Universidade regional do noroeste do estado do rio grande do sul – unijuí vice-reitoria de graduação – vrg coordenadoria de educação a distância – CEaD Coleção Educação a Distância Série Livro-Texto Enio Waldir da Silva SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil 2012 2012, Editora Unijuí Rua do Comércio, 1364 98700-000 - Ijuí - RS - Brasil Fone: (0__55) 3332-0217 Fax: (0__55) 3332-0216 E-mail: [email protected] Http://www.editoraunijui.com.br Editor: Gilmar Antonio Bedin Editor-adjunto: Joel Corso Capa: Elias Ricardo Schüssler Designer Educacional: Jociane Dal Molin Berbaum Responsabilidade Editorial, Gráfica e Administrativa: Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil) Catalogação na Publicação: Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí S586s Silva, Enio Waldir da. Sociologia do conhecimento / Enio Waldir da Silva. – Ijuí : Ed. Unijuí, 2012. – 108 p. – (Coleção educação a distância. Série livrotexto). ISBN 978-85-419-0006-5 1. Sociologia. 2. Sociologia do conhecimento. 3. Sociologia do conhecimento – Novos desafios. I. Título. II. Série. CDU : 316 316.25 Sumário CONHECENDO O PROFESSOR...................................................................................................5 APRESENTAÇÃO............................................................................................................................7 UNIDADE 1 – IDENTIDADE DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO...............................11 Seção 1.1 – A Sociologia do Conhecimento – as conceituações............................................11 Seção 1.2 – O Conhecimento na Visão dos Clássicos – a origem..........................................24 Seção 1.3 – A Sociologia do Conhecimento no Século 20 – a consolidação.........................39 Seção 1.4 – Conhecimento e Cultura nos Anos 70.................................................................45 UNIDADE 2 – A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO NO FINAL DO SÉCULO 20 – Novos Desafios..........................................................51 Seção 2.1 – Democratizar a Cognicidade...............................................................................53 Seção 2.2 – O Conteúdo Esquecido pela Ciência: a afetividade...........................................62 UNIDADE 3 – A UNIVERSIDADE E O CONHECIMENTO.....................................................67 Seção 3.1 – O Que Foi e o Que é Uma Universidade............................................................67 Seção 3.2– A Universidade e as Ciências Humanas, Hoje....................................................73 Seção 3.3 – Universidade Comunitária e as Ações Solidárias...............................................81 3.3.1 – A Solidariedade Como Meio e Fim da Ação Universitária..............................84 REFERÊNCIAS..............................................................................................................................97 EaD Conhecendo o Professor sociologia do conhecimento Enio Waldir da Silva Nasci no segundo dia do mês de fevereiro de 1963. Sou o décimo quarto filho, o penúltimo, de Oracy Pires Pereira da Silva e Doralia Teixeira Santos da Silva. Fui o único deles que saiu da lavoura para estudar. Este evento aconteceu no município de Erval Seco, Rio Grande do Sul, na localidade chamada Ponte da Guarita. Permaneci ali até os 15 anos trabalhando nos 15 hectares em que meu pai era meeiro. Saí quando terminei a 8ª série. Por iniciativa de minha mãe, me bandeei para a cidade trabalhar pelo estudo. Redentora, depois Palmeira das Missões. Ali tornei-me gaudério de carteirinha e coração, no CTG 35. Aprendi também nessa época, com 18 anos, a fazer distinção entre os objetivos dos partidos políticos e compreender a exclusão social. Em uma visita de campanha de vestibular da, então, Fidene, entendi que o curso de Filosofia perguntava o “porquê” das coisas, principalmente o “porquê” da vida, do trabalho, do conhecimento, da miséria, da riqueza. Entendi que este era meu curso. Fiz vestibular. Passei. Me bandeei, de novo, para Ijuí. Após um ano de entrevero entre desemprego, capinadas de terrenos, servente de pedreiro, boia-fria e outras atividades, acabou o dinheiro do Fundo de Garantia que trouxe de Palmeira, mas empreguei-me em uma serraria. Oito meses depois melhorei de vida quando fui trabalhar como garçom em um restaurante: ali tinha comida, aluguel, roupa limpa e ganhava o salário para pagar o curso de Filosofia. Ótimo. Entrei para o Partido Comunista Brasileiro – PCB –, minha faculdade paralela. No último ano do curso o restaurante em que trabalhava foi vendido. Novamente fiquei desempregado, mas agora, ao menos, com a “consciência filosófica e comunista” em franco desenvolvimento. Fazer bicos para ganhar a vida agora era mais fácil. Como garçom temporário, como boia fria nas lavouras de soja (final de 1986) levava o debate político. Não pude mais pagar o curso, devia todo o último semestre, mas, graças ao esforço de trabalho e ao diálogo filosófico-político, o amigo e dono da granja quitou as prestações do carnê da faculdade. Um presentão. Até hoje não sei como agradecer, 5 EaD posto que um mês capinando nabo na lavoura dava apenas para pagar alguns dias de sobrevivência. Aí surgiu uma grande chance: o concurso para professor de Filosofia na faculdade onde me formei. Trinta horas de estudo valeram a aprovação e em 2 de fevereiro de 1987 iniciei a construção desta nova identidade: professor do Ensino Superior. Graças ao apoio da Unijuí, de janeiro a julho de 1988 estudei, como aluno especial, Ciência Política na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG – Belo Horizonte. Em julho do mesmo ano iniciei o Mestrado em Sociologia na – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Entre ministrar aulas, estudar e escrever a dissertação final, fiquei meio doido e casei (hoje continuo nessa e tenho três filhas). Meu primeiro trabalho escrito foi a dissertação de Mestrado: O Ensino Superior Regional – a Região Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, em 1993. Em 1999 fui cursar o Doutorado na mesma universidade e defendi a tese de Sociologia intitulada: A Extensão Universitária – Concepções e Práticas, em 2003. Então, desde 1987 desenvolvo atividades de docência na área das Ciências Sociais na Unijuí. Além destas atividades também atuei na coordenação da Formação Geral Humanística; fui membro do Conselho Universitário, representante dos docentes; subchefe do Departamento de Ciências Sociais e coordenador do curso de Sociologia. Continuo pesquisando sobre o tema relação ciência e sociedade, envolvendo a universidade, atores sociais que se relacionam com ela e o papel da formação universitária na sociedade atual. 6 Enio Waldir da Silva EaD Apresentação sociologia do conhecimento Este texto aborda alguns aspectos da Sociologia do Conhecimento, de forma a esclarecer a identidade, a emergência do tema e os desafios deste ramo da ciência sociológica. Vamos mostrar que, ao aprofundarmos o estudo das relações sociais, a Sociologia se depara com alguns fenômenos que não pode ignorar durante o processo investigativo: o mundo do conhecimento, a intelectualização presente no universo social, expresso de diversas formas, na ciência, nas ações, nas instituições, nas organizações, nos processos, etc., e no próprio sujeito da pesquisa. São elementos que se encontram antes do ato de construir conhecimentos, no processo de produção e nos resultados dos esforços sistemáticos de produção de saberes, nem sempre observados pelo investigador. Muitas vezes este não percebe nem mesmos seus potenciais para a investigação, geralmente adquiridos na educação escolar. Este ramo da Sociologia já provou que existe uma natureza social no conhecimento ao abordar: as relações entre ciência e sociedade, dimensões socioculturais para a construção do conhecimento, o habitus científico, as dimensões empíricas do conhecimento, o papel das abstrações e generalizações, as interações entre saber científico e saberes populares e os lugares especiais construídos para a produção de conhecimentos, como é o caso da universidade, etc. Entre tantas obras existentes sobre o tema, esta pretende ser mais uma colaboração ao debate e objetiva introduzir os alunos da Sociologia em um diálogo sobre o próprio saber sociológico. Pretende-se também, colaborar com os futuros pesquisadores para que eles se situem no universo que envolve o processo de produção sistemático de construção de conhecimentos científicos. Neste sentido, é possível afirmar que, em cada indivíduo, há a presença de conhecimentos entremeados nas suas circunstâncias de sentir, pensar, falar, agir e escrever. É um desafio muito grande querer decifrar a complexidade destas relações e descrever até que ponto estas são fruto dos conhecimentos sistematizados, e isto se torna mais amplo ainda por estarmos acostumados a pensar que existem diferenciais entre os conhecimentos científicos e outros tipos de saberes. Normalmente nas escolas se faz um esforço para diferenciar o conhecimento científico do conhecimento popular, do senso comum, mostrando que este se trata de conhecimento parcelar, imediato e resultado de ações cotidianas e o outro fruto da capacidade científica de indivíduos, adquiridas em escolas ou laboratórios de pesquisa. 7 EaD Enio Waldir da Silva Hoje, no entanto, não é mais possível produzir conhecimentos, especialmente nas Ciências Sociais, sem se considerar os saberes que emergem das relações sociais vividas pelos sujeitos, que surgem da arte, da religião, da Filosofia, do senso comum e das dimensões afetivas próprias da lógica humana. Todos os indivíduos estão influenciados por estes potenciais simbólicos que interferem em seus fazeres científicos (saberes escolarizados). Os grandes pesquisadores sempre se preocuparam em refletir sobre o modo de desenvolver suas pesquisas, interrogando-se sobre os percursos e processos e não apenas sobre resultados, pois as metodologias de pesquisas não são meramente técnicas, mas posições epistemológicas diante de objetos e as perguntas sobre ele, além de ser uma prática sociológica que confronta visões de mundo, valores, expectativas, argumentações e posições históricas dos sujeitos, estando a pesquisa diante das relações sociais. O pesquisador precisa ter capacidade reflexiva para sempre se situar no processo de produção de conhecimento, pois se incluir no mundo que pesquisa é entender as relações sociais de que faz parte: os cotidianos, as culturas, as práticas, os interesses, as paixões, as capacidades, as falas, os papéis, as experiências, os instrumentos, os resultados já obtidos pela ciência, etc. O caráter sacro do conhecimento científico torna-se, hoje, uma prática social feita em condições institucionais para se poder fazer a produção de conhecimentos. O conhecimento possui dimensão social, pois todo o pesquisador carrega consigo a carga social/cultural que orienta o seu entendimento. O sociólogo deverá saber sempre vigiar seu próprio conhecimento de forma que as verdades científicas encontrem um melhor caminho de legitimação e socialização, tenham pertinência diante dos grupos que precisam do conhecimento ou das comunidades científicas. Nunca pode esquecer, por exemplo, que ele, pesquisador, e os outros são seres humanos, movidos pela força de afetividades oriundas da lógica da vida. Ao longo deste texto vamos estudar estas realidades. Começaremos mostrando as possíveis identidades que a Sociologia do Conhecimento possa ter, a emergência destas reflexões sobre elementos relacionais presente nos esforços para produzir conhecimentos científicos, como se forma o habitus científico, o papel das abstrações, das generalizações, das socializações e das institucionalizações da ciência. Em seguida traçaremos a trajetória deste ramo de estudo e as tendências atuais. Em um segundo momento trabalharemos com elementos que desafiam a pesquisa em Ciências Sociais hoje, dedicando especial atenção a duas abordagens da Sociologia do Conhecimento, presentes em Boaventura de Sousa Santos e Humberto Maturana. No último tópico vamos abordar o papel da universidade atual, diante da ciência e das novas relações sociais. 8 EaD sociologia do conhecimento Antes de você entrar na unidade a seguir leia as considerações de Edgar Morin1 sobre o que é conhecimento: O Conhecimento Naturalmente, o ensino escolar fornece conhecimento, fornece saberes. Porém, apesar de sua fundamental importância, nunca se ensina o que é, de fato, o conhecimento. E sabemos que os maiores problemas neste caso são o erro e a ilusão. Ao examinarmos as crenças do passado, concluímos que a maioria contém erros e ilusões. Mesmo quando pensamos em vinte anos atrás, podemos constatar como erramos e nos iludimos sobre o mundo e a realidade. E por que isso é tão importante? Porque o conhecimento nunca é um reflexo ou espelho da realidade. O conhecimento é sempre uma tradução, seguida de uma reconstrução. Mesmo no fenômeno da percepção, através do qual os olhos recebem estímulos luminosos que são transformados, decodificados, transportados a um outro código, que transita pelo nervo ótico, atravessa várias partes do cérebro para, enfim, transformar aquela informação primeira em percepção. A partir deste exemplo, podemos concluir que a percepção é uma reconstrução. Tomemos um outro exemplo de percepção constante: a imagem do ponto de vista da retina. As pessoas que estão próximas parecem muito maiores do que aquelas que estão mais distantes, pois a distância, o cérebro não realiza o registro e termina por atribuir uma dimensão idêntica para todas as pessoas. Assim como os raios ultravioleta e infravermelhos que nós não vemos, mas sabemos que estão aí e nos impõem uma visão segundo as suas incidências. Portanto, temos percepções, ou seja, reconstruções, traduções da realidade. E toda tradução comporta o risco de erro. Como dizem os italianos “tradotore/ traditore”. Também sabemos que não há nenhuma diferença intrínseca entre uma percepção e uma alucinação. Por exemplo: se tenho uma alucinação e vejo Napoleão ou Júlio César, não há nada que me diga que estou enganado, exceto o fato de saber que eles estão mortos. São os outros que vão me dizer se o que vejo é verdade ou não. Quero dizer com isso que estamos sempre ameaçados pela alucinação. Até nos processos de leitura isto acontece. Nós sabemos que não seguimos a linha do que está escrito, pois, às vezes, nossos olhos saltam de uma palavra para outra e reconstroem o conjunto de uma maneira quase alucinatória. Neste momento, é o nosso espírito que colabora com o que nós lemos. E não reconhecemos os erros porque deslizamos neles. O mesmo acontece, por exemplo, quando há um acidente de carro. As versões e as visões do acidente são completamente diferentes, principalmente pela emoção e pelo fato das pessoas estarem em ângulos diferentes. No plano histórico há erros, se me permitem o jogo de palavras, histéricos. Tomemos um exemplo um pouco distante de nós: os debates sobre a Primeira Guerra Mundial. Uma época em que a França e a Alemanha tinham partidos socialistas fortes, potentes e muito pacifistas, e que, evidentemente, eram contrários à guerra que se anunciava. Mas, a partir do momento em que se desencadeou a guerra, os dois partidos se lançaram, massivamente a uma campanha de propaganda, cada um imputando ao outro os atos mais ignóbeis. Isto durou até o fim da guerra. Hoje, podemos constatar com os eventos trágicos do Oriente Médio a mesma maneira de tratar a informação. Cada um prefere camuflar a parte que lhe é desvantajosa para colocar em relevo a parte criminosa do outro. Este problema se apresenta de uma maneira perceptível e muito evidente, porque as traduções e as reconstruções são também um risco de erro e muitas vezes 1 Morin, Edgar. Os sete saberes necessário à educação do futuro. Publicado no Boletim da Semtec-MEC. Informativo eletrônico da Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Ano1, n. 4, Junho/Julho de 2000. 9 EaD Enio Waldir da Silva o maior erro é pensar que a idéia é a realidade. E tomar a idéia como algo real é confundir o mapa com o terreno. Outras causas de erro são as diferenças culturais, sociais e de origem. Cada um pensa que suas idéias são as mais evidentes e esse pensamento leva a idéias normativas. Aquelas que não estão dentro desta norma, que não são consideradas normais, são julgadas como um desvio patológico e são taxadas como ridículas. Isso não ocorre somente no domínio das grandes religiões ou das ideologias políticas, mas também das ciências. Quando Watson e Crick decodificaram a estrutura do código genético, o DNA (ácido desoxirribonucléico), surpreenderam e escandalizaram a maioria dos biólogos, que jamais imaginavam que isto poderia ser transcrito em moléculas químicas. Foi preciso muito tempo para que essas idéias pudessem ser aceitas. Na realidade, as idéias adquirem consistência como os deuses nas religiões. É algo que nos envolve e nos domina a ponto de nos levar a matar ou morrer. Lenin dizia: “os fatos são teimosos, mas, na realidade, as idéias são ainda mais teimosas do que os fatos e resistem aos fatos durante muito tempo”. Portanto, o problema do conhecimento não deve ser um problema restrito aos filósofos. É um problema de todos e cada um deve levá-lo em conta desde muito cedo e explorar as possibilidades de erro para ter condições de ver a realidade, porque não existe receita milagrosa (Morin, 2000, p. 1). 10 EaD Unidade 1 sociologia do conhecimento IDENTIDADE DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO OBJETIVO DESTA UNIDADE •Estudar o conceito, a emergência e as principais abordagens da Sociologia do Conhecimento. Temos a pretensão, com isso, de criar uma identidade para a Sociologia do Conhecimento, que nos fundamente para abordar realidades sociais, frutos de aplicação de conhecimentos. AS SEÇÕES DESTA UNIDADE Seção 1.1 – A Sociologia do Conhecimento – as conceituações Seção 1.2 – O Conhecimento na Visão dos Clássicos – a origem Seção 1.3 – A Sociologia do Conhecimento no Século 20 – a consolidação Seção 1.4– Conhecimento e Cultura nos Anos 70 Seção 1.1 A Sociologia do Conhecimento – as conceituações A Sociologia do Conhecimento investiga as interligações entre categorias de pensamento, reivindicações do conhecimento e realidade social do pensamento. Esta definição inicial insere-se na constatação de que as descobertas científicas e os avanços tecnológicos, ocorridos especialmente a partir do final do século 19 e sua aceleração ao longo do século 20, a crença no poder da ciência e da razão serviram para legitimar sua autoridade e necessidade e dar origem a algumas arrogâncias. 11 EaD Enio Waldir da Silva Esta é perceptível nos discursos que defendem a razão científica como a única fonte válida de conhecimento. Funda-se ainda na modernidade a tentativa de diferenciar conhecimento científico, a partir da matriz filosófica original, dos conhecimentos de segunda ordem, como lógica, gnoseologia, teoria do conhecimento, Filosofia da ciência, epistemologia – ou que outro nome ainda se queira dar a esse domínio. Advém de Descartes e tem continuidade em Locke, Hume, Kant e Hegel, a ponto de o problema do conhecimento tornar-se ponto fundamental da Filosofia moderna. Destes momentos reflexivos surge a Sociologia para construir uma visão de que o próprio sujeito que pensa ou investiga deve se perceber no ato de conhecer, inserir-se no objeto de conhecimento. O ato individual de conhecer é o resultado de uma complexa cadeia de operações e desenvolvimentos lógico-simbólicos, que se inicia com o processamento de informações por parte de um cérebro, ele mesmo envolvido no processo evolutivo da inteligência humana. Esta compreensão, no entanto, é mais antiga, tendo percorrido, desde a Antiguidade Clássica, vários caminhos que se cruzam, mas que se assentam na lógica. Ao identificar as regras básicas de funcionamento do pensamento, a lógica foi certamente a primeira expressão do conhecimento racional, explícito e consciente, sobre o próprio conhecimento, cuja continuidade e ampliação para outros aspectos do conhecer, posteriormente, fundaria o campo epistemológico. A Sociologia do Conhecimento pode ser definida, em termos gerais, como o conjunto dos esforços intelectuais que se dedicam a investigar as realidades sociais do conhecimento. Esta genérica definição pretende inserir a compreensão de que este campo da Sociologia se dedica a estudar como as relações de forças políticas e sociais, de um determinado momento histórico, se relacionam com a vida intelectual, enfatizando os métodos e os condicionamentos do pensamento para abordagens das realidades sociais. Ou seja, busca a compreensão de que os sistemas cognitivos possuem fortes relações entre o coeficiente existencial do conhecimento – incluindo os coeficientes humanos (aspectos pragmáticos, políticos e ideológicos) e os coeficientes sociais (variações nas relações entre quadros sociais e conhecimento). A Sociologia do Conhecimento é uma área da Sociologia que nasce na Europa (Alemanha, França) e se desenvolve nos Estados Unidos em meados do século 20. Inicialmente ela se ocupava com a diversidade de valores presentes nas atitudes, modos de pensar de grupos sociais que produzem universos mentais de interpretação do mundo, numa mesma sociedade. Compreendiase que “o modo de produção da vida material determina o caráter geral dos processos sociais e intelectuais da vida” como dizia Marx (1997), e que os pensamentos derivados dos sujeitos dependem de sua base de existência. Além disso, as categorias de pensamento variavam de acordo com a organização social à qual indivíduos estão associados. 12 EaD sociologia do conhecimento Para além desta tendência que acredita que as respostas científicas são dadas pela própria natureza, enquanto às bases sociais cabe apenas o papel de mediador estão estudos como os de Bourdieu, defendendo a tese de que a ciência é uma atividade intelectual autodeterminada e a comunidade científica é como um sistema social interdependente com outros sistemas com regras definidas pelos próprios cientistas (Bourdieu, 1983). Estas tendências da Sociologia do Conhecimento são herdeiras do contexto dos anos 70, quando vai se dedicar ao estudo das relações entre ciência e sociedade, quando se percebe a emergência de grupos de pesquisas instalados dentro das universidades e centro de pesquisas de grandes empresas e institutos de pesquisa privados e estatais. Vai se evidenciar que as ciências fazem parte de estratégias do Estado e das empresas. Entende-se que as funções da ciência estão diretamente ligadas ao tipo de sociedade em que emergem os paradigmas dos grupos que ela desenvolve e que são parte das forças produtivas condicionadas pelas estruturas sociais que modelam e dirigem seu curso, seus métodos e o uso de seus resultados. Esta interpretação reposiciona a ciência no interior das teorias marxistas da ideologia, no contexto das relações de dominação da sociedade moderna. Ela teria, então, caráter de instrumento de dominação racional e técnica da sociedade (Habermas, 1982). Esta interpretação entendeu que um dos ambientes adequados às relações científicas, para a produção de conhecimentos, seria a universidades e foi a ela que os setores produtivos recorreram quando perceberam que não poderiam dar conta, sozinhos, da velocidade e complexidade das inovações tecnológicas (Santos, 1986). Assim sendo, hoje a Sociologia do Conhecimento transita por uma enorme quantidade de temas ligados às ciências: para construir os entendimentos das relações entre o conhecimento formal (científico), que a universidade dimensiona, e a sociedade, produtora de variadas demandas; as relações entre as instituições culturais produtoras de bens simbólicos, legitimadores das práticas e os indivíduos que a ela recorrem; nas relações das instituições culturais com outras instituições; a realidade educacional a partir dos contextos e condicionantes sociais e culturais das formas de pensamento que influenciam na produção do conhecimento; as instituições a partir de ações programadas conscientemente para obter determinados fins (Goldmann, 1972), etc. A Sociologia do Conhecimento tornou-se um dos núcleos constitutivos da Teoria Sociológica. Ou seja, é um momento de coroação das perspectivas teóricas que orientam as reflexões sociológicas. Além de ser uma Sociologia da Sociologia é também uma baliza do estatuto teórico de nossa ciência, que pretende entender sua essência, não somente por meio de uma visão histórica da ciência, mas também por fundamentar uma epistemologia dos saberes científicos traduzidos das vivências humanas. 13 EaD Enio Waldir da Silva Entre tantas tentativas de esclarecer a identidade da Sociologia do Conhecimento destacase a de Rodrigues (2002), que considera seus objetivos identificar, conhecer, explicar e validar os nexos existentes entre as condições sociais, posicionadas historicamente, e as produções culturais de atores individuais e coletivos, oriundos da interação de conteúdos cognitivos desses atores com a própria realidade coletiva (tipos de instituição, crenças, doutrinas, racionalidades sociais). Estaríamos afirmando, então, que é uma reflexão e uma reflexividade do conhecimento (um conhecimento do conhecimento) que põe a descoberto o sujeito situando-o como parte do ato de conhecer. Nesse sentido é que o tema generalização se tornou um problema epistemológico central na Sociologia do Conhecimento. A possibilidade de universalizar verdades que foram construídas com base em um processo de pesquisa particular em uma realidade particular. Por isso, devemos traçar os limites do que queremos dizer e mostrar claramente que é sobre uma parte que queremos nos dedicar. Isso Bourdieu (1983) denomina de construção do objeto. O grande desafio nosso é construir um objeto. A generalização consiste em atribuir a uma totalidade o que foi observado em um número limitado de indivíduos ou de casos singulares. Dá lugar ao genérico, isto é, a classes de objetos, a conceitos ou proposições que se referem ao caso médio, ao caso típico ou ao normal do gênero. A generalização é a operação intelectual que reúne em uma classe, em um conceito ou em uma proposição um conjunto de objetos singulares com características comuns. Refere-se a um número finito ou indefinido de indivíduos, nisso diferindo da universalização. Aplica-se aos indivíduos de uma classe, de um conceito ou de uma proposição dada. Por exemplo, o conceito de “computador” é geral. Distingue-se de coletivo, que se aplica a indivíduos como grupo. O conceito de “rebanho” é coletivo. O geral se funda na operação de generalização, enquanto o coletivo se funda na totalização do singular. O geral distingue-se do universal, que é um caso extremo, no qual todos os indivíduos, sem exceção, estão incluídos. Nas áreas das Ciências Humanas e Sociais, no que se refere à generalização, existe um divisor de águas que separa os métodos positivistas dos demais. Nos processos de explicação não positivistas – referidos a estruturas, a casos, a tipos e a fenômenos –, a generalização é, forçosamente, restrita. Pode-se generalizar os conceitos – por exemplo, um conceito instituído especialmente para uma pesquisa, como o de “capital burocrático”; pode-se estabelecer proposições – como a de que os trabalhadores encontram fórmulas para sobreviver ao trabalho –, mas não se pode atribuir a uma classe (muito menos a uma totalidade) o que foi observado ou inferido num dado segmento espaço-temporal. Isso só é possível nos processos de explicação ditos positivistas (posit: o que está posto). 14 EaD sociologia do conhecimento Estes utilizam sistemas de inferência indutivos – vale dizer, métodos e técnicas em que o raciocínio parte de dados particulares (fatos, experiências, enunciados empíricos) –, determinando – por uma sequência de operações cognitivas de extensão, extrapolação ou analogia – classes mais gerais, indo dos efeitos à causa, das consequências ao princípio, etc. É pelo poder de ruptura e de generalização que se reconhece e que se conhece o modelo teórico de uma pesquisa (Bourdieu, 1994). A generalização precisa de condições para se efetivar. Em primeiro lugar, verificar se os materiais analisados são de uma amostra representativa de um universo específico de materiais e, em segundo lugar, observar se as relações verificadas entre determinadas condições e suas consequências são universalmente válidas (vejam: a definição de capitalismo de Weber e de Marx são generalizações que servem para nossa ideia de capitalismo até hoje, mas é o capitalismo que você percebe aí em sua cidade, em sua região, em seu país? Convém lembrar que o estabelecimento de leis científicas está relacionado ao projeto de pesquisa, dependendo do desenvolvimento dos conceitos e da formação de hipóteses (Bourdieu, 1994). A forma mais simples de enunciado sobre como uma coisa funciona é uma generalização, ou seja, uma observação sobre como duas ou mais variáveis se relacionam: mulheres recebem salários menores do que os homens... Há muitos desacordos entre os sociólogos se essas generalizações funcionam para explicar as coisas, pois parece que a generalização apenas resume algo a ser explicado. A generalização pode sugerir uma formulação teórica correlata, mas isso não é suficiente para torná-la puramente teórica... em Sociologia não afirmamos abstratamente alguma coisa sem relacioná-la empiricamente. Generalização é esforço de teorização. A comparação e a generalização, tal como ocorrem de forma sistemática na Ciência e na Filosofia, estão associadas à abstração. Emerge em um momento em que o pensamento é capaz de operar por meio de conceitos e proposições, podendo alçar voo em direção de hipóteses e teorias, por não estar mais preso a materialidade de objetos concretos particulares. Generalizar é separar mentalmente para tomar em consideração uma propriedade que não pode ter existência fora do todo concreto ou intuitivo em que aparece. Diferenciar e comparar com o objetivo de encontrar, entre as diferenças aparentes, as similaridades e os padrões, as regularidades, enfim, que dão origem à generalização (Barbosa, 1998). É na socialização do conhecimento que vamos esclarecer como fizemos nossos estudos, os caminhos, os impactos, as conclusões parciais e as conclusões gerais a que chegamos. Quem quiser duvidar de nossas “verdades científicas” terá de fazer os mesmos caminhos e provar que pode duvidar e chegar a outras conclusões. É aí que a ciência se torna grandiosa: poder socializar os diferentes pontos de vista. Isso, no entanto, pode chegar a um relativismo exagerado. Por isso precisamos pôr as verdades em diálogo e chegar a um entendimento mais unívoco sobre tal fenômeno (não precisa ser um único entendimento, mas esforçar-se para unir o máximo). Sem isso, teríamos o irracionalismo... Na medida em que temos algumas convergências de entendimentos sobre fatos/fenômenos, então se consagra conhecimentos, conceitos, metodologias, expressão sobre realidade, que pode ser usada para orientar práticas políticas, culturais, sociais, educacionais, econômicas, jurídicas... Isto quer dizer que se instituiu o saber, reconhecido pela comunidade científica. 15 EaD Enio Waldir da Silva Unitas multiplex Sabe-se que a pesquisa não é apenas a pretensão de descre- significa unidade do múltiplo. ver fatos reais, mas se apresenta como construção que diz respeito a fatos socialmente construídos. Há, portanto, uma distância entre interpretação e realidade. As especializações no seio da Sociologia (Sociologia do trabalho, Sociologia rural, Sociologia religiosa, Sociologia dos tempos livres, Sociologia dos meios de comunicação social, etc.) trouxeram uma compartimentação interna que devido à multidimensionalidade e à complexidade das realidades sociais, desintegra toda a possibilidade de conceber a sociedade como um todo, constituindo uma unitas multiplex. A Sociologia geral torna-se não mais o conhecimento de um sistema complexo e multidimensional, mas ora um saco vazio, ora uma teoria abstrata em que se dissolvem, aqui o sistema, ali o complexo e o multidimensional. Somos abandonados a uma alternativa perversa: Sociologia em migalhas ou Sociologia abstrata. De um lado, as pesquisas fechadas e sem horizonte, do outro as teorias arbitrárias e racionalizadoras (Morin, 1998). A Sociologia não pode perder de vista o concreto, os acontecimentos, os fenômenos da vida cotidiana, do presente, os grandes problemas antropossociais. Trata-se, como afirma Morin (1998), de simultaneamente rever os problemas das teorias fundamentais e de interrogar o presente imediato, incluindo os acontecimentos. Como a cientificidade é parcial e inacabada em toda a Sociologia, todo o sociólogo é parcialmente um científico e parcialmente um cidadão e, no entanto, deve tentar atingir um conhecimento pertinente, correndo os seus riscos intelectuais, e ao mesmo tempo, viver o seu mundo em inter-relações. Enquanto intelectual, a receita de Morin é empenhar-se pessoalmente na sua interrogação dos fenômenos e dos acontecimentos; aventurar-se no seu diagnóstico e no seu prognóstico; problematizar de maneira crítica o que parece evidente e natural, mobilizar a sua consciência e a sua reflexão de humano e de cidadão, elucidar os seus pares intelectuais. Tanto deve pesquisar e utilizar dados fiáveis e verificáveis como desenvolver um pensamento pessoal. Em vez de se refugiar numa gíria anônima que crê científica, deve empenhar-se numa escrita singular, e assim se afirmar plenamente como autor (1998, p. 13). 16 EaD sociologia do conhecimento Pela socialização do conhecimento o sociólogo esclarece como fez os estudos, os caminhos, os impactos, as conclusões parciais e as conclusões gerais a que chegou. Quem quiser duvidar das “verdades científicas” terá de, ao menos, fazer os mesmos caminhos e provar que pode duvidar e chegar a outras conclusões. É aí que a ciência se torna grandiosa: poder socializar os diferentes pontos de vista. Isso, no entanto, pode chegar a um relativismo exagerado. Por isso precisamos pôr as verdades em diálogo e chegar a um entendimento mais unívoco sobre aquele fenômeno (não precisa ser um único entendimento, mas esforçar-se para unir o máximo. Sem isso, teríamos o irracionalismo...). Na medida em que temos algumas convergências de entendimentos sobre fatos/fenômenos, então se consagra conhecimentos, conceitos, metodologias, expressão sobre a realidade que pode ser usada para orientar práticas políticas, culturais, sociais, educacionais, econômicas, jurídicas... Isto quer dizer que se instituiu o saber, reconhecido pela comunidade científica. Embora isso pareça tarefa da epistemologia, o destaque está ao mostrar que a gênese social do conhecimento é parte da força de validade para um contexto histórico determinado. Se as épocas afetam as ideias dos homens, estas também afetam as épocas e se tornam igualmente fatos passíveis de serem investigados. Isto quer dizer que não existem conhecimentos particulares, individuais: o saber sempre está vinculado a uma forma social, o que torna impossível a produção de uma verdade única. A epistemologia, disciplina oriunda da Filosofia, se diz incumbida de estabelecer o estatuto de verdade e objetividade do conhecimento científico, verificando a gênese em si do conhecimento e não a sua lógica temporal, circunstancial, local e cultural dos diferentes contextos. Trata-se, então, de uma dinâmica mais realista e empirista que marca o diferencial da Sociologia do Conhecimento e a epistemologia.1 Não vamos nos prender nestas indagações mais abstratas que certamente são importantes para o sociólogo, mas que podem estar relacionadas ao seu condicionamento reflexivo sobre as próprias possibilidades de fazer ciência. Queremos aqui destacar melhor o lugar do conhe- 1 Não vamos nos dedicar aqui a esta polêmica sobre o que é Sociologia do Conhecimento e epistemologia. Basta-nos referenciar que esta faz parte dos aportes da Filosofia que não está preocupada essencialmente com os elementos empíricos dos conhecimentos. Sua fantástica colaboração é buscada nas próprias abstrações e aquela é parte da Sociologia, que inversamente, se dedica às relações sociais efetivas no tempo e no espaço. A quem interessar saber mais sobre este embate leia: Espinosa, Emilio L.; Garcia, José M. G.; Alberto, Cristóbal T. Los problemas de la Sociología del conocimiento: sociología del conocimiento y epistemología. In: La sociologia del conocimiento y de La ciência. Madrid: Alianza Editorial, 1994. p. 127-147. Dizem os autores: A ortodoxia acadêmica neopositivista do Círculo de Viena solucionou este problema distinguindo com Hans Reichenbach o contexto social da descoberta do conhecimento e o contexto de sua justificação, ou seja, distinguindo entre a gênese dos conhecimentos e a sua validade. Com isso se tratava de assinalar que mesmo que os conhecimentos possam emergir de formas sociais concretas, sua validade teórica como conhecimento verdadeiro (ou falso) deve ficar à margem das análises sociais, pois diz respeito a argumentos abstratos lógico-experimentais, cuja elaboração cabe à Epistemologia ou à Filosofia da Ciência. A análise social da gênese nada poderia dizer sobre a validade dos conhecimentos (Lamo de Espinosa e colaboradores, 1994, p. 128).Tradução livre de Rodrigues, 2002. 17 EaD Enio Waldir da Silva cimento na sociedade e o lugar da sociedade no conhecimento. Sabemos da dificuldade desta empreitada, mas podemos colocar os seguintes pressupostos que são inerentes à produção de conhecimento em Sociologia: Pressuposto I – A Diferencialidade de Manifestação dos Fatos/Realidades: Significa que embora se tenha um saber instalado, que interpreta as realidades/fatos/fenômenos sociais, em Sociologia se exige que se busque relacionar este conhecimento anterior com o tempo e espaço de agora, do tempo presente, pois os fatos sociais não se manifestam da mesma forma nos diferentes tempos e espaços. Pressuposto II – A Inserção do Sujeito do Conhecimento nos Fatos/Realidades: Embora se valorize muitos os aspectos analíticos/reflexivos do conhecimento, é preciso considerar que este saber partiu de um sujeito com trajetórias existenciais inseridas em realidades que influenciam em seu potencial reflexivo. Trata-se das trajetórias culturais e escolares do pesquisador. Pressuposto III – Objetividade da Busca do Conhecimento ou Posição Histórica Diante dos Fatos/Realidades: Embora o sujeito e o objeto estejam circunstanciados pelo tempo e espaço, é preciso dimensionar os objetivos pelo quais o conhecimento foi produzido e sua inserção nas relações de poder. Trata-se de mostrar que o pesquisador sempre tem uma posição de classe (um mundo que defende) nas relações sociais existentes. Estas posições podem não ser correspondentes às situações de classe (condições econômicas reais que possui). Pressuposto IV – As Potencialidades de Socialização do Saber: Significa entender que o conhecimento precisa ter potencialidades para ser socializado e dialogado, ou seja, ser democrático e democratizante, pois todo o saber deve elucidar a vida e não desprezá-la. Ou seja, se não levar isso em conta, estamos apenas diante de uma técnica de poder e não de um saber científico. Dito de outra forma: o conhecimento relevante deve ser discernido na gramática social. Pressuposto V – Ação Orientada do Sujeito/Ator do Conhecimento nos Fatos/Realidades: O próprio sujeito do conhecimento precisa encontrar no seu saber potênciais de orientação da vida prática e inserir-se no mundo em que pesquisa. Considerando as lutas universais presentes em uma circunstância histórica, o sujeito do conhecimento deve se inserir em um movimento social e societal. Nesse momento podemos dizer que os conhecimentos devem se dirigir para fortalecer os seguintes movimentos sociais universais: Movimento Ecológico: Meio Ambiente; Movimento de Mulheres: Cultura de Igualdade e Diferença; Movimento pelo Bom Uso da Terra – Sustentabilidade; Movimentos Culturais – Direito à Diferença; Movimento pelos Direitos Humanos – Dignidade da Pessoa; Movimento da Economia Solidária – Trabalho, Renda e Solidariedade. Desse modo a produção do conhecimento deve ter como papel básico libertar as inteligências, uma vez que a atual sociedade é fruto da natureza intelectual e espiritual dos indivíduos. Devemos fazer ciência para além de um tempo histórico, de uma vida particular, de um governo, 18 EaD sociologia do conhecimento de uma empresa, de um mercado, de um local, ou seja, contribuir para o mundo, desvendando as relações e determinações, nem sempre manifestadas nas diversas dimensões da vida humana em sociedade. Na totalidade destas, o ser em sociedade, o fazer, o saber, o comunicar-se, o poder, não possuem denotações independentes, pois se afirmam pelo transpasse de uns nos outros, identificam-se e permitem a compreensão de seus movimentos somente no confronto de seus outros. A reciprocidade e as representações incidem sobre a vida em sociedade, que é produto e produtora da forma como o homem se situa na realidade e a si mesmo. O trabalho, o existir social, os processos cognitivos, os signos, as relações de poder, são lugares sociais em que se produz conhecimento e nele incidem (Marques, 1997). Para atingir esta vigilância sobre próprio trabalho de pesquisa, vamos elucidar aqui alguns passos que são importantes em uma pesquisa científica. Trata-se das primeiras abstrações necessárias para iniciar um procedimento de pesquisa: a realização do projeto – a escolha de um tema que proporcione a criação de um objeto, que se justifica cientificamente, socialmente e praticamente. O outro passo é verificar que produções já abordaram este objeto, para que, assim, se possa tirar uma novidade na minha abordagem, na minha problematização, no meu problema de pesquisa e elucidar minhas hipóteses. Na fase seguinte passo a identificar o processo de pesquisa com o quadro científico existente, com as dimensões teóricas referentes, onde se escoram os conceitos utilizados na metodologia escolhida. Por último devo mostrar como vai se dar a pesquisa no tempo e no espaço que possuo, na realidade onde ela se insere e se conclui. Este esquema é uma exposição lógica de como é possível abordar uma realidade. O domínio das técnicas e dos procedimentos de elaboração e apresentação dos tratados, estudos e pesquisas garante a qualidade formal do material em questão, facilitando os critérios de avaliação dos mesmos. Trata-se de, a partir de algumas diretrizes operacionais, desenvolver um instrumental de apoio às atividades didático-científicas dos professores que buscam desenvolver competências específicas nos seus alunos em formação. Sabe-se que a questão da competência supõe não apenas o domínio de conteúdos e técnicas próprios à especificidade da atividade profissional, como também o domínio de aspectos relacionados à forma e à sistematização do próprio pensar. O processo de produção do conhecimento sobre o mundo social passa necessariamente pela reelaboração daquilo que vemos, na forma de representações. Ou seja, para tentar compreender o mundo é preciso, num primeiro momento, desconstruí-lo, assim como faz o mecânico de automóveis, que para compreender seu “objeto”, qual seja, o motor, precisa desmontá-lo para depois remontá-lo, agora munido de um saber enriquecido pela práxis. Assim, o cientista social ao se deparar com seu “objeto”, precisa desenvolver uma atitude crítica de forma a “desmontar” este “objeto”, na forma de categorias conceituais, buscando o seu entendimento, também enriquecido pela práxis. Esclarecendo que: 19 EaD Enio Waldir da Silva 1 – TEMA: Realidade que será estudada: escolha do tema (importância social x importância científica). 2 – OBJETIVOS: Delimitar os elementos efetivos que vão ser abordados, o objeto de estudo efetivo, o que vai procurar no tema. 3 – JUSTIFICATIVA: Como originou o interesse em estudar o tema. Temos três tipos de justificativa: Interesses Científicos: contribuições para as ciências. Interesses Políticos-Sociais: implicações nas relações sociais que a investigação poderá atingir. Interesses Práticos Específicos: dimensões institucionais práticas elementares que a pesquisa responde. 4 – REVISÃO BIBLIOGRÁFICA: Mostrar que pesquisas já abordaram seu objeto de estudos e o diferencial que esta pesquisa terá em relação àquelas. Trata-se de expor a síntese da análise compreensiva feita pela pesquisa bibliográfica dos autores pesquisadores mais próximos ao nível de investigação do seu estudo (outras monografias, textos, artigos, teses e livros de autores não paradigmáticos). Não se trata da teorização, mas de um mapeamento do conhecimento existente para garimpar seu objeto. 5 – PROBLEMA DE PESQUISA: A) Problematização: mostrar quais as impressões já obtidas do objeto investigado, as receptividades do investigador com as informações, as inquietações, as novas dimensões suscitadas e os indicativos iniciais das principais interrogações. B) Definição do Problema de Pesquisa: fazer a derradeira pergunta sobre a realidade e os entendimentos já obtidos. A pergunta deve fazer o rompimento com o senso comum e os conhecimentos já existentes sobre o objeto. Esta pergunta deve ter uma densa relação com os objetivos e ao mesmo tempo encaminhar a abordagem teórica que embasa a reflexão do tema. 6 – HIPÓTESES: Hipóteses são proposições que antecipam a resposta para a pergunta do problema de pesquisa. A função da hipótese é conduzir a constatação inicial da realidade a ser investigada, fazer a conexão necessária entre a teoria e a realidade, fazer a crítica, desafiar e provocar o interesse pelo tema. 7 – QUADRO TEÓRICO: Delinear a visão teórica do investigador sobre o objeto da pesquisa, apontando os autores paradigmáticos que têm possíveis relações com a configuração da pesquisa que se está fazendo. É o possível enquadramento da pesquisa no horizonte teórico de sua área de conhecimento. Não necessariamente é a filiação teórica, mas sim a relação sinalizadora do fortalecimento de escolas científicas ou de modelos explicativos, pois é evi20 EaD sociologia do conhecimento dente que o uso de conceitos tem relação com seus criadores. É no quadro teórico que são demonstrados os conceitos que vão ser utilizados, seus significados e as possíveis mudanças de sentido que haverão na presente pesquisa: “os pesquisadores precisam precaver-se contra a tendência de refletir a realidade social sem a problematizarem, produzindo dados sem teoria e a idéia de que a teoria sem dados pode falar em nome da realidade” (May, 2004). 8 – METODOLOGIA: Combinação entre teoria e prática (indutivismo e dedutivismo), em que se pode dividir os métodos em Ciências Sociais para: 8.1: BUSCA DE DADOS: Destacar o objeto no tempo e no espaço, sendo a amostragem que exige metodologia adequada para a sua abordagem. É a escolha dos métodos e das técnicas que vai utilizar para recolher os dados, organizá-los e analisá-los. É descrever o método escolhido. Geralmente a metodologia está vinculada ao problema de pesquisa, às hipóteses e ao quadro teórico reflexivo antes enunciado. O método coordena as técnicas de coleta, a busca de informações e delimita a amostra. Métodos nas Ciências Sociais: Estudo bibliográfico, Estudos Comparativos, Observação Participante, Estatístico, Estudo de Caso, Reconstrução Histórica, História Oral, História de Vida, Observação Participante, Entrevista Dialógica, Pesquisa Documental, Pesquisa Comparativa. Técnicas de Pesquisas em Ciências Sociais: Análise de documentos, pesquisa bibliográfica, análise de dados estatísticos, entrevistas, questionários, história de vida, história oral, análise de mensagens, análise de discursos, técnicas visuais... 8.2: INTERPRETAÇÃO DOS DADOS: – Método positivista – Método dialético – Método compreensivo – Interacionismo. 9 – PLANEJAMENTO DA EXECUÇÃO Organograma da Ação: Apontar os passos na pesquisa no tempo e no espaço em que vai ser realizada e concluída. Quadro 1 ATIVIDADES BUSCA E ORGANIZAÇÃO DOS DADOS ANÁLISE, DESCRIÇÃO DOS DADOS INTERPRETAÇÃO DOS DADOS ESCRITA FINAL REVISÃO FINAL COMUNICAÇÃO DOS RESULTADOS OU APRESENTAÇÃO 1 X 2 X 3 X 4 5 6 X X X 5 8 X X 9 10 X X 11 12 X X Fonte: Elaboração do autor. 21 EaD Enio Waldir da Silva A pesquisa científica deve ser planejada, antes de ser executada. Isso se faz mediante uma elaboração que se denomina “projeto de pesquisa”. O projeto de pesquisa é um documento que descreve os planos, fases e procedimentos de um processo de investigação científica a ser realizado. Talvez uma das maiores dificuldades, de quem se inicia na pesquisa científica, seja a de imaginar que basta um roteiro minucioso, detalhado, para seguir e logo a pesquisa estará realizada. Na verdade o roteiro existe: são as diversas fases do método; entretanto uma pesquisa devidamente planejada, realizada e concluída não é um simples resultado automático de normas cumpridas ou roteiro seguido. Antes deve ser definida como obra de criatividade, que nasce da intuição do pesquisador e recebe a marca de sua originalidade, tanto no modo de empreendê-la como de comunicá-la. As fases do método podem ser vistas como indicadoras de um caminho, dando, porém, a cada um, a oportunidade de manifestar sua iniciativa e seu modo próprio de se expressar. É evidente que a Sociologia defende um pluralismo metodológico para as pesquisas. Os procedimentos para compreender o mundo social tornam-se objetos de interpretação conflituosa e fonte de ricas argumentações. A observação é a construção intersubjetiva dos significados. Na pesquisa social temos de considerar a imensa relevância que existe entre o pesquisador e o ator social, o que influencia na definição do objeto de pesquisa.2 Todo o processo de pesquisa deve expressar-se na escrita. Esta escrita tem uma dimensão especial. Segundo Mario Osorio Marques (1998): [...] uma das minhas primeiras aprendizagens foi a constatação de que o desafio da escrita é o começála, no seu todo e em cada uma de suas partes. Isso porque só escrevendo se escreve, não se trata de preparar-se para o escrever. É ele um ato inaugural, começo dos começos... iniciar sem pressa... depois, assunto puxa assunto... escrever puxa leituras que puxam o reescrever. Marques (1998) tenta nos mostrar a atividade especial que é a escrita no processo pesquisante, afirmando que é preciso escrever antes e pensar depois: “escrevia-se antes o que se pensava. Agora entendo o contrário: escrever para pensar, uma forma de conversar”. A pesquisa só se inicia pela definição do seu começo (o tema ou assunto, o problema, a hipótese...) o título é o começo... Quando encontro o título tenho um começo... Pode modificar depois... quem escreve quer se ver e procura amigos para conversar... quando temos na cabeça um assunto, em toda a parte topamos com referenciais a ele. Escrever é uma paixão. Quando se tem um título-tema-problema-hipótese vive-se com ele o dia todo. Dorme-se com ele, acorda-se com ele. 2 Rudio, Franz Victor. Introdução ao projeto de pesquisa. 31. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. 22 EaD sociologia do conhecimento Entende-se que o texto escrito contém as palavras que revelam o outro, que se aviva no ato da leitura. Elimina-se pontos de vista privilegiados, pois o autor e o leitor se equilibram no sentido do texto e nas aberturas possíveis para as múltiplas culturas presente nos dois. Vivemos um tempo de cultura escrita. A linguagem é escrita e este é o desafio da expressão científica. Gostaríamos de ter um tempão para escrever. Não adianta, não o temos e se o tivéssemos duvido que escrevêssemos melhor. A criatividade não é bicho que se agarre; ela surge nos interstícios, na imaginação, de forma que, quando menos se espera, escrever é preciso... [...] Há gente que não começa alegando precisar de tempo. Andam à procura não do tempo perdido, mas do tempo que não lhe dão. Falta tempo ou falta paixão? ... O tempo é pastoso, algo se espicha ou se comprime como se quer, que se amolda a nossos amores... escrever não é obrigação insípida... [...] Escrever é preciso e nisso está o contra-ponto do dito popular “viver é preciso”, porque viver é entender-se consigo mesmo, dizendo-se a si ao dizer-se a outrem na fala do face-a-face, ou melhor, da fala-escuta, ou no dizer-se à folha em branco. Viver sem saber não é viver... [...] Entender as razões do apelo a essa segunda forma de reconciliar-se consigo mesmo, a do escrever, é chegar a ser profundo, não raso... para o professor escrever é princípio de vida, impulso vital e problema profissional de um ser sempre pesquisante que ensina a pesquisar, a aprender a aprender... usa-se o suporte físico da folha (ou tela), suporte histórico da gramática e do dicionário para que se escreva para conversar (Marques, 1998). A palavra falada se prolonga na palavra escrita, em que a linguagem se torna memória e energias intelectuais concretizadas, reservatórios de contextos de experiências que servem para interpretação do mundo. A Sociologia do Conhecimento reserva um papel especial para a linguagem: o de mediadora da experiência humana. Ela concretiza o mundo pensado e é potência desveladora da palavra que suplanta a prepotência subjetiva dos interlocutores, desalojando-os do empenho da imposição monológica dos próprios pontos de vista subjetivos ou fixamente objetivados. Na escrita, no texto, o significado supera o autor e o intérprete tem de relacionar o texto com sua própria situação, pois é sujeito histórico concreto que possui seus conceitos, crenças, ideais, critérios, normas e culturas (Marques, 1993). Assim, convidamos você a conversar lendo o texto que mostra a origem e o desenvolvimento das preocupações da Sociologia do Conhecimento nas Ciências Sociais. 23 EaD Enio Waldir da Silva Seção 1.2 O Conhecimento na Visão dos Clássicos – a origem Na Sociologia clássica já vemos este esforço para mostrar que os entornos sociais estão sempre a provocar os produtores de conhecimentos, sejam eles científicos ou conhecimentos sociais (conhecimentos simples, advindos das experienciações de vida). Em Marx, estaria expresso nos conceitos de Materialismo Histórico e na Dialética, em Dukheim em Categorias Sociais e em Weber em Afinidades Eletivas (Rodrigues, 2005).3 Na visão de Marx, o sistema social moderno é um sistema criado por uma classe, a burguesia, com mecanismos para garantir o controle e a ordem que lhe interessa. Tudo fica submetido à lógica deste sistema. Esta lógica é distribuída pela ideologia, pelas práticas econômicas e pelo conjunto de instituições que agrega poderes de organização e co­ação. Toda a teoria de Marx é possível de ser inserida neste esforço de explicar as relações sociais e a dinâmica do pensamento na sociedade. Em sua expressão “materialismo” é buscada a base na realidade sensível vivenciada pelos homens (no mundo do trabalho, da economia), para configurar uma teoria propositiva, da possibilidade objetiva, que pretendia revolucionar as ideias para transformar as formas de interpretações das realidades. Essa era a essência de suas referências, a dialética. Por exemplo, as lições da história humana sempre foram vistas sob o ponto de vista dos vencedores, dos dominadores. Sua função (da teoria) era também recuperar a história da sociedade pela visão dos vencidos, dos operadores (dos operários), para justificar sua assertiva de pretender fazer uma revolução nas formas de organização social da sociedade (com sua teoria do poder, da política e da dominação). Ou seja, podemos ler nas milhares de páginas escritas por Marx a diversidade de temas tratados, ora tentando elaborar um conjunto de novas concepções globais de sociedade, de homem e de mundo e ora querendo contribuir modestamente, por meio de pesquisas, para a luta revolucionária do movimento operário.4 A teoria de Marx trata-se de uma proposta científica (baseada em métodos de pesquisa), uma teoria do conhecimento que recupera a dialética (que nos desafia a buscar um motivo para buscar saberes), uma teoria da economia política (propondo uma sociedade igualitária) e também uma ciência da sociedade, pois é uma teoria que compreende os problemas centrais da nossa sociabilidade humana e propõe soluções que não são somente na lógica pensada, mas na prática Rodrigues, Leo Peixoto. Introdução ao conhecimento, da ciência e do conhecimento científico. Passo Fundo: UPF, 2005. p. 14 3 Silva, Enio Waldir da. Teoria Sociológica I. Ijuí: Ed. Unijuí, 2008. 4 24 EaD sociologia do conhecimento social. Enquanto método de pesquisa, temos a possibilidade de conhecermos a nós mesmos no/e pelo processo de conhecimento da sociedade em que vivemos. A dialética é o movimento recíproco entre teoria e prática, entre sujeito e objeto e é um processo de constante passagem fluida de uma determinação a outra no processo histórico (Silva, 2008). Os desdobra­mentos da “essência prática da teoria”, consolidados no lema “unidade de teoria e prática”, dependem da elevação conceitual do proletariado à condição de sujeito e objeto do processo histórico, mediando assim a relação entre consciência e realidade.5 Ao esclarecer o papel da dialética para o proletariado, Marx pressupõe desvendar a ideia de trabalho que se apresenta ao trabalhador e aos demais membros da sociedade. Com uma organização corpórea, o homem se destina a manter relações contínuas com a natureza circundante e assim vai destinguindo-se do animal na produção de seus meios de existência e a se autoproduzir na produção da realidade humano-social. Como atividades prospectiva, o trabalho marca a eficácia do futuro sobre o presente, pela representação antecipatória da necessidade, pelo recurso ao instrumento, suspensivo da ação imediata, e pelo recurso ao símbolo com que se faz obra coleitva. É o conhecimento que orienta e dinamiza a prática e esta ultrapassa o saber no apelo ao risco da imaginação, ao questionamento, à invenção do futuro, e pelo qual a solidariedade do rito e do mito conduz o grupo para além da experiência imediata. Além de catagoria antropológica, o trabalho é a categoria da teoria do conhecimento, referindo-se ao homem como seu esquema de agir e pensar. Podemos ver em Karl Marx que as configurações de conhecimento se deslocam da mera descrição dos objetos dados para a procura das formas de produção do real, contituindo-se a consciência em determinante da realidade, ao mesmo tempo que é por ela determinada e gerando a ambas. Com isso Marx enfrenta e responde à necessidade de diferenciar a consciência burguesa tipificada na mentalidade original da economia política, de um saber que proporciona a emancipação social. Trata-se da compreensão de um estado impregnado pelas representações características de um período particular da sociedade, em que a primazia cabe às forças materiais. Em consequência, deve-se distinguir em primeiro plano a consciência alienada como a manifestação da sociedade capitalista em nível da produção espiritual. Por fundamentar-se no fetichismo da mercadoria e na incapacidade da estrutura social para dominar as forças produtivas que ela própria suscitou como aprendiz de feiticeiro, a sociedade capitalista leva ao primado das forças produtivas materiais. Daí que o plano das ideias e a produção intelectual neste tipo 5 Ver em Lukács, G. História e consciência de classe: estudos de dialética marxista. 2. ed. Rio de Janeiro: Edit. Elfos, 1989 p. 289, e em Marx, Karl. O capital. Crítica da economia política. São Paulo: Difel, Livro 1, 1979. 25 EaD Enio Waldir da Silva de sociedade seja caracterizado pela consciência alienada, como forma de objetivação em que as forças sociais perdem suas características sociais e nessa perda são projetadas para fora de si (no fetichismo da mercadoria).6 É desta crítica aos pensadores burgueses que a Sociologia tirará a referência fundamental para a compreensão do caráter ideológico, pois se a sociedade capitalista leva ao primado das forças produtivas materiais a mentalidade da economia política, logicamente configura uma consciência mistificada ou ideológica porque está impregnada pelas representações (coletivas) características de um período particular da sociedade em que a primazia cabe às forças materiais. Isso significa que, sejam de apelo político como as mencionadas imagens-sinais, sejam de apelo moral como as imagens simbólico-ideais, todas as imagens ideológicas pressupõem a transposição em valores e ideais da força de atração dos produtos materiais como campos práticoinertes, uma vez que surgem por falta da identificação com a realidade. Há, aí, a constatação de que qualquer ciência é uma atividade social prática e, portanto, comporta um coeficiente humano, notando que é este o posicionamento e a formulação de Marx nas célebres Teses sobre Feuerbach. Em decorrência, constata-se que a ideologia não passa de um gênero particular do conhecimento: o conhecimento político que se afirma em todas as estruturas e em todos os regimes, mas cuja importância e cujo papel variam. Qualquer movimento dialético está ligado em primeiro lugar à praxis social. A alienação possui os seguintes aspectos: a objetivação; a perda de si; a medida da autonomia do social; a exteriorização do social mais ou menos cristalizada; a medida da perda de realidade ou desrealização – de que dependem, em particular, as ideologias como manifestações da consciência mistificada; a projeção da sociedade e dos seus membros para fora de si próprios e a sua dissolução nessa projeção ou perda de si (Lumier, 2011). A dialética é aplicada ao sistema capitalista para mostrar que o trabalho é alienado em mercadorias; o indivíduo alienado a sua classe; as relações sociais alienadas ao dinheiro, etc. Para Lukács (1989), a dialética é revolucionária e serve para mostrar as razões argumentativas para o fim da alienação, que começaria a acontecer com o fim na exploração do homem pelo homem, ou seja, quando for possível promover uma organização da produção igual e uma distribuição igual, a partir da autogestão e cogestão; promover o fim das classes sociais, o fim dos pri­vilégios dos lugares sociais e o fim de estruturas políticas que asseguram estes privilégios e a desigualdade, Conforme Lumier, Jacob. A Utopia do saber desencarnado, a crítica da ideologia e a sociologia do conhecimento. In: <http://www.leiturasjlumierautor.pro.br>. Acesso em: 12 dez. 2011. Jacob (J.) Lumier. In: As Aplicações da Sociologia do Conhecimento. Veja mais sobre este autor em <http://www.leiturasjlumierautor.pro.br>. Acesso em: 12 nov. 2009. 6 26 EaD sociologia do conhecimento criando um novo Estado, como uma nova esfera pública, o trabalho como livres disposições de iguais, não uma obrigação externa imposta por outrem, o fim da propriedade privada e a favor do livre desenvolvimento cultural do homem – promoção da igualdade da totalidade do gênero humano.7 Então, a assertiva que parece ser a mais central nesta teoria da li­berdade é esta: o homem só será livre quando o trabalho for livre. Para chegar a esta liberdade, no entanto, é preciso se libertar da ideologia burguesa (uma outra lógica para pensar o mundo que a dialética proporciona – revolução no pensamento, como diria hoje Edgar Morin – “como queres liberdade se não sabes o que te prende?” Se souberes o que te prende é preciso saber como se libertar e depois de liberto deves saber o que fazer com tua liberdade); para fazer isso é preciso se organizar (organizar quer dizer planejar, decidir e agir e isso é política – por isso, no tempo de Marx, o canal concreto é o partido político); no entanto, de fato, a liberdade só é alcançada quando o mundo da necessidade não reinar mais entre os homens (por isso mudar o modo de produzir, distribuir e consumir – e isso é economia de fato). Para ilustrar a posição de Marx vamos expor aqui as teses históricas do autor: TESES SOBRE FEUERBACH Karl Marx Tese I O defeito fundamental de todo materialismo anterior – inclusive o de Feuerbach – está em que só concebe o objeto, a realidade, o ato sensorial, sob a forma do objeto ou da percepção, mas não como atividade sensorial humana, como prática, não de modo subjetivo. Daí decorre que o lado ativo fosse desenvolvido pelo idealismo, em oposição ao materialismo, mas apenas de modo abstrato, posto que o idealismo, naturalmente, não conhece a atividade real, sensorial, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis, realmente diferentes dos objetos de pensamento; mas tampouco concebe a atividade humana como uma atividade objetiva. Por isso, em A Essência do Cristianismo, só considera como autenticamente humana a atividade teórica, enquanto a prática somente é concebida e fixada em sua manifestação judia grosseira. Portanto, não compreende a importância da atuação “revolucionária”, prático-crítica. Tese II O problema de se ao pensamento humano corresponde uma verdade objetiva não é um problema da teoria, e sim um problema prático. É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade, isto é, a realidade, e a força, o caráter terreno de seu pensamento. O debate sobre a realidade ou a irrealidade de um pensamento isolado da prática é um problema puramente escolástico. Silva, Enio Waldir da. Sociologia Jurídica. Ijuí: Ed. Unijuí, 2012. p. 110. 7 27 EaD Enio Waldir da Silva Tese III A teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e de educação modificada esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade (como, por exemplo, em Robert Owen). A coincidência da modificação das circunstâncias e da atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente compreendida como prática transformadora. Tese IV Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa, do desdobramento do mundo em um mundo religioso, imaginário, e outro real. Sua tarefa consiste em decompor o mundo religioso em sua base terrena. Não vê que, uma vez realizado esse trabalho, o principal continua por fazer. Na realidade, o fato de que a base terrena se separe de si mesma e fixe nas nuvens um reino independente só pode ser explicado através da dilaceração interna e da contradição desse fundamento terreno consigo mesmo. Este último deve, portanto, primeiro ser compreendido em sua contradição e em seguida revolucionado praticamente mediante a eliminação da contradição. Por conseguinte, depois de descobrir, por exemplo, na família terrena o segredo da sagrada família, é preciso criticar teoricamente aquela e transformá-la praticamente. Tese V Não satisfeito com o pensamento abstrato, Feuerbach recorre à percepção sensível. Não concebe, porém, a sensibilidade como uma atividade prática, humano-sensível. Tese VI Feuerbach dilui a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é algo abstrato, interior a cada indivíduo isolado. É, em sua realidade, o conjunto das relações sociais. Feuerbach, que não emprende a crítica dessa essência real, vê-se, portanto, obrigado: 1 – a fazer caso omisso da trajetória histórica, fixar o sentimento religioso em si mesmo e pressupor um indivíduo humano abstrato, isolado; 2 – nele, a essência humana só pode ser concebida como “espécie”, como generalidade interna, muda, que se limita a unir naturalmente os muitos indivíduos. Tese VII Feuerbach não vê, portanto, que o “sentimento religioso” é, também, um produto social e que o indivíduo abstrato que ele analisa pertence, na realidade, a uma forma determinada de sociedade. Tese VIII A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que desviam a teoria para o misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão desta prática. Tese IX O máximo a que chega o materialismo perceptivo, isto é, o materialismo que não concebe a sensibilidade como uma atividade prática é a percepção dos diferentes indivíduos isolados da “sociedade civil”. 28 EaD sociologia do conhecimento Tese X O ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade “civil”; o do novo materialismo, a sociedade humana ou a humanidade socializada. Tese XI Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se, porém, de modificá-lo. Escrito por Marx durante a primavera do 1845. Redigido e publicado pela primeira vez em 1888, por Engels como apêndice da edição em folheto à parte de seu Ludwig Feuerbach. Publica-se de acordo com o texto da edição em folheto à parte, de 1888, após confronto com o manuscrito de Marx. Acesso livre na Internet. Google.com.br Podemos afirmar que em Marx vemos uma compreensão profunda desta relação que existe entre o mundo das ideias e realidade social, mas não que esta seja a determinante daquela, ou seja, jamais se poderia transformar o mundo sem ter uma ideia do que é este mundo, mas não se transforma o mundo apenas pelas transformações de ideias que se tem dele. Norbert Elias (2008) assim se refere a Marx: [...] Engels e Marx não derivam suas hipóteses do caráter eternamente determinante da “base econômica” de uma análise do poder relativo dos grupos econômicos especializados na relação com outros grupos, mas, sim, da convicção de que é possível descobrir “leis”, “necessidades”, “regularidades” apenas nos aspectos “econômicos” da sociedade. Em sua carta a Bloch, Engels afirma, de modo explícito, o que, freqüentemente, está apenas sugerido em outras afirmações de Marx e também nas suas: a saber, que eles consideravam somente a “base econômica” como sendo estruturada e todos os outros aspectos da sociedade como desestruturados, ou, conforme Engels afirmou, “como um monte de acidentes (i.e., de coisas e eventos cujas conexões internas são tão remotas ou tão impossíveis de se verificar que nós as consideramos como ausentes, podendo-se ignorá-las)”.8 Marx (1997) expressou que seu trabalho “sustentou desde o primeiro momento, a partir de condutas científicas, uma importante concepção das relações sociais”. Ele tencionava ampliar a jovem ciência econômica para além de Adam Smith e David Ricardo, subordinando, porém, todas as suas afirmações à ideia de que apenas os aspectos econômicos das relações sociais seriam estruturados, consistindo, por essa razão, em um possível tema de uma ciência da sociedade. As ferramentas recebidas por ele da emergente ciência econômica tinham-no ajudado sobremaneira a romper as barreiras intelectuais que um treinamento filosófico impõe aos que se expõem a ele. Na realidade, Marx ampliou e transformou o uso dessas ferramentas para além do nível da ciência econômica de sua época. 8 Elias, Norbert. Sociologia do conhecimento: novas perspectivas. In: Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 23, n. 3, p. 515-554, set./dez. 2008. 29 EaD Enio Waldir da Silva Podemos, facilmente, reconhecer, de maneira retrospectiva, que seu trabalho representa a última tentativa realizada no século XIX de se ultrapassar a diferenciação crescente da ciência social entre as especialidades econômica e sociológica. Mas também podemos perceber, relembrando, que ele conceituou todo aspecto da sociedade que ele concebeu como estruturado – i.e., não acidental – como um aspecto “econômico”, buscando, da melhor forma que pôde, apresentá-lo como tal. Na época de Marx, poderíamos ter facilmente a impressão de que os aspectos “econômicos” eram os mais bem estruturados da sociedade, mesmo porque talvez fossem os únicos aspectos sujeitos às regularidades e leis reconhecíveis e, por isso, capazes de se tornar objeto principal de uma ciência. A própria escolha de Marx por tais expressões indica as dificuldades que ele encontrava para ampliar, além dos limites usuais, o conhecimento do desenvolvimento da sociedade e, com isso, os limites da ciência da sociedade à sua disposição. Ele foi, por um lado, um pioneiro da transformação do pensamento em um período em que conceitos reificados, que pareciam referir-se a objetos sociais extra-humanos e impessoais, foram substituídos por outros, que expressavam com maior clareza as relações ou interdependências de agrupamentos humanos (por exemplo, no caso do termo “relações de produção”). Por outro lado, ele próprio elevou para outro patamar essas tendências reificadoras pelo uso de conceitos como “infra-estrutura” e “superestrutura”, que dão a impressão de apontar para um conjunto de elementos separados da rede dos grupos que os seres humanos formam entre si – sobretudo na forma como esse dualismo é representado, como uma característica estrutural de quase todas as sociedades, sem levar em consideração o grau e o padrão de suas divisões do trabalho e, especialmente, da proporção na qual as “atividades econômicas” vêm se tornando especializadas, se tomadas em um determinado estágio do desenvolvimento (Elias, 2008). Para este autor, é proveitoso perceber as vantagens sociológicas propostas por Marx e enxergar melhor a maneira pela qual uma antítese problemática, tal como entre “sociedade” e “consciência”, oscila entre um significado sociológico com referência a um tipo de problema muito limitado e específico e um significado filosófico que parece abarcar o tempo e a eternidade de todo o mundo dos homens. O modelo de Marx – um genuíno avanço científico disposto em um molde filosófico especulativo – iniciou uma tradição de pensamento que, desde então, se faz presente em todos os campos, tanto entre os não marxistas como entre os marxistas. Esse pensamento dominou, com particular, força as pesquisas em Sociologia do Conhecimento (Elias, 2008, p. 529). A Sociologia do Conhecimento, entretanto, não preservou a herança marxista – o dualismo básico entre “sociedade” e “consciência”. Em geral, segundo Elias, as teorias sociológicas contemporâneas do conhecimento abandonaram as suposições especulativas de Marx e suas implicações sobre o desenvolvimento das sociedades, substituindo-as por um tipo de conhecimento científico e não ideológico da sociedade. Elas foram além e rejeitaram não apenas o modelo de desenvolvimento social de Marx, mas abandonaram inteiramente o conceito de desenvolvimento de sociedade, de uma mudança estruturada de longo prazo em uma direção específica. 30 EaD sociologia do conhecimento Ao invés disso, recorreram ao conceito de mudança social dos historiadores, segundo o qual essa mudança seria essencialmente sem estrutura. A esse respeito, o conceito de mudança social, que fundamenta os problemas da Sociologia do Conhecimento contemporânea, é mais ou menos idêntico aos conceitos corporificados nas principais escolas de Sociologia teórica do nosso tempo. De acordo com elas, somente um dado estado da sociedade, somente condições sociais estáticas são estruturadas; a própria expressão “estrutura social” apresenta-se como uma regra exclusivamente em tais condições. Modificações nas condições da sociedade, por outro lado, são concebidas como sem estrutura. Na Sociologia atual não se fala de estrutura de mudança social, tampouco isso é explorado. Especialistas contemporâneos em teoria sociológica e em Sociologia do Conhecimento guardam em comum com a maioria dos historiadores a impressão de que as mudanças sociais têm a aparência de uma peregrinação sem fim de grupos que vêm e vão. O conhecimento, as ideias de todos esses grupos são vistos como igualmente válidos ou inválidos. O termo “histórico”, como se pode perceber, é usado em dois sentidos diferentes. Grande parte dessa confusão deve-se ao fato de que não há uma distinção clara entre eles. Os que empregam esse termo não esclarecem de forma nítida quais dos dois significados estão lhe atribuindo. Ele pode ser usado no sentido em que o empregavam Marx, Comte e muitos outros sociólogos do século 19 e começo do século 20, em referência às mudanças estruturadas e, em geral, às mudanças estruturadas de longo prazo em uma direção específica. E ele pode ser usado no sentido em que a maioria dos historiadores e sociólogos contemporâneos o faz, isto é, em conexão com as mudanças sociais que não possuem estrutura. Certos modelos de pensamento encontraram suas mais sofisticadas expressões no que a tradição epistemológica tem infiltrado profundamente em nossa linguagem comum, embora, dificilmente, estejamos conscientes disso. Eles produzem, por conseguinte, um viés implícito, uma predisposição despercebida, tanto nas investigações sociológicas quanto em outras, em favor de certos hábitos de pensamento em oposição a outros. Já Durkheim fez um esforço para desenvolver um quadro teórico-epistemológico que pudesse assegurar as bases de conhecimento sociológico, concebendo o homem com uma dupla natureza: individual e social. De certa forma, para ele todas as representações são sempre mentais, expressões simbólicas ou reflexo da realidade empírica.9 Parece clara a inspiração kantiana de Durkheim, ao pensar formas e categorias nos marcos de uma fundamentação do conhecimento, a partir da identidade formal, funcional e genética das representações coletivas com as categorias, ligando-as ao processo coletivo de representação para derivá-las empiricamente de determinações próprias da sociedade.10 É possível ver isso na obra Durkheim, Emile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo, Edições Paulinas: 1989. E em: Regras do método sociológico. São Paulo, Cia. Editora Nacional: 1990. 9 Pinheiro Filho, Fernando. A noção de representação em Durkheim. En publicacion: Lua Nova, 61. Cedec, Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, São Paulo, Brasil: Brasil, 2004. Acesso ao texto completo: http://www.scielo.br/ pdf/ln/n61/a08n61.pdf. 10 31 EaD Enio Waldir da Silva E como um objeto essencialmente social só é passível de apropriação legítima pela Sociologia, o discurso filosófico torna-se inoperante na questão. Historicamente, esse projeto abriga-se no contexto do impacto que a consolidação das ciências, e em especial da ciência positiva dos fatos sociais, tem sobre a Filosofia pensada como uma teoria da totalidade dos entes e sua representação. A constituição de ontologias regionais a respeito do mundo passa para o domínio das ciências que se autonomizam, reivindicando para si a primazia de uma notação crível do real porque empiricamente demonstrável. Assim, está implícito na redução social das categorias que um saber sobre o conhecimento é um saber sobre o mundo, e a proposição da sociedade como seu espaço de constituição lógica remete à clivagem de uma região estipulável pela ciência.11 Durkheim pensa o conhecimento a partir da tradição da Filosofia crítica e com ela, demonstrando apreço pela trama dos conceitos em Kant – em si legítima embora insuficiente no diagnóstico durkheimiano, de sorte que é preciso avançar do ponto em que o kantismo se detém. Sobre esta ligação de Durkheim com Kant, argumenta Pinheiro: [...] Assim, tanto o filósofo como o sociólogo concordam que o conhecimento tenha um problema essencial de fundamentação racional. Dado esse piso comum, a solução durkheimiana se constitui alicerçada na definição das categorias como uma espécie do gênero das representações coletivas, identificando-as. Mas, se o inteiro significado dessa operação só pode ser recuperado à luz do legado kantiano que pretende superar, e com especial ênfase na incorporação da vertente neocriticista, cabe antes fazê-lo surgir de seus próprios móveis internos, a partir das concepções de natureza humana e representação. A categoria é também um fenômeno, mas de tal generalidade que não pode reduzir-se à cadeia empírica que a precede. Se a síntese sob categorias é fenomênica, ela é maior do que a pura soma dos elementos dispersos na experiência. Desse modo, para Durkheim o segmento mais abrangente do mundo empírico é a experiência coletiva, a categoria totalidade tem por substrato a própria sociedade e toda categoria, como representação coletiva, é resultado de uma síntese sui generis a partir do fato dos homens associados, sem possibilidade de remissão à consciência individual. De certo modo, a teoria das representações coletivas, esteio da nova epistemologia sociológica, aproveita a estrutura do sistema de Renouvier modificando-lhe o conteúdo, ao conceber categorias como representações coletivas. Mas essa passagem tem para Durkheim a dimensão de ato fundante de uma nova ordem intelectual. Rebatendo as categorias para o plano da sociedade, a Sociologia desponta como a disciplina a que caberia por direito tratar das questões epistemológicas. Mais que a superação do dilema empirismo versus apriorismo, a manobra de Durkheim visa superar a Filosofia por dentro de seu campo. Do ponto de vista da contribuição à Sociologia contemporânea, torna-se irrelevante discutir se logrou fazê-lo. Mais importante é salientar que, nessa tentativa, abre espaço para pensar o plano simbólico não como reflexo, mas como instituinte da realidade social (2004, p. 208). 11 Durkheim, Émile . Pragmatismo e sociologia. Porto: RES Editora, 1988. 32 EaD sociologia do conhecimento A chave para a compreensão da origem da dualidade da natureza humana, expressa na imagem do homem como ser dividido entre corpo e alma, está na cisão constitucional que isola e opõe dois mundos distintos. De um lado, como emanações da base orgânica, as sensações e os apetites egoístas, de foro estritamente individuais; de outro, as atividades do espírito, como o pensamento conceitual e a ação moral, necessariamente universalizáveis. Essa é a fórmula do homo duplex,12 constatação de um duplo centro de gravidade da vida interior: “Há, de um lado, nossa individualidade, e, mais especialmente, nosso corpo que a funda; de outro, tudo aquilo que, em nós, exprime outra coisa que não nós mesmos” (p. 318). O espírito humano seria um sistema de fenômenos em tudo comparável aos outros fenômenos observáveis. Tomado como coisa, objetivação que supera as idiossincrasias dos psiquismos individuais, ele revela por meio de sua origem na sociedade a sua verdadeira natureza. Durkheim associa a oposição encontrável nos fatos entre corpo e alma àquela que desenvolve nas formas entre sagrado e profano. Existe uma hierarquia entre as funções psíquicas que redunda numa sacralização da alma em relação à escassa nobreza do corpo profano: “A dualidade de nossa natureza não é portanto senão um caso particular daquela divisão das coisas em sagradas e profanas que encontramos na base de todas as religiões, e ela deve se explicar segundo os mesmos princípios” (Id., p. 327). Ora, as coisas sagradas têm uma autoridade que impõe às vontades individuais como efeito da operação psíquica de síntese das consciências individuais em que se dá sua gênese. Os estados mentais gerados nesse processo encarnam-se em ideias coletivas que penetram as consciências individuais permitindo sua comunicabilidade. Para além das manifestações da biologia humana, esses estados da consciência “(...) nos vêm da sociedade; eles a traduzem em nós e nos atam a alguma coisa que nos supera. Sendo coletivos, eles são impessoais; eles nos dirigem a fins que temos em comum com os outros homens” (Id., p. 328). A dualidade da natureza humana guarda uma homologia estrutural com a dualidade de fontes que conformam o homem; quais sejam, o corpo biológico e a sociedade. A sociedade é a única fonte da humanidade do homem; é por meio dela que se transcende a pura vida orgânica que é a condição do homem tomado em sua individualidade. Apenas a vida coletiva faz do indivíduo uma personalidade, dando forma à consciência moral e pensamento lógico que têm origem e destinação social. O indivíduo não é ainda realidade humana, mas apenas abstração que só se perfaz no meio social. Antes de sua constituição na e pela força coletiva, não se pode falar propriamente de homem, mas de um ser que se reduz ao organismo animal. A humanidade do homem é coisa social, que se cristaliza por mecanismos de coerção (Pinheiro, 2004, p. 7). Durkheim, É. (1970). Sociologia e Filosofia. São Paulo: Ed. Forense, 1970. 12 33 EaD Enio Waldir da Silva Ilustrando a posição de Durkheim, leia o texto a seguir: O QUE É UM FATO SOCIAL? Antes de procurar qual método convém ao estudo dos fatos sociais, importa saber quais fatos chamamos assim. A questão é ainda mais necessária porque se utiliza essa qualificação sem muita precisão. Ela é empregada correntemente para designar, mais ou menos, todos os fenômenos que se dão no interior da sociedade, por menos que apresentem, com uma certa generalidade, algum interesse social. Mas, dessa maneira, não há, por assim dizer, acontecimentos humanos que não possam ser chamados sociais. Todo indivíduo come, bebe, dorme, raciocina, e a sociedade tem todo o interesse em que essas funções se exerçam regularmente. Portanto, se esses fatos fossem sociais, a Sociologia não teria objeto próprio, e seu domínio se confundiria com o da Biologia e da Psicologia. Mas, na realidade, há em toda sociedade um grupo determinado de fenômenos que se distinguem por caracteres definidos daqueles que as outras ciências da natureza estudam. Quando desempenho minha tarefa de irmão, de marido ou de cidadão, quando executo os compromissos que assumi, eu cumpro deveres que estão definidos, fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Ainda que eles estejam de acordo com meus sentimentos próprios e que eu sinta interiormente a realidade deles, esta não deixa de ser objetiva; pois não fui eu que os fiz, mas os recebi pela educação. Aliás, quantas vezes não nos ocorre ignorarmos o detalhe das obrigações que nos incumbem e precisarmos, para conhecê-las, consultar o Código e seus intérpretes autorizados! Do mesmo modo, as crenças e as práticas de sua vida religiosa, o fiel as encontrou inteiramente prontas ao nascer; se elas existiam antes dele, é que existem fora dele. O sistema de signos de que me sirvo para exprimir meu pensamento, o sistema de moedas que emprego para pagar minhas dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo em minhas relações comerciais, as práticas observadas em minha profissão, etc., funcionam independentemente do uso que faço deles. Que se tomem um a um todos os membros de que é composta a sociedade; o que precede poderá ser repetido a propósito de cada um deles. Eis aí, portanto, maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam essa notável propriedade de existirem fora das consciências individuais. [...] Podemos assim representar de maneira precisa, o domínio da Sociologia. Ele compreende apenas um grupo determinado de fenômenos (Durkheim, 1990, p. 15). Para Durkheim (1990, p.15), um fato social se reconhece pelo poder de coerção externa que exerce ou é capaz de exercer sobre os indivíduos; e a presença desse poder se reconhece, por sua vez, seja pela existência de alguma sanção determinada, seja pela resistência que o fato opõe a toda tentativa individual de fazer-lhe violência. Pode-se, no entanto, defini-lo também pela difusão que apresenta no interior do grupo, contanto que, conforme as observações precedentes, tenha-se o cuidado de acrescentar como segunda e essencial característica que ele existe independentemente das formas individuais que assume ao difundir-se. Este último critério, em determinados casos, é inclusive mais fácil de aplicar que o precedente. 34 EaD sociologia do conhecimento De fato, a coerção é fácil de constatar quando se traduz exteriormente por alguma reação direta da sociedade, como é o caso em relação ao Direito, à moral, às crenças, aos costumes, inclusive às modas. Quando é apenas indireta, porém, como a que exerce uma organização econômica, ela nem sempre se deixa perceber tão bem. A generalidade, combinada com a objetividade, podem então ser mais fáceis de estabelecer. Aliás, essa segunda definição não é senão outra forma da primeira; pois, se uma maneira de se conduzir, que existe exteriormente às consciências individuais, se generaliza, ela só pode fazê-lo impondo-se (Durkheim, 1990, p. 15). Em Max Weber temos a análise das complexidades das influências sociais e culturais envolvidas na construção de conhecimentos. Weber afirma: Com os meios da nossa ciência, nada poderemos oferecer àquele que considere que essa verdade não tem valor, dado que a crença no valor da verdade científica é produto de determinadas culturas, e não um dado da natureza. Mas o certo é que buscará em vão outra verdade que substitua a Ciência naquilo que somente ela pode fornecer, isto é, conceitos e juízos que não constituem a realidade empírica nem podem reproduzi-la, mas que permitem ordená-la pelo pensamento de modo válido (2004, p. 126). O processo do conhecimento (especialmente na vida moderna) desembocou na ciência (e no seu negativo: “cientificismo”), mas também na expectativa de explicações razoáveis à vida do homem comum. Analisa a própria ciência moderna ao dizer que [...] ela contribui para a tecnologia do controle da vida calculando os objetos externos bem como as atividades do homem. Bem, direis vós, afinal de contas isso equivale ao verdureiro [...] Segundo, a ciência pode contribuir com algo que o verdureiro não pode: métodos de pensamento, os instrumentos e o treinamento para o pensamento. Direis, talvez: Bem isso não são verduras, mas não vai, também, além dos meios para conseguir as verduras [...] Felizmente, porém, a contribuição da ciência não alcança seu limite, com isso. Estamos em condições de levar-nos a um terceiro objetivo: a clareza. Pressupomos, decerto, que nós mesmos possuímos clareza [...] Tendes, então, simplesmente de escolher entre o fim e os meios inevitáveis. Justificará o “fim” os meios? Ou não? (Weber, 1992, p. 177-178). Weber direciona tanto o objeto quanto o método da Sociologia que propõe para o compromisso explícito com a análise empírica do real, sendo de relevância ímpar salientar aqui que a realidade não possui um sentido intrínseco ou único, visto que são os indivíduos que lhe conferem significados. A compreensão das mediações de sentido, ou de interesse, presentes nas ações sociais, remetem à Sociologia weberiana a busca por um método que alcance, ao mesmo tempo, 35 EaD Enio Waldir da Silva a apreensão dos processos da experiência humana e a objetividade necessária às explicações sociológicas, objetividade tal que não está dada no empírico analisado, mas sim nas ideias que dão ao empírico o valor de conhecimento.13 Desse modo, como meio para execução das análises sociais, Weber se mune de um aparato metodológico de extrema coerência com os fins a que a Sociologia compreensiva se propõe, local em que estão inclusos instrumentos que permitem ao pesquisador investigar os fenômenos particulares sem se perder em meio à infinidade de aspectos concretos. Como instrumento metodológico balizar de sua teoria, tem-se em Weber o conceito de tipo ideal, que exprime um objeto categorialmente construído (Weber, 1992), um objeto selecionado e apresentado em sua forma pura, o que vai aplanar a compreensão de aspectos do fenômeno social, a partir da presença de uma maior ou menor aproximação com o tipo ideal. Qual é, em face disso, a significação desses conceitos de tipo ideal para uma ciência empírica, tal como nós pretendemos praticá-la? Queremos sublinhar desde logo a necessidade de que os quadros de pensamento que aqui tratamos, “ideais‟ em sentido puramente lógico, sejam rigorosamente separados da noção do dever ser, do “exemplar”. Trata-se da construção de relações que parecem suficientemente motivadas para a nossa imaginação e, consequentemente, “objetivamente possíveis‟, e que parecem adequadas ao nosso saber nomológico (Weber, 2004, p. 107). Enfim, a Sociologia compreensiva com as coordenadas metodológicas, que lhe são próprias, tem como objeto o que se tem de concreto para apreensão dos fenômenos sociais: a ação social e as relações de sentido nela presentes; isto reflete na ideia do que é, citado pelo próprio Weber, a tarefa das Ciências Sociais: É preciso não darmos a tudo isso uma falsa interpretação no sentido de considerarmos que a autêntica tarefa das Ciências Sociais consiste numa perpétua caça a novos pontos de vista e construções conceituais. Pelo contrário, convém insistir mais do que nunca sobre o seguinte: servir o conhecimento da significação cultural de complexos históricos e concretos constitui o único fim último e exclusivo ao qual, juntamente com os outros meios, está também dedicado ao trabalho da construção crítica de conceitos (Weber, 2004, p. 126-127). Segundo Correa,14 o mundo ocidental é para Weber um mundo, indiferente a Deus e aos profetas. Uma época caracterizada pela racionalização, pela intelectualização e pelo desencantamento do mundo, em que o valores “sublimes” foram banidos da vida pública. “Àquele que 13 Ver: Weber, Max. Metodologia das Ciências Sociais, Parte 2. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1992; e o texto especial com o nome: A “objetividade” do conhecimento nas Ciências Sociais. In: Cohn, Gabriel (Org.). Weber, Max. Sociologia. São Paulo: Ática, 2004 (Coleção Grandes Cientistas Sociais). 14 Correa, Ricardo. A Teoria Sociológica de Max Weber. In: Silva, Enio Waldir, Bressan, Suimar; Correa, Ricardo. Teoria sociológica II. Ijuí: Ed. Unijuí, 2009. 36 EaD sociologia do conhecimento não é capaz de suportar estoicamente esse sistema de nossa época, resta apenas dar o seguinte conselho: volta em silêncio, sem dar ao teu gesto a publicidade habitual dos renegados, com simplicidade e reconhecimento, aos braços abertos e cheios de misericórdia das velhas igrejas” (Weber, 2004, p. 58). Para completar estas reflexões sobre Weber, concluímos com este texto direto do autor: [...] Sem dúvida nenhuma, o progresso científico é um fragmento, o mais importante, do processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios e relativamente ao qual algumas pessoas adotam, atualmente, posição estranhamente negativa. Inicialmente, tentemos perceber com clareza o que significa, na prática, essa racionalização intelectualista que devemos à ciência e à técnica científica. Acaso, significará que todos os que estão reunidos nesta sala possuem, no que se refere às respectivas condições de vida, conhecimento superior ao que um índio poderia alcançar a respeito de suas condições de vida? É pouco provável. Dentre nós, aquele que entra num trem não tem noção alguma do mecanismo que permite ao veículo pôr-se em marcha – exceto se for um físico de profissão. De outra feita, não temos necessidade de conhecer aquele mecanismo. É suficiente poder “contar” com o trem e orientar, conseqüentemente, nosso comportamento. Não sabemos todavia como se constrói aquela máquina que tem condições de deslizar. Contrariamente, o selvagem conhece, de modo incomparavelmente melhor, os instrumentos de que se utiliza. Eu seria incapaz de garantir que todos ou quase todos os meus colegas economistas, porventura presentes nesta sala dariam respostas diferentes à pergunta: como explicar que, utilizando a mesma quantia de dinheiro, ora se possa adquirir grande porção de coisas e ora uma porção pequena? No entanto, o selvagem sabe perfeitamente como agir para obter o alimento diário e conhece os meios capazes de favorecê-lo em seu propósito. A intelectualização e a racionalização crescentes não equivalem, portanto, a um conhecimento geral crescente a respeito das condições em que vivemos. Antes, significam que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante, poderíamos, conquanto que o quiséssemos, provar que não existe, primordialmente, nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira com o curso de nossa vida. Em outras palavras, que podemos dominar tudo, por meio da previsão. Isso é o mesmo que despojar de magia o mundo. Não mais se trata para nós, como para o selvagem que acredita na existência daqueles poderes, de apelar para métodos mágicos para dominar os espíritos ou exorcizá-los, mas de recorrer à técnica e à previsão. Essa é a essência da significação da intelectualização (Weber,15 2003, p. 37-38). São nessas passagens que é possível perceber os vínculos entre os conteúdos de natureza cultural, econômica e religiosa oriundas de diferentes contextos sociais e os elementos de natureza cognitiva, individual ou coletiva, manifestados por diferentes grupos sociais. Weber emprega a expressão afinidade eletiva para mostrar essas relações existentes, os nexos entre realidades sociais e conhecimentos científicos, indicando a determinação do conteúdo proveniente da cultura com as práticas sociais. Assim, os problemas de pesquisas e os modos Weber, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. p. 37-38). 15 37 EaD Enio Waldir da Silva de os expressar sempre fazem parte de uma cultura e das cosmovisões existentes, pelas quais o sujeito pesquisador opta. A força desta opção é devido às afinidades eletivas ali existentes, ou seja, os apelos atrativos do interesse de classe que o indivíduo deve levar em conta quando está construindo conhecimento (1992). Haveria afinidade eletiva entre protestantismo e espírito comercial, espírito empreendedor do protestantismo e a escolha educacional, dever para com o trabalho e estilo de vida industrial, ou seja, havia uma afinidade entre os conceitos éticos do período da Reforma e as orientações terrenas da sociedade industrial daquele período. Segundo Espinosa, Weber busca as relações causais entre ideias religiosas e a específica forma moderna de racionalização e conduta metódica da vida do indivíduo, que se encarna na ideia de profissão do protestantismo ascético (Espinosa; Garcia; Alberto, 1994, p. 273). Não se trata de usar a perspectiva de causa e efeito ou determinista para explicar fenômenos sociais, mas indicar as multicausas possíveis numa construção de entendimentos, pois jamais o autor concordaria com esta tese geral de que o capitalismo seria produto da Reforma Protestante. No livro A ética protestante e o espírito capitalista, constatamos o cuidado do autor para falar de fatores históricos e cognitivos, usando a expressão “afinidades eletivas”. Em outras obras, como Economia e Sociedade, também vemos esta relativização causal para explicar determinados fatos: [...] se pode dizer o grau de afinidades eletivas de certas formas estruturais concretas da atividade comunitária, com certas formas concretas de economia (Weber,2004, p. 146). Isto está presente em suas obras mais dedicadas a identificar o conhecimento sociológico. O ponto de partida da análise sociológica só pode ser dado pela ação de indivíduos em que ela é “individualista” quanto ao método. Isso é inteiramente coerente com a posição sempre sustentada por ele, de que nos estudos dos fenômenos sociais não se pode presumir a existência já dada de estruturas sociais dotadas de um sentido intrínseco; vale dizer, em termos sociológicos, de um sentido independente daqueles que os indivíduos imprimem as suas ações (Gohn, 2004). É notável o rigor com o qual Weber adapta os meios e os fins em suas análises, de tal sorte que, ao relacionar a ciência ao empírico, o faz exatamente fugindo de possíveis análises não acessíveis empiricamente e que não podem ser traduzidas em conjuntos concretos de ações. Podemos constatar que para Weber os indivíduos não são apenas vítimas de fatores conjunturais macrodeterminantes, ou seja, o que está presente na teia de relações sociais são pessoas singulares e também vontades individuais desiguais, geradoras de conflitos, mas que não se traduzem em mera submissão dos indivíduos às determinações sociais. 38 EaD sociologia do conhecimento Desta forma, a sociedade não é concebida como resultado puro da vontade dos homens, visto que os fenômenos sociais podem também ser resultados de consequências não intencionais, assim como podem ocasionar consequências não intencionais, quer dizer, não relacionadas com vontade ou racionalidade humanas. Seção 1.3 A Sociologia do Conhecimento no Século 20 – a consolidação A Sociologia do Século 20 obteve uma movimentação especial entre as décadas de 20 e 60. Para sociólo­gos mais tradicionais, ligados ao funcionalismo ou ao marxismo, eles pareciam acarretar uma rendição ao subjetivismo, levando ao desconhecimento dos elementos e processos mais duramen­te determinados e invariáveis da vida social. As formas da socie­dade, as estruturas sociais, especialmente as de dominação, a alienação, etc., ficariam, consoante aquela leitura, na penumbra. À Sociologia caberia precisamente analisar esses processos (Domingues, 2001). Aos poucos, contudo, as contribuições do interacionismo simbólico (já na obra de Parsons), da fenomenologia, da etnometodologia, e de outras correntes semelhantes, conquanto menos importantes, foram sendo assimiladas pelas correntes mais representativas das Ciências Sociais. Em geral, essas correntes veem-se hoje combinadas com abordagens que se originaram no marxismo e na teoria crítica, no estruturalismo e no funciona­lismo. Sem dúvida, há algo de redutivo em muitas das análises originais de autores como Mead, Schutz, Blumer e Garfinkel, mas a atenção para com a flexibilidade e fluidez do mundo so­cial, para com a temática da ação e da criatividade são contri­buições permanentes dessas escolas de pensamento sociológico, sem as quais dificilmente teorias abrangentes e precisas da vida social podem ser propostas (Domingues, 2001). Poucas escolas exerceram uma influência tão importante e con­centrada na história da Sociologia como o funcionalismo, que em determinado momento foi visto por seus adeptos como si­nônimos de fato, e de direito, da teoria sociológica. Ele tem suas origens em fontes variadas. Durkheim é, diretamente nas Ciên­cias Sociais, seu principal expoente original, mas outros autores devem a ele ser somados. Para Durkheim, que obviamente so­freu enorme impacto da Biologia, a sociedade deveria ser vista como um organismo, cujas partes cumprem funções úteis para a reprodução do todo. 39 EaD Enio Waldir da Silva Normas sociais gerais comandariam os processos sociais, seja nas sociedades primitivas de “solidarie­dade mecânica”, nas quais todos faziam as mesmas coisas (isto é, desempenhavam funções similares), seja nas sociedades nas quais a divisão do trabalho avançara, estabelecendo-se a “soli­dariedade orgânica” (na qual as funções dos diversos grupos e indivíduos seriam altamente diferenciadas). Se autores como Radcliffe-Brown, na Antropologia – já influenciados por Durkheim –, ajudaram enormemente a propagar a abordagem funcionalista nas Ciências Sociais, Pareto, um economista, talvez tenha sido mais decisivo para a sociologia em particular, ao menos no que tange à influência sobre Parsons. Talcott Parsons (1902-1979) criou uma obra que pode ser dividida em três fases, de limites bastante claros. Ini­cialmente, ele buscou, antes de mais nada, sintetizar – em parte para sua própria ilustração – as contribuições de alguns autores que hoje consideramos clássicos; visava, então, a uma “fí­sica” das Ciências Sociais. Sua ambição era dar passos iniciais para elaborar urna teoria geral que, uma vez completa, pudesse, a exemplo da mecânica clássica, em sua elegância e simplici­dade – explicar todo e qualquer fenômeno social e predizer o comportamento do indivíduo e da sociedade. Em um segundo momento, mais consciente das dificuldades desse tipo de projeto, ele se contenta com uma solução provisória e intermediária, que o levou, então, ao funcionalismo estrutural; com isso ele se municiava de conceitos descritivos e assinalava a articulação necessária entre personalidade, cultura e sociedade. Enfim, em sua terceira fase, Parsons acreditou haver delineado um esquema funcionalista radical (Domingues, 2001). Este autor pode ser considerado um dos clássicos da teoria sociológica contemporânea, e é certamente um dos pilares da teoria sistêmica da ação, constituindo-se como referência aos estudos que contemplam a ação humana integrada em sistemas sociais, o equilíbrio social sistematizado teoricamente pelo estrutural-funcionalismo, bem como outras abordagens teórico-sociais que preconizam a ordem normativa a partir de uma padronização de valores.16 Dedicou-se a pesquisar a sociedade para melhor ordená-la, de tal forma que os indivíduos pudessem desempenhar nela uma função orgânica e aperfeiçoadora do sistema. Para ele o sistema, como qualquer outro corpo biológico, não apenas era estável, como buscava ser harmonioso, equânime e consensual, tendo manifestado hostilidade a perturbações desencadeadas por ataques Talcott Parsons foi o sociólogo americano de maior destaque do século 20. Seu pensamento foi visto também como expressão da sua época, especialmente nos Estados Unidos, nos anos de 1950-60. Além de ter sido testemunha da revolução gerencial dos anos 20 (taylorismo e fordismo) ele, atingindo a maturidade intelectual no período do pósguerra, momento em que os Estados Unidos viviam uma situação de estabilidade e cooperação (resultado do clima patriótico e das necessidades ideológicas da guerra fria), fez tornar inevitável que sua teoria privilegiasse a coesão, a adaptação e a estabilidade familiar. Podemos destacar as seguintes obras sobre Parsons: Parsons, Talcott. El sistema social. Madrid: Alianza Editorial, 1982. Parsons, Talcott. Sociedades. São Paulo:Pioneira, 1974. Parsons, Talcott. O Sistema da Sociedade Moderna. São Paulo: Pioneira, 1983. Cordova, Maria Julieta W. Talcott Parsons e o esquema conceitual geral da ação. In: Revista Emancipação: Curitiba: UFPR. 6(1): 257-276, 2007.www.uepg.br Domingues, José Maurício. Teorias Sociológicas no Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Domingues, José Maurício. A Sociologia de Parsons. Niterói: EdFF, 2001. 16 40 EaD sociologia do conhecimento de “bacilos”. Desinteressando-se dos aspectos da transformação social sua inclinação voltou-se a favor do equilíbrio e do consenso. Naturalmente que isso o posicionou a entender o indivíduo como expressão das estruturas, as quais ele devia manter e preservar. Caso isso não ocorresse entravam em ação os mecanismos do controle social (moral, ética, sistema jurídico e penal, etc.), como um instrumento preventivo ou corretivo. O objetivo de qualquer sociedade, pois, como ele defendeu no seu mais conhecido livro, The Social System (O Sistema Social, 1952), era alcançar a estabilidade, o equilíbrio permanente, fazendo com que só pudéssemos entender uma parte qualquer a ser estudada em função do todo. Expressões como “adaptação”, “integração”, “manutenção”, largamente utilizadas por Talcott Parsons, colocam-no claramente no campo conservador do pensamento sociológico, alguém que via a política apenas como um instrumento de garantia do bom andar do todo, jamais como instrumento da transformação. Cada um dos componentes do sistema, suas partes, tal como uma peça qualquer em relação a uma máquina, desempenham papéis que visam a contribuir para a estabilidade e ordem social, por isso tal abordagem ou teoria é chamada de funcionalismo estrutural. A partir dessa visão totalizadora da sociedade, o passo seguinte é determinar os seus componentes básicos formados pela economia, o sistema político, a família e o sistema educativo em geral, com seus valores e crenças bem definidos. Elas todas são interdependentes e agem no sentido de preservar a sobrevivência do todo, não havendo necessariamente uma hierarquia entre eles.17 Parsons buscou sintetizar as contribuições de autores clássicos, fundamentando, uma “fí­ sica” das Ciências Sociais, elaborando uma teoria geral que explicasse todo e qualquer fenômeno social, predizendo o comportamento do indivíduo e da sociedade. No livro A estrutura da ação social (1937), Parsons tinha como alvo polêmico, sobretudo, o utilitarismo individualista, que via nos interesses dos sujeitos isolados o móvel da sociedade e na harmonização “espontânea” desses interesses o fundamento da ordem. Internalizando as normas, os indivíduos já definiriam seus fins de acordo com uma harmonia propriamente social, que não decorreria, portanto, dos efeitos de uma mal explicada “mão invisível” sobre sua ação. Parsons fundamentou um ar­gumento de que os todos orgânicos – de que são compostos os sistemas sociais e a própria ação – ­podem ser decompostos em partes, somente mediante operações analíticas. Um elemento separado do todo seria uma mera “abs­tração”; esta seria a frequência fundamental para a ciência, mas deveríamos ter clareza disso quando dela nos utilizamos, evitando 17 Schiling, Voltaire. Talcott Parsons e o funcionalismo estrutural. Disponível em: <www.educaterrra.terra.com.br>. Acesso em: 23 abr. 2009. 41 EaD Enio Waldir da Silva cair no que castigava com a nomenclatura da “falácia da falsa concretude” – ou seja, recusando tornar abstrato como se fosse, ele mesmo, concreto. Esta última ideia tornar-se­-ia cada vez mais decisiva para o desenvolvimento de sua teoria.18 Os pontos de vista substantivos da primeira obra de Parsons teriam grandes consequências para o desenvolvimento ulterior de seu trabalho; mas detenhamo-nos rapidamente em sua estratégia teórico-epistemológica, na qual propunha que nossos conceitos principais fossem estabelecidos como de caráter ana­lítico. Jamais os encontraríamos puros na realidade, e por isso mesmo, seriam instrumentais para nos fazer compreendê-la para além do senso comum. Normas, fins e meios eram apenas abstrações, pois encontravam-se imbricados na realidade. Se tentássemos dar conta desta de forma imediata, con­tudo, ver-nos-íamos às voltas com um todo indiferenciado, sem conseguir de fato compreender seu funcionamento e dinâmica. Daí ser possível definir algumas “unidades de análise”. A com­binação de fins, meios e normas estaria, por exemplo, no nú­cleo do que chamou de “ato unidade”, pois eles seriam os elementos principais da ação tomada em seus momentos discre­tos. Como argumenta Domingues: No Livro O sistema social (1951), Parsons estuda os elementos básicos da vida social e os processos de mudança e perma­nência de maior envergadura dentro de uma perspectiva histórica. Começa o sistema social definindo os elementos do novo esquema teórico. A ação social é agora o eixo em tor­ no do qual giram as outras categorias: ego e alter-ego acham-se frente a frente em “situações” cuja definição depende deles mesmos; se a interação será bem-sucedida ou não, depende de como lidarão com a “dupla contingência” sempre presente nes­se tipo de processo. Mais uma vez, porém, a confiança de Parsons nas normas sociais se antepõe a essa perspectiva mais solta da vida social, uma vez que ele acreditava que aquelas forneceriam aos agentes, normalmente, padrões nos quais poderiam se apoiar para superar a “dupla contingência”. Parsons apontava, não para um “ato unidade”, mas para uma “unidade de ação”. Se o primeiro im­plicava fins claramente definidos pelo ator, este último aban­donava essa idéia e enfatizava a possibilidade de os fins serem difusos, maldefinidos, e de estar o agente pouco ciente deles. A noção de “ator coletivo” era uma forma de falar dos sistemas sociais em seu relacionamento de forma articulada com outros sistemas sociais. A organização formal-burocrática (forma de “subjetividade coletiva” altamente centrada, semelhante a um indivíduo humano) consistia no protótipo do ator coletivo. Dá especial atenção aos conceitos interação e “situação”, “unida­de de ação” (2001, p. 43). O “esquema Agil”, depois poderosamente ampliado por Parsons, começava a nascer. Nes­te esquema, as quatro letras respondiam por quatro funções que qualquer sistema era obrigado a cumprir para se reproduzir. O A respondia pela adaptação do sistema a seu meio; o G pela reali- 18 Estamos usando aqui, as referencias básicas usadas por Domingues, José Maurício. Teorias Sociológicas no Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 37-50. 42 EaD sociologia do conhecimento zação das metas (goals) que o sistema se colocava; o I por sua integração, e o L, enfim, concernia à latência dos padrões que forneciam os valores gerais para o sistema, e que se especi­ficavam nas normas operativas em seus processos de integração. Do ponto de vista da teoria geral da ação, de sua ampliação sempre renovada, o esquema Agil apontava para o “organismo comportamental” (o corpo) dos indivíduos em sua relação com o meio orgânico, para a personalidade no que tange à realiza­ção de metas, para o sistema social no concernente à integração e para o sistema cultural ao tratar-se dos padrões latentes. Cada uma das quatro células do esquema, no entanto, deve­ria ser dividida em mais quatro, pois para cada um dos sistemas identificados as mesmas quatro funções se reporiam. Com isso, Parsons pretendia haver atingido uma teoria universal que, a despeito de não ser dedutiva (ou seja, não se poderia partir de leis gerais para explicar o comportamento de entidades particu­ lares), era também universal em termos funcionais. Destarte, o sistema social, que era o foco de estudo da Sociologia, teria o esquema Agil pensado da seguinte forma: pela adaptação do sistema ao meio, respondia a economia, a consecução de metas cabia à política, a tarefa da integração reservava-se ao sistema legal e à cultura era atribuído o sistema geral de valores cultu­rais. Além disso, Parsons mantinha a ideia de equilíbrio como crucial para sua formulação: as modificações do sistema originavam-se de acontecimentos e resultados derivados de suas fases anterio­res de desenvolvimento ou de fora, mediante inputs que o siste­ma recebia de seu meio, o que o obrigava a mudanças em sua estruturação interna. Uma nova ideia, também fundamental, introduzida nesse momento foi a da “hierarquia cibernética de controle”, segundo a qual os elementos do esquema com maior energia – em particular as entidades concretas que ocupavam a célula da adaptação (nos exemplos anteriores, o “organismo comportamental” e a economia) – estavam na base do sistema, enquanto no topo se localizavam aqueles sistemas com maior informação e, portanto, capacidade de direção, ou seja, contro­le (nos exemplos anteriores, sistemas culturais). Acontece que o formalismo do esquema Agil era gritante; Parsons perdeu mesmo sua consciência da distinção entre reali­dade concreta e categorias analíticas. Ao aplicar de maneira indiscriminada o esquema Agil diretamente a qualquer fenô­meno da realidade (não apenas social), ele terminou vítima de inúmeras quedas na “falácia da falsa concretude”. Nos últimos anos de vida de Parsons, e sobretudo após sua morte, o funcionalismo se viu sob o fogo cerrado de outras cor­rentes que criticavam suas preocupações com a estática social, em detrimento da mudança, acarretando o automatismo do fun­cionamento dos sistemas sociais, e a secundarização dos atores em seus modelos explicativos ou a sua transformação em “dopados culturais” . 43 EaD Enio Waldir da Silva Fos­sem, no entanto, essas críticas justas, em sua inteireza ou parcialmente, ou não, o fato é que na década de 80 uma nova corrente teórica emergiu e começou a se consolidar, tendo como projeto a recria­ção do funcionalismo. Jeffrey Alexander é, certamente, o prin­cipal expoente do movimento “neofuncionalista” na Sociologia. O neofuncionalismo de Alexander pretendia recuperar essa estratégia sintetizadora de Parsons e articular contribuições que descobrira em outras cor­rentes. Alexander referia-se, inclusive, a um “novo movimento teó­rico”, que liga o que, de acordo com a linguagem da Sociologia norte-americana, se chamou de dimensões “micro” e “macro” da vida social. Incluía a si próprio nesse movimento, além de autores como Giddens, Bourdieu e Habermas. O grande expoente da teoria funcionalista contemporânea, contudo, herdeiro de Parsons, é Niklas Luhmann (1927­-1998), com a teoria dos sistemas, mas desde o início suas pretensões à originalidade são também evidentes. Em particular, ele queria excluir os sujeitos (psíquicos) de sua teoria, orientada exclusivamente para a compreensão dos sistemas sociais. Outra corrente de pensamento sociológico da década de 40 é o Interacionismo Simbólico. É corrente de estudos da Escola Americana, que se origina com Herbert Mead, professor da década de 20, cujos herdeiros mais representativos são Blumer, da Escola de Chicago – que, num artigo de 1969, denomina a herança de Mead de Interacionismo Simbólico –, Kuhn, da Escola de Iowa, e Goffman. Mead se opunha à dicotomia existente entre as noções de sociedade e indivíduo e entre Sociologia e Psicologia. Em sua sistematização analítica, o Interacionismo Simbólico fundamenta-se em uma série de conceitos básicos. O primeiro deles diz respeito à natureza humana: os seres humanos são seres em ação, são agentes. Outro conceito nos diz que a natureza dessa ação é resultado de um processo de interpretação. A interação social forma os comportamentos, é constituinte, fundante, e fornece significados para a construção, por parte dos sujeitos agentes, dos objetos. Ao considerar a sociedade humana interativa, observa-se que existe uma influência recíproca, isso é, a ação de cada sujeito altera o quadro de representação dos demais. Somando-se a isso a identificação da atividade humana como centro regulador da vida social, tem-se um quadro marcado pela complexidade. Sua proposta apontava para a convergência entre indivíduo e sociedade, que aconteceria na comunicação. Tal abordagem privilegia a interação como elemento constituinte, fundante, que forma os comportamentos. A natureza dos objetos do mundo é social, uma vez que seus significados são constituídos a partir de formas de interpretar ditadas pela sociedade e da interpretação dos sujeitos, moldada no dia a dia, no cotidiano. O espaço do “nascimento’’ dos significados – a interpretação dada pela sociedade e a promovida pelo sujeito – é a comunicação, a interação entre sociedade e indivíduo (Domingues, 2001). 44 EaD sociologia do conhecimento Seção 1.4 Conhecimento e Cultura nos Anos 70 Robert K. Merton é um dos sociólogos mais relevantes na adoção dessa estratégia funcionalista. Ele desenvol­veu seu funcionalismo em grande medida mediante estudos mais empíricos, uma vez que defendia a ideia de que a construção de uma teoria sociológica geral deveria ter corno premissa e base de sustentação o desenvolvimento de teorias de “médio alcan­ce”. Em sua discussão sobre “funções manifestas e laten­tes”, porém, Merton avançou algumas categorias básicas para abordagens funcionalistas, tentando desconectá-las de compromis­sos ideológicos e conservadores (Domingues, 2001, p. 64). Aquelas categorias não teriam tampouco poder explicativo sobre todo e qualquer elemento da vida social. Interessa aqui enfatizar sua distinção entre funções manifestas e funções latentes. As primeiras dependeriam expli­citamente dos fins perseguidos pelos indivíduos e do objetivo de integração do grupo; as últimas, em contrapartida, seriam inconscientes, no sentido de que sua ação não dependeria do desejo, da intenção de nenhum dos atores envolvidos. O exem­plo da dança da chuva entre os Azande ilustrava seu argumen­to: na verdade, não importava para aquela sociedade tribal se aquele ritual produzia a chuva; ele produzia a solidariedade dos membros da comunidade e, embora sua inteção manifesta fosse fazer chover, o que interessava sociologicamente era sua intenção latente, uma vez que, por meio de uma “mão invisível”, levava à inte­gração da sociedade (Domingues, 2001, p. 64). Embora na Europa os estudos da Sociologia do Conhecimento estivessem em pleno desenvolvimento, foi na América do Norte que ela expressava as grandes preocupações com as relações entre avanços científicos e impactos sociais. O contexto social e intelectual americano levou a chamar de Sociologia da Ciência esta dedicação, em especial de Merton, aos estudos dos impactos sociais da ciência. A politização da ciência, já demonstrado pelo nacional-socialismo da Alemanha, criou posições hostis ao avanço da ciência. O desenvolvimento do capitalismo americano acarretaria um dramático desenvolvimento tecnológico cujas conseqüências sociais começavam a se fazer sentir com violência. No domínio da produção, a introdução maciça de tecnologia provocava o desemprego tecnológico, a descontinuidade do emprego, a mudança no trabalho, absolescência das aptidões e, enfim, alterações importantes no cotidiano dos operários, o que fazia desencadear a revolta da classe operária. Por outro lado, a ligação da ciência com a máquina de guerra, que a química tinha iniciado já na primeira guerra mundial, tornava-se mais íntima com a preparação e produção de instrumentos militares, armas, explosivos e demais equipamentos, cuja capacidade destrutiva era a medida da rentabilidade do investimento tecnológico neles aplicados (Santos,1989, p. 122). 45 EaD Enio Waldir da Silva Vai ser Merton o porta-voz da posição de que a ciência só poderia se desenvolver em uma sociedade que oferecesse um clima democrático e liberal. Em 1942, Merton definiu em grandes linhas o que seria a Sociologia da Ciência, para precisar mais objetivamente as discussões sobre a relação do saber científico e a sociedade. Para ele não seriam importantes os métodos ou os conteúdos da ciência e sim os valores culturais e normas que presidem as atividades científicas, ou seja, deveria estudar a estrutura cultural da ciência, o seu impacto nas sociedades e da sociedade na definição de seus interesses e seleção de problemas e os ritmos de desenvolvimento. Assim, a ciência deveria ter como valores o universalismo – o caráter impessoal da ciência –; o comunismo – as conquistas da ciência são produto da colaboração social e propriedade de todos –; o desinteresse – as instituições científicas não devem estar sob qualquer interesse particular – e o ceticismo organizado – o cientista deverá submeter à discussão e pôr em questão seus princípios e ideias. Estas normas morais e técnicas garantem a dignidade da ciência em sociedades democráticas. Bem nesse momento, porém, a ciência entrou em processo acelerado de industrialização e os cientistas se transformaram em trabalhadores assalariados a serviço do complexo militarindustrial, opondo totalmente a orientação mertoniana. Os trabalhos de Merton também analisaram Marx, Durkheim e Mannheim, com o objetivo de fazer uma arqueologia da Sociologia do Conhecimento, no que se refere, principalmente, as suas posturas epistemológicas com relação às Ciências Naturais, e constataram que esses três autores, cada um a seu modo e em sua época, alinhavam-se à perspectiva de que o conhecimento desenvolvido nas Ciências Naturais estaria livre de qualquer determinação social. O próprio Merton, defensor e precursor de uma Sociologia da Ciência, escola por ele fundada, e cujos trabalhos desenvolvidos iniciaram-se ainda na década de 30, também conhecido, posteriormente, pela Escola de Colúmbia,19 não conseguiu ir além de uma perspectiva institucional em sua Sociologia da Ciência, permanecendo no âmbito do estudo da ciência como instituição social, ou seja, numa visão externalista da mesma. A ciência, entendida por este sociólogo como ciência natural, possuía explicações que deveriam ser buscadas na natureza, por meio da identificação de leis universais, pela inferência lógica. Sua Sociologia da Ciência tinha por objetivo identificar e explicar as condições sociais, políticas e culturais em que a ciência, possuidora de um valor autônomo em si, e como instituição social, tinha maiores ou menores possibilidades de se desenvolver em sociedades mais favoráveis ou menos favoráveis para tal. No centro da Sociologia da Ciência mertoniana encontra-se, ainda, uma concepção essencialista de ciência.20 Rodrigues, Leo Peixoto. Karl Mannheim e os problemas epistemológicos da Sociologia do Conhecimento: é possível uma solução construtivista. In: Revista Episteme: Porto Alegre: vol 14. p. 115-118. Julho de 2002. 19 Vemos uma interpretação dessa escola em Rodrigues, Leo Peixoto. Introdução ao conhecimento, da ciência e do conhecimento científico. Passo Fundo: UPF, 2005. Leia deste mesmo autor: Karl Mannheim e os problemas epistemológicos da Sociologia do Conhecimento: é possível uma solução construtivista. In: Revista Episteme: Porto Alegre: vol 14. p. 115-118. Julho de 2002. 20 46 EaD sociologia do conhecimento A Escola Mertoniana, apesar de ter permanecido afastada dos polêmicos debates epistemológicos atinentes às questões internalistas da ciência, defendendo uma explicação normativa da mesma, baseada em valores morais, dentro de uma perspectiva funcionalista clássica, teve o mérito de detalhar a estrutura social da ciência, dando uma maior ênfase a normas e a valores vinculados à estrutura social do fazer científico. Esse pioneirismo mertoniano estabeleceu e demarcou o campo da Sociologia da Ciência, tornando-se uma referência praticamente exclusiva até 1970 (Rodrigues, 2002). A Sociologia que investiga a ciência nos anos 50 vai ser balizada pela abordagem de Merton. Das funções manifestas e latentes, foi utilizada para demonstrar como certos comportamentos irracionais – a concorrência entre cientistas – desempenham a função de promover o desenvolvimento científico, a sociabilidade dos cientistas nas normas da ciência, e deste modo contribuem para a autonomia e para segurança institucional da ciência. De certa forma, Merton esperava que o avanço da ciência levaria à glória da civilização. Segundo Santos (1989): A sociologia mertoniana tem com a prática científica uma relação imaginária, pois concebe-a pautada por normas e valores que em nada correspondem às realidades do processo de produção científica [...] O compromisso da ciência com o modo de produção material acarretou o seu compromisso com o sistema social e, portanto, a sua co-responsabilização na criação e gestão das contradições e conflitos dele emergentes (e nele recorrentes) e suas repercussões, quer ao nível interno, quer ao nível internacional [...] as bombas de Hiroshima e Nagasaki foram o salto qualitativo, mas as condições em que se deram tornaram inverossímil a idéia de uma ligação fortuita. Foi isso, aliás, o que permitiu a alguns (não muitos) físicos nucleares lavar as mãos no vaso cristalino da ciência pura e de as limpar na toalha alva do progresso científico (p. 130). Vai ser Thomas Kuhn quem romperá com a hegemonia funcionalista clássica da Sociologia da Ciência, em que o ethos científico, característico da sociedade ocidental,21 garantia o desenvolvimento da ciência como instituição social. Ao mostrar exemplos da própria história da Física, a forte relação existente entre a estrutura social científica e a estrutura cognitiva, reacendeu antigos ideais da Sociologia do Conhecimento. Science, Technology and Society in Seventh-century in England, sua tese de Doutorado, concluída em 1938, foi uma de suas primeiras obras dedicadas ao estudo social da ciência. O tema explorava o surgimento da ciência moderna nas sociedades ocidentais, tendo por origem a revolução científica inglesa do século 17 e o contexto em que tal desenvolvimento surgiu. Para Merton, a maneira como interatuam ciência e sociedade varia segundo as distintas situações históricas; sustentava ele que a natureza e o grau desses intercâmbios são diferentes quando consideradas as diversas sociedades. Em O Puritanismo, Pietismo e Ciência (1970), buscou destacar os fundamentos de ordem social que dão o caráter institucional da ciência. Merton declara que a tese principal desse trabalho era o de salientar que a ética puritana, como expressão típica ideal das atitudes para com os valores fundamentais do protestantismo ascético em geral, canalizou os interesses dos ingleses do século 17 de maneira a constituírem um elemento importante no cultivo da ciência (p. 675). Ele afirmava que determinados elementos da ética protestante tinham contaminado, perpassado a conduta científica conferindo-lhe marcas peculiares ao trabalho dos cientistas. 21 47 EaD Enio Waldir da Silva Segundo Espinosa, Garcia e Alberto (1994), o livro de Kuhn, Estrutura das Revoluções Científicas, foi um dos marcos mais importantes e desde logo o detonador mais direto que desencadeou a reorientação dos objetivos abordados pela Sociologia da Ciência. A repercussão de sua obra influenciou de forma notável a mudança de problemática daqueles sociólogos (Merton e sua escola principalmente) ocupados com a ciência como instituição social. Essa especialidade, que até então tinha se ocupado com o problema da ciência como instituição, começa a agir em torno da ciência como ação, e ao redor dos processos de estruturação do conjunto das relações sociais científicas, incluindo as que se desenvolvem na geração e validação dos produtos científicos. A comunidade científica, como defendia Kuhn, de tempos em tempos adota (e compartilha) um conjunto de crenças, valores, técnicas, etc., que se constituem em um paradigma (ou programa) para validação e aceitação do conhecimento científico, e esse conjunto de crenças, valores, técnicas, etc. (Kuhn, 1996) provém da própria comunidade científica, sendo esta, por óbvio, um grupo social. A adoção de um determinado paradigma em detrimento de outro, porém, não significa uma mera contaminação de conteúdos do contexto social no estabelecimento da validade do conhecimento científico. Nesse caso, a natureza, o tipo de conteúdo acordado, aceito, compartilhado, oriundo do contexto social constituiu-se num epifenômeno da validade do conhecimento. Inegavelmente a mais importante (e polêmica) contribuição de Kuhn talvez tenha sido o fato de legitimar a relevância de conteúdo social (crenças, valores, consensos) não apenas como mero coadjuvante tolerado pela Filosofia da Ciência de caráter cognitivo, em muitos casos, como fator essencial, fundamental para a validade de muitas das descobertas da ciência. Indubitavelmente, foi a partir da obra de Kuhn que argumentos de natureza sociológica passaram a desconstituir o estrutural-funcionalismo mertoniano, em termos de orientação predominante nos estudos sociais da ciência.22 Elias (2008) nos mostra que: Nosso conhecimento sobre o crescimento do conhecimento está aumentando constantemente e, até onde os detalhes permitem saber, é maior agora do que antes. O que falta são modelos teóricos adequados acerca do desenvolvimento do conhecimento que possam ser comparados com essa evidência e ajustados a modelos correspondentes de desenvolvimento das sociedades dentro das quais aquele conhecimento assume uma posição. Um dos principais obstáculos em direção a tais modelos é, evidentemente, a disposição fortemente ambivalente com relação ao conhecimento científico que prevalece em nosso tempo. A dúvida, muito difundida, sobre o valor desse conhecimento afeta a integração Rodrigues, Leo Peixoto. Introdução ao conhecimento, da ciência e do conhecimento científico. Passo Fundo: UPF, 2005. O autor faz um esforço para diferenciar Sociologia da Ciência de Sociologia do Conhecimento, uma vez que esta envolve conhecimentos de forma mais ampla e aquela os conhecimentos mais institucionalizados. Diz o autor: “É a partir da década de setenta que a Sociologia do Conhecimento é retomada no cenário acadêmico, apresentando significativos avanços e contribuições de diferentes correntes, após ter ficado algum tempo obliterada pela Sociologia da Ciência. A dimensão sociológica funcional-estruturalista da ciência proposta por Merton colapsou a partir da obra de Kuhn, justamente por abster-se de adentrar no campo minado da Epistemologia, aceitando o fato de que a Sociologia do Conhecimento nada poderia dizer a respeito da validação do conhecimento científico”. 22 48 EaD sociologia do conhecimento teórica dos fatos. Uma das tentativas contemporâneas mais conhecidas para tal integração, o modelo de T. S. Kuhn de desenvolvimento do conhecimento científico (Kuhn, 1962), é um bom exemplo. No sofisticado paradigma de Kuhn, a progressiva expansão do conhecimento dos homens de um universo desconhecido ao longo dos milênios, dos quais a expansão científica é a fase mais tardia, basicamente se perdeu de vista. Ele representa essa fase – caracterizada por uma combinação específica de investigação empírica em relação a aspectos desconhecidos deste universo com integração teórica periódica do crescimento do conhecimento desses aspectos – de maneira depreciativa; por um lado, como um jogo de quebra-cabeças resolvido (solving) de acordo com certas regras; por outro lado, como uma mudança acidental e parcialmente arbitrária das regras. Ele conceitua o primeiro desses dois tipos de atividades científicas como “ciência normal” e o segundo como “revoluções científicas”. A escolha das palavras é suficiente para sugerir que modelos teóricos integrados, tais como os de Ptolomeu, na Antiguidade, ou os de Newton e Einstein, nos tempos mais recentes, permanecem, de certo modo, do lado de fora e não fazem parte da ciência normal. Assim sendo, desgastando a arbitrariedade e a descontinuidade das inovações teóricas radicais (que é dificilmente mais adequada para o desenvolvimento do conhecimento científico do que a separação conceitual entre uma fase não revolucionária de um processo revolucionário que o sucede no desenvolvimento de uma sociedade), Kuhn é capaz de traçar um quadro essencialmente relativista da relação entre os paradigmas bastante integradores dentro de um processo científico. Enquanto permite um “gostinho de progresso” para sua “ciência normal”, ele nega que a seqüência de paradigmas teóricos represente algum progresso, alguma ampliação do conhecimento humano (p. 552). De qualquer forma as contribuições de Merton e de Kuhn para o avanço do debate envolvendo o conhecimento são muito importantes. Como aspectos centrais do trabalho do primeiro, lembramos o destaque e as preocupações conferidas por este à explicação do grau de influência dos fatores socioculturais e históricos no desenvolvimento da ciência – inclusive daqueles que impediram tal desenvolvimento – reconhecendo a influência de uma base existencial na determinação do conhecimento, bem como outras formas – hierarquicamente inferiores, segundo ele – de conhecimento. Nestes termos, a produção científica, para Merton, é interdependente de outras esferas, como a econômica, a moral e a religiosa. Essa relação entre ciência e fundamentos sociais não deve supor, segundo Merton, uma submissão do comportamento dos cientistas aos imperativos instrumentais, discordando de Bourdieu, ao destacar que a socialização daqueles está sujeita a diferentes estilos e práticas sociais. Kuhn, de outra parte, não é relutante em dar uma solução ao dilema do relativismo científico com o conceito de paradigma e de comunidade científica. Para ele, o progresso da ciência não obedece a uma evolução linear ou cumulativa. Aliás, o que se expande e se acumula, paradoxalmente ao desenvolvimento da ciência, é o risco da degradação ambiental irreversível. 49 EaD Enio Waldir da Silva Uma mesma realidade, destaca Kuhn, entrementes a superação de um paradigma por outro, pode ser apreendida de forma tão diferente, porquanto diversa. Em seu juízo, o alargamento do alcance da ciência se dá, mesmo que os paradigmas possuam um caráter predominantemente aberto – noção que apresenta uma grande semelhança com o conceito de sistemas autopoiéticos incorporados de Maturana por Luhmann –, acolhendo e incorporando novidades, a partir de revoluções científicas – reconstrução de uma área de estudos a partir de novos princípios, teorias, métodos e aplicações que proporcionam que os cientistas vejam o mundo de forma diferente reagindo a ele também, de forma diferente –, isto é, de respostas não tradicionais a problemas novos e anômalos, até então tratados insatisfatoriamente pelo paradigma tradicional. Por seu turno, diria Wallerstein (2002), o novo paradigma tem sua atualidade e legitimidade baseadas tanto na pertinência de seus esquemas de compreensão quanto em sua capacidade de resolver os desafios intelectuais apresentados por seus críticos. Em seu conceito de comunidade científica Kuhn, apesar de reconhecer e apontar a influência do contexto sociocultural, tanto na definição dos problemas a resolver quanto sobre o pensamento e as escolhas dos cientistas, apresenta-a distante dos interesses em disputa na sociedade ou, até mesmo, sob a influência do campo econômico sobre seu trabalho. Neste sentido, portanto, distante de Bourdieu, a comunidade científica, para Kuhn, é formada por um grupo de cientistas que tem sua motivação no desejo de ser útil, em fazer o que ninguém antes fez. É integrada por grupos de profissionais, submissos a uma rede de compromissos ou adesões conceituais, teóricas, metodológicas e instrumentais – adesões que em muito poderiam ser explicadas pelo sentido que Bourdieu conferiu ao conceito de habitus –, e cujas especialidades buscam soluções, de preferência detalhadas, aos problemas relativos aos comportamentos da natureza e que devem se dirigir e se submeter aos julgamentos únicos de seus pares. 50 EaD Unidade 2 sociologia do conhecimento A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO NO FINAL DO SÉCULO 20 – NOVOS DESAFIOS OBJETIVO DESTA UNIDADE •Mostrar as principais discussões que estão ocorrendo na Sociologia do Conhecimento e as propostas mais decisivas para uma reforma na reflexão sobre relações ciência e sociedade. AS SEÇÕES DESTA UNIDADE Seção 2.1 – Democratizar a Cognicidade Seção 2.2 – O Conteúdo Esquecido Pela Ciência: a Afetividade A partir das teses de Kuhn, a Sociologia do Conhecimento, a Sociologia da Ciência e diferentes correntes teóricas oriundas das Ciências Sociais passam a ser etiquetadas sob uma mesma denominação mais ampla, renovada e, por que não dizer, mais arrojada: a Sociologia do Conhecimento Científico. Foram vários os estudos sociais da ciência, sob esta nova designação, que passaram a abarcar não apenas as preocupações epistemológicas da Sociologia do Conhecimento mannheimiana, como também a possibilidade de ter como objeto legítimo o conhecimento científico, desta vez, porém, tanto no que se refere a sua gênese quanto a sua validade. A Sociologia do Conhecimento Científico passou, então, a estudar, por um lado, os aspectos estruturais que compreendem as mútuas influências entre fatores sociais e cognitivos, no âmbito das organizações científicas e, por outro, questões estritamente atinentes à gênese e à validação do conhecimento científico. A suposição é de que a aquisição do conhecimento é um assunto em que cada pessoa está sozinha. Na qualidade de “sujeitos”, temos a impressão de que, embora inseridos, estamos absolutamente sozinhos em um mundo de objetos em relação aos quais devemos tentar adquirir conhecimento, trabalhando a sós e sem nenhuma ajuda. Como é possível, como sujeito do conhecimento, adquirir conhecimento que seja “verdadeiro” acerca de objetos, como parecem 51 EaD Enio Waldir da Silva fazer no caso da ciência? Pode-se perceber por que é necessário forçar um pouco a linguagem para demonstrar que, na aquisição do conhecimento, nenhum ser humano pode ser considerado um ponto de partida; nós nos encontramos sobre os ombros de outros, de quem aprendemos um cabedal já adquirido de conhecimento que, se tivermos a oportunidade, poderemos ampliar. Se tentarmos trazer para nossa própria rede conceitual o desenvolvimento de longo prazo do conhecimento humano, tanto em seus aspectos não científicos quanto em seus aspectos científicos, os conceitos sugerem que uma polaridade estática – tais como “sujeito” e “objeto” ou “subjetivo” e “objetivo” em seus sentidos tradicionais – resulta inadequada. O paradigma epistemológico clássico de uma solidão individual, de um “sujeito” isolado caçando aqui e agora o conhecimento das conexões dos “objetos” dentro da imensidão de um mundo desconhecido, começando do zero e absolutamente sozinho, não é muito útil (Elias, 2008, p. 545). As Ciências Humanas, e em especial as Ciências Sociais, enfatizam as dimensões subjetivas da realidade social, pois sempre vão se referir aos homens, suas relações e representações. Nesse sentido, a subjetividade está determinada pela relação entre o sujeito e o objeto, pois ao estudar o cientista social conceitua e abstraí a ponto de relacionar essa experiência ao seu modo de vida, proporcionando, em maior ou menor grau, uma reflexão crítica de sua posição na sociedade. Ocorre também a situação de que o objeto estudado é consciente e capaz de estabelecer uma relação mais complexa com o cientista do que nas outras ciências; um grupo social que não concordasse com aquilo que um cientista escrevesse sobre eles, mesmo que ele estivesse correto, exerceria, certamente, uma coerção maior sobre o pesquisador do que qualquer outro objeto das Ciências Naturais sobre o pesquisador desta área. Dada essa situação específica entre sujeito e objeto do saber, caberia definir qual é relação entre os valores do pesquisador e a produção do conhecimento? Traçados esses limites, qual seria então o método mais adequado, aquele que proporcionaria uma melhor compreensão da realidade social? Segundo Löwy, o método de observação adequado às Ciências Sociais deve reconhecer que seu objeto de estudo possui um caráter histórico, ou seja, suscetível de transformação pela ação humana (1978, p. 15). Também deve ser observado que a relação entre sujeito e objeto do conhecimento é completamente parcial. Disso, apreende-se que o objeto de estudos do pesquisador social se apresenta como parte atuante de sua vida, levando-o a perceber que a análise que ele empreende não é apenas do objeto em si, mas de sua relação com aquele e dos dois com o restante da sociedade. A atividade científica não se apresenta como uma esfera dissociada do restante da atividade social; os problemas vividos pelo cientista em sua relação com as várias determinações de sua existência influenciam na maneira como ele analisa e compreende o seu objeto, assim como na maneira como o conhecimento é utilizado. O conhecimento produzido pelas Ciências Sociais é, pois, definido, e em grande medida, pela visão de mundo da classe social à qual o cientista pertence. 52 EaD sociologia do conhecimento A realidade social é infinita. Toda ciência implica uma escolha, e nas ciências históricas essa escolha não é um produto do acaso, mas está em relação orgânica com uma certa perspectiva global. As visões do mundo das classes sociais condicionam, pois, não somente a última etapa da pesquisa científica social, a interpretação dos fatos, a formulação das teorias, mas a escolha do objeto de estudo, a definição do que é essencial e do que é acessório, as questões que colocamos à realidade, numa palavra, a problemática da pesquisa (Löwy, 1978, p. 15). A realidade com a qual trabalham os sociólogos nunca afirma com certeza se o que lhes dizem sobre ela está de acordo com o que ela é verdadeiramente. Logo, nunca podemos comparar o discurso com a realidade. As mudanças em curso hoje tornam difícil uma análise, visto que requer uma sensibilidade própria, dadas as diversas transformações nas relações dos indivíduos e de seus contextos e planos. No conhecimento científico, a análise sociológica enfatiza o equívoco das pretensões da ciência em ser desvinculada dos quadros sociais. O conhecimento científico parte de quadros operativos essencialmente construídos, justificados pelos resultados conseguidos, que chamam a uma verificação experimental. A ciência busca a união do conceitual e do empírico e, se cultiva a pretensão de ser desvinculada, será, talvez, porque é uma classe de conhecimento que tende ao desinteresse, ao “nem rir nem chorar” (Espinoza; Garcia; Alberto, 1994), tende para o aberto, à acumulação, à organização e ao equilíbrio. Segundo Bourdieu, a aplicação metódica da razão e da observação empírica ao reino social, exige, de um lado, em todos os momentos, uma suspeita em relação ao pensamento comum e às ilusões que este engendra continuamente e, de outro, um esforço ininterrupto de (des/re)construção analítica única, capaz de extrair do abundante emaranhado do real as “causas internas e as forças impessoais ocultas que movem os indivíduos e as coletividades” (Bourdieu, 1982). Seção 2.1 Democratizar a Cognicidade Segundo Boaventura de Sousa Santos (2004), o objetivo epistemológico de hoje é o de congregar uma massa crítica de pesquisadores majoritariamente das semiperiferias, trabalhando em diferentes países e sem a tutela da ciência central, reivindicando a possibilidade de uma outra ciência, menos imperial e mais multicultural, de uma outra relação mais igualitária entre 53 EaD Enio Waldir da Silva conhecimentos alternativos e que esta constelação de conhecimentos possa estar a serviço da luta contra as diferentes formas de opressão e de discriminação. A tese de Santos é de que todo o conhecimento científico-natural é científico-social; todo conhecimento é autoconhecimento; todo conhecimento é local e total; todo conhecimento visa a se transformar em senso comum. Uma vez que o conhecimento científico é hoje uma forma privilegiada de conhecimento, cuja importância para a sociedade é evidente, interessa saber quais são suas naturezas, suas potencialidades, seus limites e suas contribuições para o bem-estar da sociedade. Ou seja, como é possível reconhecer o conhecimento científico fora destes lugares privilegiados de produção, no mundo social, político e cultural e como conferir mais inteligibilidade ao seu presente, ao seu passado e dar sentido ao seu futuro (Santos, 2004, p. 17). A inserção do conhecimento no mundo social, explicando-o e transformando-o, construiu um paradoxo em relação às transformações do mundo. “Foi feita no mundo, mas não é feita de mundo”, pois ao operar com suas próprias lógicas ficou distante da sociedade, da natureza e dos cidadãos, como se estes não tivessem lógicas próprias também. Assim se refere o autor: A evolução dos saberes tem a ver com uma pluralidade de fatores: com o crescimento exponencial da produção científica e a conseqüente proliferação das comunidades cientificas; com o extraordinário aumento da eficácia tecnológica propiciada pela ciência, uma eficácia posta tanto a serviço da guerra como da paz; com as transformações na prática científica à medida que o conhecimento científico for transformado em força produtiva de primeira ordem e a questão das relações entre ciência e mercado se transmutou na questão da ciência como mercado (Santos, 2004, p. 19).1 Os posicionamentos de Santos originaram-se em suas próprias investigações, quando se deparava com obstáculos evidentes, desde sua tese de Doutorado no Rio de Janeiro, quando se viu confrontado pelo saber jurídico popular ignorado pelo Direito oficial, passando pelos debates sobre o capitalismo liberal e os usos da tecnologia na lógica de produção dos anos 80, até o momento da “guerra nas ciências”, quando aconteceu a maior expressão de arrogância epistemológica das ciências, pois se achava, a ciência, a única forma de conhecimento válida e postada no lugar certo: no cento dos países centrais. Santos (1997) resolve, então, criar um espaço para esclarecer as várias interrogações sobre o papel da ciência em novos tempos. Este espaço foi construído com o projeto “A Reinvenção da Emancipação Social”, que contou com a participação de 69 cientistas de países considerados 1 Esta posição de Santos é bem discutida no livro Conhecimento Prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez Editora, 2004. Na Introdução o autor esclarece aos seus adversários qual é sua real posição sobre ciência e cognicidade: abrir um diálogo franco e honesto sobre o impacto da ciência na sociedade. Vieram colaborar com ele no Projeto inúmeros filósofos, sociólogos, biólogos, antropólogos, economistas, cientistas políticos, psicanalistas, matemáticos e pesquisadores envolvidos com os estudos culturais de vários países que não opinam concordando com Boaventura, mas pondo divergências racionais, autênticas e honestas, próprias de quem quer argumentar para se entender. É uma demonstração da proposta dialogal que o autor defende sobre as posições contemporâneas sobre ciência. 54 EaD sociologia do conhecimento estratégicos, não centrais, em que as Ciências Sociais tinham diferentes experiências dos países centrais, por serem países esquecidos e que estavam resistindo à globalização neoliberal. Estes países eram: Brasil, Colômbia, África do Sul, Índia, Moçambique e Portugal. Nas palavras do próprio Santos: Este projeto possui alguns riscos, tanto pelo êxito fácil, ou seja, pela cooptação hegemônica, ou tanto ao fracasso pela inviabilidade. Porém, o autor acredita que nesse momento correr o risco é a única alternativa contra a mercenarização científica. Este projeto assume a pluralidade de conhecimentos rivais e alternativos e procura dar-lhes voz. Também privilegia a definição de um vasto campo analítico definido segundo uma orientação geral, priorizando a globalização contra-hegemônica e possibilitando, assim, contribuir para a reinvenção da emancipação social. Só haverá emancipação social na medida em que houver resistência a todas as formas de poder. Para que se possam democratizar internamente as ciências, é preciso reconhecer a pluralidade desta. Para isto, faz-se necessário promover um conhecimento capaz de apreender os diversos processos de construção teórica. Também se faz necessário, dentro desse processo de democratização da ciência, relacionar a comunidade científica com os cidadãos, entre os conhecimentos científicos e as capacidades cognitivas que sustentam a cidadania. Desta forma, poderão desenvolver métodos que permitam estabelecer relações mútuas e influências recíprocas entre as partes e o todo (Santos, 1997). A realidade possui sua mais viva expressão na vida cotidiana, porque esta se apresenta como um mundo intersubjetivo e intrasubjetivo. Por outro lado, a rotina da vida cotidiana traz consigo a dúvida a respeito da realidade. Ou seja, impede sua problematização. Esta só se dá a partir de um novo conhecimento porque rompe a continuidade da realidade cotidiana. Nesse sentido, entendemos que é o acervo social do conhecimento que levamos para nossa prática cotidiana, que irá estabelecer nossa relação com o senso comum e, portanto, com sua superação. A questão central para nós, na visão de Berger e Luckmann, é reconhecer que o mundo da vida cotidiana proclama-se a si mesmo e quando quero contestar esta proclamação tenho de fazer um deliberado esforço, nada fácil (Santos, 1997). Com efeito, existem outros saberes e modos de conhecimento – as próprias práticas sociais, por exemplo – não redutíveis ao conhecimento científico. De acordo com esta perspectiva, a ciência deve valer-se das virtudes inerentes ao senso comum – unidade entre causa e intenção; prático, pragmático e espontâneo; contemporâneo e complementar à experiência cotidiana; evidente; interdisciplinar e imetódico – de maneira que a vida da experiência esteja condicionada, senão dirigida, pela necessidade da experiência da vida. Em realidade, para Santos a ciência pós-moderna, ao sensocomunizar-se, não despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir em autoconhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida. 55 EaD Enio Waldir da Silva Esta questão remete-nos ao cuidado que temos de ter quanto ao perigo que corremos – enquanto pretensamente intelectuais – de utilizarmo-nos de categorias analíticas inadequadas e/ou privilegiar generalizações. Ao desconsiderarmos toda a diversidade e profundidade implícitas na e da vida cotidiana, distanciamo-nos, afetivamente, de uma interpretação que considere, mais fielmente, saberes outros produzidos e ou gestados no dia a dia da prática social (Santos, 1997). Não podemos, entretanto, confundir diálogo e troca de saberes com a substituição de um saber pelo outro. A realidade, em toda sua infinita complexidade, não pode ser apreendida a partir de uma única perspectiva ao mesmo tempo em que não pode prescindir dela. O que se está propondo é uma ruptura com a monocultura epistemológica, em grande medida imposta pela ciência moderna na perspectiva da maximização da contribuição de cada saber em relação à explicação e compreensão da realidade. Esta última não pode ser reduzida ou reproduzida numa única perspectiva. Afinal, os saberes não estão imunes ao princípio da incompletude (Santos, 2005). Por exemplo, se a análise da dinâmica do comportamento das classes populares em sua relação com o todo do complexo societário se der a partir de um campo conceptual que privilegie termos como falsa consciência, alienação, ignorância, arcaísmo, atraso, etc., estaremos desconsiderando outras formas de resistência e de saberes que não passam necessariamente por algum ideal de organização coletiva. De outra parte, corremos o risco de sermos alvos da indiferença, porque insensíveis e incapazes de perceber a riqueza implícita na lógica interna da vida das classes populares. Esta sabedoria seria, ao ser considerada, um passo adiante na superação daquilo que Bourdieu denunciou como a eleição do todo pela perspectiva de uma parte. Em outras palavras, as considerações relativas ao todo devem estar condicionadas pela relação deste com suas partes inerentes. Isto é, o conhecimento de determinada realidade e/ou fenômeno pressupõe a assunção de sua referência inconteste com esferas circundantes, as quais contribuem para a configuração, movimento e/ou substância dessa mesma realidade. Dentro deste processo de reinvenção e construção existem alguns princípios orientadores (Santos, 2000, p. 330), quais sejam: criar novas formas de conhecimento baseadas numa nova retórica, que seja dialógica e empenhada em constituir-se como tópica emancipatória, ou seja, como tópica de novos sensos comuns emancipatórios, capaz de facilitar uma resolução progressista da transição paradigmática. Para essa tarefa duas representações inacabadas da modernidade são importantes. O princípio da comunidade, assente nas ideias de solidariedade de participação e o princípio estético expressivo assente nas ideias de prazer, de autoria e de artefactualidade. Também é possível incluir a separação do Direito moderno relativamente ao Estado e a sua rearticulação com a política e a revolução. Diante desses campos analíticos o autor observa que 56 EaD sociologia do conhecimento é possível realçar as várias formas de opressão nas sociedades capitalistas, ao mesmo tempo em que abrem novos espaços para uma política cosmopolita, para diálogos interculturais, para a defesa da autodeterminação e da emancipação, espaços possibilitados pela globalização das práticas sociais. Não podemos entender Boaventura de Sousa Santos se não retomarmos sua leitura da ciência moderna. Para ele, o que há de específico na dimensão conceitual da ciência moderna é a ideia de inferioridade do outro. Não apenas a ideia, mas aprofundando-a e legitimando-a. Ao invocar a credencial da legitimidade, tem sua validade e credibilidade asseguradas? Esta se justifica pela produção de superioridade/inferioridade. As concepções que deram sustentação à modernidade: a suposição de uma ordem universal; um modelo de racionalidade (o ocidental); uma ideia de sujeito (o sujeito poderoso); as metanarrativas (grandes sistemas explicativos e totalizantes); a supremacia do homem (como espécie, como gênero, como medida de todas as coisas); uma cultura (a ocidental) como o lugar privilegiado a partir do qual se inventam e nomeiam as “outras” (Santos, 2010, p. 150). A ciência em geral, e a modernidade em particular, via de regra, tiveram uma relação marcadamente instrumental com a vida. Preocupada e embasada na capacidade de conhecer e transformar a natureza, procurou eliminar a imprecisão, a ambiguidade e a contradição. O que até hoje foi ignorado e rejeitado vem à tona. A ideia de ordem e estabilidade do mundo revela como o determinismo mecanicista da modernidade separou o que serve daquilo que não serve; o estético, do útil; a cultura, da natureza, etc. O pensamento moderno ocidental é abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, com as invisíveis fundamentando as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo deste lado da linha e o universo do outro lado da linha. A divisão é tal que o outro lado da linha desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente e é mesmo produzido como inexistente (Santos, 2010). Para Santos, no campo do conhecimento o pensamento abissal da modernidade estaria em conceder à ciência moderna o monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso, em detrimento de outros conhecimentos como o sociológico, o filosófico e o teológico, assim como destes para os saberes populares, leigos, plebeus, camponeses, indígenas, etc. Estes não são considerados científicos e sim crenças, opiniões, magia, idolatria, intuições, afetividades. São, no máximo, matéria-prima para a ciência. Neste lado que não foi considerado pela ciência moderna se esconde uma vasta gama de conhecimentos e experiências desperdiçadas e sem uma localização, apesar de sabermos que estão nas regiões colonizadas. É justamente nesta zona que se construiu novas e fortes concepções de conhecimentos. 57 EaD Enio Waldir da Silva Há necessidade de reorganizar o que conhecemos por ciência. Ao desencadear uma nova concepção, uma reflexão epistemológica e diversificada sobre o conhecimento científico, Boaventura de Sousa Santos (2000), cita: em vez da eternidade, temos a história; em vez do determinismo, imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversabilidade, irreversabilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente (p. 70-71). Para Santos (2000), o saber que não considera os outros saberes do mundo é um “conhecimento desencantado e triste”. Aquilo que é considerado como não ciência (senso comum) não possui a mesma credibilidade, por sua informalidade, flexibilidade possibilidade de várias leituras. Embora não seja quantitativo é real, move os corpos, faze agir. Para isso é necessário fazer algumas rupturas epistemológicas, tais como: A primeira: todo processo científico só pode acontecer quando o pesquisador sai da linguagem do senso comum e busca uma linguagem técnica, própria de um saber rigoroso que busca encontrar a verdade, pois a ciência, nesse momento, se opõe à opinião. Dentro da linguagem do senso comum não é possível acontecer saber rigoroso e concatenado. Quando, contudo, a ciência tiver acabado sua pesquisa e discurso, torna-se necessária a segunda ruptura: é preciso voltar à linguagem do senso comum, para que os resultados de suas pesquisas sejam acessíveis a todos os membros de sua comunidade. A ciência só pode ser constituída dentro de uma linguagem rigorosa, entretanto os resultados da ciência devem ser traduzidos dentro da linguagem cotidiana, da linguagem própria dos que não pertencem à comunidade científica. Os conhecimentos conquistados devem ser divulgados ao público numa linguagem a ele acessível. Esse trabalho de construção e desconstrução (próprio da hermenêutica) dos conhecimentos alcançados, graças ao rigor do trabalho científico, é uma etapa essencial, pois toda ciência é uma atividade social e, como tal, trará impacto e consequências relativas à qualidade de vida dos membros da sociedade em que ela se exerce. Os cidadãos comuns têm o direito e o dever de conhecer o que fazem e pensam seus cientistas, porque também eles são corresponsáveis por tudo o que se faz e acontece no seio da sociedade em que vivem. Os resultados da pesquisa científica sempre trarão impactos, ao mesmo tempo positivos e negativos sobre a vida dos cidadãos. A verdade da ciência não é algo atemporal e acima de qualquer suspeita: ela pode ser usada de modo abusivo, ideológico e autoritário; por isso, todos os cidadãos têm direito a discutir, ao menos, as consequências positivas e negativas dos resultados da pesquisa. A verdade da ciência se dá sempre na e para a sociedade: ela é prática e social, pois “que diferença faz, para você e para mim, em instantes precisos de nossa vida, se esta fórmula-mundo ou aquela fórmula-mundo é verdadeira” (Santos, 2000, p. 44). 58 EaD sociologia do conhecimento Santos julga que, até hoje, ao colocar a questão de saber se o estatuto científico das Ciências Humanas ou Sociais é igual ou diferente ao das Ciências Naturais, este questionamento, da forma com foi exposto, não apenas é insolúvel, mas também constitui um obstáculo epistemológico ao avanço do conhecimento científico, tanto para as Ciências Sociais quanto para as Ciências Naturais: “Para superar isso, é preciso inverter os termos da questão: partir da precariedade do estatuto epistemológico das ciências naturais (o que implica uma ruptura total com a filosofia positivista) e perguntar se as ciências naturais são iguais ou diferentes das ciências sociais.” (2000, p. 51). Agora estão em questão, sobretudo, as próprias Ciências Naturais. O autor afirma que hoje as Ciências Naturais ainda são diferentes das Ciências Sociais, mas aproximam-se cada vez mais destas e é previsível, em futuro não muito distante, se dissolverem nelas. E isso graças a duas razões teóricas. Primeiro, porque o avanço científico das Ciências Naturais é [...] o principal responsável pela crise do modelo positivista e, em face dela, as características, que antes ditaram a precariedade do estatuto das ciências sociais, são reconceptualizadas e passam a apontar o horizonte epistemológico possível para as ciências no seu conjunto. E, em segundo lugar, a materialidade tecnológica em que o avanço científico das ciências naturais se plasmou não fez com que os objetos teóricos das ciências naturais e das ciências sociais deixassem de ser distintos, mas fez com que aquilo em que são distintos seja progressivamente menos importante do que aquilo em que são iguais (2000, p. 52). Se quisermos sair do impasse imposto pelo positivismo às Ciências Humanas, precisamos superar o paradigma controlador e manipulador da ciência moderna. É preciso ver que toda ciência é práxis social. E fenômenos sociais são estudados pelas Ciências Sociais e não pelas Ciências Naturais. Na medida em que se toma consciência dessa obviedade, a concepção de como se relacionam esses dois tipos de ciência se transforma, os dogmatismos se esvaem e, desta forma, as Ciências Sociais e as Ciências Naturais – cada qual mantendo suas peculiaridades e objetos específicos – caminham lado a lado na tentativa de propor a verdade a que elas tiveram acesso, visando à construção de um mundo que proporcione, a todos seus habitantes, condições de existência e qualidade de vida que sejam condizentes com sua dignidade. Isso só acontecerá, no entanto, se o paradigma da ciência moderna for superado. Em síntese, a proposta de Boaventura de Sousa Santos pode ser assim resumida: A descolonização da ciência assenta no reconhecimento de que não há justiça social global sem justiça cognitiva global. A justiça cognitiva global só é possível mediante a substituição da monocultura do saber científico pela ecologia dos saberes: Saber Prudente: um saber sempre em diálogo aberto com as múltiplas culturas em relação de complementaridade; Saber Decente: aproximado das diferentes formas de vida que as respeite e as elucide sem colonizá-las; Saber Emergente: Considerar as diferentes formas de saberes, as criatividades experienciadas existentes no mundo para além da forma privilegiada institucional da ciência; Saber Urgente: trata-se de não fazer 59 EaD Enio Waldir da Silva ciência pela ciência, mas produzir saberes que unam as ansiedades individuais para diminuir as ansiedades de todos, especialmente que encaminhe alternativas para o sofrimento dos excluídos, dos que vivem em vulnerabilidade social. No livro Semear outras soluções – os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais (Santos, 2005) o autor esboça sete teses sobre a diversidade epistemológica do mundo. A ideia de Santos é apresentar algumas balizas para produzir debates sobre a natureza e o âmbito da diversidade de conhecimentos produzidos no mundo e sobre o modo como ela pode contribuir para a construção de projetos sociais de emancipação social. Vamos resumir estas teses: Tese 1 – A diversidade epistemológica do mundo é potencialmente infinita. Todos os conhecimentos são contextuais e tanto mais o são quanto se arrogam não sê-lo. Um sistema de conhecimento epistemológico que envolva as práticas sociais é a proposta da tese anterior. A ciência moderna requer sobre todos os aspectos um saber reflexivo sobre as ações e consequências das práticas sociais que possam ser aplicadas nos vários contextos do mundo. Tese 2 – Todo conhecimento é parcelar e as práticas sociais só raramente assentam numa forma de conhecimento. Os diferentes tipos de conhecimento, cujo valor prático tem um critério de verdade, devem dar relevância a toda atividade humana em que a questão epistemológica é aquela que questiona sobre as hierarquias dentro das constelações do conhecimento, tanto pela sua operatividade quanto pelas suas consequências. Tese 3 – A relatividade dos conhecimentos não implica o relativismo. O relativismo pode ser tratado aqui como a ausência de critérios de hierarquias de validade. Essa ausência recai sobre um vazio quando os diversos tipos de conhecimento são considerados com pesos iguais. Tese 4 – O privilégio epistemológico da ciência moderna é um fenômeno complexo que não é explicável apenas por razões epistemológicas. As transformações epistemológicas dentro deste processo assumem um caráter de pluralismo epistemológico que torna possível a democratização radical e a descolonização do saber e do poder. Não é possível pensar em modelos de transformação social sem pensar em proceder às transformações epistemológicas. 60 EaD sociologia do conhecimento Tese 5 – O pluralismo epistemológico começa pela democratização interna da ciência. Para que se possa democratizar internamente as ciências, é preciso reconhecer a sua pluralidade. Para isto, faz-se necessário promover um conhecimento capaz de apreender os diversos processos de construção teórica. Também se faz necessário, dentro deste processo de democratização da ciência, relacionar a comunidade científica com os cidadãos, entre os conhecimentos científicos e as capacidades cognitivas que sustentam a cidadania. Desta forma poderão desenvolver métodos que permitam estabelecer relações mútuas e influências recíprocas entre as partes e o todo. Tese 6 – A descolonização da ciência assenta-se no reconhecimento de que não há justiça social global sem justiça cognitiva global. A justiça cognitiva global só é possível mediante a substituição da monocultura do saber científico pela ecologia dos saberes. O colonialismo permanece hoje sob a forma de colonialidade do poder. Ela se manifesta entre norte e sul, entre o centro e as periferias, sob a forma de colonialidade de saber científico. A diversidade epistemológica do mundo não tem reconhecimento. Os saberes não científicos e não ocidentais, não são levados em conta, no máximo são tratados como conhecimentos alternativos. Essa condição os desarma e os torna vulneráveis. A ecologia de saberes seria a proposta adequada para a solução da descolonização da ciência, e um novo tipo de relacionamento entre o saber científico e outros saberes, pois garantiria assim a igualdade de oportunidade aos diferentes saberes. Tese 7 – A transição da monocultura do saber científico para a ecologia de saberes torna possível a substituição do conhecimento-regulação pelo conhecimento-emancipação. A ciência pode contribuir para a transmissão do conhecimento-regulação pelo conhecimento-emancipação a partir do momento em que estiver receptiva a sua democratização. Faz-se necessário construir um saber concebido como solidariedade para alcançar a emancipação social (Santos, 2005, p. 97-101). Para finalizar, segundo Boaventura de Sousa Santos a ciência é um exercício de cidadania e solidariedade e a sua qualidade é aferida, em última instância, pela qualidade da cidadania e da solidariedade que promove ou torna possível. Evidentemente que teríamos muitas outras abordagens para a Sociologia do Conhecimento, como a de Niklas Luhmann, Jürgen Habermas, Pierre Bourdieu, Norbert Elias, Edgar Morin, Zygmunt Bauman, Humberto Maturana, etc., mas preferimos a abordagem de Boaventura de Sousa Santos por estar no entremeio dos debates também apontados por estes autores e por ter demonstrado teses essenciais que brotam do interior dos movimentos sociais que ele acompanha. 61 EaD Enio Waldir da Silva Seção 2.2 O Conteúdo Esquecido pela Ciência: a afetividade Como assegura Pedro Demo (1997a), o conhecimento pode ser o distintivo principal do ser humano, pode ser virtude quando comparece como alavanca central da emancipação, em particular como estratégia de superação da misantropia (esta é entendida como miséria política, econômica, cultural, social e miséria de relações sociais e éticas). O conhecimento pode ser o método central da análise da realidade, conferindo ao ser humano a condição de intervenção consciente e competente, mas pode ser ideologia com base científica a serviço da elite, sobretudo quando vende a ideia de que é isento de valores. O conhecimento pode ser artimanha do ser humano, quando constrói consciência crítica para deturpá-la nos outros, usando ciência apenas em sentido estratégico. O conhecimento pode ser a perversidade do ser humano, quando é feito e usado para fins de destruição (Demo, 1997a, p. 299). Em sua ironia sociológica Demo vai dizer que: Tudo que é profundo, é passageiro; a intensidade transforma-se em extensão, se perdurar; vira rotina; a profundidade tem a lógica do momento, e no momento pode ser avassaladora, total, plena, não na extensão esticada; ser passageiro denota, ao mesmo tempo, a fugacidade da vida, mas, sobretudo, sua maneira própria de ser; passar não é vicissitude, é essência; o que é bom, acaba; o bom extenso, enjoa, satura, enoja; acabar é condição de qualidade, para não se esvair na rotina, que a tudo mata, porque não deixa passar; a coisa mais histórica que a história conhece é o desgaste no tempo; qualidade é a capacidade de se confrontar com este desgaste, impondo ao tempo, no momento, a intensidade que a extensão nega; a criatividade é uma dinâmica provisória, não uma situação definitiva; a criação mais profunda do ser humano não é uma sociedade acabada, mas por se fazer; toda instituição envelhece; por isso, viver é, essencialmente, renovar-se; quem se renova não deixa de envelhecer. Isto é implacável para um ser histórico, mas impõe à extensão temporal momentos de criatividade intensa; utopia é o afrontamento dos limites, dentro dos limites; buscamos a perfeição, sabendo que nenhuma história é perfeita; a perfeição da história é a oportunidade possível de aperfeiçoá-la; só pode ser momentânea a sensação de plenitude, dentro de uma história que não pode jamais ser plena; qualidade é essencialmente uma esperança, que vale sobretudo pela capacidade de mobilizar, fazer fé, comprometer, envolver; realizar-se é saber ceder; toda convivência participativa, se, de um lado, enriquece a pessoa, porque ninguém se realiza sozinho, de outro, estar juntos é estar cercado de limites; na comunidade, somos melhor, mas temos menos.2 2 Demo, P. Pesquisa qualitativa. Busca de equilíbrio entre forma e conteúdo. Revista Latino Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 6, n. 2, p. 89-104, abril 1999. 62 EaD sociologia do conhecimento Não há então um conhecimento puro, mas debater sobre ele é fundamental para que encontremos entendimentos que nos façam sempre mais humanos. Nesse sentido merece destaque a contribuição de Maturana (1998) para se pensar o conhecimento com um conteúdo quase sempre deixado de fora: a afetividade/emoção/amor. Maturana usou na Biologia o conceito de autopoiesis – autoformação – para indicar a característica de todo ser vivo de poder reagir, em seu meio, de maneira reconstrutiva, e não apenas passiva, como estaria dito no reflexo condicionado. Tomando o conhecimento que se constrói na escola é possível de dizer que talvez tenha sido esta a contribuição mais forte contra a tradição escolar do treinamento em apoio às teses de Piaget, por exemplo.3 Para este biólogo chileno, o conhecimento é uma construção da linguagem. A noção de linguagem trabalhada pelo autor é a referenciada e construída nas relações, que, por sua vez, são emocionadas. Na pesquisa do sistema nervoso foi formulando sua ideia de ser vivo como sistemas de organização circular, nos quais o que se conserva é a circularidade. Inaugura a concepção de autonomia do ser vivo, a autopoiése. Pensar o conhecimento a partir da autopoiese só é possível se entendemos cada vivente como sistema fechado, auto-organizado e auto-organizável. Segundo Maturana (1998), o que determina, em última análise, a organização do vivo é sua própria autopoiese, mas o que desencadeia é a relação que se estabelece entre vivo-meio-vivo. O organismo se autogere, mas só o faz na relação com outros organismos. Isso quer dizer que não é possível determinar quais as ações subsequentes num processo autopoiético. É possível, contudo, saber que o vivo age e reage diante das circunstâncias, uma vez que vai organizando seu conhecer a partir do próprio ato de viver, pois viver e conhecer são mecanismos vitais. Conhecemos porque somos seres vivos e isso é parte dessa condição. Conhecer é condição de vida na manutenção da interação ou acoplamentos integrativos com os outros indivíduos e com o meio. Os estudos de Maturana (2001) explicitam o sinônimo entre conhecer e viver. A noção de viver-conhecer está diretamente vinculada com o modo de se relacionar e de se organizar nessa relação. Não se trata de adaptação ao meio. O viver-conhecer na relação significa, ao mesmo 3 Em seus primeiros estudos de Medicina, no Chile e depois na Inglaterra, Maturana foi mapeando uma compreensão dos seres vivos como “entes dinâmicos autônomos em contínua transformação em coerência com suas circunstâncias de vida”. A busca aprofundada desse desejo de compreender melhor a dinâmica do ser vivo levou-o a estudar Biologia em 1956, quando inicia seu Doutorado em Harvard. Inicialmente sua busca perquiritória residia na neuroanatomia e fisiologia da visão. Ao longo de seu caminho investigativo foi traçando um quadro mais amplo de seu interesse biológico: o modo de operar sistêmico da neurobiologia e a organização sistêmica dos seres vivos. Mais tarde, suas pesquisas levaram-no à tese de que o visto é especificado pelo operar da retina, e não uma simples abstração do objeto material no qual a visão bate. Começou a pôr em xeque a noção absoluta da objetividade real. Maturana pauta-se por uma noção da Biologia em que as emoções possuem um papel fundamental no desenvolvimento do sistema biótico. Acentuando o papel das emoções no viver humano, foi descobrindo o operar do sistema na construção do conhecimento como ação biológica. Propõe a emoção como o grande referencial do agir humano. Ver mais sobre o autor em: Maturana, R. Humberto. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. São Paulo: Psy, 1995. ______. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 1998. ______. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: UFMG, 2001. 63 EaD Enio Waldir da Silva tempo, a criação/recriação desse espaço relacional, e de outros, e a criação/recriação do sistema em relação. Pode incluir, em algum momento, a adaptação, mas vai além dela. Dessa relação criativa, meio-sistema, é que emerge o social. Para Humberto Maturana, os desafios para construir o conhecimento centram-se na superação da valorização demasiada da razão desvinculada do sentimento. A sociedade moldada por este tipo de pensamento tornou-se mecanizada e o humanidade se encontrou sufocada por esta chamada instrumentalização da vida, distante do verdadeiro sentido do viver. A razão é, sim, uma característica importante da essência humana, porém a razão isolada do sentimento se torna fria e destrutível (1995). Cada indivíduo tem uma humanidade com uma estrutura lógica baseada no afeto. O afeto clama por unidade. Os seres humanos são seres autopoiéticos cuja força operante está nas emoções. Estas são disposições corporais que orientam as ações. Só aceitamos o racional se ele é premissa que entrelaça com o emocional. Foi a partir das emoções em si e do reconhecimento delas no outro que começaram os laços sociais. Descobriu-se como operá-las no seu sistema e se promoveu a construção do conhecimento como ação. Por isso a máxima sabedoria não é oposta à igualdade. A ciência só é importante quando promove a vida, quando elucida a vida. A emoção – afetividade – é central na história evolutiva humana. Nós, seres humanos, nos originamos na emoção e somos dependentes dela. As relações humanas que não respeitam as emoções ou não estão nelas fundamentadas, não são relações sociais. As emoções não são o que obscurece o entendimento, não são restrições à razão: as emoções são dinâmicas corporais que especificam os domínios de ação em que nos movemos (Maturana, 1998). Os seres humanos não são o tempo todo sociais, somente o somos na dinâmica das relações de aceitação mútua. Sem ações de aceitação mútua não somos sociais. O importante é o bemestar de cada um em conjunto com o todo e assim o bem-estar do todo a partir do bem-estar de cada um. O ter perde vez para o ser, isto porque nada pode superar o valor do ser que é único e por isso assume legitimamente o direito incondicional de elemento importante e insubstituível do processo de construção e concretização da vida ou do cotidiano social e por isso é preciso reconhecer-se como sujeito, pois sem a aceitação e respeito por si mesmo não se pode aceitar e respeitar o outro, sem aceitar o outro como legítimo outro na convivência, não há fenômeno social e nenhuma humanidade se realiza contra esta lógica, que jamais é a mesma em dois indivíduos. Por isso solidariedade não é misericórdia do outro ou para com o outro: é ação racional, científica que se liga à vida (Maturana, 1998). 64 EaD sociologia do conhecimento Quando ficamos atrelados ao interesse do capital desaparecemos como seres humanos, seremos em si um corruptor. A autoconsciência não está no cérebro – ela pertence ao espaço relacional que se constitui na linguagem. Então a autoconsciência surge quando o observador constitui a auto-observação como uma entidade ao distinguir a distinção da distinção no linguajar (Maturana, 1998, p. 28). A linguagem deve ser compreendida como espaço construído por ações que se tornam comuns. Em outras palavras, que esta comunicação não se trata da aceitação de mesmos conceitos. A noção corrente de linguagem que lida com os pressupostos da racionalidade e da estrutura cerebral linguística é entendida como lugar de leitura e interpretação dos signos. Não é mais a razão que fundamenta e embasa as ações e a comunicação, mas sim a emoção, que não pode ser abarcada pela linguagem enquanto construção racional, mas pela linguagem construída nas coordenações de ações consensuais (Maturana, 1998). O educar deixa de ser entendido como um ato da fala enquanto apresentação de quem domina determinadas informações pronunciadas como verdades e passa a constituir-se em comunicação de sistemas viventes nas ações comuns. Não existe intervalo no ato de educar no conviver. O ato pedagógico é assim entendido como toda ação que alguém realiza no conviver. Ao contrário de dispensar a especificidade pedagógica, esta perspectiva pretende tornar os espaços artificiais de educação mais plenos das experiências do conviver. O conhecimento passa a ser compreendido como organização do vivo nas relações que vai vivenciando, como fenômenos. O próprio ato de conhecer-viver se constitui em uma leitura da relação cognoscente-vivente. Por isso, nesta perspectiva, o conhecer-viver é elemento fundamental no processo de conscientização. Passa a ser uma consciência de si na relação, posto que na relação é que se estabelece a identificação do outro como legítimo outro. A escola precisa ser forte para combater as misantropias humanas (as misérias econômicas, políticas, sociais e culturais), as violências sociais (explosão do lado demens dos indivíduos) e para fortalecer os laços sociais que asseguram a ordem e a boa vivência. É preciso conhecer para viver, sem viver não se conhece, sem conhecer pouco se vive, viver é condição de vida na manipulação da interação ou acoplamentos integrativos com os outros indivíduos e com o meio. As interações sociais baseadas na obediência, na exclusão, na negação, no preconceito, não podem ser ditas sociais, pois agridem, negam a nossa condição biológica básica de seres dependentes das emoções, fazem a cultura do não reconhecimento e nos fazem sofrer. A democracia é uma obra de arte político-cotidiana que exige atuar no saber que ninguém é dono da verdade, e que o outro é tão legitimo quanto qualquer um. A democracia é uma conspiração ontológica que surge do desejo de viver juntos num país em circunstâncias nas quais o mundo que trouxermos será o mundo que viveremos juntos e que constituíra de fato este país. 65 EaD Enio Waldir da Silva Na dinâmica humana sempre se formam grupos. Isto está relacionado com as aceitações, com as conversações, com os encontros. A aceitação ética se constitui na preocupação com o outro, dá-se no espaço emocional e tem a ver com a sua aceitação. Por isso as novas concepções para o conhecimento que se queira promover deve partir das seguintes compreensões: – A solidariedade é próprio da lógica humana, não a competição; – A responsabilidade de cada um é primar pela qualidade individual para promover a liberdade de todos; – Hoje, como sempre e mais do nunca, precisamos viver juntos – iguais e diferentes; – A cultura do diálogo faz brotar a beleza da humanidade da vida, que existe em todo o ser humano; – O que existe não é medida para o que pode vir a ser construído; – Viver longamente, com saúde, feliz e de modo simples; – Conhecer é libertar as inteligências. Passaremos a tratar agora de um lugar especial no qual o conhecimento científico fez morada, se instalou, se reproduziu e continua a ser visado por todos: a universidade. 66 EaD Unidade 3 sociologia do conhecimento A UNIVERSIDADE E O CONHECIMENTO OBJETIVO DESTA UNIDADE •Recuperar o papel da universidade na produção de conhecimentos científicos, na edificação das culturas e orientação da vida social. Abordar sua situação atual e os desafios a ela colocados. AS SEÇÕES DESTA UNIDADE Seção 3.1 – O Que Foi e o Que é uma Universidade Seção 3.2 – A Universidade e as Ciências Humanas Hoje Seção 3.3 – Universidade Comunitária e as Ações Solidárias No começo de sua história, a universidade desempenhava uma função simples, de formação de cultura geral. Aos poucos, contudo, foram sendo agregadas outras funções, como a formação de profissionais para as diferentes atividades que socialmente foram se criando, a produção de conhecimentos e técnicas para as múltiplas necessidades sociais, o que a levava a ser articuladora cultural e integradora de indivíduos à sociedade. Nos últimos tempos foi agregada também uma série de atividades fora dos muros da instituição e mais próxima dos problemas sociais, chamada de extensão universitária. Seção 3.1 O Que Foi e o Que é Uma Universidade A universidade é uma instituição marcada pela diversidade, complexidade e pluralidade, fruto da reflexividade do mundo social em que está inserida. Estudos têm mostrado que a universidade é influenciada pelos diversos contextos socioculturais que a envolvem, que influenciam em seus objetivos e lhe proporciona sentidos. 67 EaD Enio Waldir da Silva Entende-se que ela, no entanto, apesar de ser diversa, complexa e plural, é uma instituição organizacional que guarda dimensões científicas específicas, tem sua especificidade institucional, por ser um lugar de produção sistematizada de conhecimentos que preparam homens para atuarem em lugares sociais e ao mesmo tempo contribui para a inserção social dos indivíduos. Ela está inserida na diversidade e complexidade de relações sociais, e ela própria é, ao mesmo tempo, uma relação social, expressão e orientadora de relações sociais. A dimensão social do conhecimento produzido e ensinado pela universidade mudou muito ao longo da História. Estudos mostram que a universidade assumiu diversas características no decorrer da história e que seu conceito estava relacionado à função social atribuída a ela. Assim, a Universidade Medieval, tutelada pelo Papa, preparava quadros para o funcionamento da Igreja Católica, como os especialistas em Filosofia, Teologia, Direito Civil e Canônico. Na Modernidade, na França e na Inglaterra, a revolução industrial e a consolidação do Estado Nacional fizeram com que a universidade se voltasse para a formação de profissionais técnicos e formação da elite governamental. No meio desta perspectiva se destacaram as universidades alemãs por instituírem uma maior reflexão conceitual da própria universidade, inserindo a concepção do nacionalismo, em que a formação dos profissionais deveria se dar com base nas ciências resultante de uma instituição voltada para a pesquisa científica e com uma autonomia especial. A universidade americana voltou-se para a formação de quadros científicos e massa de profissionais ligada ao projeto nacional e na América Latina ela serviu inicialmente aos colonizadores e logo depois a uma elite dominante. Boaventura de Sousa Santos (1986) analisa as realidades pragmatistas, tecnicistas e excludentes inseridas na vida da universidade e, ao mesmo tempo, propõe a ela um projeto democratizante e emancipatório. Como o principal problema da sociedade atual é a exclusão social, é este um dos principais desafios da universidade, que está em tensão com a sociedade, com o Estado e até mesmo entre si (por serem, também, instituições epistêmicas). Muitas reformas foram feitas para tentar amenizar, dispersar ou gerenciar essas tensões. Podemos citar alguma das principais contradições do gerenciamento universitário, segundo Santos (1986): A) Produção de alta cultura versus produção de padrões de culturas e conhecimentos úteis à industrialização (força de trabalho qualificada), o que a leva a uma crise hegemônica – descentralização intelectual: quando não desempenha funções contraditórias, leva os grupos a procurarem outros meios para preencher o déficit funcional. É a mais ampla das contradições, porque nela está a causa da exclusividade dos conhecimentos que produz e transmite, ou seja, se exige delas formas de conhecimento difíceis de incorporar com as concepções do liberalismo, que requer conhecimentos técnicos para ocapitalismo em expansão, em reconstrução. 68 EaD sociologia do conhecimento B) Hierarquização dos saberes especializados versus exigências de democratização e igualdade de oportunidades, o que a leva à crise de legitimidade – desvalorização da formação/diploma: quando as condições sociais não são aceitas, seus objetivos coletivamente assumidos são visualizados como não cumpridos. Isto é um espectro social dos destinatários, que são tanto os cidadãos quanto o capitalismo organizado. C) Autonomia institucional versus produtividade social, submissão a critérios de eficácia e produtividade de natureza empresarial, o que a leva à crise institucional – desvios da tarefa intelectual para a organizacional: quando não pode garantir seus pressupostos e quer impor a eles modelos organizativos vigentes em outras instituições reconhecidas como mais eficientes. Esta exigência provém da crise do Estado Providência e do capitalismo desorganizado. A universidade estaria, então, em crise, e o entendimento dela só seria possível contextualizando-a com as articulações que mantém com o sistema social. A sociedade atual vive com agravamento de crises em todos os sistemas. A universidade reage a elas, mas reações efêmeras diante da sociedade liberal que exige dela conhecimentos mais técnicos, que ela não podia incorporar. A sua crise atual é fruto do estágio do capitalismo desorganizado em que o Estado Providência se encontra (Santos, 1996, p. 191). As universidades, que durante muito tempo detiveram o monopólio da investigação científica, perderam em favor de governos e da indústria. Quando estes não encontram chão firme para suas ações vão buscar novamente na universidade as práticas dos cientistas para delas se apropriarem (Santos, 1989, p. 131). Isto também faz parte das condições da transição paradigmática em que a modernidade, ao mesmo tempo em que entra em crise, em colapso, como projeto epistêmico, também se abriu para múltiplas possibilidades, inclusive para o aparecimento de novas utopias. No século 20, as universidades se tornaram instituições centrais, lugar de inovações científica, social e mesmo política, uma vez que nelas são preparados os quadros futuros. É no seio da universidade que as grandes transformações da sociedade do século 20, seriam anunciadas ou preparadas (idem, p. 126). Em meados desse século modificaram-se os antigos sistemas universitários, que passam a ser reflexo da diversidade de aspirações e das reais inserções profissionais existentes. Crescem as demandas, as organizações internas se diferenciam, promove-se a abertura das disciplinas e se diversifica os modelos pedagógicos e tenta-se tornar a universidade um braço da instituição de políticas do Estado de Bem-Estar-Social. Nos anos 60 este contexto utilitarista e produtivista induziu a universidade a ampliar ainda mais as suas funções, para além das de investigação e de ensino. Viu-se aumentar o número de universidades e de alunos e docentes, o ensino em si se expandiu, as investigações universitárias ampliaram-se para novas áreas de saber. As novas funções da universidade foram favoráveis ao objetivo de integrar as comunidades, na perspectiva de desenvolvimento. 69 EaD Enio Waldir da Silva Outra investida para tornar a universidade uma instituição de caráter extensionista foi realizada em 1987, quando o relatório da OCDE atribuiu dez funções à universidade: educação geral pós-secundária; investigação; fornecimento de mão de obra qualificada; educação e treinamento altamente especializados; fortalecimento da competitividade da economia; mecanismos de seleção para empregos de alto nível, por meio de credencialização; mobilidade social para filhos e filhas das famílias operárias; prestação de serviços à região e à comunidade local; paradigma de aplicação de políticas nacionais (ex: igualdade de oportunidade para mulheres e minorias raciais); preparação para papéis de liderança social (Santos, 1996). Hoje, os sistemas universitários vêm experimentando evoluções diferentes. As diferenças caracterizadas no ensino superior são próprias da diferenciação que se dá em diversos níveis socioeconômicos e culturais: diferenciação no mercado de trabalho, requisitos para a formação, mecanismos de controle e cobrança, direitos, privilégios, orientações de valores e da vida acadêmica, a forma de sustentabilidade do ensino superior e a expressão do nível de desenvolvimento tecnológico dos países (Neves, 1999). Uma interpretação que contextualiza a universidade brasileira ao mesmo tempo em que aponta algumas saídas é a de Marilena Chauí. Ela observa que a universidade como instituição social aspira à universalidade, que tem a sociedade como seu princípio e sua referência normativa e valorativa... se percebe inserida na divisão social e política e busca definir uma universalidade (ou imaginada ou desejada) que lhe permita responder às contradições impostas pela divisão. Então, como instituição social, a universidade é um devenir, uma construção constante que está amparada numa concepção de possibilidade de destruir os fins capitalistas pelo que até agora ela atuou e de construir uma nova história como resultante de ações de seres humanos conscientes (Chauí, 1993, p. 216). Chauí (1999) também se opõe enfaticamente a esta tendência de adaptar a universidade ao mercado. Segundo ela, isso só reforça os privilégios, tira a autonomia do livre-pensar dos docentes, reforça a hierarquização esquizofrênica entre o que seja pesquisador e professor, reforça o poder burocrático, a perda dos ideais de serviço público, as ideias de “descartável” do pensamento pós-moderno, etc. Esta mercantilização da universidade a induz ser como uma organização, torna-a uma espécie de entidade isolada, [...] cujo sucesso e cujo fracasso se medem em termos de gestão de recursos e estratégias de desempenho e cuja articulação com as demais se dá por meio da competição... Sua eficácia e seu sucesso dependem de sua particularidade... Tem apenas a si como referência... Pretende gerir seu espaço e tempo particulares, aceitando como dado bruto sua inserção num dos pólos da divisão social, e seu alvo não é responder às contradições e sim, vencer a competição com seus supostos iguais [...] (Chauí, 1993, p. 219). 70 EaD sociologia do conhecimento Esta definição de universidade, enquanto organização é negada pela autora, porque, segundo ela, a universidade é tratada como uma mera montadora de automóveis ou uma rede de supermercados, próprio desta época de acumulação flexível e de desregulação trazidas pelo neoliberalismo (Idem, p. 218). Estamos passando pelo enfrentamento de uma ideologia que conduz a universidade de uma condição de instituição científica à de organização empresarial, atrasando ainda mais o avanço da estruturação de universidades democráticas. A autora apela para um combate lúcido em defesa da universidade pública ancorado nos fundamentos de uma ética democrática (Chauí, 1999, p. 5). A crítica centra-se sobre a ideologia neoliberal, que pretende dar rumos à universidade. O problema atinge mais intensidade quando se refere ao seu caráter público e a sua autonomia da mesma. Este também é tema de Roberto Romano, que realça a importância de a universidade ser pública estatal. Assim, para ele, a universidade é pública ou ela tende à anulação de seus fins. Também as ciências vão ficar cada vez mais separadas da ética e da moral e podem ficar isoladas a interesseiros imediatistas, incapazes de pensar num processo civilizatório que proporcione vida feliz para todos os homens (Romano, 1998): A universidade atual enfrenta o risco de se tornar empresa vinculada diretamente ao mercado, pois a multiplicidade de público a que ela procura se adaptar exige, cada qual, um tipo de resultado. Assim, torna-se difícil encontrar um modelo ideal de avaliação da universidade. O modelo que mais tem aparecido é o liberal, que concebe a universidade como um tipo particular de produção, cujo trabalho científico está relacionado com o sistema de clientes, lucros, resultados imediatos, mercadorias, etc., e, também como ótica de mercado burguês, excluindo os que não podem pagar (p. 33). O contexto social, político e cultural continuamente pressiona a universidade a cumprir funções que nem sempre lhe são próprias. Alguns autores esforçam-se em defini-la de forma a ultrapassar essas determinações práticas. Tavares dos Santos a vê como “uma agência formadora da ciência e da tecnologia, assim como configura um lugar de produção do imaginário coletivo, capaz de articular prática e simbolicamente a sociedade política e a sociedade civil” (Tavares dos Santos, 1998). Para este autor a função da universidade é sempre política, pois ao produzir um saber original, capaz de revolver sistemas de pensamentos, pelo qual se afirma a rebeldia cultural e a revolução científica, ela cria espaço para a produção do saber democratizante da sociedade civil e da sociedade política. 71 EaD Enio Waldir da Silva Como locus de pensamento, ela deve ser capaz de pensar o novo século no horizonte crítico de uma inovação cultural com base na cultura de resistência e no novo saber científico, em que se possa introduzir ideias de relatividade e descontinuidade na formação profissional e científica de homens capazes de responder à complexidade do desenvolvimento social. Isso significaria criar a contemporaneidade e universalidade do saber científico da sociedade global. Como locus de busca, de pesquisa, a universidade deveria tornar-se uma cidade de pesquisadores, na qual se faz a crítica da experiência imediata, se constrói problemáticas científicas, se faz diálogos rigorosos e respeitosos, se cultua o pluralismo teórico-metodológico, onde se enraíza a paixão pelo estudo do objeto, ao mesmo tempo em que se prioriza a lógica de criação (Tavares dos Santos, 1998). Com isso seria possível disseminar um habitus de pesquisa a partir da dúvida metódica, da formulação de hipóteses, disciplina para a pesquisa, organização flexível, questionamento e criatividade. Também seria possível produzir uma cidadania científica, como forma de participar da democracia social a partir da posição privilegiada da universidade; produzir um imaginário social que articule a sociedade civil e a sociedade política e que seja uma instituição plural plurifuncional, multifacetada e formadora de ciência e tecnologia. Esta seria uma utopia necessária à universidade para que ela ajudasse na superação da modernização excludente (Idem, p. 186). Outros autores vão dimensionar a função da universidade sempre ligada à construção do futuro. “A função da universidade seria a de trabalhar estruturas mentais mais avançadas e de remeter a herança cultural a um patamar crítico capaz de possibilitar a avaliação da inserção na escola e no mundo e de buscar antever as possibilidades do futuro” (Franco, 1998). Isso implicaria que, mesmo sendo um lugar de racionalidade científica, a universidade devesse fazer a construção intersubjetiva, no coletivo que produz, reproduz e espelha relações da sociedade. Isto é, ela poderia contribuir para emancipar as pessoas da ignorância de não saber avaliar as opressões e a propiciar vias emancipatórias que a ciência e a técnica produzida e disseminada na universidade trazem para a sua vida. Isto seria criar uma cultura crítica capaz de atribuir valor ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia, que levasse em conta o sistema de crenças, as tendências afetivas e cognitivas (Idem, p. 202). Tornar os conhecimentos acessíveis e instrumento de desenvolvimento da cidadania é uma obrigação que deve estar implícita à formação do bom profissional. Esta seria uma das melhores maneiras de socializar o conhecimento: formar a nova geração de cientistas pesquisadores e profissionais, capazes de saber diagnosticar os dias de hoje de modo a clarificar as forças que incidem sobre a ciência e o mundo da vida. 72 EaD sociologia do conhecimento Enquanto instituição política e pública, a universidade deveria produzir uma política própria, levando em conta as políticas estatais estabelecidas para o setor. Ela vive delimitada por políticas corporificadas em normas e regulamentos e por planos institucionais, mas isso não pode ser empecilho para a construção de entendimentos na tessitura da argumentação, das influências e das concessões resultantes de diferenciais de interesses, identidades e de culturas, que a põem em constante conflito. Em vista disso, ela deve promover um campo para as diferentes argumentações de modo a criar pontos comuns que permitam trabalhar os problemas e as soluções, partilhar o saber entremeado com concessões e firmar posições diante de interlocutores (Franco, 1998). Essa característica multifuncional exigiu gastos muito maiores, sem produzir fontes de recursos capazes de cobri-los, ao mesmo tempo em que o aspecto administrativo ficou prensado entre a necessidade de promoção do bem-estar de professores, alunos e funcionários e a necessidade de desenvolvimento da pesquisa e do ensino. Este problema tem ressonância diferente nos diversificados sistemas de ensino superior que temos no Brasil. Para Duhram, seria necessário uma avaliação mais profunda da universidade, que leve em conta a heterogeneidade das instituições e que promova uma política também diferenciada para as federais, as estaduais, as comunitárias e as privadas. Como um de seus principais problemas é a ausência de fundos suficientes para fazer frente as suas atividades, a autora encaminha algumas soluções: aumento do número de vagas; melhoramento do desempenho didático de forma a diminuir a evasão e a repetência; melhorar a qualificação do corpo docente; consolidação da atividade de pesquisa por meio do desenvolvimento de cursos de pós-graduação; captação de recursos mediante pesquisa, atividades de extensão e de prestação de serviços à população, etc., e completa observando que “uma instituição com fraco desempenho em pesquisa poderia compensar essa deficiência aumentando e melhorando o atendimento na Graduação ou na extensão, e vice-versa” (Durham, 1993, p. 28). Seção 3.2 A Universidade e as Ciências Humanas Hoje A universidade constitui-se em um espaço de formação e de realização de conhecimentos pela ação de ensino, de pesquisa e da extensão. Dessa forma, a ciência, a política, a economia, a cultura e a tecnologia estão implicadas na sua responsabilidade, tanto no seu interior, quanto 73 EaD Enio Waldir da Silva no seu exterior. Esta implicação se expressa de forma argumentada na ação formativa da própria capacidade de debater. Neste sentido a universidade é o nome que se dá para as versões dos saberes em franca discussão de argumentos que buscam convencer sem vencer. O processo comunicativo imbricado em sua institucionalidade é mais que enunciação, afirmação, análise ou convencimento, pois os argumentos devem buscar o outro, envolvê-lo e ser acessível a quem escuta sem dissolvê-lo nas retóricas aliciadoras. Todos têm direitos recíprocos à palavra e esta para se tornar argumento precisa de autonomia, de diferencialidade, de igualdade e da dúvida metódica em convivência na comunidade de fala. As provisórias conclusões, as fundamentações transitórias, geram novos debates, novas perspectivas, novos horizontes, novas fontes para as autocríticas coerentes e novos pontos de partida para a realização de novos conhecimentos comunicativos. O oposto do discurso da universidade é a fala que busca calar o outro, que busca o fundamento último, a certeza absoluta, a crença, exaltações, atemoriza, acua, ofende, agride, o silenciamento, competição, acomodação, repetição, instrucionismo. As Ciências Humanas, hoje, estão em desvantagem diante das áreas mais técnicas do saber. As universidades vêm cedendo às pressões externas de cunho político, ideológico e econômico, e também aos apelos, muitas vezes infundados, internos. Cada vez mais estão deixando de serem livres e segundo Derrida,1 o momento é propicio para a autocrítica dentro das universidades de forma a se reverem os princípios e objetivos, redescobrirem a si mesmas e de relembrarem o verdadeiro papel da universidade: produzir coletivamente e transmitir, comunicar abertamente os conhecimentos formativos de sujeitos cidadãos. Esta discussão importantíssima e vital para todas as instituições de ensino é discurso corrente nas áreas das chamadas humanidades que, segundo Derrida (2003), se tornaram o principal polo crítico e de reflexão fundamentada e objetivada do papel das ciências no mundo social. Para este autor, as Ciências Humanas deveriam ser o cerne teórico e político de uma instituição de ensino, chegando a ser impossível imaginar a erradicação da área humanística das universidades, o que vem ocorrendo. Como esclarece Marilena Chauí,2 órgãos dentro do MEC e o Banco Internacional de Desenvolvimento (BID) impulsionam tal fenômeno, com suas políticas técnicas e metodologias que pressionam as universidades para simples adequação e sujeição a estratégias e exigências globais, inclusive de setores que têm interesses estranhos, diversos e opostos à instituição. Derrida, Jacques. A universidade sem condição. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. 1 Chauí, Marilena. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Ed. Unesp, 2001. 2 74 EaD sociologia do conhecimento A dimensão formativa do caráter humanístico e interdisciplinar que deveria estar presente em toda a universidade é fundamental para a construção da cultura democrática participativa. A existência de elementos conceptivos e práticos da formação humanística da universidade instiga potenciais possibilitadores de espaços de diálogos em busca de sentidos ou de soluções para os problemas próprios da vivência democrática. Os discursos presentificados nos projetos institucionais se fundamentam nos entendimentos que se tem sobre os principais compromissos da universidade com os processos democráticos. Essas expressões têm a ver com as concepções de vida dos agentes universitários, os seus valores políticos, sua relação com os objetivos fundantes de suas histórias, de suas relações com as ciências e as profissões. Expressam também as inserções no entorno social, as condições de produção de conhecimentos, a mentalidade geral do momento histórico, as demandas objetivas da comunidade, etc. Mesmo que a universidade não seja uma microssociedade ela traz consigo a marca das relações sociais globais, produz e reproduz as condições societais com uma relativa autonomia e com regulações próprias. Sua especificidade no contexto da sociedade é, muitas vezes, razão das muitas ações planejadas. O conjunto das lógicas das ciências também pressiona a universidade para garantir suas reproduções. Então, os atores, as ciências e o mundo social querem reproduzir-se no interior da universidade, tornando-a um campo de forças e um campo de lutas. Este espaço de luta só existe pelos atores que aí se encontram com seus capitais simbólicos movimentados em relações objetivas. É a posição que estes atores ocupam nesta estrutura que determina ou orienta as tomadas de posição de onde ele fala e dispõe suas forças para dominar ou se defender da dominação.3 A universidade é, portanto, um espaço de jogo político, mas não deveria reproduzir o jogo perverso da política da sociedade, na qual os indivíduos lutam por privilégios dos espaços e não por projetos universais equilibrados e sustentados na diversidade dos interesses. No seio da universidade é onde se pode vivenciar o verdadeiro jogo democrático que pressupõe espaços abertos para o diálogo de entendimentos, as falas abertas e comunicativas e não um enredo em que somente asseclas entendem. Devem ser argumentos que envolvem o outro e não retórica que dissolve e alicia a fala do outro. Trata-se de vivenciar a autoridade do argumento com direitos recíprocos da palavra de atores autônomos que mesmo sendo desiguais convivem, compartem oportunidades, que fazem questionamentos, buscam debates, fundamentam razões, produzem abertamente os procedimentos a serem adotados, alcançam compreensões mútuas, duvidam rigorosamente, pesquisam, elaboram 3 Bourdieu, Pierre. Os usos sociais da ciência. São Paulo: Unesp, 2004. 75 EaD Enio Waldir da Silva as potencialidades do saber pensar de forma autônoma.4 É isso que torna uma universidade uma instituição e não uma organização burocrática inserida no jogo medíocre do mercado de bens artificiais que produzem falsos ou alienados consumidores. A democracia é um discurso muito presente não só nas Ciências Humanas. Elas, no entanto, congregam o panorama complexo dos debates contemporâneos a respeito da democracia que se reconhece e se constitui um repertório de argumentos novos que implicam um desafio epistemológico às ciências nas últimas décadas. Sociologicamente falando, a convivência social ou a simples relação social implica gerenciar desigualdades, pois sempre se entendeu que os seres humanos não conseguem apenas ser diferentes, querem ser dominantes. Chegamos a um novo tempo em que se compreende que precisamos quebrar com esta trajetória histórica e afirmarmos as possibilidades da vida em cooperação, em completudes, em solidariedades, sustentada social, política, econômica e ecologicamente. Isto faz com que as fronteiras dos saberes, das ciências, se tornem tênues, tanto que alguns autores, como Boaventura de Sousa Santos,5 aborda a biodiversidade de saberes que podem ser rivais, mas não inimigos, diferentes, mas não superiores ou inferiores, hierárquicos, mas não privilegiados, etc., e que são importantes para formar uma cultura democrática e participativa baseada na prudência, na emergência e na urgência. Na universidade se cruzam à diversidade de saberes elementares para se articular pensamentos alternativos que pensam mundos alternativos. São os saberes das ciências, das artes, da Filosofia, da religião e do senso comum, etc., que têm suas trajetórias, suas experiências, e são fortes a ponto de terem um equilíbrio de importância. Estes saberes estão na universidade e não adianta fecharmos os olhos para eles e argumentar que o que vale é só o saber da ciência. São essenciais para se produzir conhecimentos prudentes, emergentes e urgentes que possam enfrentar a crise institucional, procedimental e de legitimidade vivenciada nas universidades. A prudência nos leva a pensar na identidade da universidade (não confundi-la com outras instituições ou organizações); a emergência nos remete aos desafios de criar sempre, de inovar, de propor iniciativas novas, próprias para o tempo em que vivemos, e a urgência nos leva a observar as novas configurações de deslocamento da ciência, da tecnologia, dos processos produtivos e distributivos do mundo social que concorrem com a universidade e a sufocam. Se a instituição não criar procedimentos fortes e mais perenes, pode sucumbir à lógica do mercado com suas modas e reduzir seu papel a produzir ansiosos consumidores de produtos artificiais, preocupados apenas em conquistar lugares que lhes deem potenciais financeiros para ficar na fila dos bazares espalhados pelo mundo. Corremos o risco de tornar a universidade um aeroporto, em um bazar ou um hipermercado de diplomas. 4 Habermas, Jurgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002. Santos, Boaventura de Sousa. Semear outras soluções. A biodiversidade dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005 . 5 76 EaD sociologia do conhecimento A urgência de discussões e de ações que diferenciem a universidade de outros lugares sociais é tal que reconhecidos pensadores acadêmicos não têm relutado em expor suas opiniões em debates a respeito de assuntos de interesse comum, tais como a guerra, a violência, as minorias, as organizações internacionais, os blocos políticos e econômicos regionais, as ações em favor de relações socioambientais sustentáveis, os direitos humanos... Com isso estaremos bloqueando as forças que querem estabelecer re­gras mercantis para a produção do conhecimento, concedendo financiamentos semelhantes aos utilizados para a concorrência pública para a construção de estradas, por editais. Com efeito, para vencer a “concorrência”, os pesquisadores consorciados deverão demonstrar sua “capacidade técnica” de produção, por meio de indicadores claros e precisos, tais como o volume de sua produção anterior e a pre­visão dos produtos resultantes da investigação. Para garantir a continuidade da produção científica, os consórcios de pesquisa estabelecerão uma disciplina interna rígida, de cumprimento de tempos e movimentos, segundo o cronograma preesta­belecido e ratificado pela agência de fomento. Obviamente, caberá a cada equipe de pesquisa o desenvolvimento de parcela preestabelecida do trabalho científico: do pesquisador sênior ao bolsista de iniciação científica, passando pelos mestrandos e doutorandos, cada qual com sua tarefa, todos em ordem unida sob a supervisão do pesquisador-líder e todos vigiados pelos prazos das agências de fomento (Trein; Rodrigues, 2011). É o que acontece quando na universidade não se cria o diálogo. Não basta ter a visão, o olhar, há que se saber ouvir, escutar as vozes, sobretudo porque se constitui pela produção de sentidos dos atores que nela interagem e que para atuar ali não se isolam do mundo onde se inserem e onde está inserida a própria universidade. Somente se houver esforços organizados dos saberes interdisciplinares, próprios da formação humanística, é possível mostrar a diversidade dos saberes, das culturas, dos lugares sociais, das formas de poder. Assim, os indivíduos poderão se situar nas relações sociais de que eles e a universidade fazem parte, garantindo um espaço para que o aluno exercite sua cidadania nos fazeres de sua própria formação, participe do mundo que está sendo construído e para que este jovem (em sua maioria são jovens que saem do Ensino Médio) reforce seus potenciais de reflexão na coordenação de suas ações, fortaleça sua autonomia, sua emancipação e seus laços de solidariedade. Além disso, pode situar o mundo prático profissional na correlação de sustentabilidade social, política e cultural da vida econômica em que estamos inseridos ou na qual vão se inserir após a formação. O que promove a necessidade de se voltar a dialogar sobre a formação humanística na universidade são questões expostas por autores como Derrida, Habermas, Bourdieu, Boaventura e Chauí: a situação de mercadorização das aprendizagens, as ações para mera subsistência da universidade enquanto organização, a falta de verdadeiras comunidades de diálogos e compreen77 EaD Enio Waldir da Silva sões, a lutas dos atores internos para manter seus espaços, a crise de legitimidade dos diplomas, etc., que criaram a fragilidade de respostas às pressões externas e o interesse do mercado foi pouco a pouco entrelaçando-se com sua identidade. As Ciências Humanas e Sociais não poderão provar seu valor em meio a uma onda de demanda por eficiência, lucratividade e resultados, como se fossem arautos dos avanços tecnológicos a serviço do aperfeiçoamento do mercado e a criação de emprego. Jürgen Habermas6 indica o caminho da interdisciplinaridade pela teoria crítica da racionalidade, porém a racionalidade não é entendida por ele apenas no sentido cognitivo-instrumental, mas num sentido bem mais amplo, que inclui os elementos éticos normativos e estéticos subjetivos do mundo da vida. Além disso, tal racionalidade ampla, que possibilita a articulação interdisciplinar entre os saberes, tanto na sociedade como, mais especificamente, na universidade, exerce-se pela argumentação; por um processo argumentativo em que todos os implicados estão em igualdade de condições para argumentação que questiona e tematiza as pretensões das ciências específicas quando se apresentam como objetivamente neutras em relação a valores éticos. A ciência e a tecnologia têm na ética a sua condição de possibilidade. A estratégia da argumentação como ponto de vista ético é o que possibilita à comunidade humana em geral e à comunidade acadêmica em especial, se reencontrarem. A formação universitária é inspirada na pretensão essencial das Ciências Humanas de emancipação, de autonomia e de construção da cultura democrática e tem uma vantagem evidente: não fica a reboque do ópio do consumismo que leva o ser humano à miséria de sua existência. A Universidade, neste sentido, pode ter quatro dimensões institucionais: Como instituição social: complexo de relações sociais em que atores, com competência comunicativa argumentativa, partilham saberes científicos, sociais, culturais e filosóficos, assegurando formação expressa nas titulações para os indivíduos ocuparem lugares sociais, exercerem poderes. Como instituição científica: lugar de armazenamento das codificações linguísticas da produção sistemática de conhecimentos, as energias intelectuais e as tecnologias aplicáveis edificantemente na historicidade. Como instituição de ensino: articula processos de aprendizagens a partir das energias intelectuais históricas armazenadas nas bibliotecas, nos habitus escolares, nos procedimentos pedagógicos de seus docentes e para formarem profissionais; como instituição pública: espaço público legítimo da pluralidade de ideias promotoras do ideal da universalidade da humanidade da vida, das diferencialidades, das identidades e da complementaridade das vivências e culturas. 6 Habermas, Jurgen. A idéia de universidade. Processos de aprendizagem. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, S/L, S/E, Vol. 74, jan-abr. 1993. 78 EaD sociologia do conhecimento Como instituição comunitária: é uma comunidade de atores que preserva o principio da igualdade, da solidariedade, da sustentabilidade social, política, econômica e ecológica que compartilham regulações e vivências entre administradores, docentes, alunos, funcionários e comunidade; fundamenta-se na ampliação da esfera pública e nos interesses universais dos diferentes atores internos e externos; o fundamento das ações está na busca do bem comum e na emancipação humana.7 Sem querer depositar muita esperança ou responsabilidade na universidade (pois já existem outras instituições também fortes formadoras e produtoras de conhecimentos), podemos afirmar que ela tem um papel mediativo entre a ciência e a sociedade e insere-se na implicabilidade racional da modernidade. É muito difícil delimitar o seu raio de ação, além de produzir habilidades nas pessoas. Seu paradoxo está no seu potencial de colonizar o mundo da vida e, ao mesmo tempo, produzir espaço para reflexão de descolonização e construção de uma cultura mais comunicativa e menos instrumental. Contém em si o potencial de fazer brotar as forças práticas das perspectivas democráticas, intrínsecas aos conhecimentos, das inovações científicas e da razão reflexiva dos pressupostos da ética do discurso. Pode reconstituir de forma edificante as intencionalidades de emancipação humana que enuncia um novo paradigma em que a materialidade das práticas humanas promovam a liberdade, a inclusão social e o equilíbrio ecológico. Este poder está em seus espaços para a linguagem e para o agir comunicativo, que reunidos em uma perspectiva formativa, pode trazer a razão motivacional para se pensar a criação de uma sociedade justa. Faz parte deste processo pensar as condições formais do conhecimento, do entendimento linguístico e da ação (seja na vida cotidiana, isto é, nos planos das experiências organizadas metodologicamente ou dos discursos organizados sistematicamente) e reconstruir as pressuposições e condições pragmático-formais do comportamento explicitamente racional. A universidade não pode mais produzir um agir estratégico de manipulação, transmissão de informações e indução de comportamentos e provocar a violação das pressuposições pragmáticas do entendimento linguístico. Trata-se, agora, da questão de construir uma racionalidade comunicativa na qual sejam reabilitadas as estruturas de comunicação, em que seja valorizado o ato de fala e sejam resgatadas, discursivamente, estas pretensões, para descolonizar o mundo da vida, além de criar as condições ideais de falas.8 Os processos organizados de aprendizagem, no interior das universidades, podem carregar a incumbência de formar uma racionalidade baseada na competência comunicativa, no poder do argumento e na vontade de participar de diálogos que busquem cooperativamente compreensões. Por outro lado, a universidade é uma organização que sedimenta sistemas parciais funcionalmente Habermas, 1993. 7 Silva, Enio Waldir da; Frantz, Walter. As funções sociais da universidade: o papel da extensão e a questão das comunitárias. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002. 248 p. (Coleção Ciências Sociais). 8 79 EaD Enio Waldir da Silva especificados de uma sociedade altamente diferenciada. Exige-se uma excessiva pretensão de exemplaridade para a universidade. É irreal que ela se sustente pela forma comum de pensar dos seus membros. O seu âmbito operativo não se limita ao horizonte de mundo partilhado por seus membros e suas formas de aprendizagem científica organizada não dependem de um feixe convergente de funções advindas de um modelo dominante. Múltiplas funções são assumidas por diferentes pessoas em diferentes lugares institucionais e com diversos pesos relativos. Todos juntos, fazendo, de uma ou de outra forma, um trabalho científico, preenchem, não uma função, mas um feixe de funções que podem convergir e articular-se entre si e formar uma comunidade comunicativa e pública de investigadores com conteúdo igualitário e universalista presente nas formas de argumentação científica. Os processos universitários deveriam viver da força estimulante e produtiva de um encontro discursivo que traz consigo a “nota promissória” do argumento surpreendente e da autogestão participada. 9 É nessa perspectiva que entendemos que a universidade mantém uma estrutura que garante uma formação cidadã com pretensão de universalidade, e, assim, ela consegue assentar sua identidade e garantir que suas funções sociais não possam ser subsumidas no mercado de bens materiais. Sobretudo porque ao serem ministrados componentes curriculares da área humanística, em todos os cursos da universidade, tem-se a possibilidade de debate, pela razão, das diferentes concepções de natureza, de vida, de universidade. Pelo diálogo e pela interlocução das diferentes áreas do conhecimento busca-se o entendimento e a universalidade de forma crítica e reflexiva, viabilizando-se o entendimento, em que a produção de sentido se dá não pelo interesse particular, mas pelo interesse da coletividade.10 A crise dos paradigmas, a relação teoria-prática, a educação crítica, a causa dos movimentos sociais, a razão cooperativa e solidária, a prática política nas esferas públicas, o desenvolvimento social, o equilíbrio ambiental, etc., são seus temas principais, abordados pela formação humanística. Justamente estes temas, entretanto, não são muito apropriados para vender análises ou “soluções” para as crises do capitalismo. A ética da formação humana teima em não morrer, porque foi fundada nos valores para além do utilitarismo prático de inserção. Querer isto nada tem de ultrapassado e brilha na rede tecida para garantir os esforços em mudar o mundo. Na realidade prática e utilitarista, os individualistas, sob o prazer do consumo, pouco querem mudar. Outros desejam uma mudança que significa sair da exclusão do consumo e inserir-se nele. Os seres humanos construíram oportunidades de sonhos como nunca! Os mais miseráveis sonham 9 Idem. 10 Dalla Rosa, Magna Atella C. A universidade contemporânea: percursos da Unijuí. Dissertação de Mestrado. Unijuí, 2005. 80 EaD sociologia do conhecimento com essas possibilidades, com as mesmas coisas dos ricos! Não veem mais a contradição, sob a ótica de “classe”, mas de consumidor individual excluído. O negócio é incluir-se: por um cursinho, pelo furto, pelo crime, pela escola, etc (Frantz, 2005). A situação é tal que muitos intelectuais chegam a fazer apelos para que a universidade não caia na onda do pragmatismo, na volúvel vala do mercado, como observam Trein e Rodrigues: Um mal-estar assombra a Academia: o mal-estar provocado pelo fetiche do conhecimento-mercadoria e o seu canto de sereia − o produtivismo. Professores, pesquisadores e estudantes universitários, e até mesmo os chamados “gestores de Ciência & Tecnologia”, enfim, a Academia, parece estar desagradada e, em alguma medida, degradada pela direção e pelo ritmo do desenvolvimento das transformações em curso no chamado sistema brasileiro de ciência e tecnologia. Em que pesem os inúmeros depoimentos e estudos que vêm demonstrando os limites desse processo e suas nefastas conseqüências pessoais, institucionais e científicas, os membros da Academia parecem igualmente convencidos da inevi­tabilidade dessa marcha forçada ao Desenvolvimento Científico & Tecnológico e também de suas proclamadas finalidades “sociais”. Contudo, não podemos concordar que o prolongamento, sob formas cada vez mais aperfeiçoadas, do atual modo de produção do conhecimento científico conduzirá a sociedade brasileira – enfim – ao télos de uma Economia Competitiva, pela mão do Desenvolvimento Científico & Tecnológico. Nesse sentido, é urgente que nos organizemos coletivamente para dissolver os fantasmas que nos assombram (2011).11 Ainda resta uma esperança se as universidades garantirem sua autonomia de optar por outras vias mais próximas da responsabilidade social e não do irracionalismo do mercado. É o que se objetiva nas universidades comunitárias, tratadas no texto a seguir Seção 3.3 Universidade Comunitária e as Ações Solidárias As Ciências Humanas vêm fazendo um esforço para demonstrar que a solidariedade é uma das características comuns dos sentimentos humanos, é um dos elementos universais presentes na lógica da humanidade dos indivíduos e não a competitividade, como vinham defendendo as concepções liberais da modernidade. Trein, Eunice; Rodrigues, José. Espaço aberto – O mal-estar na Academia: produtivismo científico, o fetichismo do conhecimento-mercadoria. In: Revista Brasileira de Educação, v. 16 n. 48 set.-dez. 2011. 11 81 EaD Enio Waldir da Silva Quando essa força humana de solidariedade é percebida e desenvolvida, vemos brotar a grandeza da igualdade humana. Por isso, o processo educacional escolar deveria ser a terra fértil de onde brotaria esta força emancipadora, no entanto muitas outras forças atravessaram as práticas educativas e podaram a árvore da liberdade e, em muitos casos, torrando suas folhas e queimando seus galhos. A universidade, como um lugar escolar da aprendizagem da universalidade da vida, precisa ser entendida, hoje, como uma instituição que atua para além dos fundamentos da ciência e da educação escolarizada. Ela se envolve também com a situação de exclusão dos indivíduos, dos bens culturais produzidos pelas civilizações, pois o fundamento de uma instituição democrática não é construído em meio a circunstâncias opostas aos princípios de liberdade e da solidariedade. Nesse sentido, não somente seus alunos deverão ser os únicos a se beneficiar de suas ações. Esse entendimento permeia os novos diálogos sobre o papel da universidade hoje e subjaz ao novo sentido da extensão universitária, integrada ao ensino e à pesquisa. Ou seja, a universidade dialogal estará fazendo educação científica, para além dos costumeiros procedimentos escolares, quando ela democratizar a produção e a distribuição dos conhecimentos, levando e buscando os saberes fruto das experiências das ações solidárias de indivíduos e grupos (Silva, 2010). Evidentemente, a universidade não está acima ou fora da realidade política, social, econômica e cultural da sociedade, mas não necessariamente precisa estar submetida a essa realidade, como se somente o que existe fosse possível de existir. Sua existência diz respeito muito mais ao futuro do que ao presente. E foi a imaginação de um futuro mais promissor que levou muitos atores da universidade a provarem, com argumentos sólidos, que a lógica humana não é apenas constituída de concorrência e de evolução competitiva, e sim de lógicas solidárias. A grandeza da História humana está marcada pelos momentos em que houve ações coletivas solidárias. Quando a humanidade apenas competiu, se corroeu, entrou em violência, guerras e decadências. Por isso, recuperar os princípios que ligam indivíduos a indivíduos, grupos a grupos, sociedades a sociedades é um dos papéis nobres da universidade. Em termos práticos, não se pode esperar mais do que a universidade pode fazer como instituição científica, formativa, social, pública e comunitária. Ela não é o Estado, não é um movimento social, uma Igreja, um partido e nem uma empresa. Pode, no entanto, manter boas relações com todos esses setores, que têm uma excelente expectativa sobre ela. Um dos exemplos ilustrativos dessas expectativas é o movimento de instituições em defesa da promoção da inclusão social de populações vulnerabilizadas pela pobreza, por meio da disponibilização de tecnologias sociais. Basicamente se desafia a universidade a articular a extensão, o ensino e a pesquisa em favor da produção de tecnologias sociais para segmentos populacionais excluídos. 82 EaD sociologia do conhecimento Defende-se que a extensão universitária deve ser ela própria uma metodologia de ação da universidade atual, uma atividade que é meio (ação coletiva para resolver problemas) e ao mesmo tempo fim (geradora de tecnologia e conhecimentos). Como meio e fim ela procura criar condições para os entendimentos das vivências coletivas e do papel dos saberes sistematizados (científicos) e dos saberes experienciados (comuns) neste processo. Ou seja, além de reposicionar o papel da ciência e tecnologia na sociedade, a extensão também busca outros saberes para integrar as ações planejadas, edificar as ciências, desafiar as tecnologias e para entender e ajudar a resolver problemas da população. A extensão é fruto da proposta de universidade que as instituições de ensino superior carregam. Como tal, para ser universidade, precisa de unidade interna (uni + versões). Sem a interação interna que forma os tendões para “ex-tender” (“tender” – tendões – que se esticam – extensão) não tem como ir ao outro, para fora de si, para a sociedade. Sem o reconhecimento de si não há como reconhecer o outro e nem formar laços de unidade (universidade e sociedade). Externamente, as universidades têm dificuldades de buscar parceiros francos que possam atuar de modo edificante para as ciências e para promover desenvolvimentos recíprocos. A universidade e a sociedade precisam dialogar, não podem ficar isoladas uma da outra. Efetivar esse diálogo, no entanto, é um grande desafio, dadas as complexidades inerentes às instituições, aos setores sociais e às funções dos campos nos quais os agentes sociais estão inseridos. Um dos elementos fundamentais desse diálogo é a participação direta, aberta e franca. A compreensão do tipo “participação” é também necessária para a efetivação dos interesses na universidade, no mundo escolar, nos setores sociais. Participar é um grande desafio diante da gramática do social, da gramática das ciências e da complexidade da urgência e da emergência do tempo em que vivemos. Como uma das qualidades da democracia, a participação não implica apenas a presença física dos sujeitos nas instâncias planejadoras, decisórias e de execução das ações. É preciso que se participe de forma qualificada pelo uso do argumento e de informações, de fala e de escuta, ou seja, precisa-se criar uma prática de diálogo que assegure a essência das relações criativas dos saberes diferenciados. Precisa-se de disposição para falar e ouvir, entendendo e fazendo esforço para que o outro a entenda, sinceridade dos interesses, respeito pela fala do outro, ambiente apropriado para a fala, construção coletiva dos entendimentos e a formulação da argumentação que vai orientar as ações coletivamente planejadas. A universidade deve possuir essas capacidades comunicativas e a consciência dos contextos políticos, sociais e culturais, pois somente assim é possível se efetivar o processo participativo de fato. Se tivermos espaços de falas os entendimentos mútuos poderão acontecer e se ampliar, fundamentando a universidade como dialogal e potencializando os setores sociais para uma vida emancipada. 83 EaD Enio Waldir da Silva A extensão é, pois, para nós, esse espaço apropriado de diálogo com a comunidade e é um método que parte de um sujeito, a universidade, que não é instituição colonizadora, e sim socializadora. Traz a força institucional de ação e reflexão, espaço de poder compartilhado, exercida pelas mais diversas formas, por meio das mais diferentes áreas e campos de saberes. A sociedade, representada pelas diferentes necessidades e interesses de pessoas ou grupos sociais, possui grandes expectativas com relação à universidade, especialmente quando se trata de desenvolvimento regional e organização de comunidades para o debate de seus problemas e necessidades. É aí que se localiza um dos espaços concretos da extensão universitária: na qualificação dos cidadãos, seja para o trabalho, para a política, para a cultura, entre outros. Enfim, a extensão é um processo pelo qual a universidade constrói procedimentos articuladores de seus atores internos, em processos comunicativos, para atingir seus fins, sua razão democrática e para promover relações cooperadas com outros setores sociais, que fortaleçam identidades, solidariedades e a qualidade de vida. Embora idealista, essa concepção de universidade e de extensão está por trás dos projetos de extensão da Unijuí e aparece nas exposições dos seus relatórios finais. Ao mesmo tempo, orienta os estudos dos grupos que vão atuar com populações em vulnerabilidade social. Interessa agora é ver como o conceito de solidariedade pode ser o fio condutor desta perspectiva. 3.3.1 – A Solidariedade Como Meio e Fim da Ação Universitária Foi a emergência do mercado capitalista que destruiu grande parte dos laços de solidariedade, pois transformou as cidades em lugares de concentração de propriedades imobiliárias, de trocas e de acumulação de lucros. Foi no capitalismo que mais se atacou a cultura de solidariedade e confinou o homem nos cálculos de benefícios particulares e concorrenciais. A pintura, a beleza das casas, a poesia, a prosa de amigos, a organização das ruas, dos teatros, etc., poderiam ter tido outro rumo, criado outra imagem das vivências humanas aproximadas. Em vez disso, o mercado e suas leis mergulharam as cidades na tristeza e na fúnebre aquisição de bens, matando a solidariedade da alegria. Somos, no entanto, aquilo que fomos e apesar da avalanche da lógica capitalista, a solidariedade existe, embora para alguns, que só conhecem a cultura do competir, vida solidária somente exista em lendas. Há lugares em que grupos produzem riquezas para poderem melhor aproveitar sua vida, torná-la prazerosa, tornar as trocas uma forma de relação social. Alguns descobriram que a vida podia ser de outro modo e criaram alternativas que davam sentido ao direito social natural: o direito de viver segundo a natureza social dos sujeitos, pois sofremos quando o outro sofre e lutamos para diminuir o sofrimento dele, nos dedicamos ao outro como nos dedicamos a nós. 84 EaD sociologia do conhecimento Aristóteles também dizia que o homem é um animal político por natureza e imaginava que a cidade iria somente aumentar esse potencial e realizar a justiça, por que esta é fruto da razão humana. Muitos buscam no outro os elementos de igualdade, como a amizade, a compreensão, a solidariedade e, quando encontram as diferenças, respeitam-nas e buscam formas de saber tratá-las, conviver com elas. As diferenças não podem ser fundidas numa unidade abstrata, mas numa cooperação de diversidades e numa multiplicidade de relações originais, que não foram totalmente perdidas, pois a lógica humana ainda persiste. Esta lógica clama por unidade, integração, respeito, dignidade e felicidade como parte da livre sociabilidade e do direito de cada um ao reconhecimento (jus naturale cive sciale) e é a sociabilidade que une esses grupos num todo sem que jamais esse “todo” se imponha às partes, mas antes viva dessas multiplicidades (Duvignaud, 1986, p. 84). Essas diferencialidades e igualdades são percebidas pelo grupo da universidade que vai aos setores excluídos. Ali se percebe uma sabedoria subjacente, não colonizada e nem colonizadora. E, se os laços vivos da liberdade persistem contra a lógica perversa do aprisionamento do lucro imediato, não há por que, como assegura Habermas (2001), nos desesperarmos com o poder, a razão e o Estado. Estamos vivos, pensantes e capazes de linguagem, na universidade, na rua, na associação, na comunidade, então tudo pode ser criado. Como destaca Boaventura de Sousa Santos (2004), existem muitas experiências de vidas emancipadas espalhadas por aí, necessitando serem unidas em uma nova alternativa de vida, em uma nova epistemologia e na utopia da igualdade, que continua viva. Essas práticas solidárias existentes não foram ainda acompanhadas de conhecimento científico. As ações de aprendizagem realizadas pelas universidades precisam reconhecer os laços que integram os sujeitos, pois a vida microscópica dos grupos nem sempre segue as divisões eleitorais ou econômicas. A convivência (e a solidariedade), despida de seu caráter mítico, corresponde a essas associações de indivíduos que suscitam laços, indubitavelmente passageiros e frágeis, em torno das refeições tomadas em comum, da música, da dança, ou, simplesmente, de uma ligação amigável, laços de vizinhança, de bairros – para além dos tradicionais laços familiares, de trabalho, de clubes, universidades, etc. Ali se cultiva a afetividade, o prazer, a respeitabilidade e a autoridade, que raramente se cristalizam em organizações ou associações ou seitas. Os homens não agem somente porque estão presos a uma situação tornada insuportável, mas também porque estão ligados a determinadas visões do possível. As situações que ainda não foram vividas mobilizam mais forças do que constrangimentos, pois a natureza social do homem leva-o a imaginar sempre um ideal, a ter sempre uma expectativa do outro e a aspirar laços para além daquilo que recebeu quando nasceu (Duvignaud, 1986). 85 EaD Enio Waldir da Silva Ao recuperarmos aqui o termo solidariedade, não queremos confortar a consciência de uns ou justificar esmolas da má-vontade de outros. Qualquer expressão racional que esteja permeada pela dignidade humana sabe que o pluralismo da vida coletiva não pode mais sofrer ações para se apagar. Os laços de sangue, de lugar, de convivência precisam ser renovados e fortalecidos. Os potenciais de solidariedade existem em todos os homens, embora adormecidos em muitos ou sem espaços para se expressar em outros. Esses potenciais, porém, nem sempre aparecem ou emergem espontanea ou voluntariamente, necessitando de um contexto preparado especialmente para isso. Um dos papéis do processo educativo é fazer brotar essa força solidária e organizar espaço e tempo para que ela se desenvolva nas vivências coletivas. Não é só a educação escolar, porém, que se organiza com essa finalidade. Nos últimos tempos, criaram-se muitas instituições e organizações que pressupoem a construção de consciências solidárias, cooperativas e associativas capazes de resolver os principais problemas de sustentabilidade social, econômica, política e ambiental das coletividades e indivíduos em vulnerabilidade social. É o caso das Incubadoras de Economia Solidária, que são resultados dessa cultura de solidariedade, que tenta emergir e ganhar vida social. Elas atuam no sentido de promover cidadania, trabalho e inclusão social, baseadas nos princípios e valores da Economia Solidária, a saber: cooperação, autogestão, solidariedade, valorização do trabalhador e desenvolvimento sustentável. Na universidade falta maior teorização dessas práticas para que elas possam ter um reflexo mais amplo em seus fins: a produção e socialização de conhecimentos, de tal forma que transforme essas energias emancipatórias dos grupos incubados, que começam, sob a forma de movimentos por sobrevivência, a se converter em iniciativas econômicas solidárias. No contexto da economia regional há possibilidade, pelo tipo de produto com que lidam e seu impacto ambiental e na organização urbana, de esses empreendimentos incubados transformarem-se em uma verdadeira economia cooperativa, com uma rede de apoio que permite a manutenção e expansão como parte dela: bancos, governos locais, projetos de pesquisas tecnológicas, programas de estímulo ao emprego [...]. De parte da universidade, cujas características também são de cooperação solidária, poderá ser uma grande parceira na organização e expressão das tecnologias sociais emergentes, projetos de pesquisas focados, estudos emergentes, monitoração de desempenho da autogestão, instituição de tecnologias, formação de trabalhadores, atualização de conhecimentos, informação sobre sistemas de produção, finanças, comercialização, cadeia coordenada de fornecedores e compradores mútuos, divulgação de produtos, manutenção das decisões participativas do grupo nos parâmetros da administração e redistribuição dos lucros das associações, busca de cooperação entre o Estado, instituições e rede de consumidores... 86 EaD sociologia do conhecimento Algumas fontes reflexivas servem para manter nossa postura cultural de extensionistas da universidade e para criarmos entendimentos da solidariedade que possa mobilizar grupos ou amparar projetos destinados a sujeitos sociais com muitas diferenças nos modos de vivência, angústia presente em muitos atores que atuam na economia solidária. Habermas (2002) contribui aqui com sua discussão no processo de formação de uma nova razão emancipatória, que somente aconteceria pelos entendimentos construídos nos diálogos francos. A solidariedade, então, estaria presente e expressa nos diálogos para entendimentos formadores de razão pública. Segundo este autor, na razão pública moderna, tudo aquilo que podia ser referido como expressão da inteligência humana passa a expressar modelagens técnicas para fazer dar certo o produtivismo, os fins da economia e da administração técnica do poder (Estado), empresariando mercadologicamente todas as ações coletivas. A ciência, a técnica, a educação, o Estado, o Direito e a cultura passaram a ser a linguagem do poder dominante. Habermas (2002) argumenta que, nos séculos 19 e 20 houve a divisão entre as esferas privada e pública: as instituições privadas assumiram cada vez mais o poder público, ao passo que o Estado penetrou no domínio privado, fazendo valer os princípios do mercado. À medida que a esfera pública incorporava uma base de participantes mais ampla, mais se acentuavam as desigualdades presentes na sociedade civil, de modo que o processo do debate público crítico em torno de um interesse geral objetivo foi se convertendo numa negociação de interesses conflitantes. Ademais, com a ascensão de redes de comunicação de massa cada vez mais densas e centralizadas, os canais de comunicação tornaram-se mais regulados, e as oportunidades de acesso à comunicação pública ficaram sujeitas a uma pressão seletiva ainda maior. A consolidação do poder da mídia e sua confluência com interesses econômicos e políticos impulsionaram uma esfera pública na qual a informação foi dando lugar ao entretenimento e os processos comunicativos críticos cederam espaço às representações voltadas ao comportamento conformista. A esfera pública se desenvolveu no âmbito de uma “arena infiltrada pelo poder na qual, mediante seleção tópica e contribuições tópicas, se trava uma batalha não apenas para influenciar, mas também para controlar os fluxos de comunicação que afetam o comportamento, na mesma medida em que tais propósitos estratégicos são dissimulados” (Habermas, 2000). As forças do capitalismo tardio minaram ainda mais o potencial emancipatório da esfera pública, embora esta, baseada na sociedade civil, ainda permaneça em alguns enclaves, desperdiçada ou desprezada. É este, também, o novo desafio das Ciências Sociais: pesquisar, trazer esse potencial para se estabelecer precondições para uma mediação discursiva ideal, uma vez que se encontram espraiados no mundo da vida, nas associações civis, grupos de interesses e instituições voltados à formação de consensos propiciadores de ações coordenadas pela política. 87 EaD Enio Waldir da Silva Por essa razão a esfera pública está para além do Estado e nas entranhas da sociedade onde estão os indivíduos com linguagem, capazes de crítica e produção de entendimentos para ações interconectadas. É neste sentido que se constata a necessidade de formalizar ou de criar espaços institucionalizados para discussões deliberativas, com regras procedimentais que garantam a razão pública dos interesses e possam facultar atos discursivos ideais e que consigam livrar os discursos de instrumentalismos implícitos em diferentes capitais culturais portados pelos indivíduos. O único poder que deve prevalecer nesse espaço é o da fala argumentada. Tem-se a igualdade de forças das vozes motivadas para o entendimento. As dimensões ideológicas, multiculturais e emocionais das linguagens tornam-se públicas e podem ser objeto de diálogo para que, no final, prevaleça a dimensão racional das razões públicas e suas motivações locais, nacionais ou globais. De qualquer forma, a nova esfera pública seria expressão de espaços semelhantes a condutos comunicativos estimuladores do imaginário social, que propiciam a construção de sociedades mais comunicativas reunidas em torno de expectativas coletivas. Trata-se, então, de uma nova ideia de república (razão pública) que tem por base a autodeterminação da comunidade, que encaminha seus procedimentos para serem institucionalizados, compatibilizando administrações complexas, racionalidades e participação. A instância geradora de poder legítimo é a esfera pública, a dimensão da sociedade onde se dá o intercâmbio discursivo. Esse poder comunicativamente gerado tem primazia sobre o poder administrativamente gerado pelo Estado, não só normativamente, mas porque o segundo deriva do primeiro (Habermas, 1995, p. 45). No caso de Habermas (1995), a universidade não pode deixar de ser uma protagonista do diálogo que vai em direção ao seu entorno e provoca a motivação dos atores para expressar entendimentos da pragmática vivenciada. Seus atores precisam também estar movidos por essa vontade de entendimento e de ação coletiva para realização de interesses universais: no nosso caso, o tema do diálogo proposto pela universidade seria a vida em solidariedade. Boaventura de Sousa Santos (2002) nos mostra que as alternativas de produção não capitalistas não são apenas econômicas: o seu potencial emancipatório e suas perspectivas de êxito dependem, em boa medida, da integração que consigam entre processos de transformação econômica e processos culturais, sociais e políticos. O êxito das alternativas de produção depende de sua inserção em redes de colaboração e de apoio mútuo, em que as ansiedades individuais convergem para as universais, traçando mapas para fazer emergir soluções alternativas (posto que a diminuição das ansiedades individuais só é possível com a redução da ansiedade de todos). A Economia Solidária teria potencial emancipatório e suas perspectivas de êxito dependem, em 88 EaD sociologia do conhecimento boa medida, da integração que consigam entre processos de transformação econômica e processos culturais, sociais e políticos. Dependem também de sua inserção em redes de colaboração e de apoio mútuo. A dimensão de solidariedade se coloca aqui com mais ênfase nas interconexões (redes) dos indivíduos postados em suas atividades de produção e distribuição, pois estas já são fruto de formas alternativas de conhecimentos. Colocá-las em rede solidarizaria os êxitos e o fracasso, produzindo novos saberes e novas alternativas solidárias que sejam fortes e críveis o suficiente para se contrapor à força da lógica capitalista (Santos, 2002, p. 64-74). Percebe-se, então, que o conceito central aqui é a solidariedade. Podemos constatar isso também em Amartya Sen (2000), que nos afirma que a solidariedade é uma situação concreta que alimenta uma dimensão ontológica do ser humano: Como tudo está interconectado, também na vida social a reciprocidade é irremovível e faz parte da condição humana. [...] É também atitude, compromisso político e ético com o destino em comum que une a vida planetária. A mundialização é um processo de crescente interdependência, onde o planeta torna-se um sistema fechado, formado por bens comuns e indivisíveis, fundamenta o projeto de uma globalização solidária. Solidariedade é a nova razão que emerge da compreensão que nossas esperanças somente serão satisfeitas na conexão com as esperanças dos outros [...] Neste sentido, recuperar a ideia de solidariedade é enraizar a cultura da responsabilidade. Amartya Sen (2000) assim se pronuncia sobre esse tema: Essa questão da responsabilidade suscita outra. Uma pessoa não deveria ser inteiramente responsável por aquilo que lhe acontece? Por que outros deveriam ser responsáveis por influenciar a vida dessa pessoa? Essa idéia parece estar na mente de muitos comentaristas políticos, e a concepção do esforço pessoal encaixa-se bem no espírito da época presente. Há quem afirme que depender de terceiros não só é eticamente problemático, como também derrotista do ponto de vista prático, pois enfraquece a iniciativa e os esforços individuais, e até mesmo o respeito próprio. Quem melhor do que o próprio indivíduo há de zelar por seus interesses e problemas? (p. 321-330). Assim, trabalhar para criar a cultura de solidariedade prescinde de um entendimento de que estamos fortalecendo as dimensões de responsabilidade e não de dependência. Uma divisão de responsabilidades que ponha o fardo de cuidar do interesse de uma pessoa sobre os ombros de outra pode acarretar a perda de vários aspectos importantes como motivação, envolvimento e autoconhecimento, que a própria pessoa pode estar em posição única de possuir. Qualquer afirmação de responsabilidade social que substitua a responsabilidade individual só pode ser, em graus variados, contraproducente. Não existe substituto para a responsabilidade individual (Sen, 2000, p. 336). 89 EaD Enio Waldir da Silva Trata-se, no fundo, de promover uma discussão que mostre que o sofrimento dos outros tem tudo a ver comigo e que o fundamento da dignidade da humanidade da vida está em qualquer pessoa. Não se trata de fazer imaginar um super-homem capaz de resolver todos os problemas que o afetam, mas de entender que sem esse esforço seus problemas não serão resolvidos. As liberdades substantivas de que desfrutamos para exercer nossas responsabilidades, contudo, são extremamente dependentes de circunstâncias políticas, culturais, sociais, econômicas e ambientais: Uma criança a quem é negada a oportunidade do aprendizado escolar básico não só é destituída na juventude, mas desfavorecida por toda a vida (como alguém incapaz de certos atos básicos que dependem de leitura, escrita e aritmética). O adulto que não dispõe de recursos para receber tratamento médico para uma doença que o aflige não só é vítima de morbidez evitável e da morte possivelmente escapável, como também pode ter negada a liberdade para realizar várias coisas – para si mesmo e para outros – que ele pode desejar como ser humano responsável. O trabalhador adscritício, nascido na semi-escravidão, a menina submissa tolhida por uma sociedade repressora, o desamparado trabalhador sem-terra, desprovido de meios substanciais para auferir uma renda, todos esses indivíduos são privados não só de bem-estar, mas do potencial para levar uma vida responsável, pois esta depende do gozo de certas liberdades básicas. Responsabilidade requer liberdade (Sen, 2000, p. 322). Nesse caso, analiticamente, podemos perceber que o autor insiste em mostrar a dificuldade de você imaginar ações solidárias em indivíduos municiados de sofrimentos individuais. Precisariam, antes, ter sua liberdade substantiva garantida: alimento, renda, educação, saúde, para que sejam aproveitadas as oportunidades econômicas, a liberdade de escolhas, as facilidades sociais, as transparências e a segurança. O caminho entre liberdade e responsabilidade é de mão dupla. Sem a liberdade substantiva e a capacidade para realizar alguma coisa, a pessoa não pode ser responsável por fazê-la. Ter, porém, efetivamente a liberdade e a capacidade para fazer alguma coisa impõem à pessoa o dever de refletir sobre fazê-la ou não, e isso envolve responsabilidade individual. Nesse sentido, a liberdade é necessária e suficiente para a responsabilidade. Vê-se então que é fundamental para o trabalho dos atores da universidade, com os atores sociais em vulnerabilidade, a busca do Estado, para que esta proporcione o mínimo de liberdade (as substantivas), sustentando na base o agir responsável das pessoas, ampliando a capacidade individual de auferir rendas que possam ser partilhadas coletivamente. Além do Estado, outros sujeitos podem garantir este apoio: A alternativa ao apoio exclusivo na responsabilidade individual não é, como às vezes se supõe, o chamado “Estado babá”. Há uma diferença entre “pajear” as escolhas de um indivíduo e criar mais oportunidades de escolha e decisões substantivas para as pessoas, que então poderão agir de modo 90 EaD sociologia do conhecimento responsável sustentando-se na base. O comprometimento social com a liberdade individual obviamente não precisa atuar apenas por meio do Estado; deve envolver também outras instituições: organizações políticas e sociais, disposições de bases comunitárias, instituições não governamentais de vários tipos, a mídia e outros meios de comunicação e entendimento público, bem como as instituições que permitem o funcionamento de mercados e relações contratuais. A visão arbitrariamente restrita de responsabilidade individual – com o indivíduo posto em uma ilha imaginária, sem ser ajudado nem estorvado por outros – tem de ser ampliada, reconhecendo-se não meramente o papel do Estado, mas também as funções de outras instituições agentes (Sen, 2000, p. 321-323). Não se trata de uma mera atuação para enfrentar os medos de uma classe média assombrada com as possibilidades de perder seu bem-estar. Segundo Zygmunt Bauman (2008), os medos que assombram a maioria de nós diariamente surgem da segurança demasiado pequena do bem-estar; eles, os pobres, pelo contrário, estão seguros na sua miséria. A instabilidade é a última coisa de que se queixariam as pessoas marcadas pela vida de pobreza. A razão ética deve ser canalizada para o Estado de bem-estar social, pois a ética sozinha é vulnerável [...] “O Estado é o guardião do meu irmão” [...] Nos cuidados dos nossos riscos, nossa miséria é outra... A qualidade humana da sociedade deve ser mantida pela qualidade de vida de seus membros mais fracos [...] Na modernidade líquida somente os pobres sentem que sua vida muda, sai da desgraça... têm paz de espírito e sentem melhor as opções possíveis... Meus esforços para tornar o Estado democrático me tornam éticamente guardião de meu irmão, mas só afirmar que ele é um dependente é motivo para pessoas decentes se envergonhar... responsabilidade pela necessidade do outro (p. 103). Já para Touraine (1988), o sujeito hoje debate-se para se proteger e isso significa proteger os seus, aqueles com os quais guarda profunda afinidade. Sabe que precisa ser forte e, por isso, não pode se fechar e nem se abrir demais: É preciso superar, de um lado, o mercado e, de outro, a comunidade, pois ambos são armadilhas para a plena realização do sujeito... A reivindicação dos direitos culturais diz respeito a coletividades, mas novidade é que grupos definidos em termos de nação, etnia ou religião, que só tinham existência na esfera privada, adquirem agora uma existência pública às vezes suficientemente forte para questionar sua pertença a determinada sociedade nacional... É o direito a ser diferente, que significa: aquilo que cada um de nós exige, e, sobretudo, os mais dominados e os mais desprotegidos, é ser respeitado, não ser humilhado e até, exigência mais ousada, ser escutado – e mesmo ouvido e entendido (p. 198). Esse sentimento de sujeito não é privilégio das classes médias. Aquilo que assegurava a identidade como ordem religiosa, política ou social provou ser algo manipulador e repressivo. Só lhe resta “o Eu que está mais reflexivo e capaz de dizer estou vivo” e procura condições para ser ator da própria história. 91 EaD Enio Waldir da Silva No caso dos sujeitos excluídos, parceiros da universidade, é perceptível como eles selecionam aqueles que dizem desse sofrimento e demonstram estar tratando da divisão e da perda de identidade e os convidam não a entrar para uma grande causa, mas antes de tudo reivindicar o seu direito à existência individual. Os atores da universidade devem ter a percepção desse sofrimento dos indivíduos e criar canais para que o desejo de ser sujeito possa se transformar em capacidade de ser ator social, combinando a defesa da identidade cultural com a participação no sistema econômico e político, tornando-os capazes de uma ação coletiva e até de um movimento social. Essa postura supõe a abertura da comunidade e a reconstrução, além do mercado, de um sistema alternativo de produção e comercialização. Somente por meio de ações coletivas é possível a reconstrução do sujeito. Nesse sentido, sujeito é vontade, resistência e luta, e não mais experiência imediata de si mesmo e nem há movimento social possível fora da vontade de libertação do sujeito tornado ator social, que deve ser descoberto a partir de suas experiências e vivências. A identidade do sujeito só pode ser construída por três forças que se complementam: a) o desejo pessoal de salvaguardar a unidade da personalidade dividida entre o mundo instrumentalizado e o mundo comunitário; b) a luta coletiva e pessoal contra os poderes que transformam a cultura em comunidade e o trabalho em mercadoria; e c) o reconhecimento interpessoal e também institucional do outro como sujeito (Touraine, 1998, p. 205). Nesse entendimento não há solidariedade se o sujeito não se reconhecer como tal e não reconhecer o outro como também sujeito. Jamais se procura o outro se não se valoriza a si mesmo, se não há reconhecimento. É aí que entra a educação preparadora da força que compreende que os sujeitos precisam se encontrar e atuar cooperadamente. O professor Walter Frantz (2008), mostra que a solidariedade pode ser fruto de uma educação e de uma cultura despida de imediatismos e munida de sentidos cooperativos. A educação decorrente do processo de democracia participativa e direta, característica da autogestão, é mais durável, eficiente e eficaz para a construção de novas formas políticas, que deveriam inspirar também os aparelhamentos institucionais do Estado. Ou seja, a educação resultante da democracia participativa e das relações sociais solidárias reforça a cidadania dos seus atores, tornando-a importante potencial para o desenvolvimento. O desenvolvimento parte de uma opção por uma vida solidária em que se constata que a sociedade contemporânea está em crise: a lógica do lucro da economia capitalista de mercado (embasada na competição e no individualismo/egoísmo) e a economia capitalista de Estado (o 92 EaD sociologia do conhecimento assim chamado socialismo real existente, fundamentado no planejamento central) não conseguiram contemplar as necessidades materiais e sociais dos homens. Destes dois sistemas é possível buscar o que se tem de melhor e integrar à economia solidária. Vivemos o caos pela exclusão social e pela concentração de renda, dentro do que cada um busca ao se organizar, produzir uma ordem provisória. A economia solidária aparece, no contexto da crise, como uma nova esperança de organização de uma nova ordem, embasada na inclusão social e na equidade das oportunidades de trabalho e renda Não pode ser uma nova oportunidade à certeza dos pensamentos, das verdades absolutas, das ideologias, das ditaduras das ideias, dos conceitos e das práticas políticas. Deve ser o espaço da liberdade à criatividade para “pôr ordem no caos social” que desafia a todos, nesses tempos de fracasso das certezas e das verdades (Frantz, 2008). Para Frantz, dentro do desenvolvimento e no entorno dele está o processo educacional que constrói as consciências dos valores e das capacidades cooperativas para o desenvolvimento progressivo e permanente das pessoas e das coletividades humanas enquanto sujeitos ativos e conscientes de seu próprio desenvolvimento pessoal e social e de sua própria educação, acolhendo e potenciando toda a diversidade humana. É como uma dinâmica horizontal, continuada e permanente que se dá com base na própria vida e a partir do intercâmbio de experiências, não meramente nas formas institucionalizadas. É nesse sentido que o movimento da economia solidária assume uma perspectiva educacional que procura desatar as inteligências e movimentar o olhar para o outro: as pessoas, a água, a terra, o ar, os animais, colocando estas potências em cooperação em um novo processo civilizatório. Essa educação deve perseguir o ideal dos seguintes princípios: Que se tenha como ponto de partida a própria vida, o trabalho e o saber acumulado de cada sujeito e da comunidade; que esse processo educativo seja integral, incluindo todos os aspectos da vida e as dimensões objetivas e subjetivas do ser humano; que nesse processo se pratiquem todos os valores humanos inerentes a uma formação integral, tais como a cooperação, a co-responsabilidade, a autonomia, a solidariedade e a amizade; não seja um aprender “para”, nem se confunda com aprendizagem técnica, mas que as próprias vivências se convertam em aprendizagem (Frantz, 2008). Dessa forma, o autor defende um processo educativo permanente e para além do tempo legal educacional, com o objetivo principal de criação de uma mentalidade prática distinta das atuais, de tal modo que se faça possível a construção de uma nova realidade socioeconômica e cultural, solidária e sustentável, capaz de promover o desenvolvimento. Nesta concepção, tal sentimento somente acontece se forem postos em prática os potenciais inerentes a cada pessoa e à coletividade humana, resultando em um processo qualitativo, em contraposição ao caráter 93 EaD Enio Waldir da Silva meramente de crescimento, que tem vieses essencialmente quantitativos. Desse modo, o conteúdo da solidariedade é o mútuo entendimento, a mútua compreensão, a (re)ligação como imperativo ético primordial de um em relação ao outro, à comunidade, à humanidade, no dizer de Morin (2005), passaria por uma reforma no pensamento capaz de criar uma imagem de civilização que compreenda a autoética: A compreensão rejeita a rejeição, exclui a exclusão. Enclausurar na noção de traidor aquele que depende de uma inteligibilidade mais rica impede o reconhecimento do erro, do delírio ideológico, do descontrole, dos desvios. A compreensão exige que nos compreendamos a nós mesmos, reconhecendo as nossas insuficiências e carências, substituindo a consciência da nossa insuficiência. Exige, no conflito de idéias, argumentação, refutar, em lugar de excomungar e de lançar anátemas. Exige a superação do ódio e do desprezo. Exige resistir à lei de talião, à vingança, à punição exterior, especialmente durante os períodos de histeria coletiva. Ainda não começamos a reconhecer que a importância mortal da incompreensão está na fonte de todos os males humanos. A compreensão está presente no que há de melhor no homem. A tragédia humana não é somente a morte, mas também o que vem da incompreensão. Nossa barbárie não se reduz à incompreensão, mas a comporta. A incompreensão alimenta a barbárie nas relações humanas, na civilização. Enquanto permanecermos como somos, continuaremos bárbaros e mergulhados na barbárie. A compreensão que afasta a barbárie nutre-se da aliança entre a racionalidade e a afetividade, ou seja, entre conhecimento objetivo e o conhecimento complexo. Para lutar contra as raízes da incompreensão é preciso um pensamento complexo. Daí, mais uma vez, a importância de “trabalhar pelo pensar bem”. Introduzir a compreensão profunda em nossos espíritos significa civilizar profundamente. Todas as tentativas de aperfeiçoamentos nas relações humanas fracassaram, salvo em comunidades efêmeras, em momentos de fraternidade, pois não houve enraizamento das faculdades humanas de compreensão. Todo o potencial de compreensão existe em cada um, mas em estado de subdesenvolvimento. Compreender é compreender as motivações interiores, situar no contexto e no complexo. Compreender não é tudo explicar. O conhecimento complexo sempre admite um resíduo inexplicável. Compreender não é compreender tudo, mas reconhecer que há algo de incompreensível. Deveria ser possível ensinar a compreensão na escola primária e continuar na secundária e na universidade e em todos os lugares onde se esforçam para criar saídas para problemas coletivos: criar a consciência da necessidade simultaneamente mental e moral da autocrítica e favorecer a auto-ética (2005, p. 123). Essas palavras de Morin (2005) vão ao encontro de atores da universidade e os provocam a se deslocar para fora, ir além do tempo e do espaço escolar. A disposição para trabalhar com os diferentes precisa dessa cultura da tolerância e da compreensão. Trata-se de criar uma cultura do nós e não remeter o outro para fora da humanidade, de compreender o outro como outro. É necessário que a humanidade tome consciência de que pensar a vida como um projeto possível e viável significa pensá-la na sua complexidade, com um sentimento de comunidade e de solidariedade, com os outros e com a natureza. Sem dúvida, com um caminho aberto de possibilidades aleatórias, a tomada de consciência de nossas raízes terrestres, bem como de nosso 94 EaD sociologia do conhecimento destino planetário, depende cada vez mais de uma reforma radical de um ensino educativo que inclua os princípios do pensamento pertinente com o contexto, o global, o multidimensional e o complexo como base para a concidadania terrestre. O futuro do homem, da humanidade e da História não está inscrito na natureza do homem. A universidade, por isso, precisa ser um lugar também preparado para dar possíveis respostas às seguintes perguntas: O homem saberá compreender-se como um ente planetário e biosférico? Terá ele consciência terrestre e cósmica para agir com solidariedade e ética? Saberá ele dar um rumo condizente ao planeta que habita e integra? A virtualidade de sua hominização estará comprometida pelo desregramento e desordem que ele mesmo engendrou? Saberá ele fazer uso da sua racionalidade para enfrentar os desafios e problemas da era planetária? Em outras palavras, a economia solidária já se constitui em algumas repostas e, quando pensada junto a ideia de desenvolvimento, pressupõe-se entender que a sustentabilidade terá de ter por base as vivências sociais, econômicas, culturais, políticas e ecológicas; no entanto, a questão maior para ser entendida é o próprio homem em suas relações sociais. Nas palavras de Frantz (2008), a Economia Solidária é um embrião de uma nova cultura de responsabilidade individual e coletiva, de cooperar para solidarizar e que, para tanto, abriga indivíduos livres que lutam por muito mais do que a mera satisfação das necessidades imediatas. Esse processo relacional é educativo porque cria a cultura de que o outro é bom, acessível e importante para um viver junto ao outro. Mostra que a solidariedade não é misericórdia do outro, mas integração das qualidades daquilo que se faz, valorizando o trabalho humano para emancipação transcendente, que coloca em cooperação as inteligências e as boas energias do ser humano. Quando a universidade atua na comunidade, está mostrando que reconhece a solidariedade, a cooperação, a sustentabilidade e o equilíbrio ecológico como respostas aos grandes problemas sociais que nos atingem. É como um movimento social e pedagógico com significado político que encarna a construção compartilhada da ética e da vida humana, permeada pela alegria do e no conhecimento coletivo (Barcelos; Silva, 2010, p. 181). Encerramos este livro-texto de Sociologia do Conhecimento convidando você a entrar na luta pela economia solidária partindo da definição genérica de que ela é uma proposta civilizacional de uma nova plataforma cognitiva por onde se organiza uma nova estrutura social, um novo modelo de desenvolvimento sustentável socialmente, economicamente, politicamente e ecologicamente, para que o conhecimento não seja convertido em mercadoria ou na sua produção. 95 EaD Referências sociologia do conhecimento BARBOSA, Eva Machado. Conhecendo o conhecimento: questões lógicas e teóricas na crítica da ciência e da razão. Porto Alegre: UFRGS, 1998. BARCELOS, E. S.; Rasia; SILVA, Enio Waldir da. Economia solidária: sistematizando experiências. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2010. BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias de vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de Sociologia do conhecimento. 17. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. BOMBASSARO, Luiz Carlos. As fronteiras da epistemologia. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. BOURDIEU, P. O campo científico. In: Pierre Bourdieu. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 122-155. BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J. C.; PASSERON, J. C. A profissão de sociólogo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico, Lisboa: Difel, 1994. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência. São Paulo: Unesp, 2004. CHALMERS, Alan. A fabricação da ciência. São Paulo: Unesp, 1994. CHAUÍ, Marilena de Souza. A ideologia neoliberal e a universidade. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI, Márcia. O sentido da democracia. Petrópolis RJ: Vozes; Brasília: Nedic, 1993. CHAUÍ, Marilena de Souza. A universidade em ruínas. In: TRINDADE, Helgio (Org.). Universidade em ruínas – república dos professores. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. CHAUÍ, Marilena. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Ed. Unesp, 2001. COHN, Gabriel. Introdução. In: COHN, Gabriel; WEBER, Max (Org.). Sociologia. São Paulo: Ática, 2004. (Coleção grandes cientistas sociais). CORDOVA, Maria Julieta W. Talcott Parsons e o esquema conceitual geral da ação. In: Revista Emancipação, Curitiba: UFPR, 6(1): 257-276, 2007. Disponível em: <www.uepg.br>. CORREA, Ricardo. Weber: algumas considerações. In: SILVA, Enio Waldir da; BRESSAN. Suimar; CORREA, Ricardo. Teoria sociológica II. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2009. DALLA ROSA, Magna Stella C. A universidade contemporânea: percursos da Unijuí. 2005. Dissertação (Mestrado) – Unijuí, Ijuí, 2005. 97 EaD Enio Waldir da Silva DEMO, Pedro. Conhecimento moderno – sobre a ética e intervenção do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1997b. DEMO, Pedro. Pesquisa qualitativa. Busca de equilíbrio entre forma e conteúdo. Revista LatinoAmericana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 6, n. 2, p. 89-104, abr. 1997a. DERRIDA, Jacques. A universidade sem condição. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. DOMINGUES, José Maurício. A sociologia de Parsons. Niterói, RJ: EdFF, 2001. DOMINGUES, José Maurício. Teorias sociológicas no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. DURHAM, Eunice R. O sistema federal de ensino superior: problemas e alternativas. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 23, ano 8, out. 1993. Publicação Quadrimestral da Anpocs. DURHAM, Eunice. Os desafios da autonomia universitária. In: Educação e Sociedade, São Paulo: Cortez Editora, n. 33, ago. 1989. DURKHEIM, É. Sociologia e filosofia. São Paulo: Ed. Forense, 1970. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Edições Paulinas, 1989. DURKHEIM, Émile. Pragmatismo e sociologia. Porto, RES Editora, 1988. DURKHEIM, Emile. Regras do método sociológico. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1990. p. 15. DUVIGNAUD, Jean. A solidariedade – laços de sangue, laços de razão. Lisboa: Instituto Piaget, 1986. ELIAS, Norbert. Sociologia do conhecimento: novas perspectivas. In: Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 23, n. 3, p. 515-554, p. 520, set./dez. 2008. ESPINOSA, Emilio L.; GARCIA, José M. G.; ALBERTO, Cristóbal T. Los problemas de la sociología del conocimiento: sociología del conocimiento y epistemología. In: La sociología del conocimiento y de la ciencia. Madrid: Alianza Editorial, 1994. FRANCO, Maristela Dal Pai (Org.). Diferentes universidades, cultura e pesquisa diversificada. In: Simpósio Brasileiro de Políticas e Administração da Educação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. FRANTZ, Walter. Apontamentos sobre economia solidária. Ijuí, RS: Unijuí, 2005. FRANTZ, Walter. Educação e cooperação – práticas que se relacionam. In: Revista de Sociologias, Porto Alegre: UFRGS, ano 3, n. 6, jul./dez. 2001. FRANTZ, Walter. Organizações solidárias e cooperativas: espaços de educação e a base da economia solidária. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2008. 98 EaD sociologia do conhecimento GOHN, Maria da Glória. Movimentos sociais e redes de mobilização civis no Brasil contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 2004. GOLDMANN, Lucien. A criação cultural na sociedade moderna. Lisboa; Madrid: Ed. Presença, 1972. HABERMAS, Jürgen. A Ideia de universidade – processos de aprendizagem. In: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, vol. 74, jan./abr. 1995. HABERMAS, Jürgen. A ideia de universidade. Processos de aprendizagem. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, [s.l.]: [s.n.], vol. 74, jan-abr. 1993. HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002. HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 1987. LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos de dialética marxista. 2. ed. Rio de Janeiro: Edit. Elfos, 1989. LUMIER, Jacob. A Utopia do saber desencarnado, a crítica da ideologia e a sociologia do conhecimento. Disponível em: <http://www.leiturasjlumierautor.pro.br>. Acesso em: dez. 2011. MARQUES, Mario Osorio. Conhecimento e educação. Ijuí: Ed. Unijuí, 1988. MARQUES, Mario Osorio. Conhecimento e modernidade em reconstrução. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 1993. MARQUES, Mario Osorio. Escrever é preciso – o princípio da pesquisa. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 1997. MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política. São Paulo: Difel, Livro 1, 1979. MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. São Paulo: Brasiliense, 1997. MATURANA, R. Humberto. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. São Paulo: Psy, 1995. MATURANA, R. Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: UFMG, 2001. MATURANA, R. Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 1998. MAY, Tim. Pesquisa social – questões, métodos e processos. Porto Alegre: Artmed, 2004. MORIN, Edgar. O Método VI – Ética .Porto Alegre: Sulina, 2005. MORIN, Edgar. Sociologia – a sociologia do microssocial ao macrosocial. Portugal: Ed. EuropaAmérica, 1998. 99 EaD Enio Waldir da Silva NEVES, João Dias. Do rural ao urbano: que espaços?. 1999. Tese (Doutoramento em Antropologia) – Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1999. PARSONS, Talcott. El sistema social. Madrid: Alianza Editorial, 1982. PARSONS, Talcott. O sistema da sociedade moderna. São Paulo: Pioneira, 1983. PARSONS, Talcott. Sociedades. São Paulo: Pioneira, 1974. RODRIGUES, Leo Peixoto. Introdução ao conhecimento, da ciência e do conhecimento científico. Passo Fundo: UPF, 2005. RODRIGUES, Leo Peixoto. Karl Mannheim e os problemas epistemológicos da sociologia do conhecimento: é possível uma solução construtivista. In: Revista Episteme, Porto Alegre, vol. 14, p. 115-118, jul. 2002. ROMANO, Roberto. Universidade: entre as luzes e os nossos dias. In: DORIA, James (Org.). A crise da universidade. Rio de Janeiro: Revan, 1998. SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 23-77. SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez Editora, 2004. SANTOS, Boaventura de Sousa. Crítica da razão indolente – contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000. SANTOS, Boaventura de Sousa. Da idéia de universidade à universidade de idéias. In: ______. Pela Mão de Alice. São Paulo: Cortez.1986. SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologia do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 5. ed. São Paulo: Cortez,1996. SANTOS, Boaventura de Sousa. Semear outras soluções – os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo – por uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008. SANTOS, Boaventura Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, 1997. 100 EaD sociologia do conhecimento SCHILLING, Voltaire. Talcott Parsons e o funcionalismo estrutural. Disponível em: <www.educaterrra.terra.com.br>. Acesso em: 23 abr. 2009. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. SILVA, Enio Waldir da. Extensão universitária hoje: processo dialógico da ação integradora e emancipadora. In: BARCELOS, E. S.; RASIA, Pedro Carlos; SILVA, Enio Waldir da. Economia solidária: sistematizando experiências. Ijuí, RS : Ed. Unijuí, 2010. SILVA, Enio Waldir da. Sociologia jurídica. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2012. SILVA, Enio Waldir da. Teoria sociológica I. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2008. SILVA, Enio Waldir da; FRANTZ, Walter. As funções sociais da universidade: o papel da extensão e a questão das comunitárias. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002. 248 p. (Coleção ciências sociais). TAVARES DOS SANTOS, José Vicente. A nova organização do trabalho científico. In: MOROSINI, Marilia Costa (Org.). Universidade no MERCOSUL – condicionamentos e desafios. São Paulo: Cortez, 1998. TAVARES, Maria das Graças Medeiros. A Indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão: em busca da universidade cidadã. In: Revista Participação, A Extensão na Sociedade do Conhecimento, Brasília: UNB, n. 7, jul. 2000. TAVARES, Maria das Graças Medeiros. Extensão universitária: novo paradigma de universidade? 1996. Tese (Doutorado) – UFRJ, 1996. TOURAINE, Alain. Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes. Rio de Janeiro: Vozes, 1988. TOURAINE, Alain. Por um novo paradigma. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. TREIN, Eunice; RODRIGUES, José. Espaço aberto – o mal-estar na academia: produtivismo científico, o fetichismo do conhecimento-mercadoria. In: Revista Brasileira de Educação, v. 16, n. 48, set./dez. 2011. WALLERSTEIN, Immanuel. Para abrir as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002. WEBER, Max. A objetividade do conhecimento nas Ciências Sociais. In: COHN, Gabriel (Org.). WEBER, Max. Sociologia. São Paulo: Ática, 2004. (Coleção Grandes Cientistas Sociais). WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. p. 3738. WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais, Parte 2. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1992. 101 EaD Enio Waldir da Silva SAIBA MAIS BAJOIT, Guy. Tudo muda: proposta teórica e análise de mudança sociocultural nas sociedades ocidentais contemporâneas. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006. BIDARRA, Maria da Graça. O estudo das representações sociais: considerações teórico-conceptuais e metodológicas. Separata da Revista Pedagogia, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, da Universidade de Coimbra, ano XX, 1986. BLOOR, David. Knowledge and social Imagery. London: Routledge & Kegan Paul, 1976. BOURDIEU, P. A miséria do mundo. Rio de Janeiro: Vozes, 1988. BOURDIEU, P. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. BOURDIEU, Pierre et al. A reprodução. Rio de Janeiro: Liv. Francisco Alves Editora, 1982. BOURDIEU, Pierre. Contrafogos. Oeiras: Celta Editora, 1988. BRESSAN, Suimar; CORREA, Ricardo. Teoria sociológica II. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2009. CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam. Oeiras: Celta Editora, 1993. COTTLE, Simon. The Production of News Formats: Determinants of Mediated Public Contestation. In: Media, Culture & Society, Londres, vol. 17, n. 2, abr. 1995. D’AMATO, Mariana. Woman as Victim in the Image of Daily Press. In: Crítica Sociológica, Itália, 48, out./dez. 1978. DIAS, Fernando Nogueira. Escola e socialização – processo e deficiências nos jovens toxicodependentes. Lisboa: ISCSP; UTL, 1989a. DIAS, Fernando Nogueira. Juventude e toxicodependência – identificação de algumas causas sociais. Lisboa: ISCSP/UTL, 1989b. DIAS, Fernando Nogueira. Sistemas de comunicação, de cultura e de conhecimento. Lisboa: Instituto Piaget, 2000. DOMINGUES, José Maurício. Teorias sociológicas no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. DORFLES, Gillo. Novos ritos, novos mitos. Lisboa: Edições 70, 1982. DOROZYNSKY Alexandre et al. A manipulação dos espíritos. Lisboa: Assírio & Alvim, 1982. DURHAM, Eunice. Os desafios da autonomia universitária. In: Educação e Sociedade, São Paulo: Cortez Editora, n. 33. ago. 1989. ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1986. ELIAS, Norbert. Teoria simbólica. Oeiras: Celta Editora, 1994. 102 EaD sociologia do conhecimento FENTRESS, James et al. Memória social. Lisboa: Teorema, 1994. FERNANDES, António T. O social em construção. Porto: Figueirinhas, 1983. FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Lisboa: Edições 70, 1998. FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho; JÚNIOR, Gildásio Santana. Economia solidária e desenvolvimento local: uma contribuição para redefinição da noção de sustentabilidade a partir da análise de três casos na Bahia. 2010. Disponível em: <http://dowbor.org.ar>. Acesso em: dez. 2010. GABEL, Joseph. A falsa consciência. Lisboa: Guimarães & Cª Editores, 1979. GIDDENS, Antony. Em defesa da sociologia – ensaios, interpretação e tréplicas. São Paulo: Editora Unesp, 2001. GIDDENS, Antony; BECK, Ulriche Lash. Modernização reflexiva. Política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Eduesp, 1997. GIDDENS, Antony; TURNER, Jonathan (Org.). Teoria social hoje. São Paulo: Editora Unesp, 1999. GOFFMAN, Erving. Estigma. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988. GOODY, Jack. A lógica escrita e a organização da sociedade. Lisboa: Edições 70, 1987. GURVITCH, Georges. Os quadros sociais do conhecimento. Lisboa: Morais Editores, 1969. HABERMAS, Jürgen. A nova intransparência – a crise do estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas. In: Novos Estudos Cebrap, n. 18, set. 1987. HABERMAS, Jürgen. Mudanças estruturais da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa – racionalidad de la acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 2000. V. 1. HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa. Crítica de la Razón Funcionalista. Madrid: Taurus, 1999b. V. II. HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa. Racionalidad de la Acción y Racionalización Social. Madrid: Taurus, 1999. V. 1. HABERMAS, Jürgen. Teoría de la Acción Comunicativa: Complementos y Estudios Previos. Madrid: Cátedra, 1997a. HABERMAS, Jürgen. Teoría y Praxis. Estudios de Filosofía Social. Madrid.: Ed. Tecnos, 1997. HALL, Edward T. A dimensão oculta. Lisboa: Relógio d’Água, 1985. 103 EaD Enio Waldir da Silva HALL, Edward T. A linguagem silenciosa. Lisboa: Relógio d’Água, 1994. HEKMAM, Susan J. Hermenêutica e Sociologia do Conhecimento. Lisboa: Edições 70, 1987. HUMBOLDT, W. Von. Um mundo sem universidades. Rio de Janeiro: Eduerj, 1997. KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1996. LAKATOS, Imre. La Metodología de los Programas de Investigación Científica. Madrid: Alianza Editorial, 1993. LAMO DE ESPINOSA, Emilio; GARCÍA, José; ALBERO, Cristóbal. La Sociología del Conocimiento y de la Ciencia. Madrid: Alianza, 1994. LATOUR, Bruno. Ciência em ação. São Paulo: Unesp, 2000. LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1988. LEVY, Pierre. As Tecnologias da inteligência. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. LEYENS, Jacques-Philippe et al. Stereotypes and Social Cognition. Londres: Sage Publications, 1994. LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. Trad. Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy. 5. ed. rev. São Paulo: Cortez, 1994. LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 12. ed. São Paulo: Cortez, 1998. LÖWY, Michael. Objetividade e ponto de vista de classe nas ciências sociais. In: Método dialético e teoria política. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. LUMIER Jacob. As aplicações da sociologia do conhecimento. Disponível em: <http://www. leiturasjlumierautor.pro.br>. Acesso em: nov. 2009. MANCE, Euclides André. Redes de colaboração solidária – aspectos econômico-filosóficos: complexidade e libertação. Rio de Janeiro: Liv. Brasileira, 2002. MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. MARCOS, Luís. O poder dos “media”. Sociologia, problemas e práticas. Mem Martins, Publicações Europa-América, n. 6, maio 1989. MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial – o homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. MARQUES, Mario Osorio. Conhecimento e educação. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 1998. MARQUES, Mario Osorio. Conhecimento e modernidade em reconstrução. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 1993. 104 EaD sociologia do conhecimento MARQUES, Mario Osorio. Pedagogia, a ciência do educador. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 1990. MARQUES, Mario Osorio. Universidade emergente: o ensino superior brasileiro em Ijuí (RS), de 1957 a 1983. Ijuí, RS: Fidene, 1984. MCLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1977. MEAD, Margaret. Public Opinion Mecanisms Among Primitive People. Public Quarterly, vol. 1, n. 3, jul. 1937. MERTON, Robert K. A sociologia do conhecimento. In: HOROWITZ, I. Historia y Elemento de la Sociología del Conocimiento. Buenos Aires: Eudeba, 1964. p. 65-73. MERTON, Robert K. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Ed. Mestre Jou, 1968. MIRANDA, José Bragança de. Analítica de uma Actualidad. Lisboa: Colecções Vega Universidade, 1994. MIRANDA, José Bragança de. Fundamentos de uma analítica. 1990. Tese (Doutoramento em Ciências da Comunicação) – Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1990. MIRANDA, José Bragança de. Política e modernidade. Lisboa: Edições Colibri, 1997. MORIN, Edgar. A introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1991. MORIN, Edgar. As grandes questões do nosso tempo. Lisboa: Editorial Notícias, 1987. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Lisboa: Publicações Europa-América, 1986. MORIN, Edgar. O método III e 4. Porto Alegre: Ed. Sulina, 1998. MORIN, Edgar. O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Publicações EuropaAmérica, 1999. MORIN, Edgar. Os problemas de fim de século. Lisboa: Editorial Notícias, 2008. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília: Unesco, 2000b. MORIN, Edgar. Para uma sociologia do conhecimento. Sociologia, Problemas e Práticas, Mem Martins, Publicações Europa-América, n. 6, maio 1989. MORIN, Edgar. Saberes globais e saberes locais – o olhar transdisciplinar. Rio de Janeiro: Garamond, 2000a. NEVES, C. E. B. Ensino Superior no Rio Grande do Sul: interiorização e modelos regionais. In: MOROSINI, M.; LEITE, D. (Orgs.). 1992: universidade e integração no Cone Sul. Porto Alegre: UFRGS, 1992. p. 95-112. 105 EaD Enio Waldir da Silva OLIVEIRA, José Manuel Paquete de. Formas de censura oculta na imprensa escrita em Portugal no Pós 25 de Abril. 1988. Dissertação (Doutoramento em Sociologia) –Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, 1988. ORGOGOZO, Isabelle. Les Paradoxes de la Communication. Paris: Les Editions d’Organisation, 1988. PINHEIRO FILHO, Fernando. A noção de representação em Durkheim. In: Publicacion Lua Nova, São Paulo: Cedec, Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, n. 61, 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n61/a08n61.pdf>. PINTO, José Madureira. Ideologias: inventário crítico dum conceito. Lisboa: Editorial Presença; GIS, 2007. RUDIO, Franz Victor. Introdução ao projeto de pesquisa. 31.ed. Petrópolis: Vozes, 2003. SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a democracia – entre o pré-contratualismo e o póscontratualismo. In: OLIVEIRA, Francisco; PAOLI, Maria Célia (Org.). Os sentidos da democracia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. SAPERAS, Enric. Os efeitos cognitivos da comunicação. Porto: Edições Asa, 1993. SAUL, Renato. Giddens: da ontologia social ao programa político, sem retorno. Disponível em: <www.google.com.br>. Acesso em: 13 abr. 2006. SILVA, Enio Waldir da. Esfera pública, cidadania e gestão social. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2009b. SILVA, Enio Waldir da. Sociedade, política e cultura. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2008a. SILVA, Enio Waldir da. Teoria sociológica III. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2009a. p. 27-43. SILVA, Enio Waldir da. Universidade Regional: a Região Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. 1994. Dissertação (Mestrado) – UFRGS, 1994. SILVA, Enio Waldir da; BRESSAN, Suimar; CORREA, Ricardo. Teoria sociológica II. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2009. STRAUSS, Claude Levi. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1984. THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. TOFFLER, Alvin. Os novos poderes. Lisboa: Edição Livros do Brasil, 1991. TRAQUINA, Nelson (Org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Comunicação & Linguagens, 1993. TRAQUINA, Nelson. O Paradigma do ”Agenda-Setting”. Redescoberta do Poder do Jornalismo. Revista de Comunicação e Linguagem, Edições Cosmos, 21/22, 1995. 106 EaD sociologia do conhecimento VALA, Jorge. Sobre as representações sociais – para uma epistemologia do senso comum. In: Cadernos de Ciências Sociais, n. 4, abr. 1986. VALENZUELA, Eusébio. Drogas y Medios de Comunicación. In: Revista Toxicodependências, ano 2, n. 3, 1996. VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Lisboa: Relógio d’Água, 1992. VERON, Eliseo. Ideologia, estrutura, comunicação. São Paulo: Editora Cultrix, 1984. WATZLAWICK, Paul. A realidade é real? Lisboa: Relógio d’Água, 1991. WEBER, Max. Sobre a universidade – o poder de Estado e a dignidade da profissão acadêmica. São Paulo: Cortez, 1987. WOLFF, Robert Paul. O ideal da universidade. São Paulo: Unesp. 1993. 107