questões levantadas anteriormente. 4 CONCLUSÃO A originalidade do pensamento do jovem Heidegger encontra-se na radicalidade com que afronta o problema do tempo, contrariando a tendência eminentemente teórica da fenomenologia e do neokantismo, com elementos do historicismo e do vitalismo. O fenômeno da vida, como demarca Heidegger, não se esgota numa atitude teórica, mas só se alcança na sua plenitude na realização histórica da mesma. Portanto, existir não é um estar pronto, acabado, dado mas é um realizar-se, um gestar-se histórico. Somente a partir desse dado da própria facticidade pode-se abrir ao horizonte da temporalidade. Artigo recebido em: 05/09/2008 Aceito para publicação: 2/10/2008 73 Juiz de Fora, 2008 Marcos Suel Zanette REFERÊNCIAS A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1985. HEIDEGGER, M. El concepto de tiempo. Prólogo, traduccíon y notas de Raúl Gabás Pallás y Jesús Adrián Escudero. Madrid: Trotta, 2001. _______. Estudo sobre a mística medieval. Trad. de Jacobo Muñoz. 2 ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1997. ______. Heráclito: a origem do pensamento ocidental. Lógica. A doutrina heraclítica do logos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1990. ______. Ontologia. Hemenêutica da facticidade. (1923). GA. 63. Traducción e introducción de Manuel Jiménez Redondo. Disponível em: http://www. personales.ciudad.com.ar/M_Heidegger. Acesso em: 22 jul. 2004. ______. Ser e tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1988. 2 v. ______. Questions III et IV. Paris: Gallimard, 1976. ______. Traité des catégories et de la significations chez Duns Scot (1916). Trad. F. Gaborieu, Gallimard, 1970. CAPUTO, John D. Desmistificando Heidegger. Lisboa: Piaget, 1993. DECLEVE, Henri. Théologie et histoire de l’être. In: Revie Philosophie Louvain. Ag., 1983. HAAR, Michel. Le moment (Kairós), l’instant (Augenblick) et le temps-du-monde (Weltzeit) [1920-1927]. In: Heidegger 1919-1929. De l’herméneutique de la facticité à la métaphysique du Dasein. Paris: J. VRIN, 1996. p. 67-90. PÖGGELER, Otto. A via do pensamento de Martin Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. RICHARDSON. Willian J.; Martin Heidegger: in memorian. Stromata, n. 2, Buenos Aires, 1970. Disponível em: http://www.personales.ciudad.com.ar/M_ Heidegger. Acesso em: 25 jun. 2004. 74 CES Revista, v. 22