sociologia do conHeciMento

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Universidade regional do noroeste do estado do rio grande do sul – unijuí
vice-reitoria de graduação – vrg
coordenadoria de educação a distância – CEaD
Coleção Educação a Distância
Série Livro-Texto
Enio Waldir da Silva
SOCIOLOGIA DO
CONHECIMENTO
Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil
2012
2012, Editora Unijuí
Rua do Comércio, 1364
98700-000 - Ijuí - RS - Brasil
Fone: (0__55) 3332-0217
Fax: (0__55) 3332-0216
E-mail: [email protected]
Http://www.editoraunijui.com.br
Editor: Gilmar Antonio Bedin
Editor-adjunto: Joel Corso
Capa: Elias Ricardo Schüssler
Designer Educacional: Jociane Dal Molin Berbaum
Responsabilidade Editorial, Gráfica e Administrativa:
Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil)
Catalogação na Publicação:
Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí
S586s
Silva, Enio Waldir da.
Sociologia do conhecimento / Enio Waldir da Silva. – Ijuí : Ed.
Unijuí, 2012. – 108 p. – (Coleção educação a distância. Série livrotexto).
ISBN 978-85-419-0006-5
1. Sociologia. 2. Sociologia do conhecimento. 3. Sociologia do
conhecimento – Novos desafios. I. Título. II. Série.
CDU : 316
316.25
Sumário
CONHECENDO O PROFESSOR...................................................................................................5
APRESENTAÇÃO............................................................................................................................7
UNIDADE 1 – IDENTIDADE DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO...............................11
Seção 1.1 – A Sociologia do Conhecimento – as conceituações............................................11
Seção 1.2 – O Conhecimento na Visão dos Clássicos – a origem..........................................24
Seção 1.3 – A Sociologia do Conhecimento no Século 20 – a consolidação.........................39
Seção 1.4 – Conhecimento e Cultura nos Anos 70.................................................................45
UNIDADE 2 – A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO NO
FINAL DO SÉCULO 20 – Novos Desafios..........................................................51
Seção 2.1 – Democratizar a Cognicidade...............................................................................53
Seção 2.2 – O Conteúdo Esquecido pela Ciência: a afetividade...........................................62
UNIDADE 3 – A UNIVERSIDADE E O CONHECIMENTO.....................................................67
Seção 3.1 – O Que Foi e o Que é Uma Universidade............................................................67
Seção 3.2– A Universidade e as Ciências Humanas, Hoje....................................................73
Seção 3.3 – Universidade Comunitária e as Ações Solidárias...............................................81
3.3.1 – A Solidariedade Como Meio e Fim da Ação Universitária..............................84
REFERÊNCIAS..............................................................................................................................97
EaD
Conhecendo o Professor
sociologia do conhecimento
Enio Waldir da Silva
Nasci no segundo dia do mês de fevereiro de 1963. Sou o décimo
quarto filho, o penúltimo, de Oracy Pires Pereira da Silva e Doralia
Teixeira Santos da Silva. Fui o único deles que saiu da lavoura para
estudar. Este evento aconteceu no município de Erval Seco, Rio Grande
do Sul, na localidade chamada Ponte da Guarita. Permaneci ali até os
15 anos trabalhando nos 15 hectares em que meu pai era meeiro. Saí
quando terminei a 8ª série. Por iniciativa de minha mãe, me bandeei
para a cidade trabalhar pelo estudo. Redentora, depois Palmeira das
Missões. Ali tornei-me gaudério de carteirinha e coração, no CTG 35.
Aprendi também nessa época, com 18 anos, a fazer distinção entre os
objetivos dos partidos políticos e compreender a exclusão social. Em
uma visita de campanha de vestibular da, então, Fidene, entendi que o
curso de Filosofia perguntava o “porquê” das coisas, principalmente o
“porquê” da vida, do trabalho, do conhecimento, da miséria, da riqueza.
Entendi que este era meu curso. Fiz vestibular. Passei. Me bandeei,
de novo, para Ijuí. Após um ano de entrevero entre desemprego, capinadas de terrenos, servente de pedreiro, boia-fria e outras atividades,
acabou o dinheiro do Fundo de Garantia que trouxe de Palmeira, mas
empreguei-me em uma serraria. Oito meses depois melhorei de vida
quando fui trabalhar como garçom em um restaurante: ali tinha comida, aluguel, roupa limpa e ganhava o salário para pagar o curso de
Filosofia. Ótimo. Entrei para o Partido Comunista Brasileiro – PCB –,
minha faculdade paralela. No último ano do curso o restaurante em
que trabalhava foi vendido. Novamente fiquei desempregado, mas
agora, ao menos, com a “consciência filosófica e comunista” em franco
desenvolvimento. Fazer bicos para ganhar a vida agora era mais fácil.
Como garçom temporário, como boia fria nas lavouras de soja (final
de 1986) levava o debate político. Não pude mais pagar o curso, devia
todo o último semestre, mas, graças ao esforço de trabalho e ao diálogo
filosófico-político, o amigo e dono da granja quitou as prestações do
carnê da faculdade. Um presentão. Até hoje não sei como agradecer,
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EaD
posto que um mês capinando nabo na lavoura dava apenas para
pagar alguns dias de sobrevivência. Aí surgiu uma grande chance:
o concurso para professor de Filosofia na faculdade onde me formei.
Trinta horas de estudo valeram a aprovação e em 2 de fevereiro de
1987 iniciei a construção desta nova identidade: professor do Ensino
Superior. Graças ao apoio da Unijuí, de janeiro a julho de 1988 estudei, como aluno especial, Ciência Política na Universidade Federal
de Minas Gerais – UFMG – Belo Horizonte. Em julho do mesmo ano
iniciei o Mestrado em Sociologia na – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul – UFRGS. Entre ministrar aulas, estudar e escrever
a dissertação final, fiquei meio doido e casei (hoje continuo nessa e
tenho três filhas). Meu primeiro trabalho escrito foi a dissertação de
Mestrado: O Ensino Superior Regional – a Região Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul, em 1993. Em 1999 fui cursar o Doutorado na
mesma universidade e defendi a tese de Sociologia intitulada: A Extensão Universitária – Concepções e Práticas, em 2003. Então, desde
1987 desenvolvo atividades de docência na área das Ciências Sociais
na Unijuí. Além destas atividades também atuei na coordenação da
Formação Geral Humanística; fui membro do Conselho Universitário,
representante dos docentes; subchefe do Departamento de Ciências
Sociais e coordenador do curso de Sociologia. Continuo pesquisando
sobre o tema relação ciência e sociedade, envolvendo a universidade,
atores sociais que se relacionam com ela e o papel da formação universitária na sociedade atual.
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Enio Waldir da Silva
EaD
Apresentação
sociologia do conhecimento
Este texto aborda alguns aspectos da Sociologia do Conhecimento, de forma a esclarecer
a identidade, a emergência do tema e os desafios deste ramo da ciência sociológica. Vamos
mostrar que, ao aprofundarmos o estudo das relações sociais, a Sociologia se depara com alguns
fenômenos que não pode ignorar durante o processo investigativo: o mundo do conhecimento, a
intelectualização presente no universo social, expresso de diversas formas, na ciência, nas ações,
nas instituições, nas organizações, nos processos, etc., e no próprio sujeito da pesquisa.
São elementos que se encontram antes do ato de construir conhecimentos, no processo
de produção e nos resultados dos esforços sistemáticos de produção de saberes, nem sempre
observados pelo investigador. Muitas vezes este não percebe nem mesmos seus potenciais para
a investigação, geralmente adquiridos na educação escolar.
Este ramo da Sociologia já provou que existe uma natureza social no conhecimento ao
abordar: as relações entre ciência e sociedade, dimensões socioculturais para a construção do
conhecimento, o habitus científico, as dimensões empíricas do conhecimento, o papel das abstrações e generalizações, as interações entre saber científico e saberes populares e os lugares
especiais construídos para a produção de conhecimentos, como é o caso da universidade, etc.
Entre tantas obras existentes sobre o tema, esta pretende ser mais uma colaboração ao debate
e objetiva introduzir os alunos da Sociologia em um diálogo sobre o próprio saber sociológico.
Pretende-se também, colaborar com os futuros pesquisadores para que eles se situem no universo
que envolve o processo de produção sistemático de construção de conhecimentos científicos.
Neste sentido, é possível afirmar que, em cada indivíduo, há a presença de conhecimentos
entremeados nas suas circunstâncias de sentir, pensar, falar, agir e escrever. É um desafio muito
grande querer decifrar a complexidade destas relações e descrever até que ponto estas são fruto
dos conhecimentos sistematizados, e isto se torna mais amplo ainda por estarmos acostumados
a pensar que existem diferenciais entre os conhecimentos científicos e outros tipos de saberes.
Normalmente nas escolas se faz um esforço para diferenciar o conhecimento científico do
conhecimento popular, do senso comum, mostrando que este se trata de conhecimento parcelar,
imediato e resultado de ações cotidianas e o outro fruto da capacidade científica de indivíduos,
adquiridas em escolas ou laboratórios de pesquisa.
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EaD
Enio Waldir da Silva
Hoje, no entanto, não é mais possível produzir conhecimentos, especialmente nas Ciências
Sociais, sem se considerar os saberes que emergem das relações sociais vividas pelos sujeitos,
que surgem da arte, da religião, da Filosofia, do senso comum e das dimensões afetivas próprias
da lógica humana. Todos os indivíduos estão influenciados por estes potenciais simbólicos que
interferem em seus fazeres científicos (saberes escolarizados).
Os grandes pesquisadores sempre se preocuparam em refletir sobre o modo de desenvolver
suas pesquisas, interrogando-se sobre os percursos e processos e não apenas sobre resultados,
pois as metodologias de pesquisas não são meramente técnicas, mas posições epistemológicas
diante de objetos e as perguntas sobre ele, além de ser uma prática sociológica que confronta
visões de mundo, valores, expectativas, argumentações e posições históricas dos sujeitos, estando
a pesquisa diante das relações sociais.
O pesquisador precisa ter capacidade reflexiva para sempre se situar no processo de produção de conhecimento, pois se incluir no mundo que pesquisa é entender as relações sociais
de que faz parte: os cotidianos, as culturas, as práticas, os interesses, as paixões, as capacidades,
as falas, os papéis, as experiências, os instrumentos, os resultados já obtidos pela ciência, etc.
O caráter sacro do conhecimento científico torna-se, hoje, uma prática social feita em condições
institucionais para se poder fazer a produção de conhecimentos.
O conhecimento possui dimensão social, pois todo o pesquisador carrega consigo a carga social/cultural que orienta o seu entendimento. O sociólogo deverá saber sempre vigiar seu
próprio conhecimento de forma que as verdades científicas encontrem um melhor caminho de
legitimação e socialização, tenham pertinência diante dos grupos que precisam do conhecimento
ou das comunidades científicas. Nunca pode esquecer, por exemplo, que ele, pesquisador, e os
outros são seres humanos, movidos pela força de afetividades oriundas da lógica da vida.
Ao longo deste texto vamos estudar estas realidades. Começaremos mostrando as possíveis
identidades que a Sociologia do Conhecimento possa ter, a emergência destas reflexões sobre
elementos relacionais presente nos esforços para produzir conhecimentos científicos, como se
forma o habitus científico, o papel das abstrações, das generalizações, das socializações e das
institucionalizações da ciência. Em seguida traçaremos a trajetória deste ramo de estudo e as
tendências atuais.
Em um segundo momento trabalharemos com elementos que desafiam a pesquisa em
Ciências Sociais hoje, dedicando especial atenção a duas abordagens da Sociologia do Conhecimento, presentes em Boaventura de Sousa Santos e Humberto Maturana.
No último tópico vamos abordar o papel da universidade atual, diante da ciência e das
novas relações sociais.
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EaD
sociologia do conhecimento
Antes de você entrar na unidade a seguir leia as considerações de Edgar Morin1 sobre o
que é conhecimento:
O Conhecimento
Naturalmente, o ensino escolar fornece conhecimento, fornece saberes. Porém, apesar de sua fundamental importância, nunca se ensina o que é, de fato, o conhecimento. E sabemos que os maiores
problemas neste caso são o erro e a ilusão. Ao examinarmos as crenças do passado, concluímos que
a maioria contém erros e ilusões. Mesmo quando pensamos em vinte anos atrás, podemos constatar
como erramos e nos iludimos sobre o mundo e a realidade. E por que isso é tão importante? Porque o
conhecimento nunca é um reflexo ou espelho da realidade. O conhecimento é sempre uma tradução,
seguida de uma reconstrução. Mesmo no fenômeno da percepção, através do qual os olhos recebem
estímulos luminosos que são transformados, decodificados, transportados a um outro código, que transita pelo nervo ótico, atravessa várias partes do cérebro para, enfim, transformar aquela informação
primeira em percepção. A partir deste exemplo, podemos concluir que a percepção é uma reconstrução.
Tomemos um outro exemplo de percepção constante: a imagem do ponto de vista da retina. As pessoas
que estão próximas parecem muito maiores do que aquelas que estão mais distantes, pois a distância,
o cérebro não realiza o registro e termina por atribuir uma dimensão idêntica para todas as pessoas.
Assim como os raios ultravioleta e infravermelhos que nós não vemos, mas sabemos que estão aí e nos
impõem uma visão segundo as suas incidências. Portanto, temos percepções, ou seja, reconstruções,
traduções da realidade. E toda tradução comporta o risco de erro. Como dizem os italianos “tradotore/
traditore”. Também sabemos que não há nenhuma diferença intrínseca entre uma percepção e uma
alucinação. Por exemplo: se tenho uma alucinação e vejo Napoleão ou Júlio César, não há nada que
me diga que estou enganado, exceto o fato de saber que eles estão mortos. São os outros que vão me
dizer se o que vejo é verdade ou não. Quero dizer com isso que estamos sempre ameaçados pela alucinação. Até nos processos de leitura isto acontece. Nós sabemos que não seguimos a linha do que está
escrito, pois, às vezes, nossos olhos saltam de uma palavra para outra e reconstroem o conjunto de uma
maneira quase alucinatória. Neste momento, é o nosso espírito que colabora com o que nós lemos. E
não reconhecemos os erros porque deslizamos neles. O mesmo acontece, por exemplo, quando há um
acidente de carro. As versões e as visões do acidente são completamente diferentes, principalmente
pela emoção e pelo fato das pessoas estarem em ângulos diferentes. No plano histórico há erros, se
me permitem o jogo de palavras, histéricos. Tomemos um exemplo um pouco distante de nós: os debates sobre a Primeira Guerra Mundial. Uma época em que a França e a Alemanha tinham partidos
socialistas fortes, potentes e muito pacifistas, e que, evidentemente, eram contrários à guerra que se
anunciava. Mas, a partir do momento em que se desencadeou a guerra, os dois partidos se lançaram,
massivamente a uma campanha de propaganda, cada um imputando ao outro os atos mais ignóbeis.
Isto durou até o fim da guerra. Hoje, podemos constatar com os eventos trágicos do Oriente Médio a
mesma maneira de tratar a informação. Cada um prefere camuflar a parte que lhe é desvantajosa para
colocar em relevo a parte criminosa do outro. Este problema se apresenta de uma maneira perceptível
e muito evidente, porque as traduções e as reconstruções são também um risco de erro e muitas vezes
1
Morin, Edgar. Os sete saberes necessário à educação do futuro. Publicado no Boletim da Semtec-MEC. Informativo
eletrônico da Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Ano1, n. 4, Junho/Julho de 2000.
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Enio Waldir da Silva
o maior erro é pensar que a idéia é a realidade. E tomar a idéia como algo real é confundir o mapa
com o terreno. Outras causas de erro são as diferenças culturais, sociais e de origem. Cada um pensa
que suas idéias são as mais evidentes e esse pensamento leva a idéias normativas. Aquelas que não
estão dentro desta norma, que não são consideradas normais, são julgadas como um desvio patológico e são taxadas como ridículas. Isso não ocorre somente no domínio das grandes religiões ou das
ideologias políticas, mas também das ciências. Quando Watson e Crick decodificaram a estrutura do
código genético, o DNA (ácido desoxirribonucléico), surpreenderam e escandalizaram a maioria dos
biólogos, que jamais imaginavam que isto poderia ser transcrito em moléculas químicas. Foi preciso
muito tempo para que essas idéias pudessem ser aceitas. Na realidade, as idéias adquirem consistência
como os deuses nas religiões. É algo que nos envolve e nos domina a ponto de nos levar a matar ou
morrer. Lenin dizia: “os fatos são teimosos, mas, na realidade, as idéias são ainda mais teimosas do
que os fatos e resistem aos fatos durante muito tempo”. Portanto, o problema do conhecimento não
deve ser um problema restrito aos filósofos. É um problema de todos e cada um deve levá-lo em conta
desde muito cedo e explorar as possibilidades de erro para ter condições de ver a realidade, porque
não existe receita milagrosa (Morin, 2000, p. 1).
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EaD
Unidade 1
sociologia do conhecimento
IDENTIDADE DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO
OBJETIVO DESTA UNIDADE
•Estudar o conceito, a emergência e as principais abordagens da Sociologia do Conhecimento.
Temos a pretensão, com isso, de criar uma identidade para a Sociologia do Conhecimento, que
nos fundamente para abordar realidades sociais, frutos de aplicação de conhecimentos.
AS SEÇÕES DESTA UNIDADE
Seção 1.1 – A Sociologia do Conhecimento – as conceituações
Seção 1.2 – O Conhecimento na Visão dos Clássicos – a origem
Seção 1.3 – A Sociologia do Conhecimento no Século 20 – a consolidação
Seção 1.4– Conhecimento e Cultura nos Anos 70
Seção 1.1
A Sociologia do Conhecimento – as conceituações
A Sociologia do Conhecimento investiga as interligações entre categorias de pensamento, reivindicações do conhecimento e realidade social do pensamento. Esta definição inicial
insere-se na constatação de que as descobertas científicas e os avanços tecnológicos, ocorridos
especialmente a partir do final do século 19 e sua aceleração ao longo do século 20, a crença no
poder da ciência e da razão serviram para legitimar sua autoridade e necessidade e dar origem
a algumas arrogâncias.
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EaD
Enio Waldir da Silva
Esta é perceptível nos discursos que defendem a razão científica como a única fonte válida
de conhecimento. Funda-se ainda na modernidade a tentativa de diferenciar conhecimento científico, a partir da matriz filosófica original, dos conhecimentos de segunda ordem, como lógica,
gnoseologia, teoria do conhecimento, Filosofia da ciência, epistemologia – ou que outro nome
ainda se queira dar a esse domínio.
Advém de Descartes e tem continuidade em Locke, Hume, Kant e Hegel, a ponto de o
problema do conhecimento tornar-se ponto fundamental da Filosofia moderna.
Destes momentos reflexivos surge a Sociologia para construir uma visão de que o próprio
sujeito que pensa ou investiga deve se perceber no ato de conhecer, inserir-se no objeto de conhecimento. O ato individual de conhecer é o resultado de uma complexa cadeia de operações
e desenvolvimentos lógico-simbólicos, que se inicia com o processamento de informações por
parte de um cérebro, ele mesmo envolvido no processo evolutivo da inteligência humana. Esta compreensão, no entanto, é mais antiga, tendo percorrido, desde a Antiguidade Clássica, vários caminhos que se cruzam, mas que se assentam na lógica. Ao identificar as regras básicas
de funcionamento do pensamento, a lógica foi certamente a primeira expressão do conhecimento
racional, explícito e consciente, sobre o próprio conhecimento, cuja continuidade e ampliação
para outros aspectos do conhecer, posteriormente, fundaria o campo epistemológico.
A Sociologia do Conhecimento pode ser definida, em termos gerais, como o conjunto dos
esforços intelectuais que se dedicam a investigar as realidades sociais do conhecimento. Esta
genérica definição pretende inserir a compreensão de que este campo da Sociologia se dedica
a estudar como as relações de forças políticas e sociais, de um determinado momento histórico,
se relacionam com a vida intelectual, enfatizando os métodos e os condicionamentos do pensamento para abordagens das realidades sociais. Ou seja, busca a compreensão de que os sistemas
cognitivos possuem fortes relações entre o coeficiente existencial do conhecimento – incluindo
os coeficientes humanos (aspectos pragmáticos, políticos e ideológicos) e os coeficientes sociais
(variações nas relações entre quadros sociais e conhecimento).
A Sociologia do Conhecimento é uma área da Sociologia que nasce na Europa (Alemanha,
França) e se desenvolve nos Estados Unidos em meados do século 20. Inicialmente ela se ocupava com a diversidade de valores presentes nas atitudes, modos de pensar de grupos sociais que
produzem universos mentais de interpretação do mundo, numa mesma sociedade. Compreendiase que “o modo de produção da vida material determina o caráter geral dos processos sociais
e intelectuais da vida” como dizia Marx (1997), e que os pensamentos derivados dos sujeitos
dependem de sua base de existência. Além disso, as categorias de pensamento variavam de
acordo com a organização social à qual indivíduos estão associados.
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EaD
sociologia do conhecimento
Para além desta tendência que acredita que as respostas científicas são dadas pela própria
natureza, enquanto às bases sociais cabe apenas o papel de mediador estão estudos como os
de Bourdieu, defendendo a tese de que a ciência é uma atividade intelectual autodeterminada
e a comunidade científica é como um sistema social interdependente com outros sistemas com
regras definidas pelos próprios cientistas (Bourdieu, 1983).
Estas tendências da Sociologia do Conhecimento são herdeiras do contexto dos anos 70,
quando vai se dedicar ao estudo das relações entre ciência e sociedade, quando se percebe a
emergência de grupos de pesquisas instalados dentro das universidades e centro de pesquisas
de grandes empresas e institutos de pesquisa privados e estatais. Vai se evidenciar que as ciências fazem parte de estratégias do Estado e das empresas. Entende-se que as funções da ciência
estão diretamente ligadas ao tipo de sociedade em que emergem os paradigmas dos grupos
que ela desenvolve e que são parte das forças produtivas condicionadas pelas estruturas sociais
que modelam e dirigem seu curso, seus métodos e o uso de seus resultados. Esta interpretação
reposiciona a ciência no interior das teorias marxistas da ideologia, no contexto das relações de
dominação da sociedade moderna. Ela teria, então, caráter de instrumento de dominação racional
e técnica da sociedade (Habermas, 1982).
Esta interpretação entendeu que um dos ambientes adequados às relações científicas, para
a produção de conhecimentos, seria a universidades e foi a ela que os setores produtivos recorreram quando perceberam que não poderiam dar conta, sozinhos, da velocidade e complexidade
das inovações tecnológicas (Santos, 1986).
Assim sendo, hoje a Sociologia do Conhecimento transita por uma enorme quantidade de
temas ligados às ciências: para construir os entendimentos das relações entre o conhecimento
formal (científico), que a universidade dimensiona, e a sociedade, produtora de variadas demandas; as relações entre as instituições culturais produtoras de bens simbólicos, legitimadores das
práticas e os indivíduos que a ela recorrem; nas relações das instituições culturais com outras
instituições; a realidade educacional a partir dos contextos e condicionantes sociais e culturais
das formas de pensamento que influenciam na produção do conhecimento; as instituições a partir
de ações programadas conscientemente para obter determinados fins (Goldmann, 1972), etc.
A Sociologia do Conhecimento tornou-se um dos núcleos constitutivos da Teoria Sociológica. Ou seja, é um momento de coroação das perspectivas teóricas que orientam as reflexões
sociológicas. Além de ser uma Sociologia da Sociologia é também uma baliza do estatuto teórico de nossa ciência, que pretende entender sua essência, não somente por meio de uma visão
histórica da ciência, mas também por fundamentar uma epistemologia dos saberes científicos
traduzidos das vivências humanas.
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EaD
Enio Waldir da Silva
Entre tantas tentativas de esclarecer a identidade da Sociologia do Conhecimento destacase a de Rodrigues (2002), que considera seus objetivos identificar, conhecer, explicar e validar os
nexos existentes entre as condições sociais, posicionadas historicamente, e as produções culturais
de atores individuais e coletivos, oriundos da interação de conteúdos cognitivos desses atores com
a própria realidade coletiva (tipos de instituição, crenças, doutrinas, racionalidades sociais).
Estaríamos afirmando, então, que é uma reflexão e uma reflexividade do conhecimento
(um conhecimento do conhecimento) que põe a descoberto o sujeito situando-o como parte do
ato de conhecer.
Nesse sentido é que o tema generalização se tornou um problema epistemológico central
na Sociologia do Conhecimento. A possibilidade de universalizar verdades que foram construídas com base em um processo de pesquisa particular em uma realidade particular. Por isso,
devemos traçar os limites do que queremos dizer e mostrar claramente que é sobre uma parte
que queremos nos dedicar.
Isso Bourdieu (1983) denomina de construção do objeto. O grande desafio nosso é construir
um objeto. A generalização consiste em atribuir a uma totalidade o que foi observado em um
número limitado de indivíduos ou de casos singulares. Dá lugar ao genérico, isto é, a classes de
objetos, a conceitos ou proposições que se referem ao caso médio, ao caso típico ou ao normal
do gênero.
A generalização é a operação intelectual que reúne em uma classe, em um conceito ou
em uma proposição um conjunto de objetos singulares com características comuns. Refere-se a
um número finito ou indefinido de indivíduos, nisso diferindo da universalização. Aplica-se aos
indivíduos de uma classe, de um conceito ou de uma proposição dada.
Por exemplo, o conceito de “computador” é geral. Distingue-se de coletivo, que se aplica
a indivíduos como grupo. O conceito de “rebanho” é coletivo. O geral se funda na operação de
generalização, enquanto o coletivo se funda na totalização do singular. O geral distingue-se do
universal, que é um caso extremo, no qual todos os indivíduos, sem exceção, estão incluídos.
Nas áreas das Ciências Humanas e Sociais, no que se refere à generalização, existe um
divisor de águas que separa os métodos positivistas dos demais. Nos processos de explicação
não positivistas – referidos a estruturas, a casos, a tipos e a fenômenos –, a generalização é,
forçosamente, restrita. Pode-se generalizar os conceitos – por exemplo, um conceito instituído
especialmente para uma pesquisa, como o de “capital burocrático”; pode-se estabelecer proposições – como a de que os trabalhadores encontram fórmulas para sobreviver ao trabalho –,
mas não se pode atribuir a uma classe (muito menos a uma totalidade) o que foi observado ou
inferido num dado segmento espaço-temporal. Isso só é possível nos processos de explicação
ditos positivistas (posit: o que está posto).
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EaD
sociologia do conhecimento
Estes utilizam sistemas de inferência indutivos – vale dizer, métodos e técnicas em que o
raciocínio parte de dados particulares (fatos, experiências, enunciados empíricos) –, determinando – por uma sequência de operações cognitivas de extensão, extrapolação ou analogia – classes
mais gerais, indo dos efeitos à causa, das consequências ao princípio, etc.
É pelo poder de ruptura e de generalização que se reconhece e que se conhece o modelo
teórico de uma pesquisa (Bourdieu, 1994). A generalização precisa de condições para se efetivar.
Em primeiro lugar, verificar se os materiais analisados são de uma amostra representativa de um
universo específico de materiais e, em segundo lugar, observar se as relações verificadas entre
determinadas condições e suas consequências são universalmente válidas (vejam: a definição de
capitalismo de Weber e de Marx são generalizações que servem para nossa ideia de capitalismo
até hoje, mas é o capitalismo que você percebe aí em sua cidade, em sua região, em seu país?
Convém lembrar que o estabelecimento de leis científicas está relacionado ao projeto de pesquisa,
dependendo do desenvolvimento dos conceitos e da formação de hipóteses (Bourdieu, 1994).
A forma mais simples de enunciado sobre como uma coisa funciona é uma generalização, ou
seja, uma observação sobre como duas ou mais variáveis se relacionam: mulheres recebem salários
menores do que os homens... Há muitos desacordos entre os sociólogos se essas generalizações
funcionam para explicar as coisas, pois parece que a generalização apenas resume algo a ser explicado. A generalização pode sugerir uma formulação teórica correlata, mas isso não é suficiente
para torná-la puramente teórica... em Sociologia não afirmamos abstratamente alguma coisa sem
relacioná-la empiricamente. Generalização é esforço de teorização. A comparação e a generalização, tal como ocorrem de forma sistemática na Ciência e na Filosofia, estão associadas à abstração.
Emerge em um momento em que o pensamento é capaz de operar por meio de conceitos e proposições, podendo alçar voo em direção de hipóteses e teorias, por não estar mais preso a materialidade
de objetos concretos particulares. Generalizar é separar mentalmente para tomar em consideração
uma propriedade que não pode ter existência fora do todo concreto ou intuitivo em que aparece.
Diferenciar e comparar com o objetivo de encontrar, entre as diferenças aparentes, as similaridades
e os padrões, as regularidades, enfim, que dão origem à generalização (Barbosa, 1998).
É na socialização do conhecimento que vamos esclarecer como fizemos nossos estudos,
os caminhos, os impactos, as conclusões parciais e as conclusões gerais a que chegamos. Quem
quiser duvidar de nossas “verdades científicas” terá de fazer os mesmos caminhos e provar que
pode duvidar e chegar a outras conclusões.
É aí que a ciência se torna grandiosa: poder socializar os diferentes pontos de vista. Isso,
no entanto, pode chegar a um relativismo exagerado. Por isso precisamos pôr as verdades em
diálogo e chegar a um entendimento mais unívoco sobre tal fenômeno (não precisa ser um único
entendimento, mas esforçar-se para unir o máximo). Sem isso, teríamos o irracionalismo...
Na medida em que temos algumas convergências de entendimentos sobre fatos/fenômenos,
então se consagra conhecimentos, conceitos, metodologias, expressão sobre realidade, que pode
ser usada para orientar práticas políticas, culturais, sociais, educacionais, econômicas, jurídicas...
Isto quer dizer que se instituiu o saber, reconhecido pela comunidade científica.
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EaD
Enio Waldir da Silva
Unitas multiplex
Sabe-se que a pesquisa não é apenas a pretensão de descre-
significa unidade
do múltiplo.
ver fatos reais, mas se apresenta como construção que diz respeito
a fatos socialmente construídos. Há, portanto, uma distância entre
interpretação e realidade.
As especializações no seio da Sociologia (Sociologia do trabalho, Sociologia rural, Sociologia religiosa, Sociologia dos tempos
livres, Sociologia dos meios de comunicação social, etc.) trouxeram
uma compartimentação interna que devido à multidimensionalidade
e à complexidade das realidades sociais, desintegra toda a possibilidade de conceber a sociedade como um todo, constituindo uma unitas
multiplex. A Sociologia geral torna-se não mais o conhecimento de
um sistema complexo e multidimensional, mas ora um saco vazio,
ora uma teoria abstrata em que se dissolvem, aqui o sistema, ali o
complexo e o multidimensional. Somos abandonados a uma alternativa perversa: Sociologia em migalhas ou Sociologia abstrata. De
um lado, as pesquisas fechadas e sem horizonte, do outro as teorias
arbitrárias e racionalizadoras (Morin, 1998).
A Sociologia não pode perder de vista o concreto, os acontecimentos, os fenômenos da vida cotidiana, do presente, os grandes
problemas antropossociais. Trata-se, como afirma Morin (1998), de
simultaneamente rever os problemas das teorias fundamentais e de
interrogar o presente imediato, incluindo os acontecimentos.
Como a cientificidade é parcial e inacabada em toda a Sociologia,
todo o sociólogo é parcialmente um científico e parcialmente um cidadão
e, no entanto, deve tentar atingir um conhecimento pertinente, correndo
os seus riscos intelectuais, e ao mesmo tempo, viver o seu mundo em
inter-relações. Enquanto intelectual, a receita de Morin é
empenhar-se pessoalmente na sua interrogação dos fenômenos e dos
acontecimentos; aventurar-se no seu diagnóstico e no seu prognóstico;
problematizar de maneira crítica o que parece evidente e natural,
mobilizar a sua consciência e a sua reflexão de humano e de cidadão,
elucidar os seus pares intelectuais. Tanto deve pesquisar e utilizar
dados fiáveis e verificáveis como desenvolver um pensamento pessoal.
Em vez de se refugiar numa gíria anônima que crê científica, deve
empenhar-se numa escrita singular, e assim se afirmar plenamente
como autor (1998, p. 13).
16
EaD
sociologia do conhecimento
Pela socialização do conhecimento o sociólogo esclarece como fez os estudos, os caminhos,
os impactos, as conclusões parciais e as conclusões gerais a que chegou. Quem quiser duvidar
das “verdades científicas” terá de, ao menos, fazer os mesmos caminhos e provar que pode duvidar e chegar a outras conclusões.
É aí que a ciência se torna grandiosa: poder socializar os diferentes pontos de vista. Isso, no
entanto, pode chegar a um relativismo exagerado. Por isso precisamos pôr as verdades em diálogo
e chegar a um entendimento mais unívoco sobre aquele fenômeno (não precisa ser um único
entendimento, mas esforçar-se para unir o máximo. Sem isso, teríamos o irracionalismo...).
Na medida em que temos algumas convergências de entendimentos sobre fatos/fenômenos,
então se consagra conhecimentos, conceitos, metodologias, expressão sobre a realidade que pode
ser usada para orientar práticas políticas, culturais, sociais, educacionais, econômicas, jurídicas...
Isto quer dizer que se instituiu o saber, reconhecido pela comunidade científica. Embora isso pareça tarefa da epistemologia, o destaque está ao mostrar que a gênese social do conhecimento é parte da força de validade para um contexto histórico determinado. Se
as épocas afetam as ideias dos homens, estas também afetam as épocas e se tornam igualmente
fatos passíveis de serem investigados. Isto quer dizer que não existem conhecimentos particulares, individuais: o saber sempre está vinculado a uma forma social, o que torna impossível a
produção de uma verdade única.
A epistemologia, disciplina oriunda da Filosofia, se diz incumbida de estabelecer o estatuto
de verdade e objetividade do conhecimento científico, verificando a gênese em si do conhecimento
e não a sua lógica temporal, circunstancial, local e cultural dos diferentes contextos. Trata-se,
então, de uma dinâmica mais realista e empirista que marca o diferencial da Sociologia do Conhecimento e a epistemologia.1
Não vamos nos prender nestas indagações mais abstratas que certamente são importantes
para o sociólogo, mas que podem estar relacionadas ao seu condicionamento reflexivo sobre
as próprias possibilidades de fazer ciência. Queremos aqui destacar melhor o lugar do conhe-
1
Não vamos nos dedicar aqui a esta polêmica sobre o que é Sociologia do Conhecimento e epistemologia. Basta-nos
referenciar que esta faz parte dos aportes da Filosofia que não está preocupada essencialmente com os elementos
empíricos dos conhecimentos. Sua fantástica colaboração é buscada nas próprias abstrações e aquela é parte da
Sociologia, que inversamente, se dedica às relações sociais efetivas no tempo e no espaço. A quem interessar saber
mais sobre este embate leia: Espinosa, Emilio L.; Garcia, José M. G.; Alberto, Cristóbal T. Los problemas de la
Sociología del conocimiento: sociología del conocimiento y epistemología. In: La sociologia del conocimiento y de
La ciência. Madrid: Alianza Editorial, 1994. p. 127-147. Dizem os autores: A ortodoxia acadêmica neopositivista do
Círculo de Viena solucionou este problema distinguindo com Hans Reichenbach o contexto social da descoberta do
conhecimento e o contexto de sua justificação, ou seja, distinguindo entre a gênese dos conhecimentos e a sua validade.
Com isso se tratava de assinalar que mesmo que os conhecimentos possam emergir de formas sociais concretas, sua
validade teórica como conhecimento verdadeiro (ou falso) deve ficar à margem das análises sociais, pois diz respeito a
argumentos abstratos lógico-experimentais, cuja elaboração cabe à Epistemologia ou à Filosofia da Ciência. A análise
social da gênese nada poderia dizer sobre a validade dos conhecimentos (Lamo de Espinosa e colaboradores, 1994, p.
128).Tradução livre de Rodrigues, 2002.
17
EaD
Enio Waldir da Silva
cimento na sociedade e o lugar da sociedade no conhecimento. Sabemos da dificuldade desta
empreitada, mas podemos colocar os seguintes pressupostos que são inerentes à produção de
conhecimento em Sociologia:
Pressuposto I – A Diferencialidade de Manifestação dos Fatos/Realidades: Significa que
embora se tenha um saber instalado, que interpreta as realidades/fatos/fenômenos sociais, em
Sociologia se exige que se busque relacionar este conhecimento anterior com o tempo e espaço
de agora, do tempo presente, pois os fatos sociais não se manifestam da mesma forma nos diferentes tempos e espaços.
Pressuposto II – A Inserção do Sujeito do Conhecimento nos Fatos/Realidades: Embora se
valorize muitos os aspectos analíticos/reflexivos do conhecimento, é preciso considerar que este
saber partiu de um sujeito com trajetórias existenciais inseridas em realidades que influenciam
em seu potencial reflexivo. Trata-se das trajetórias culturais e escolares do pesquisador.
Pressuposto III – Objetividade da Busca do Conhecimento ou Posição Histórica Diante dos
Fatos/Realidades: Embora o sujeito e o objeto estejam circunstanciados pelo tempo e espaço, é
preciso dimensionar os objetivos pelo quais o conhecimento foi produzido e sua inserção nas
relações de poder. Trata-se de mostrar que o pesquisador sempre tem uma posição de classe (um
mundo que defende) nas relações sociais existentes. Estas posições podem não ser correspondentes às situações de classe (condições econômicas reais que possui).
Pressuposto IV – As Potencialidades de Socialização do Saber: Significa entender que o conhecimento precisa ter potencialidades para ser socializado e dialogado, ou seja, ser democrático
e democratizante, pois todo o saber deve elucidar a vida e não desprezá-la. Ou seja, se não levar
isso em conta, estamos apenas diante de uma técnica de poder e não de um saber científico. Dito
de outra forma: o conhecimento relevante deve ser discernido na gramática social.
Pressuposto V – Ação Orientada do Sujeito/Ator do Conhecimento nos Fatos/Realidades: O
próprio sujeito do conhecimento precisa encontrar no seu saber potênciais de orientação da vida
prática e inserir-se no mundo em que pesquisa. Considerando as lutas universais presentes em
uma circunstância histórica, o sujeito do conhecimento deve se inserir em um movimento social
e societal. Nesse momento podemos dizer que os conhecimentos devem se dirigir para fortalecer
os seguintes movimentos sociais universais: Movimento Ecológico: Meio Ambiente; Movimento de
Mulheres: Cultura de Igualdade e Diferença; Movimento pelo Bom Uso da Terra – Sustentabilidade; Movimentos Culturais – Direito à Diferença; Movimento pelos Direitos Humanos – Dignidade
da Pessoa; Movimento da Economia Solidária – Trabalho, Renda e Solidariedade.
Desse modo a produção do conhecimento deve ter como papel básico libertar as inteligências, uma vez que a atual sociedade é fruto da natureza intelectual e espiritual dos indivíduos.
Devemos fazer ciência para além de um tempo histórico, de uma vida particular, de um governo,
18
EaD
sociologia do conhecimento
de uma empresa, de um mercado, de um local, ou seja, contribuir para o mundo, desvendando
as relações e determinações, nem sempre manifestadas nas diversas dimensões da vida humana
em sociedade. Na totalidade destas, o ser em sociedade, o fazer, o saber, o comunicar-se, o poder,
não possuem denotações independentes, pois se afirmam pelo transpasse de uns nos outros,
identificam-se e permitem a compreensão de seus movimentos somente no confronto de seus
outros. A reciprocidade e as representações incidem sobre a vida em sociedade, que é produto
e produtora da forma como o homem se situa na realidade e a si mesmo. O trabalho, o existir
social, os processos cognitivos, os signos, as relações de poder, são lugares sociais em que se
produz conhecimento e nele incidem (Marques, 1997).
Para atingir esta vigilância sobre próprio trabalho de pesquisa, vamos elucidar aqui alguns passos que são importantes em uma pesquisa científica. Trata-se das primeiras abstrações
necessárias para iniciar um procedimento de pesquisa: a realização do projeto – a escolha de
um tema que proporcione a criação de um objeto, que se justifica cientificamente, socialmente e
praticamente. O outro passo é verificar que produções já abordaram este objeto, para que, assim,
se possa tirar uma novidade na minha abordagem, na minha problematização, no meu problema
de pesquisa e elucidar minhas hipóteses. Na fase seguinte passo a identificar o processo de pesquisa com o quadro científico existente, com as dimensões teóricas referentes, onde se escoram
os conceitos utilizados na metodologia escolhida. Por último devo mostrar como vai se dar a
pesquisa no tempo e no espaço que possuo, na realidade onde ela se insere e se conclui.
Este esquema é uma exposição lógica de como é possível abordar uma realidade. O domínio
das técnicas e dos procedimentos de elaboração e apresentação dos tratados, estudos e pesquisas garante a qualidade formal do material em questão, facilitando os critérios de avaliação dos
mesmos. Trata-se de, a partir de algumas diretrizes operacionais, desenvolver um instrumental
de apoio às atividades didático-científicas dos professores que buscam desenvolver competências
específicas nos seus alunos em formação.
Sabe-se que a questão da competência supõe não apenas o domínio de conteúdos e técnicas próprios à especificidade da atividade profissional, como também o domínio de aspectos
relacionados à forma e à sistematização do próprio pensar.
O processo de produção do conhecimento sobre o mundo social passa necessariamente
pela reelaboração daquilo que vemos, na forma de representações. Ou seja, para tentar compreender o mundo é preciso, num primeiro momento, desconstruí-lo, assim como faz o mecânico
de automóveis, que para compreender seu “objeto”, qual seja, o motor, precisa desmontá-lo para
depois remontá-lo, agora munido de um saber enriquecido pela práxis.
Assim, o cientista social ao se deparar com seu “objeto”, precisa desenvolver uma atitude
crítica de forma a “desmontar” este “objeto”, na forma de categorias conceituais, buscando o seu
entendimento, também enriquecido pela práxis. Esclarecendo que:
19
EaD
Enio Waldir da Silva
1 – TEMA: Realidade que será estudada: escolha do tema (importância social x importância
científica).
2 – OBJETIVOS: Delimitar os elementos efetivos que vão ser abordados, o objeto de estudo efetivo, o que vai procurar no tema.
3 – JUSTIFICATIVA: Como originou o interesse em estudar o tema. Temos três tipos de justificativa:
Interesses Científicos: contribuições para as ciências.
Interesses Políticos-Sociais: implicações nas relações sociais que a investigação poderá
atingir.
Interesses Práticos Específicos: dimensões institucionais práticas elementares que a pesquisa responde.
4 – REVISÃO BIBLIOGRÁFICA: Mostrar que pesquisas já abordaram seu objeto de estudos e o
diferencial que esta pesquisa terá em relação àquelas. Trata-se de expor a síntese da análise
compreensiva feita pela pesquisa bibliográfica dos autores pesquisadores mais próximos
ao nível de investigação do seu estudo (outras monografias, textos, artigos, teses e livros de
autores não paradigmáticos). Não se trata da teorização, mas de um mapeamento do conhecimento existente para garimpar seu objeto.
5 – PROBLEMA DE PESQUISA:
A) Problematização: mostrar quais as impressões já obtidas do objeto investigado, as receptividades do investigador com as informações, as inquietações, as novas dimensões suscitadas
e os indicativos iniciais das principais interrogações.
B) Definição do Problema de Pesquisa: fazer a derradeira pergunta sobre a realidade e os
entendimentos já obtidos. A pergunta deve fazer o rompimento com o senso comum e os
conhecimentos já existentes sobre o objeto. Esta pergunta deve ter uma densa relação com
os objetivos e ao mesmo tempo encaminhar a abordagem teórica que embasa a reflexão
do tema.
6 – HIPÓTESES: Hipóteses são proposições que antecipam a resposta para a pergunta do problema de pesquisa. A função da hipótese é conduzir a constatação inicial da realidade a ser
investigada, fazer a conexão necessária entre a teoria e a realidade, fazer a crítica, desafiar
e provocar o interesse pelo tema.
7 – QUADRO TEÓRICO: Delinear a visão teórica do investigador sobre o objeto da pesquisa,
apontando os autores paradigmáticos que têm possíveis relações com a configuração da
pesquisa que se está fazendo. É o possível enquadramento da pesquisa no horizonte teórico
de sua área de conhecimento. Não necessariamente é a filiação teórica, mas sim a relação
sinalizadora do fortalecimento de escolas científicas ou de modelos explicativos, pois é evi20
EaD
sociologia do conhecimento
dente que o uso de conceitos tem relação com seus criadores. É no quadro teórico que são
demonstrados os conceitos que vão ser utilizados, seus significados e as possíveis mudanças
de sentido que haverão na presente pesquisa: “os pesquisadores precisam precaver-se contra
a tendência de refletir a realidade social sem a problematizarem, produzindo dados sem teoria
e a idéia de que a teoria sem dados pode falar em nome da realidade” (May, 2004).
8 – METODOLOGIA: Combinação entre teoria e prática (indutivismo e dedutivismo), em que
se pode dividir os métodos em Ciências Sociais para:
8.1: BUSCA DE DADOS: Destacar o objeto no tempo e no espaço, sendo a amostragem que
exige metodologia adequada para a sua abordagem. É a escolha dos métodos e das técnicas que vai utilizar para recolher os dados, organizá-los e analisá-los. É descrever o
método escolhido. Geralmente a metodologia está vinculada ao problema de pesquisa, às
hipóteses e ao quadro teórico reflexivo antes enunciado. O método coordena as técnicas
de coleta, a busca de informações e delimita a amostra.
Métodos nas Ciências Sociais: Estudo bibliográfico, Estudos Comparativos, Observação
Participante, Estatístico, Estudo de Caso, Reconstrução Histórica, História Oral, História de Vida,
Observação Participante, Entrevista Dialógica, Pesquisa Documental, Pesquisa Comparativa.
Técnicas de Pesquisas em Ciências Sociais: Análise de documentos, pesquisa bibliográfica,
análise de dados estatísticos, entrevistas, questionários, história de vida, história oral, análise de
mensagens, análise de discursos, técnicas visuais...
8.2: INTERPRETAÇÃO DOS DADOS:
– Método positivista
– Método dialético
– Método compreensivo
– Interacionismo.
9 – PLANEJAMENTO DA EXECUÇÃO
Organograma da Ação: Apontar os passos na pesquisa no tempo e no espaço em que vai
ser realizada e concluída.
Quadro 1
ATIVIDADES
BUSCA E ORGANIZAÇÃO DOS DADOS
ANÁLISE, DESCRIÇÃO DOS DADOS
INTERPRETAÇÃO DOS DADOS
ESCRITA FINAL
REVISÃO FINAL
COMUNICAÇÃO DOS RESULTADOS
OU APRESENTAÇÃO
1
X
2
X
3
X
4
5
6
X
X
X
5
8
X
X
9
10
X
X
11
12
X
X
Fonte: Elaboração do autor.
21
EaD
Enio Waldir da Silva
A pesquisa científica deve ser planejada, antes de ser executada. Isso se faz mediante
uma elaboração que se denomina “projeto de pesquisa”. O projeto de pesquisa é um documento
que descreve os planos, fases e procedimentos de um processo de investigação científica a ser
realizado.
Talvez uma das maiores dificuldades, de quem se inicia na pesquisa científica, seja a de
imaginar que basta um roteiro minucioso, detalhado, para seguir e logo a pesquisa estará realizada. Na verdade o roteiro existe: são as diversas fases do método; entretanto uma pesquisa
devidamente planejada, realizada e concluída não é um simples resultado automático de normas
cumpridas ou roteiro seguido. Antes deve ser definida como obra de criatividade, que nasce da
intuição do pesquisador e recebe a marca de sua originalidade, tanto no modo de empreendê-la
como de comunicá-la. As fases do método podem ser vistas como indicadoras de um caminho,
dando, porém, a cada um, a oportunidade de manifestar sua iniciativa e seu modo próprio de
se expressar.
É evidente que a Sociologia defende um pluralismo metodológico para as pesquisas. Os
procedimentos para compreender o mundo social tornam-se objetos de interpretação conflituosa
e fonte de ricas argumentações. A observação é a construção intersubjetiva dos significados. Na
pesquisa social temos de considerar a imensa relevância que existe entre o pesquisador e o ator
social, o que influencia na definição do objeto de pesquisa.2
Todo o processo de pesquisa deve expressar-se na escrita. Esta escrita tem uma dimensão
especial. Segundo Mario Osorio Marques (1998):
[...] uma das minhas primeiras aprendizagens foi a constatação de que o desafio da escrita é o começála, no seu todo e em cada uma de suas partes. Isso porque só escrevendo se escreve, não se trata de
preparar-se para o escrever. É ele um ato inaugural, começo dos começos... iniciar sem pressa... depois,
assunto puxa assunto... escrever puxa leituras que puxam o reescrever.
Marques (1998) tenta nos mostrar a atividade especial que é a escrita no processo pesquisante, afirmando que é preciso escrever antes e pensar depois: “escrevia-se antes o que se
pensava. Agora entendo o contrário: escrever para pensar, uma forma de conversar”.
A pesquisa só se inicia pela definição do seu começo (o tema ou assunto, o problema, a
hipótese...) o título é o começo... Quando encontro o título tenho um começo... Pode modificar
depois... quem escreve quer se ver e procura amigos para conversar... quando temos na cabeça
um assunto, em toda a parte topamos com referenciais a ele. Escrever é uma paixão. Quando se
tem um título-tema-problema-hipótese vive-se com ele o dia todo. Dorme-se com ele, acorda-se
com ele.
2
Rudio, Franz Victor. Introdução ao projeto de pesquisa. 31. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
22
EaD
sociologia do conhecimento
Entende-se que o texto escrito contém as palavras que revelam o outro, que se aviva no
ato da leitura. Elimina-se pontos de vista privilegiados, pois o autor e o leitor se equilibram no
sentido do texto e nas aberturas possíveis para as múltiplas culturas presente nos dois.
Vivemos um tempo de cultura escrita. A linguagem é escrita e este é o desafio da expressão
científica.
Gostaríamos de ter um tempão para escrever. Não adianta, não o temos e se o tivéssemos duvido que
escrevêssemos melhor. A criatividade não é bicho que se agarre; ela surge nos interstícios, na imaginação, de forma que, quando menos se espera, escrever é preciso... [...] Há gente que não começa
alegando precisar de tempo. Andam à procura não do tempo perdido, mas do tempo que não lhe dão.
Falta tempo ou falta paixão? ... O tempo é pastoso, algo se espicha ou se comprime como se quer,
que se amolda a nossos amores... escrever não é obrigação insípida... [...] Escrever é preciso e nisso
está o contra-ponto do dito popular “viver é preciso”, porque viver é entender-se consigo mesmo,
dizendo-se a si ao dizer-se a outrem na fala do face-a-face, ou melhor, da fala-escuta, ou no dizer-se à
folha em branco. Viver sem saber não é viver... [...] Entender as razões do apelo a essa segunda forma
de reconciliar-se consigo mesmo, a do escrever, é chegar a ser profundo, não raso... para o professor
escrever é princípio de vida, impulso vital e problema profissional de um ser sempre pesquisante que
ensina a pesquisar, a aprender a aprender... usa-se o suporte físico da folha (ou tela), suporte histórico
da gramática e do dicionário para que se escreva para conversar (Marques, 1998).
A palavra falada se prolonga na palavra escrita, em que a linguagem se torna memória e
energias intelectuais concretizadas, reservatórios de contextos de experiências que servem para
interpretação do mundo.
A Sociologia do Conhecimento reserva um papel especial para a linguagem: o de mediadora
da experiência humana. Ela concretiza o mundo pensado e é potência desveladora da palavra
que suplanta a prepotência subjetiva dos interlocutores, desalojando-os do empenho da imposição monológica dos próprios pontos de vista subjetivos ou fixamente objetivados. Na escrita,
no texto, o significado supera o autor e o intérprete tem de relacionar o texto com sua própria
situação, pois é sujeito histórico concreto que possui seus conceitos, crenças, ideais, critérios,
normas e culturas (Marques, 1993).
Assim, convidamos você a conversar lendo o texto que mostra a origem e o desenvolvimento
das preocupações da Sociologia do Conhecimento nas Ciências Sociais.
23
EaD
Enio Waldir da Silva
Seção 1.2
O Conhecimento na Visão dos Clássicos – a origem
Na Sociologia clássica já vemos este esforço para mostrar que os entornos sociais estão
sempre a provocar os produtores de conhecimentos, sejam eles científicos ou conhecimentos sociais (conhecimentos simples, advindos das experienciações de vida). Em Marx, estaria expresso
nos conceitos de Materialismo Histórico e na Dialética, em Dukheim em Categorias Sociais e em
Weber em Afinidades Eletivas (Rodrigues, 2005).3
Na visão de Marx, o sistema social moderno é um sistema criado por uma classe, a burguesia, com mecanismos para garantir o controle e a ordem que lhe interessa. Tudo fica submetido
à lógica deste sistema. Esta lógica é distribuída pela ideologia, pelas práticas econômicas e pelo
conjunto de instituições que agrega poderes de organização e co­ação. Toda a teoria de Marx é
possível de ser inserida neste esforço de explicar as relações sociais e a dinâmica do pensamento
na sociedade.
Em sua expressão “materialismo” é buscada a base na realidade sensível vivenciada
pelos homens (no mundo do trabalho, da economia), para configurar uma teoria propositiva,
da possibilidade objetiva, que pretendia revolucionar as ideias para transformar as formas de
interpretações das realidades. Essa era a essência de suas referências, a dialética. Por exemplo,
as lições da história humana sempre foram vistas sob o ponto de vista dos vencedores, dos dominadores. Sua função (da teoria) era também recuperar a história da sociedade pela visão dos
vencidos, dos operadores (dos operários), para justificar sua assertiva de pretender fazer uma
revolução nas formas de organização social da sociedade (com sua teoria do poder, da política e
da dominação). Ou seja, podemos ler nas milhares de páginas escritas por Marx a diversidade
de temas tratados, ora tentando elaborar um conjunto de novas concepções globais de sociedade,
de homem e de mundo e ora querendo contribuir modestamente, por meio de pesquisas, para a
luta revolucionária do movimento operário.4
A teoria de Marx trata-se de uma proposta científica (baseada em métodos de pesquisa),
uma teoria do conhecimento que recupera a dialética (que nos desafia a buscar um motivo para
buscar saberes), uma teoria da economia política (propondo uma sociedade igualitária) e também
uma ciência da sociedade, pois é uma teoria que compreende os problemas centrais da nossa
sociabilidade humana e propõe soluções que não são somente na lógica pensada, mas na prática
Rodrigues, Leo Peixoto. Introdução ao conhecimento, da ciência e do conhecimento científico. Passo Fundo: UPF, 2005.
p. 14
3
Silva, Enio Waldir da. Teoria Sociológica I. Ijuí: Ed. Unijuí, 2008.
4
24
EaD
sociologia do conhecimento
social. Enquanto método de pesquisa, temos a possibilidade de conhecermos a nós mesmos no/e
pelo processo de conhecimento da sociedade em que vivemos. A dialética é o movimento recíproco entre teoria e prática, entre sujeito e objeto e é um processo de constante passagem fluida de
uma determinação a outra no processo histórico (Silva, 2008). Os desdobra­mentos da “essência
prática da teoria”, consolidados no lema “unidade de teoria e prática”, dependem da elevação
conceitual do proletariado à condição de sujeito e objeto do processo histórico, mediando assim
a relação entre consciência e realidade.5
Ao esclarecer o papel da dialética para o proletariado, Marx pressupõe desvendar a ideia
de trabalho que se apresenta ao trabalhador e aos demais membros da sociedade. Com uma
organização corpórea, o homem se destina a manter relações contínuas com a natureza circundante e assim vai destinguindo-se do animal na produção de seus meios de existência e a se
autoproduzir na produção da realidade humano-social.
Como atividades prospectiva, o trabalho marca a eficácia do futuro sobre o presente, pela
representação antecipatória da necessidade, pelo recurso ao instrumento, suspensivo da ação
imediata, e pelo recurso ao símbolo com que se faz obra coleitva. É o conhecimento que orienta e
dinamiza a prática e esta ultrapassa o saber no apelo ao risco da imaginação, ao questionamento,
à invenção do futuro, e pelo qual a solidariedade do rito e do mito conduz o grupo para além
da experiência imediata. Além de catagoria antropológica, o trabalho é a categoria da teoria do
conhecimento, referindo-se ao homem como seu esquema de agir e pensar.
Podemos ver em Karl Marx que as configurações de conhecimento se deslocam da mera
descrição dos objetos dados para a procura das formas de produção do real, contituindo-se a
consciência em determinante da realidade, ao mesmo tempo que é por ela determinada e gerando a ambas. Com isso Marx enfrenta e responde à necessidade de diferenciar a consciência
burguesa tipificada na mentalidade original da economia política, de um saber que proporciona
a emancipação social. Trata-se da compreensão de um estado impregnado pelas representações
características de um período particular da sociedade, em que a primazia cabe às forças materiais. Em consequência, deve-se distinguir em primeiro plano a consciência alienada como a
manifestação da sociedade capitalista em nível da produção espiritual. Por fundamentar-se no
fetichismo da mercadoria e na incapacidade da estrutura social para dominar as forças produtivas que ela própria suscitou como aprendiz de feiticeiro, a sociedade capitalista leva ao primado
das forças produtivas materiais. Daí que o plano das ideias e a produção intelectual neste tipo
5
Ver em Lukács, G. História e consciência de classe: estudos de dialética marxista. 2. ed. Rio de Janeiro: Edit. Elfos,
1989 p. 289, e em Marx, Karl. O capital. Crítica da economia política. São Paulo: Difel, Livro 1, 1979.
25
EaD
Enio Waldir da Silva
de sociedade seja caracterizado pela consciência alienada, como forma de objetivação em que
as forças sociais perdem suas características sociais e nessa perda são projetadas para fora de si
(no fetichismo da mercadoria).6
É desta crítica aos pensadores burgueses que a Sociologia tirará a referência fundamental
para a compreensão do caráter ideológico, pois se a sociedade capitalista leva ao primado das
forças produtivas materiais a mentalidade da economia política, logicamente configura uma
consciência mistificada ou ideológica porque está impregnada pelas representações (coletivas)
características de um período particular da sociedade em que a primazia cabe às forças materiais.
Isso significa que, sejam de apelo político como as mencionadas imagens-sinais, sejam
de apelo moral como as imagens simbólico-ideais, todas as imagens ideológicas pressupõem a
transposição em valores e ideais da força de atração dos produtos materiais como campos práticoinertes, uma vez que surgem por falta da identificação com a realidade. Há, aí, a constatação
de que qualquer ciência é uma atividade social prática e, portanto, comporta um coeficiente
humano, notando que é este o posicionamento e a formulação de Marx nas célebres Teses sobre
Feuerbach.
Em decorrência, constata-se que a ideologia não passa de um gênero particular do conhecimento: o conhecimento político que se afirma em todas as estruturas e em todos os regimes,
mas cuja importância e cujo papel variam.
Qualquer movimento dialético está ligado em primeiro lugar à praxis social. A alienação
possui os seguintes aspectos: a objetivação; a perda de si; a medida da autonomia do social; a
exteriorização do social mais ou menos cristalizada; a medida da perda de realidade ou desrealização – de que dependem, em particular, as ideologias como manifestações da consciência
mistificada; a projeção da sociedade e dos seus membros para fora de si próprios e a sua dissolução nessa projeção ou perda de si (Lumier, 2011).
A dialética é aplicada ao sistema capitalista para mostrar que o trabalho é alienado em
mercadorias; o indivíduo alienado a sua classe; as relações sociais alienadas ao dinheiro, etc. Para
Lukács (1989), a dialética é revolucionária e serve para mostrar as razões argumentativas para o
fim da alienação, que começaria a acontecer com o fim na exploração do homem pelo homem, ou
seja, quando for possível promover uma organização da produção igual e uma distribuição igual,
a partir da autogestão e cogestão; promover o fim das classes sociais, o fim dos pri­vilégios dos
lugares sociais e o fim de estruturas políticas que asseguram estes privilégios e a desigualdade,
Conforme Lumier, Jacob. A Utopia do saber desencarnado, a crítica da ideologia e a sociologia do conhecimento. In:
<http://www.leiturasjlumierautor.pro.br>. Acesso em: 12 dez. 2011. Jacob (J.) Lumier. In: As Aplicações da Sociologia do
Conhecimento. Veja mais sobre este autor em <http://www.leiturasjlumierautor.pro.br>. Acesso em: 12 nov. 2009.
6
26
EaD
sociologia do conhecimento
criando um novo Estado, como uma nova esfera pública, o trabalho como livres disposições de
iguais, não uma obrigação externa imposta por outrem, o fim da propriedade privada e a favor
do livre desenvolvimento cultural do homem – promoção da igualdade da totalidade do gênero
humano.7
Então, a assertiva que parece ser a mais central nesta teoria da li­berdade é esta: o homem
só será livre quando o trabalho for livre. Para chegar a esta liberdade, no entanto, é preciso se
libertar da ideologia burguesa (uma outra lógica para pensar o mundo que a dialética proporciona – revolução no pensamento, como diria hoje Edgar Morin – “como queres liberdade se não
sabes o que te prende?” Se souberes o que te prende é preciso saber como se libertar e depois
de liberto deves saber o que fazer com tua liberdade); para fazer isso é preciso se organizar (organizar quer dizer planejar, decidir e agir e isso é política – por isso, no tempo de Marx, o canal
concreto é o partido político); no entanto, de fato, a liberdade só é alcançada quando o mundo
da necessidade não reinar mais entre os homens (por isso mudar o modo de produzir, distribuir
e consumir – e isso é economia de fato).
Para ilustrar a posição de Marx vamos expor aqui as teses históricas do autor:
TESES SOBRE FEUERBACH
Karl Marx
Tese I
O defeito fundamental de todo materialismo anterior – inclusive o de Feuerbach – está em que só
concebe o objeto, a realidade, o ato sensorial, sob a forma do objeto ou da percepção, mas não como
atividade sensorial humana, como prática, não de modo subjetivo. Daí decorre que o lado ativo fosse
desenvolvido pelo idealismo, em oposição ao materialismo, mas apenas de modo abstrato, posto que
o idealismo, naturalmente, não conhece a atividade real, sensorial, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis, realmente diferentes dos objetos de pensamento; mas tampouco concebe a atividade
humana como uma atividade objetiva. Por isso, em A Essência do Cristianismo, só considera como
autenticamente humana a atividade teórica, enquanto a prática somente é concebida e fixada em sua
manifestação judia grosseira. Portanto, não compreende a importância da atuação “revolucionária”,
prático-crítica.
Tese II
O problema de se ao pensamento humano corresponde uma verdade objetiva não é um problema da
teoria, e sim um problema prático. É na prática que o homem tem que demonstrar a verdade, isto é, a
realidade, e a força, o caráter terreno de seu pensamento. O debate sobre a realidade ou a irrealidade
de um pensamento isolado da prática é um problema puramente escolástico.
Silva, Enio Waldir da. Sociologia Jurídica. Ijuí: Ed. Unijuí, 2012. p. 110.
7
27
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Enio Waldir da Silva
Tese III
A teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação e de que,
portanto, homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e de educação modificada
esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador
precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas partes, uma das quais
se sobrepõe à sociedade (como, por exemplo, em Robert Owen). A coincidência da modificação das
circunstâncias e da atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente compreendida como
prática transformadora.
Tese IV
Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa, do desdobramento do mundo em um mundo
religioso, imaginário, e outro real. Sua tarefa consiste em decompor o mundo religioso em sua base
terrena. Não vê que, uma vez realizado esse trabalho, o principal continua por fazer. Na realidade, o
fato de que a base terrena se separe de si mesma e fixe nas nuvens um reino independente só pode ser
explicado através da dilaceração interna e da contradição desse fundamento terreno consigo mesmo.
Este último deve, portanto, primeiro ser compreendido em sua contradição e em seguida revolucionado praticamente mediante a eliminação da contradição. Por conseguinte, depois de descobrir, por
exemplo, na família terrena o segredo da sagrada família, é preciso criticar teoricamente aquela e
transformá-la praticamente.
Tese V
Não satisfeito com o pensamento abstrato, Feuerbach recorre à percepção sensível. Não concebe,
porém, a sensibilidade como uma atividade prática, humano-sensível.
Tese VI
Feuerbach dilui a essência religiosa na essência humana. Mas a essência humana não é algo abstrato,
interior a cada indivíduo isolado. É, em sua realidade, o conjunto das relações sociais. Feuerbach, que
não emprende a crítica dessa essência real, vê-se, portanto, obrigado:
1 – a fazer caso omisso da trajetória histórica, fixar o sentimento religioso em si mesmo e pressupor
um indivíduo humano abstrato, isolado;
2 – nele, a essência humana só pode ser concebida como “espécie”, como generalidade interna, muda,
que se limita a unir naturalmente os muitos indivíduos.
Tese VII
Feuerbach não vê, portanto, que o “sentimento religioso” é, também, um produto social e que o indivíduo abstrato que ele analisa pertence, na realidade, a uma forma determinada de sociedade.
Tese VIII
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que desviam a teoria para o misticismo
encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão desta prática.
Tese IX
O máximo a que chega o materialismo perceptivo, isto é, o materialismo que não concebe a sensibilidade
como uma atividade prática é a percepção dos diferentes indivíduos isolados da “sociedade civil”.
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sociologia do conhecimento
Tese X
O ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade “civil”; o do novo materialismo, a sociedade
humana ou a humanidade socializada.
Tese XI
Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se, porém, de modificá-lo.
Escrito por Marx durante a primavera do 1845. Redigido e publicado pela primeira vez em
1888, por Engels como apêndice da edição em folheto à parte de seu Ludwig Feuerbach.
Publica-se de acordo com o texto da edição em folheto à parte, de 1888, após confronto com
o manuscrito de Marx. Acesso livre na Internet. Google.com.br
Podemos afirmar que em Marx vemos uma compreensão profunda desta relação que existe
entre o mundo das ideias e realidade social, mas não que esta seja a determinante daquela, ou
seja, jamais se poderia transformar o mundo sem ter uma ideia do que é este mundo, mas não
se transforma o mundo apenas pelas transformações de ideias que se tem dele.
Norbert Elias (2008) assim se refere a Marx:
[...] Engels e Marx não derivam suas hipóteses do caráter eternamente determinante da “base econômica” de uma análise do poder relativo dos grupos econômicos especializados na relação com outros
grupos, mas, sim, da convicção de que é possível descobrir “leis”, “necessidades”, “regularidades”
apenas nos aspectos “econômicos” da sociedade. Em sua carta a Bloch, Engels afirma, de modo explícito, o que, freqüentemente, está apenas sugerido em outras afirmações de Marx e também nas
suas: a saber, que eles consideravam somente a “base econômica” como sendo estruturada e todos os
outros aspectos da sociedade como desestruturados, ou, conforme Engels afirmou, “como um monte
de acidentes (i.e., de coisas e eventos cujas conexões internas são tão remotas ou tão impossíveis de
se verificar que nós as consideramos como ausentes, podendo-se ignorá-las)”.8
Marx (1997) expressou que seu trabalho “sustentou desde o primeiro momento, a partir de
condutas científicas, uma importante concepção das relações sociais”. Ele tencionava ampliar a
jovem ciência econômica para além de Adam Smith e David Ricardo, subordinando, porém, todas
as suas afirmações à ideia de que apenas os aspectos econômicos das relações sociais seriam
estruturados, consistindo, por essa razão, em um possível tema de uma ciência da sociedade.
As ferramentas recebidas por ele da emergente ciência econômica tinham-no ajudado
sobremaneira a romper as barreiras intelectuais que um treinamento filosófico impõe aos que se
expõem a ele. Na realidade, Marx ampliou e transformou o uso dessas ferramentas para além
do nível da ciência econômica de sua época.
8
Elias, Norbert. Sociologia do conhecimento: novas perspectivas. In: Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 23, n. 3,
p. 515-554, set./dez. 2008.
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Enio Waldir da Silva
Podemos, facilmente, reconhecer, de maneira retrospectiva, que seu trabalho representa a última
tentativa realizada no século XIX de se ultrapassar a diferenciação crescente da ciência social entre
as especialidades econômica e sociológica. Mas também podemos perceber, relembrando, que ele
conceituou todo aspecto da sociedade que ele concebeu como estruturado – i.e., não acidental – como
um aspecto “econômico”, buscando, da melhor forma que pôde, apresentá-lo como tal. Na época de
Marx, poderíamos ter facilmente a impressão de que os aspectos “econômicos” eram os mais bem
estruturados da sociedade, mesmo porque talvez fossem os únicos aspectos sujeitos às regularidades e
leis reconhecíveis e, por isso, capazes de se tornar objeto principal de uma ciência. A própria escolha
de Marx por tais expressões indica as dificuldades que ele encontrava para ampliar, além dos limites
usuais, o conhecimento do desenvolvimento da sociedade e, com isso, os limites da ciência da sociedade
à sua disposição. Ele foi, por um lado, um pioneiro da transformação do pensamento em um período
em que conceitos reificados, que pareciam referir-se a objetos sociais extra-humanos e impessoais,
foram substituídos por outros, que expressavam com maior clareza as relações ou interdependências
de agrupamentos humanos (por exemplo, no caso do termo “relações de produção”). Por outro lado,
ele próprio elevou para outro patamar essas tendências reificadoras pelo uso de conceitos como
“infra-estrutura” e “superestrutura”, que dão a impressão de apontar para um conjunto de elementos
separados da rede dos grupos que os seres humanos formam entre si – sobretudo na forma como esse
dualismo é representado, como uma característica estrutural de quase todas as sociedades, sem levar
em consideração o grau e o padrão de suas divisões do trabalho e, especialmente, da proporção na
qual as “atividades econômicas” vêm se tornando especializadas, se tomadas em um determinado
estágio do desenvolvimento (Elias, 2008).
Para este autor, é proveitoso perceber as vantagens sociológicas propostas por Marx e
enxergar melhor a maneira pela qual uma antítese problemática, tal como entre “sociedade”
e “consciência”, oscila entre um significado sociológico com referência a um tipo de problema
muito limitado e específico e um significado filosófico que parece abarcar o tempo e a eternidade de todo o mundo dos homens. O modelo de Marx – um genuíno avanço científico disposto
em um molde filosófico especulativo – iniciou uma tradição de pensamento que, desde então,
se faz presente em todos os campos, tanto entre os não marxistas como entre os marxistas. Esse
pensamento dominou, com particular, força as pesquisas em Sociologia do Conhecimento (Elias,
2008, p. 529).
A Sociologia do Conhecimento, entretanto, não preservou a herança marxista – o dualismo
básico entre “sociedade” e “consciência”. Em geral, segundo Elias, as teorias sociológicas contemporâneas do conhecimento abandonaram as suposições especulativas de Marx e suas implicações sobre o desenvolvimento das sociedades, substituindo-as por um tipo de conhecimento
científico e não ideológico da sociedade. Elas foram além e rejeitaram não apenas o modelo de
desenvolvimento social de Marx, mas abandonaram inteiramente o conceito de desenvolvimento
de sociedade, de uma mudança estruturada de longo prazo em uma direção específica.
30
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sociologia do conhecimento
Ao invés disso, recorreram ao conceito de mudança social dos historiadores, segundo o
qual essa mudança seria essencialmente sem estrutura. A esse respeito, o conceito de mudança
social, que fundamenta os problemas da Sociologia do Conhecimento contemporânea, é mais
ou menos idêntico aos conceitos corporificados nas principais escolas de Sociologia teórica do
nosso tempo. De acordo com elas, somente um dado estado da sociedade, somente condições
sociais estáticas são estruturadas; a própria expressão “estrutura social” apresenta-se como uma
regra exclusivamente em tais condições.
Modificações nas condições da sociedade, por outro lado, são concebidas como sem estrutura. Na Sociologia atual não se fala de estrutura de mudança social, tampouco isso é explorado.
Especialistas contemporâneos em teoria sociológica e em Sociologia do Conhecimento guardam
em comum com a maioria dos historiadores a impressão de que as mudanças sociais têm a aparência de uma peregrinação sem fim de grupos que vêm e vão. O conhecimento, as ideias de
todos esses grupos são vistos como igualmente válidos ou inválidos.
O termo “histórico”, como se pode perceber, é usado em dois sentidos diferentes. Grande
parte dessa confusão deve-se ao fato de que não há uma distinção clara entre eles. Os que empregam esse termo não esclarecem de forma nítida quais dos dois significados estão lhe atribuindo.
Ele pode ser usado no sentido em que o empregavam Marx, Comte e muitos outros sociólogos
do século 19 e começo do século 20, em referência às mudanças estruturadas e, em geral, às mudanças estruturadas de longo prazo em uma direção específica. E ele pode ser usado no sentido
em que a maioria dos historiadores e sociólogos contemporâneos o faz, isto é, em conexão com
as mudanças sociais que não possuem estrutura.
Certos modelos de pensamento encontraram suas mais sofisticadas expressões no que a
tradição epistemológica tem infiltrado profundamente em nossa linguagem comum, embora,
dificilmente, estejamos conscientes disso. Eles produzem, por conseguinte, um viés implícito,
uma predisposição despercebida, tanto nas investigações sociológicas quanto em outras, em
favor de certos hábitos de pensamento em oposição a outros.
Já Durkheim fez um esforço para desenvolver um quadro teórico-epistemológico que pudesse assegurar as bases de conhecimento sociológico, concebendo o homem com uma dupla
natureza: individual e social. De certa forma, para ele todas as representações são sempre mentais, expressões simbólicas ou reflexo da realidade empírica.9
Parece clara a inspiração kantiana de Durkheim, ao pensar formas e categorias nos marcos
de uma fundamentação do conhecimento, a partir da identidade formal, funcional e genética das
representações coletivas com as categorias, ligando-as ao processo coletivo de representação
para derivá-las empiricamente de determinações próprias da sociedade.10
É possível ver isso na obra Durkheim, Emile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo, Edições Paulinas:
1989. E em: Regras do método sociológico. São Paulo, Cia. Editora Nacional: 1990.
9
Pinheiro Filho, Fernando. A noção de representação em Durkheim. En publicacion: Lua Nova, 61. Cedec, Centro de
Estudos de Cultura Contemporânea, São Paulo, Brasil: Brasil, 2004. Acesso ao texto completo: http://www.scielo.br/
pdf/ln/n61/a08n61.pdf.
10
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E como um objeto essencialmente social só é passível de apropriação legítima pela Sociologia, o discurso filosófico torna-se inoperante na questão. Historicamente, esse projeto abriga-se
no contexto do impacto que a consolidação das ciências, e em especial da ciência positiva dos
fatos sociais, tem sobre a Filosofia pensada como uma teoria da totalidade dos entes e sua representação. A constituição de ontologias regionais a respeito do mundo passa para o domínio das
ciências que se autonomizam, reivindicando para si a primazia de uma notação crível do real
porque empiricamente demonstrável. Assim, está implícito na redução social das categorias que
um saber sobre o conhecimento é um saber sobre o mundo, e a proposição da sociedade como
seu espaço de constituição lógica remete à clivagem de uma região estipulável pela ciência.11
Durkheim pensa o conhecimento a partir da tradição da Filosofia crítica e com ela, demonstrando apreço pela trama dos conceitos em Kant – em si legítima embora insuficiente no diagnóstico durkheimiano, de sorte que é preciso avançar do ponto em que o kantismo se detém.
Sobre esta ligação de Durkheim com Kant, argumenta Pinheiro:
[...] Assim, tanto o filósofo como o sociólogo concordam que o conhecimento tenha um problema
essencial de fundamentação racional. Dado esse piso comum, a solução durkheimiana se constitui
alicerçada na definição das categorias como uma espécie do gênero das representações coletivas,
identificando-as. Mas, se o inteiro significado dessa operação só pode ser recuperado à luz do legado
kantiano que pretende superar, e com especial ênfase na incorporação da vertente neocriticista, cabe
antes fazê-lo surgir de seus próprios móveis internos, a partir das concepções de natureza humana e
representação. A categoria é também um fenômeno, mas de tal generalidade que não pode reduzir-se
à cadeia empírica que a precede. Se a síntese sob categorias é fenomênica, ela é maior do que a pura
soma dos elementos dispersos na experiência. Desse modo, para Durkheim o segmento mais abrangente do mundo empírico é a experiência coletiva, a categoria totalidade tem por substrato a própria
sociedade e toda categoria, como representação coletiva, é resultado de uma síntese sui generis a partir
do fato dos homens associados, sem possibilidade de remissão à consciência individual. De certo modo,
a teoria das representações coletivas, esteio da nova epistemologia sociológica, aproveita a estrutura
do sistema de Renouvier modificando-lhe o conteúdo, ao conceber categorias como representações
coletivas. Mas essa passagem tem para Durkheim a dimensão de ato fundante de uma nova ordem
intelectual. Rebatendo as categorias para o plano da sociedade, a Sociologia desponta como a disciplina a que caberia por direito tratar das questões epistemológicas. Mais que a superação do dilema
empirismo versus apriorismo, a manobra de Durkheim visa superar a Filosofia por dentro de seu campo.
Do ponto de vista da contribuição à Sociologia contemporânea, torna-se irrelevante discutir se logrou
fazê-lo. Mais importante é salientar que, nessa tentativa, abre espaço para pensar o plano simbólico
não como reflexo, mas como instituinte da realidade social (2004, p. 208).
11
Durkheim, Émile . Pragmatismo e sociologia. Porto: RES Editora, 1988.
32
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sociologia do conhecimento
A chave para a compreensão da origem da dualidade da natureza humana, expressa na
imagem do homem como ser dividido entre corpo e alma, está na cisão constitucional que isola
e opõe dois mundos distintos. De um lado, como emanações da base orgânica, as sensações e
os apetites egoístas, de foro estritamente individuais; de outro, as atividades do espírito, como o
pensamento conceitual e a ação moral, necessariamente universalizáveis.
Essa é a fórmula do homo duplex,12 constatação de um duplo centro de gravidade da vida
interior: “Há, de um lado, nossa individualidade, e, mais especialmente, nosso corpo que a funda;
de outro, tudo aquilo que, em nós, exprime outra coisa que não nós mesmos” (p. 318). O espírito
humano seria um sistema de fenômenos em tudo comparável aos outros fenômenos observáveis.
Tomado como coisa, objetivação que supera as idiossincrasias dos psiquismos individuais, ele
revela por meio de sua origem na sociedade a sua verdadeira natureza.
Durkheim associa a oposição encontrável nos fatos entre corpo e alma àquela que desenvolve nas formas entre sagrado e profano. Existe uma hierarquia entre as funções psíquicas que
redunda numa sacralização da alma em relação à escassa nobreza do corpo profano: “A dualidade
de nossa natureza não é portanto senão um caso particular daquela divisão das coisas em sagradas e profanas que encontramos na base de todas as religiões, e ela deve se explicar segundo os
mesmos princípios” (Id., p. 327).
Ora, as coisas sagradas têm uma autoridade que impõe às vontades individuais como efeito
da operação psíquica de síntese das consciências individuais em que se dá sua gênese. Os estados
mentais gerados nesse processo encarnam-se em ideias coletivas que penetram as consciências
individuais permitindo sua comunicabilidade. Para além das manifestações da biologia humana,
esses estados da consciência “(...) nos vêm da sociedade; eles a traduzem em nós e nos atam a
alguma coisa que nos supera. Sendo coletivos, eles são impessoais; eles nos dirigem a fins que
temos em comum com os outros homens” (Id., p. 328). A dualidade da natureza humana guarda
uma homologia estrutural com a dualidade de fontes que conformam o homem; quais sejam, o
corpo biológico e a sociedade.
A sociedade é a única fonte da humanidade do homem; é por meio dela que se transcende
a pura vida orgânica que é a condição do homem tomado em sua individualidade. Apenas a
vida coletiva faz do indivíduo uma personalidade, dando forma à consciência moral e pensamento lógico que têm origem e destinação social. O indivíduo não é ainda realidade humana,
mas apenas abstração que só se perfaz no meio social. Antes de sua constituição na e pela força
coletiva, não se pode falar propriamente de homem, mas de um ser que se reduz ao organismo
animal. A humanidade do homem é coisa social, que se cristaliza por mecanismos de coerção
(Pinheiro, 2004, p. 7).
Durkheim, É. (1970). Sociologia e Filosofia. São Paulo: Ed. Forense, 1970.
12
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Ilustrando a posição de Durkheim, leia o texto a seguir:
O QUE É UM FATO SOCIAL?
Antes de procurar qual método convém ao estudo dos fatos sociais, importa saber quais fatos chamamos
assim. A questão é ainda mais necessária porque se utiliza essa qualificação sem muita precisão. Ela é
empregada correntemente para designar, mais ou menos, todos os fenômenos que se dão no interior da
sociedade, por menos que apresentem, com uma certa generalidade, algum interesse social. Mas, dessa
maneira, não há, por assim dizer, acontecimentos humanos que não possam ser chamados sociais.
Todo indivíduo come, bebe, dorme, raciocina, e a sociedade tem todo o interesse em que essas funções
se exerçam regularmente. Portanto, se esses fatos fossem sociais, a Sociologia não teria objeto próprio,
e seu domínio se confundiria com o da Biologia e da Psicologia. Mas, na realidade, há em toda sociedade um grupo determinado de fenômenos que se distinguem por caracteres definidos daqueles que
as outras ciências da natureza estudam.
Quando desempenho minha tarefa de irmão, de marido ou de cidadão, quando executo os compromissos que assumi, eu cumpro deveres que estão definidos, fora de mim e de meus atos, no direito e
nos costumes. Ainda que eles estejam de acordo com meus sentimentos próprios e que eu sinta interiormente a realidade deles, esta não deixa de ser objetiva; pois não fui eu que os fiz, mas os recebi
pela educação.
Aliás, quantas vezes não nos ocorre ignorarmos o detalhe das obrigações que nos incumbem e precisarmos, para conhecê-las, consultar o Código e seus intérpretes autorizados! Do mesmo modo, as
crenças e as práticas de sua vida religiosa, o fiel as encontrou inteiramente prontas ao nascer; se elas
existiam antes dele, é que existem fora dele. O sistema de signos de que me sirvo para exprimir meu
pensamento, o sistema de moedas que emprego para pagar minhas dívidas, os instrumentos de crédito
que utilizo em minhas relações comerciais, as práticas observadas em minha profissão, etc., funcionam
independentemente do uso que faço deles.
Que se tomem um a um todos os membros de que é composta a sociedade; o que precede poderá ser
repetido a propósito de cada um deles. Eis aí, portanto, maneiras de agir, de pensar e de sentir que
apresentam essa notável propriedade de existirem fora das consciências individuais. [...] Podemos
assim representar de maneira precisa, o domínio da Sociologia. Ele compreende apenas um grupo
determinado de fenômenos (Durkheim, 1990, p. 15).
Para Durkheim (1990, p.15), um fato social se reconhece pelo poder de coerção externa
que exerce ou é capaz de exercer sobre os indivíduos; e a presença desse poder se reconhece,
por sua vez, seja pela existência de alguma sanção determinada, seja pela resistência que o fato
opõe a toda tentativa individual de fazer-lhe violência. Pode-se, no entanto, defini-lo também
pela difusão que apresenta no interior do grupo, contanto que, conforme as observações precedentes, tenha-se o cuidado de acrescentar como segunda e essencial característica que ele existe
independentemente das formas individuais que assume ao difundir-se. Este último critério, em
determinados casos, é inclusive mais fácil de aplicar que o precedente.
34
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sociologia do conhecimento
De fato, a coerção é fácil de constatar quando se traduz exteriormente por alguma reação
direta da sociedade, como é o caso em relação ao Direito, à moral, às crenças, aos costumes,
inclusive às modas. Quando é apenas indireta, porém, como a que exerce uma organização
econômica, ela nem sempre se deixa perceber tão bem. A generalidade, combinada com a
objetividade, podem então ser mais fáceis de estabelecer. Aliás, essa segunda definição não é
senão outra forma da primeira; pois, se uma maneira de se conduzir, que existe exteriormente
às consciências individuais, se generaliza, ela só pode fazê-lo impondo-se (Durkheim, 1990,
p. 15).
Em Max Weber temos a análise das complexidades das influências sociais e culturais envolvidas na construção de conhecimentos. Weber afirma:
Com os meios da nossa ciência, nada poderemos oferecer àquele que considere que essa verdade
não tem valor, dado que a crença no valor da verdade científica é produto de determinadas culturas,
e não um dado da natureza. Mas o certo é que buscará em vão outra verdade que substitua a Ciência naquilo que somente ela pode fornecer, isto é, conceitos e juízos que não constituem a realidade
empírica nem podem reproduzi-la, mas que permitem ordená-la pelo pensamento de modo válido
(2004, p. 126).
O processo do conhecimento (especialmente na vida moderna) desembocou na ciência (e
no seu negativo: “cientificismo”), mas também na expectativa de explicações razoáveis à vida
do homem comum. Analisa a própria ciência moderna ao dizer que
[...] ela contribui para a tecnologia do controle da vida calculando os objetos externos bem como as
atividades do homem. Bem, direis vós, afinal de contas isso equivale ao verdureiro [...] Segundo, a
ciência pode contribuir com algo que o verdureiro não pode: métodos de pensamento, os instrumentos
e o treinamento para o pensamento. Direis, talvez: Bem isso não são verduras, mas não vai, também,
além dos meios para conseguir as verduras [...] Felizmente, porém, a contribuição da ciência não alcança
seu limite, com isso. Estamos em condições de levar-nos a um terceiro objetivo: a clareza. Pressupomos,
decerto, que nós mesmos possuímos clareza [...] Tendes, então, simplesmente de escolher entre o fim
e os meios inevitáveis. Justificará o “fim” os meios? Ou não? (Weber, 1992, p. 177-178).
Weber direciona tanto o objeto quanto o método da Sociologia que propõe para o compromisso explícito com a análise empírica do real, sendo de relevância ímpar salientar aqui que a
realidade não possui um sentido intrínseco ou único, visto que são os indivíduos que lhe conferem significados. A compreensão das mediações de sentido, ou de interesse, presentes nas ações
sociais, remetem à Sociologia weberiana a busca por um método que alcance, ao mesmo tempo,
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a apreensão dos processos da experiência humana e a objetividade necessária às explicações
sociológicas, objetividade tal que não está dada no empírico analisado, mas sim nas ideias que
dão ao empírico o valor de conhecimento.13
Desse modo, como meio para execução das análises sociais, Weber se mune de um aparato metodológico de extrema coerência com os fins a que a Sociologia compreensiva se propõe,
local em que estão inclusos instrumentos que permitem ao pesquisador investigar os fenômenos
particulares sem se perder em meio à infinidade de aspectos concretos. Como instrumento metodológico balizar de sua teoria, tem-se em Weber o conceito de tipo ideal, que exprime um objeto
categorialmente construído (Weber, 1992), um objeto selecionado e apresentado em sua forma
pura, o que vai aplanar a compreensão de aspectos do fenômeno social, a partir da presença de
uma maior ou menor aproximação com o tipo ideal.
Qual é, em face disso, a significação desses conceitos de tipo ideal para uma ciência empírica, tal
como nós pretendemos praticá-la? Queremos sublinhar desde logo a necessidade de que os quadros de
pensamento que aqui tratamos, “ideais‟ em sentido puramente lógico, sejam rigorosamente separados
da noção do dever ser, do “exemplar”. Trata-se da construção de relações que parecem suficientemente
motivadas para a nossa imaginação e, consequentemente, “objetivamente possíveis‟, e que parecem
adequadas ao nosso saber nomológico (Weber, 2004, p. 107).
Enfim, a Sociologia compreensiva com as coordenadas metodológicas, que lhe são próprias,
tem como objeto o que se tem de concreto para apreensão dos fenômenos sociais: a ação social
e as relações de sentido nela presentes; isto reflete na ideia do que é, citado pelo próprio Weber,
a tarefa das Ciências Sociais:
É preciso não darmos a tudo isso uma falsa interpretação no sentido de considerarmos que a autêntica
tarefa das Ciências Sociais consiste numa perpétua caça a novos pontos de vista e construções conceituais. Pelo contrário, convém insistir mais do que nunca sobre o seguinte: servir o conhecimento
da significação cultural de complexos históricos e concretos constitui o único fim último e exclusivo
ao qual, juntamente com os outros meios, está também dedicado ao trabalho da construção crítica de
conceitos (Weber, 2004, p. 126-127).
Segundo Correa,14 o mundo ocidental é para Weber um mundo, indiferente a Deus e aos
profetas. Uma época caracterizada pela racionalização, pela intelectualização e pelo desencantamento do mundo, em que o valores “sublimes” foram banidos da vida pública. “Àquele que
13
Ver: Weber, Max. Metodologia das Ciências Sociais, Parte 2. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade
Estadual de Campinas, 1992; e o texto especial com o nome: A “objetividade” do conhecimento nas Ciências Sociais.
In: Cohn, Gabriel (Org.). Weber, Max. Sociologia. São Paulo: Ática, 2004 (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
14
Correa, Ricardo. A Teoria Sociológica de Max Weber. In: Silva, Enio Waldir, Bressan, Suimar; Correa, Ricardo. Teoria
sociológica II. Ijuí: Ed. Unijuí, 2009.
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sociologia do conhecimento
não é capaz de suportar estoicamente esse sistema de nossa época, resta apenas dar o seguinte
conselho: volta em silêncio, sem dar ao teu gesto a publicidade habitual dos renegados, com
simplicidade e reconhecimento, aos braços abertos e cheios de misericórdia das velhas igrejas”
(Weber, 2004, p. 58).
Para completar estas reflexões sobre Weber, concluímos com este texto direto do autor:
[...] Sem dúvida nenhuma, o progresso científico é um fragmento, o mais importante, do processo de
intelectualização a que estamos submetidos desde milênios e relativamente ao qual algumas pessoas
adotam, atualmente, posição estranhamente negativa. Inicialmente, tentemos perceber com clareza o
que significa, na prática, essa racionalização intelectualista que devemos à ciência e à técnica científica.
Acaso, significará que todos os que estão reunidos nesta sala possuem, no que se refere às respectivas
condições de vida, conhecimento superior ao que um índio poderia alcançar a respeito de suas condições de vida? É pouco provável. Dentre nós, aquele que entra num trem não tem noção alguma do
mecanismo que permite ao veículo pôr-se em marcha – exceto se for um físico de profissão. De outra
feita, não temos necessidade de conhecer aquele mecanismo. É suficiente poder “contar” com o trem
e orientar, conseqüentemente, nosso comportamento. Não sabemos todavia como se constrói aquela
máquina que tem condições de deslizar. Contrariamente, o selvagem conhece, de modo incomparavelmente melhor, os instrumentos de que se utiliza. Eu seria incapaz de garantir que todos ou quase todos
os meus colegas economistas, porventura presentes nesta sala dariam respostas diferentes à pergunta:
como explicar que, utilizando a mesma quantia de dinheiro, ora se possa adquirir grande porção de
coisas e ora uma porção pequena? No entanto, o selvagem sabe perfeitamente como agir para obter o
alimento diário e conhece os meios capazes de favorecê-lo em seu propósito. A intelectualização e a
racionalização crescentes não equivalem, portanto, a um conhecimento geral crescente a respeito das
condições em que vivemos. Antes, significam que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante,
poderíamos, conquanto que o quiséssemos, provar que não existe, primordialmente, nenhum poder
misterioso e imprevisível que interfira com o curso de nossa vida. Em outras palavras, que podemos
dominar tudo, por meio da previsão. Isso é o mesmo que despojar de magia o mundo. Não mais se
trata para nós, como para o selvagem que acredita na existência daqueles poderes, de apelar para
métodos mágicos para dominar os espíritos ou exorcizá-los, mas de recorrer à técnica e à previsão.
Essa é a essência da significação da intelectualização (Weber,15 2003, p. 37-38).
São nessas passagens que é possível perceber os vínculos entre os conteúdos de natureza
cultural, econômica e religiosa oriundas de diferentes contextos sociais e os elementos de natureza cognitiva, individual ou coletiva, manifestados por diferentes grupos sociais.
Weber emprega a expressão afinidade eletiva para mostrar essas relações existentes, os
nexos entre realidades sociais e conhecimentos científicos, indicando a determinação do conteúdo
proveniente da cultura com as práticas sociais. Assim, os problemas de pesquisas e os modos
Weber, Max. Economia e sociedade. Brasília: UnB; São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. p. 37-38).
15
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de os expressar sempre fazem parte de uma cultura e das cosmovisões existentes, pelas quais o
sujeito pesquisador opta. A força desta opção é devido às afinidades eletivas ali existentes, ou
seja, os apelos atrativos do interesse de classe que o indivíduo deve levar em conta quando está
construindo conhecimento (1992).
Haveria afinidade eletiva entre protestantismo e espírito comercial, espírito empreendedor
do protestantismo e a escolha educacional, dever para com o trabalho e estilo de vida industrial,
ou seja, havia uma afinidade entre os conceitos éticos do período da Reforma e as orientações
terrenas da sociedade industrial daquele período.
Segundo Espinosa, Weber busca as relações causais entre ideias religiosas e a específica
forma moderna de racionalização e conduta metódica da vida do indivíduo, que se encarna na
ideia de profissão do protestantismo ascético (Espinosa; Garcia; Alberto, 1994, p. 273).
Não se trata de usar a perspectiva de causa e efeito ou determinista para explicar fenômenos
sociais, mas indicar as multicausas possíveis numa construção de entendimentos, pois jamais o
autor concordaria com esta tese geral de que o capitalismo seria produto da Reforma Protestante.
No livro A ética protestante e o espírito capitalista, constatamos o cuidado do autor para falar de
fatores históricos e cognitivos, usando a expressão “afinidades eletivas”. Em outras obras, como
Economia e Sociedade, também vemos esta relativização causal para explicar determinados fatos:
[...] se pode dizer o grau de afinidades eletivas de certas formas estruturais concretas da atividade
comunitária, com certas formas concretas de economia (Weber,2004, p. 146).
Isto está presente em suas obras mais dedicadas a identificar o conhecimento sociológico.
O ponto de partida da análise sociológica só pode ser dado pela ação de indivíduos em que ela é
“individualista” quanto ao método. Isso é inteiramente coerente com a posição sempre sustentada
por ele, de que nos estudos dos fenômenos sociais não se pode presumir a existência já dada de
estruturas sociais dotadas de um sentido intrínseco; vale dizer, em termos sociológicos, de um
sentido independente daqueles que os indivíduos imprimem as suas ações (Gohn, 2004).
É notável o rigor com o qual Weber adapta os meios e os fins em suas análises, de tal sorte
que, ao relacionar a ciência ao empírico, o faz exatamente fugindo de possíveis análises não
acessíveis empiricamente e que não podem ser traduzidas em conjuntos concretos de ações.
Podemos constatar que para Weber os indivíduos não são apenas vítimas de fatores conjunturais
macrodeterminantes, ou seja, o que está presente na teia de relações sociais são pessoas singulares e também vontades individuais desiguais, geradoras de conflitos, mas que não se traduzem
em mera submissão dos indivíduos às determinações sociais.
38
EaD
sociologia do conhecimento
Desta forma, a sociedade não é concebida como resultado puro da vontade dos homens,
visto que os fenômenos sociais podem também ser resultados de consequências não intencionais,
assim como podem ocasionar consequências não intencionais, quer dizer, não relacionadas com
vontade ou racionalidade humanas.
Seção 1.3
A Sociologia do Conhecimento no Século 20 – a consolidação
A Sociologia do Século 20 obteve uma movimentação especial entre as décadas de 20 e
60. Para sociólo­gos mais tradicionais, ligados ao funcionalismo ou ao marxismo, eles pareciam
acarretar uma rendição ao subjetivismo, levando ao desconhecimento dos elementos e processos
mais duramen­te determinados e invariáveis da vida social. As formas da socie­dade, as estruturas
sociais, especialmente as de dominação, a alienação, etc., ficariam, consoante aquela leitura, na
penumbra. À Sociologia caberia precisamente analisar esses processos (Domingues, 2001).
Aos poucos, contudo, as contribuições do interacionismo simbólico (já na obra de Parsons),
da fenomenologia, da etnometodologia, e de outras correntes semelhantes, conquanto menos
importantes, foram sendo assimiladas pelas correntes mais representativas das Ciências Sociais. Em geral, essas correntes veem-se hoje combinadas com abordagens que se originaram
no marxismo e na teoria crítica, no estruturalismo e no funciona­lismo. Sem dúvida, há algo de
redutivo em muitas das análises originais de autores como Mead, Schutz, Blumer e Garfinkel,
mas a atenção para com a flexibilidade e fluidez do mundo so­cial, para com a temática da ação
e da criatividade são contri­buições permanentes dessas escolas de pensamento sociológico,
sem as quais dificilmente teorias abrangentes e precisas da vida social podem ser propostas
(Domingues, 2001).
Poucas escolas exerceram uma influência tão importante e con­centrada na história da Sociologia como o funcionalismo, que em determinado momento foi visto por seus adeptos como
si­nônimos de fato, e de direito, da teoria sociológica. Ele tem suas origens em fontes variadas.
Durkheim é, diretamente nas Ciên­cias Sociais, seu principal expoente original, mas outros
autores devem a ele ser somados. Para Durkheim, que obviamente so­freu enorme impacto da
Biologia, a sociedade deveria ser vista como um organismo, cujas partes cumprem funções úteis
para a reprodução do todo.
39
EaD
Enio Waldir da Silva
Normas sociais gerais comandariam os processos sociais, seja nas sociedades primitivas
de “solidarie­dade mecânica”, nas quais todos faziam as mesmas coisas (isto é, desempenhavam
funções similares), seja nas sociedades nas quais a divisão do trabalho avançara, estabelecendo-se a “soli­dariedade orgânica” (na qual as funções dos diversos grupos e indivíduos seriam
altamente diferenciadas). Se autores como Radcliffe-Brown, na Antropologia – já influenciados
por Durkheim –, ajudaram enormemente a propagar a abordagem funcionalista nas Ciências
Sociais, Pareto, um economista, talvez tenha sido mais decisivo para a sociologia em particular,
ao menos no que tange à influência sobre Parsons.
Talcott Parsons (1902-1979) criou uma obra que pode ser dividida em três fases, de limites
bastante claros. Ini­cialmente, ele buscou, antes de mais nada, sintetizar – em parte para sua
própria ilustração – as contribuições de alguns autores que hoje consideramos clássicos; visava,
então, a uma “fí­sica” das Ciências Sociais. Sua ambição era dar passos iniciais para elaborar
urna teoria geral que, uma vez completa, pudesse, a exemplo da mecânica clássica, em sua elegância e simplici­dade – explicar todo e qualquer fenômeno social e predizer o comportamento
do indivíduo e da sociedade. Em um segundo momento, mais consciente das dificuldades desse
tipo de projeto, ele se contenta com uma solução provisória e intermediária, que o levou, então,
ao funcionalismo estrutural; com isso ele se municiava de conceitos descritivos e assinalava a
articulação necessária entre personalidade, cultura e sociedade. Enfim, em sua terceira fase,
Parsons acreditou haver delineado um esquema funcionalista radical (Domingues, 2001).
Este autor pode ser considerado um dos clássicos da teoria sociológica contemporânea, e é
certamente um dos pilares da teoria sistêmica da ação, constituindo-se como referência aos estudos
que contemplam a ação humana integrada em sistemas sociais, o equilíbrio social sistematizado
teoricamente pelo estrutural-funcionalismo, bem como outras abordagens teórico-sociais que
preconizam a ordem normativa a partir de uma padronização de valores.16
Dedicou-se a pesquisar a sociedade para melhor ordená-la, de tal forma que os indivíduos
pudessem desempenhar nela uma função orgânica e aperfeiçoadora do sistema. Para ele o sistema, como qualquer outro corpo biológico, não apenas era estável, como buscava ser harmonioso,
equânime e consensual, tendo manifestado hostilidade a perturbações desencadeadas por ataques
Talcott Parsons foi o sociólogo americano de maior destaque do século 20. Seu pensamento foi visto também como
expressão da sua época, especialmente nos Estados Unidos, nos anos de 1950-60. Além de ter sido testemunha da
revolução gerencial dos anos 20 (taylorismo e fordismo) ele, atingindo a maturidade intelectual no período do pósguerra, momento em que os Estados Unidos viviam uma situação de estabilidade e cooperação (resultado do clima
patriótico e das necessidades ideológicas da guerra fria), fez tornar inevitável que sua teoria privilegiasse a coesão,
a adaptação e a estabilidade familiar. Podemos destacar as seguintes obras sobre Parsons:
Parsons, Talcott. El sistema social. Madrid: Alianza Editorial, 1982.
Parsons, Talcott. Sociedades. São Paulo:Pioneira, 1974.
Parsons, Talcott. O Sistema da Sociedade Moderna. São Paulo: Pioneira, 1983.
Cordova, Maria Julieta W. Talcott Parsons e o esquema conceitual geral da ação. In: Revista Emancipação: Curitiba:
UFPR. 6(1): 257-276, 2007.www.uepg.br
Domingues, José Maurício. Teorias Sociológicas no Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
Domingues, José Maurício. A Sociologia de Parsons. Niterói: EdFF, 2001.
16
40
EaD
sociologia do conhecimento
de “bacilos”. Desinteressando-se dos aspectos da transformação social sua inclinação voltou-se
a favor do equilíbrio e do consenso. Naturalmente que isso o posicionou a entender o indivíduo
como expressão das estruturas, as quais ele devia manter e preservar. Caso isso não ocorresse
entravam em ação os mecanismos do controle social (moral, ética, sistema jurídico e penal, etc.),
como um instrumento preventivo ou corretivo.
O objetivo de qualquer sociedade, pois, como ele defendeu no seu mais conhecido livro,
The Social System (O Sistema Social, 1952), era alcançar a estabilidade, o equilíbrio permanente,
fazendo com que só pudéssemos entender uma parte qualquer a ser estudada em função do todo.
Expressões como “adaptação”, “integração”, “manutenção”, largamente utilizadas por Talcott
Parsons, colocam-no claramente no campo conservador do pensamento sociológico, alguém
que via a política apenas como um instrumento de garantia do bom andar do todo, jamais como
instrumento da transformação.
Cada um dos componentes do sistema, suas partes, tal como uma peça qualquer em relação a uma máquina, desempenham papéis que visam a contribuir para a estabilidade e ordem
social, por isso tal abordagem ou teoria é chamada de funcionalismo estrutural. A partir dessa
visão totalizadora da sociedade, o passo seguinte é determinar os seus componentes básicos
formados pela economia, o sistema político, a família e o sistema educativo em geral, com seus
valores e crenças bem definidos. Elas todas são interdependentes e agem no sentido de preservar
a sobrevivência do todo, não havendo necessariamente uma hierarquia entre eles.17
Parsons buscou sintetizar as contribuições de autores clássicos, fundamentando, uma “fí­
sica” das Ciências Sociais, elaborando uma teoria geral que explicasse todo e qualquer fenômeno
social, predizendo o comportamento do indivíduo e da sociedade.
No livro A estrutura da ação social (1937), Parsons tinha como alvo polêmico, sobretudo,
o utilitarismo individualista, que via nos interesses dos sujeitos isolados o móvel da sociedade
e na harmonização “espontânea” desses interesses o fundamento da ordem. Internalizando as
normas, os indivíduos já definiriam seus fins de acordo com uma harmonia propriamente social,
que não decorreria, portanto, dos efeitos de uma mal explicada “mão invisível” sobre sua ação.
Parsons fundamentou um ar­gumento de que os todos orgânicos – de que são compostos os sistemas sociais e a própria ação – ­podem ser decompostos em partes, somente mediante operações
analíticas. Um elemento separado do todo seria uma mera “abs­tração”; esta seria a frequência
fundamental para a ciência, mas deveríamos ter clareza disso quando dela nos utilizamos, evitando
17
Schiling, Voltaire. Talcott Parsons e o funcionalismo estrutural. Disponível em: <www.educaterrra.terra.com.br>.
Acesso em: 23 abr. 2009.
41
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Enio Waldir da Silva
cair no que castigava com a nomenclatura da “falácia da falsa concretude” – ou seja, recusando
tornar abstrato como se fosse, ele mesmo, concreto. Esta última ideia tornar-se­-ia cada vez mais
decisiva para o desenvolvimento de sua teoria.18
Os pontos de vista substantivos da primeira obra de Parsons teriam grandes consequências para o desenvolvimento ulterior de seu trabalho; mas detenhamo-nos rapidamente em sua
estratégia teórico-epistemológica, na qual propunha que nossos conceitos principais fossem
estabelecidos como de caráter ana­lítico. Jamais os encontraríamos puros na realidade, e por isso
mesmo, seriam instrumentais para nos fazer compreendê-la para além do senso comum.
Normas, fins e meios eram apenas abstrações, pois encontravam-se imbricados na realidade. Se tentássemos dar conta desta de forma imediata, con­tudo, ver-nos-íamos às voltas com
um todo indiferenciado, sem conseguir de fato compreender seu funcionamento e dinâmica.
Daí ser possível definir algumas “unidades de análise”. A com­binação de fins, meios e normas
estaria, por exemplo, no nú­cleo do que chamou de “ato unidade”, pois eles seriam os elementos
principais da ação tomada em seus momentos discre­tos.
Como argumenta Domingues:
No Livro O sistema social (1951), Parsons estuda os elementos básicos da vida social e os processos
de mudança e perma­nência de maior envergadura dentro de uma perspectiva histórica. Começa o
sistema social definindo os elementos do novo esquema teórico. A ação social é agora o eixo em tor­
no do qual giram as outras categorias: ego e alter-ego acham-se frente a frente em “situações” cuja
definição depende deles mesmos; se a interação será bem-sucedida ou não, depende de como lidarão
com a “dupla contingência” sempre presente nes­se tipo de processo. Mais uma vez, porém, a confiança de Parsons nas normas sociais se antepõe a essa perspectiva mais solta da vida social, uma vez
que ele acreditava que aquelas forneceriam aos agentes, normalmente, padrões nos quais poderiam
se apoiar para superar a “dupla contingência”. Parsons apontava, não para um “ato unidade”, mas
para uma “unidade de ação”. Se o primeiro im­plicava fins claramente definidos pelo ator, este último
aban­donava essa idéia e enfatizava a possibilidade de os fins serem difusos, maldefinidos, e de estar o
agente pouco ciente deles. A noção de “ator coletivo” era uma forma de falar dos sistemas sociais em
seu relacionamento de forma articulada com outros sistemas sociais. A organização formal-burocrática
(forma de “subjetividade coletiva” altamente centrada, semelhante a um indivíduo humano) consistia
no protótipo do ator coletivo. Dá especial atenção aos conceitos interação e “situação”, “unida­de de
ação” (2001, p. 43).
O “esquema Agil”, depois poderosamente ampliado por Parsons, começava a nascer. Nes­te
esquema, as quatro letras respondiam por quatro funções que qualquer sistema era obrigado a
cumprir para se reproduzir. O A respondia pela adaptação do sistema a seu meio; o G pela reali-
18
Estamos usando aqui, as referencias básicas usadas por Domingues, José Maurício. Teorias Sociológicas no Século
XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 37-50.
42
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sociologia do conhecimento
zação das metas (goals) que o sistema se colocava; o I por sua integração, e o L, enfim, concernia
à latência dos padrões que forneciam os valores gerais para o sistema, e que se especi­ficavam
nas normas operativas em seus processos de integração.
Do ponto de vista da teoria geral da ação, de sua ampliação sempre renovada, o esquema
Agil apontava para o “organismo comportamental” (o corpo) dos indivíduos em sua relação com
o meio orgânico, para a personalidade no que tange à realiza­ção de metas, para o sistema social
no concernente à integração e para o sistema cultural ao tratar-se dos padrões latentes.
Cada uma das quatro células do esquema, no entanto, deve­ria ser dividida em mais quatro,
pois para cada um dos sistemas identificados as mesmas quatro funções se reporiam. Com isso,
Parsons pretendia haver atingido uma teoria universal que, a despeito de não ser dedutiva (ou
seja, não se poderia partir de leis gerais para explicar o comportamento de entidades particu­
lares), era também universal em termos funcionais.
Destarte, o sistema social, que era o foco de estudo da Sociologia, teria o esquema Agil
pensado da seguinte forma: pela adaptação do sistema ao meio, respondia a economia, a consecução de metas cabia à política, a tarefa da integração reservava-se ao sistema legal e à cultura
era atribuído o sistema geral de valores cultu­rais.
Além disso, Parsons mantinha a ideia de equilíbrio como crucial para sua formulação: as
modificações do sistema originavam-se de acontecimentos e resultados derivados de suas fases
anterio­res de desenvolvimento ou de fora, mediante inputs que o siste­ma recebia de seu meio,
o que o obrigava a mudanças em sua estruturação interna.
Uma nova ideia, também fundamental, introduzida nesse momento foi a da “hierarquia
cibernética de controle”, segundo a qual os elementos do esquema com maior energia – em particular as entidades concretas que ocupavam a célula da adaptação (nos exemplos anteriores, o
“organismo comportamental” e a economia) – estavam na base do sistema, enquanto no topo se
localizavam aqueles sistemas com maior informação e, portanto, capacidade de direção, ou seja,
contro­le (nos exemplos anteriores, sistemas culturais).
Acontece que o formalismo do esquema Agil era gritante; Parsons perdeu mesmo sua
consciência da distinção entre reali­dade concreta e categorias analíticas. Ao aplicar de maneira
indiscriminada o esquema Agil diretamente a qualquer fenô­meno da realidade (não apenas
social), ele terminou vítima de inúmeras quedas na “falácia da falsa concretude”.
Nos últimos anos de vida de Parsons, e sobretudo após sua morte, o funcionalismo se viu
sob o fogo cerrado de outras cor­rentes que criticavam suas preocupações com a estática social,
em detrimento da mudança, acarretando o automatismo do fun­cionamento dos sistemas sociais,
e a secundarização dos atores em seus modelos explicativos ou a sua transformação em “dopados
culturais” .
43
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Enio Waldir da Silva
Fos­sem, no entanto, essas críticas justas, em sua inteireza ou parcialmente, ou não, o fato é
que na década de 80 uma nova corrente teórica emergiu e começou a se consolidar, tendo como
projeto a recria­ção do funcionalismo.
Jeffrey Alexander é, certamente, o prin­cipal expoente do movimento “neofuncionalista” na
Sociologia. O neofuncionalismo de Alexander pretendia recuperar essa estratégia sintetizadora
de Parsons e articular contribuições que descobrira em outras cor­rentes. Alexander referia-se,
inclusive, a um “novo movimento teó­rico”, que liga o que, de acordo com a linguagem da Sociologia norte-americana, se chamou de dimensões “micro” e “macro” da vida social. Incluía a
si próprio nesse movimento, além de autores como Giddens, Bourdieu e Habermas.
O grande expoente da teoria funcionalista contemporânea, contudo, herdeiro de Parsons,
é Niklas Luhmann (1927­-1998), com a teoria dos sistemas, mas desde o início suas pretensões à
originalidade são também evidentes. Em particular, ele queria excluir os sujeitos (psíquicos) de
sua teoria, orientada exclusivamente para a compreensão dos sistemas sociais.
Outra corrente de pensamento sociológico da década de 40 é o Interacionismo Simbólico. É
corrente de estudos da Escola Americana, que se origina com Herbert Mead, professor da década
de 20, cujos herdeiros mais representativos são Blumer, da Escola de Chicago – que, num artigo
de 1969, denomina a herança de Mead de Interacionismo Simbólico –, Kuhn, da Escola de Iowa,
e Goffman. Mead se opunha à dicotomia existente entre as noções de sociedade e indivíduo e
entre Sociologia e Psicologia.
Em sua sistematização analítica, o Interacionismo Simbólico fundamenta-se em uma série
de conceitos básicos. O primeiro deles diz respeito à natureza humana: os seres humanos são
seres em ação, são agentes. Outro conceito nos diz que a natureza dessa ação é resultado de um
processo de interpretação. A interação social forma os comportamentos, é constituinte, fundante,
e fornece significados para a construção, por parte dos sujeitos agentes, dos objetos.
Ao considerar a sociedade humana interativa, observa-se que existe uma influência recíproca, isso é, a ação de cada sujeito altera o quadro de representação dos demais. Somando-se a
isso a identificação da atividade humana como centro regulador da vida social, tem-se um quadro
marcado pela complexidade. Sua proposta apontava para a convergência entre indivíduo e sociedade, que aconteceria na comunicação. Tal abordagem privilegia a interação como elemento
constituinte, fundante, que forma os comportamentos.
A natureza dos objetos do mundo é social, uma vez que seus significados são constituídos
a partir de formas de interpretar ditadas pela sociedade e da interpretação dos sujeitos, moldada
no dia a dia, no cotidiano. O espaço do “nascimento’’ dos significados – a interpretação dada
pela sociedade e a promovida pelo sujeito – é a comunicação, a interação entre sociedade e
indivíduo (Domingues, 2001).
44
EaD
sociologia do conhecimento
Seção 1.4
Conhecimento e Cultura nos Anos 70
Robert K. Merton é um dos sociólogos mais relevantes na adoção dessa estratégia funcionalista. Ele desenvol­veu seu funcionalismo em grande medida mediante estudos mais empíricos,
uma vez que defendia a ideia de que a construção de uma teoria sociológica geral deveria ter
corno premissa e base de sustentação o desenvolvimento de teorias de “médio alcan­ce”. Em sua
discussão sobre “funções manifestas e laten­tes”, porém, Merton avançou algumas categorias
básicas para abordagens funcionalistas, tentando desconectá-las de compromis­sos ideológicos
e conservadores (Domingues, 2001, p. 64).
Aquelas categorias não teriam tampouco poder explicativo sobre todo e qualquer elemento
da vida social. Interessa aqui enfatizar sua distinção entre funções manifestas e funções latentes.
As primeiras dependeriam expli­citamente dos fins perseguidos pelos indivíduos e do objetivo
de integração do grupo; as últimas, em contrapartida, seriam inconscientes, no sentido de que
sua ação não dependeria do desejo, da intenção de nenhum dos atores envolvidos. O exem­plo
da dança da chuva entre os Azande ilustrava seu argumen­to: na verdade, não importava para
aquela sociedade tribal se aquele ritual produzia a chuva; ele produzia a solidariedade dos
membros da comunidade e, embora sua inteção manifesta fosse fazer chover, o que interessava
sociologicamente era sua intenção latente, uma vez que, por meio de uma “mão invisível”, levava
à inte­gração da sociedade (Domingues, 2001, p. 64).
Embora na Europa os estudos da Sociologia do Conhecimento estivessem em pleno desenvolvimento, foi na América do Norte que ela expressava as grandes preocupações com as
relações entre avanços científicos e impactos sociais. O contexto social e intelectual americano
levou a chamar de Sociologia da Ciência esta dedicação, em especial de Merton, aos estudos dos
impactos sociais da ciência. A politização da ciência, já demonstrado pelo nacional-socialismo
da Alemanha, criou posições hostis ao avanço da ciência.
O desenvolvimento do capitalismo americano acarretaria um dramático desenvolvimento tecnológico
cujas conseqüências sociais começavam a se fazer sentir com violência. No domínio da produção, a
introdução maciça de tecnologia provocava o desemprego tecnológico, a descontinuidade do emprego,
a mudança no trabalho, absolescência das aptidões e, enfim, alterações importantes no cotidiano dos
operários, o que fazia desencadear a revolta da classe operária. Por outro lado, a ligação da ciência
com a máquina de guerra, que a química tinha iniciado já na primeira guerra mundial, tornava-se
mais íntima com a preparação e produção de instrumentos militares, armas, explosivos e demais
equipamentos, cuja capacidade destrutiva era a medida da rentabilidade do investimento tecnológico
neles aplicados (Santos,1989, p. 122).
45
EaD
Enio Waldir da Silva
Vai ser Merton o porta-voz da posição de que a ciência só poderia se desenvolver em uma
sociedade que oferecesse um clima democrático e liberal. Em 1942, Merton definiu em grandes
linhas o que seria a Sociologia da Ciência, para precisar mais objetivamente as discussões sobre
a relação do saber científico e a sociedade. Para ele não seriam importantes os métodos ou os
conteúdos da ciência e sim os valores culturais e normas que presidem as atividades científicas,
ou seja, deveria estudar a estrutura cultural da ciência, o seu impacto nas sociedades e da sociedade na definição de seus interesses e seleção de problemas e os ritmos de desenvolvimento.
Assim, a ciência deveria ter como valores o universalismo – o caráter impessoal da ciência –; o
comunismo – as conquistas da ciência são produto da colaboração social e propriedade de todos –;
o desinteresse – as instituições científicas não devem estar sob qualquer interesse particular – e
o ceticismo organizado – o cientista deverá submeter à discussão e pôr em questão seus princípios e ideias.
Estas normas morais e técnicas garantem a dignidade da ciência em sociedades democráticas. Bem nesse momento, porém, a ciência entrou em processo acelerado de industrialização
e os cientistas se transformaram em trabalhadores assalariados a serviço do complexo militarindustrial, opondo totalmente a orientação mertoniana.
Os trabalhos de Merton também analisaram Marx, Durkheim e Mannheim, com o objetivo
de fazer uma arqueologia da Sociologia do Conhecimento, no que se refere, principalmente, as
suas posturas epistemológicas com relação às Ciências Naturais, e constataram que esses três
autores, cada um a seu modo e em sua época, alinhavam-se à perspectiva de que o conhecimento desenvolvido nas Ciências Naturais estaria livre de qualquer determinação social. O próprio
Merton, defensor e precursor de uma Sociologia da Ciência, escola por ele fundada, e cujos
trabalhos desenvolvidos iniciaram-se ainda na década de 30, também conhecido, posteriormente, pela Escola de Colúmbia,19 não conseguiu ir além de uma perspectiva institucional em sua
Sociologia da Ciência, permanecendo no âmbito do estudo da ciência como instituição social,
ou seja, numa visão externalista da mesma. A ciência, entendida por este sociólogo como ciência
natural, possuía explicações que deveriam ser buscadas na natureza, por meio da identificação
de leis universais, pela inferência lógica. Sua Sociologia da Ciência tinha por objetivo identificar
e explicar as condições sociais, políticas e culturais em que a ciência, possuidora de um valor
autônomo em si, e como instituição social, tinha maiores ou menores possibilidades de se desenvolver em sociedades mais favoráveis ou menos favoráveis para tal. No centro da Sociologia
da Ciência mertoniana encontra-se, ainda, uma concepção essencialista de ciência.20
Rodrigues, Leo Peixoto. Karl Mannheim e os problemas epistemológicos da Sociologia do Conhecimento: é possível
uma solução construtivista. In: Revista Episteme: Porto Alegre: vol 14. p. 115-118. Julho de 2002.
19
Vemos uma interpretação dessa escola em Rodrigues, Leo Peixoto. Introdução ao conhecimento, da ciência e
do conhecimento científico. Passo Fundo: UPF, 2005. Leia deste mesmo autor: Karl Mannheim e os problemas
epistemológicos da Sociologia do Conhecimento: é possível uma solução construtivista. In: Revista Episteme: Porto
Alegre: vol 14. p. 115-118. Julho de 2002.
20
46
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sociologia do conhecimento
A Escola Mertoniana, apesar de ter permanecido afastada dos polêmicos debates epistemológicos
atinentes às questões internalistas da ciência, defendendo uma explicação normativa da mesma, baseada em valores morais, dentro de uma perspectiva funcionalista clássica, teve o mérito de detalhar a
estrutura social da ciência, dando uma maior ênfase a normas e a valores vinculados à estrutura social
do fazer científico. Esse pioneirismo mertoniano estabeleceu e demarcou o campo da Sociologia da
Ciência, tornando-se uma referência praticamente exclusiva até 1970 (Rodrigues, 2002).
A Sociologia que investiga a ciência nos anos 50 vai ser balizada pela abordagem de
Merton. Das funções manifestas e latentes, foi utilizada para demonstrar como certos comportamentos irracionais – a concorrência entre cientistas – desempenham a função de promover o
desenvolvimento científico, a sociabilidade dos cientistas nas normas da ciência, e deste modo
contribuem para a autonomia e para segurança institucional da ciência. De certa forma, Merton
esperava que o avanço da ciência levaria à glória da civilização. Segundo Santos (1989):
A sociologia mertoniana tem com a prática científica uma relação imaginária, pois concebe-a pautada
por normas e valores que em nada correspondem às realidades do processo de produção científica
[...] O compromisso da ciência com o modo de produção material acarretou o seu compromisso com
o sistema social e, portanto, a sua co-responsabilização na criação e gestão das contradições e conflitos dele emergentes (e nele recorrentes) e suas repercussões, quer ao nível interno, quer ao nível
internacional [...] as bombas de Hiroshima e Nagasaki foram o salto qualitativo, mas as condições em
que se deram tornaram inverossímil a idéia de uma ligação fortuita. Foi isso, aliás, o que permitiu a
alguns (não muitos) físicos nucleares lavar as mãos no vaso cristalino da ciência pura e de as limpar
na toalha alva do progresso científico (p. 130).
Vai ser Thomas Kuhn quem romperá com a hegemonia funcionalista clássica da Sociologia
da Ciência, em que o ethos científico, característico da sociedade ocidental,21 garantia o desenvolvimento da ciência como instituição social. Ao mostrar exemplos da própria história da Física,
a forte relação existente entre a estrutura social científica e a estrutura cognitiva, reacendeu
antigos ideais da Sociologia do Conhecimento.
Science, Technology and Society in Seventh-century in England, sua tese de Doutorado, concluída em 1938, foi uma
de suas primeiras obras dedicadas ao estudo social da ciência. O tema explorava o surgimento da ciência moderna
nas sociedades ocidentais, tendo por origem a revolução científica inglesa do século 17 e o contexto em que tal
desenvolvimento surgiu. Para Merton, a maneira como interatuam ciência e sociedade varia segundo as distintas
situações históricas; sustentava ele que a natureza e o grau desses intercâmbios são diferentes quando consideradas
as diversas sociedades. Em O Puritanismo, Pietismo e Ciência (1970), buscou destacar os fundamentos de ordem
social que dão o caráter institucional da ciência. Merton declara que a tese principal desse trabalho era o de salientar
que a ética puritana, como expressão típica ideal das atitudes para com os valores fundamentais do protestantismo
ascético em geral, canalizou os interesses dos ingleses do século 17 de maneira a constituírem um elemento importante
no cultivo da ciência (p. 675). Ele afirmava que determinados elementos da ética protestante tinham contaminado,
perpassado a conduta científica conferindo-lhe marcas peculiares ao trabalho dos cientistas.
21
47
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Segundo Espinosa, Garcia e Alberto (1994), o livro de Kuhn, Estrutura das Revoluções
Científicas, foi um dos marcos mais importantes e desde logo o detonador mais direto que desencadeou a reorientação dos objetivos abordados pela Sociologia da Ciência. A repercussão de
sua obra influenciou de forma notável a mudança de problemática daqueles sociólogos (Merton
e sua escola principalmente) ocupados com a ciência como instituição social.
Essa especialidade, que até então tinha se ocupado com o problema da ciência como instituição, começa a agir em torno da ciência como ação, e ao redor dos processos de estruturação do
conjunto das relações sociais científicas, incluindo as que se desenvolvem na geração e validação
dos produtos científicos. A comunidade científica, como defendia Kuhn, de tempos em tempos
adota (e compartilha) um conjunto de crenças, valores, técnicas, etc., que se constituem em um
paradigma (ou programa) para validação e aceitação do conhecimento científico, e esse conjunto
de crenças, valores, técnicas, etc. (Kuhn, 1996) provém da própria comunidade científica, sendo
esta, por óbvio, um grupo social. A adoção de um determinado paradigma em detrimento de
outro, porém, não significa uma mera contaminação de conteúdos do contexto social no estabelecimento da validade do conhecimento científico. Nesse caso, a natureza, o tipo de conteúdo
acordado, aceito, compartilhado, oriundo do contexto social constituiu-se num epifenômeno da
validade do conhecimento. Inegavelmente a mais importante (e polêmica) contribuição de Kuhn
talvez tenha sido o fato de legitimar a relevância de conteúdo social (crenças, valores, consensos)
não apenas como mero coadjuvante tolerado pela Filosofia da Ciência de caráter cognitivo, em
muitos casos, como fator essencial, fundamental para a validade de muitas das descobertas da
ciência. Indubitavelmente, foi a partir da obra de Kuhn que argumentos de natureza sociológica
passaram a desconstituir o estrutural-funcionalismo mertoniano, em termos de orientação predominante nos estudos sociais da ciência.22
Elias (2008) nos mostra que:
Nosso conhecimento sobre o crescimento do conhecimento está aumentando constantemente e, até
onde os detalhes permitem saber, é maior agora do que antes. O que falta são modelos teóricos adequados acerca do desenvolvimento do conhecimento que possam ser comparados com essa evidência
e ajustados a modelos correspondentes de desenvolvimento das sociedades dentro das quais aquele
conhecimento assume uma posição. Um dos principais obstáculos em direção a tais modelos é, evidentemente, a disposição fortemente ambivalente com relação ao conhecimento científico que prevalece
em nosso tempo. A dúvida, muito difundida, sobre o valor desse conhecimento afeta a integração
Rodrigues, Leo Peixoto. Introdução ao conhecimento, da ciência e do conhecimento científico. Passo Fundo: UPF,
2005. O autor faz um esforço para diferenciar Sociologia da Ciência de Sociologia do Conhecimento, uma vez que
esta envolve conhecimentos de forma mais ampla e aquela os conhecimentos mais institucionalizados. Diz o autor:
“É a partir da década de setenta que a Sociologia do Conhecimento é retomada no cenário acadêmico, apresentando
significativos avanços e contribuições de diferentes correntes, após ter ficado algum tempo obliterada pela Sociologia
da Ciência. A dimensão sociológica funcional-estruturalista da ciência proposta por Merton colapsou a partir da obra
de Kuhn, justamente por abster-se de adentrar no campo minado da Epistemologia, aceitando o fato de que a Sociologia
do Conhecimento nada poderia dizer a respeito da validação do conhecimento científico”.
22
48
EaD
sociologia do conhecimento
teórica dos fatos. Uma das tentativas contemporâneas mais conhecidas para tal integração, o modelo
de T. S. Kuhn de desenvolvimento do conhecimento científico (Kuhn, 1962), é um bom exemplo. No
sofisticado paradigma de Kuhn, a progressiva expansão do conhecimento dos homens de um universo
desconhecido ao longo dos milênios, dos quais a expansão científica é a fase mais tardia, basicamente
se perdeu de vista. Ele representa essa fase – caracterizada por uma combinação específica de investigação empírica em relação a aspectos desconhecidos deste universo com integração teórica periódica
do crescimento do conhecimento desses aspectos – de maneira depreciativa; por um lado, como um
jogo de quebra-cabeças resolvido (solving) de acordo com certas regras; por outro lado, como uma
mudança acidental e parcialmente arbitrária das regras. Ele conceitua o primeiro desses dois tipos de
atividades científicas como “ciência normal” e o segundo como “revoluções científicas”. A escolha
das palavras é suficiente para sugerir que modelos teóricos integrados, tais como os de Ptolomeu, na
Antiguidade, ou os de Newton e Einstein, nos tempos mais recentes, permanecem, de certo modo,
do lado de fora e não fazem parte da ciência normal. Assim sendo, desgastando a arbitrariedade e a
descontinuidade das inovações teóricas radicais (que é dificilmente mais adequada para o desenvolvimento do conhecimento científico do que a separação conceitual entre uma fase não revolucionária
de um processo revolucionário que o sucede no desenvolvimento de uma sociedade), Kuhn é capaz
de traçar um quadro essencialmente relativista da relação entre os paradigmas bastante integradores
dentro de um processo científico. Enquanto permite um “gostinho de progresso” para sua “ciência
normal”, ele nega que a seqüência de paradigmas teóricos represente algum progresso, alguma ampliação do conhecimento humano (p. 552).
De qualquer forma as contribuições de Merton e de Kuhn para o avanço do debate envolvendo o conhecimento são muito importantes. Como aspectos centrais do trabalho do primeiro,
lembramos o destaque e as preocupações conferidas por este à explicação do grau de influência
dos fatores socioculturais e históricos no desenvolvimento da ciência – inclusive daqueles que
impediram tal desenvolvimento – reconhecendo a influência de uma base existencial na determinação do conhecimento, bem como outras formas – hierarquicamente inferiores, segundo ele
– de conhecimento.
Nestes termos, a produção científica, para Merton, é interdependente de outras esferas,
como a econômica, a moral e a religiosa. Essa relação entre ciência e fundamentos sociais não
deve supor, segundo Merton, uma submissão do comportamento dos cientistas aos imperativos
instrumentais, discordando de Bourdieu, ao destacar que a socialização daqueles está sujeita a
diferentes estilos e práticas sociais.
Kuhn, de outra parte, não é relutante em dar uma solução ao dilema do relativismo científico
com o conceito de paradigma e de comunidade científica. Para ele, o progresso da ciência não
obedece a uma evolução linear ou cumulativa. Aliás, o que se expande e se acumula, paradoxalmente ao desenvolvimento da ciência, é o risco da degradação ambiental irreversível.
49
EaD
Enio Waldir da Silva
Uma mesma realidade, destaca Kuhn, entrementes a superação de um paradigma por outro,
pode ser apreendida de forma tão diferente, porquanto diversa. Em seu juízo, o alargamento do
alcance da ciência se dá, mesmo que os paradigmas possuam um caráter predominantemente
aberto – noção que apresenta uma grande semelhança com o conceito de sistemas autopoiéticos
incorporados de Maturana por Luhmann –, acolhendo e incorporando novidades, a partir de revoluções científicas – reconstrução de uma área de estudos a partir de novos princípios, teorias,
métodos e aplicações que proporcionam que os cientistas vejam o mundo de forma diferente
reagindo a ele também, de forma diferente –, isto é, de respostas não tradicionais a problemas
novos e anômalos, até então tratados insatisfatoriamente pelo paradigma tradicional.
Por seu turno, diria Wallerstein (2002), o novo paradigma tem sua atualidade e legitimidade
baseadas tanto na pertinência de seus esquemas de compreensão quanto em sua capacidade de
resolver os desafios intelectuais apresentados por seus críticos. Em seu conceito de comunidade
científica Kuhn, apesar de reconhecer e apontar a influência do contexto sociocultural, tanto
na definição dos problemas a resolver quanto sobre o pensamento e as escolhas dos cientistas,
apresenta-a distante dos interesses em disputa na sociedade ou, até mesmo, sob a influência do
campo econômico sobre seu trabalho.
Neste sentido, portanto, distante de Bourdieu, a comunidade científica, para Kuhn, é formada por um grupo de cientistas que tem sua motivação no desejo de ser útil, em fazer o que ninguém
antes fez. É integrada por grupos de profissionais, submissos a uma rede de compromissos ou
adesões conceituais, teóricas, metodológicas e instrumentais – adesões que em muito poderiam
ser explicadas pelo sentido que Bourdieu conferiu ao conceito de habitus –, e cujas especialidades buscam soluções, de preferência detalhadas, aos problemas relativos aos comportamentos
da natureza e que devem se dirigir e se submeter aos julgamentos únicos de seus pares.
50
EaD
Unidade 2
sociologia do conhecimento
A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO NO FINAL
DO SÉCULO 20 – NOVOS DESAFIOS
OBJETIVO DESTA UNIDADE
•Mostrar as principais discussões que estão ocorrendo na Sociologia do Conhecimento e as
propostas mais decisivas para uma reforma na reflexão sobre relações ciência e sociedade.
AS SEÇÕES DESTA UNIDADE
Seção 2.1 – Democratizar a Cognicidade
Seção 2.2 – O Conteúdo Esquecido Pela Ciência: a Afetividade
A partir das teses de Kuhn, a Sociologia do Conhecimento, a Sociologia da Ciência e
diferentes correntes teóricas oriundas das Ciências Sociais passam a ser etiquetadas sob uma
mesma denominação mais ampla, renovada e, por que não dizer, mais arrojada: a Sociologia do
Conhecimento Científico.
Foram vários os estudos sociais da ciência, sob esta nova designação, que passaram a abarcar
não apenas as preocupações epistemológicas da Sociologia do Conhecimento mannheimiana,
como também a possibilidade de ter como objeto legítimo o conhecimento científico, desta vez,
porém, tanto no que se refere a sua gênese quanto a sua validade.
A Sociologia do Conhecimento Científico passou, então, a estudar, por um lado, os aspectos
estruturais que compreendem as mútuas influências entre fatores sociais e cognitivos, no âmbito
das organizações científicas e, por outro, questões estritamente atinentes à gênese e à validação
do conhecimento científico.
A suposição é de que a aquisição do conhecimento é um assunto em que cada pessoa
está sozinha. Na qualidade de “sujeitos”, temos a impressão de que, embora inseridos, estamos
absolutamente sozinhos em um mundo de objetos em relação aos quais devemos tentar adquirir conhecimento, trabalhando a sós e sem nenhuma ajuda. Como é possível, como sujeito do
conhecimento, adquirir conhecimento que seja “verdadeiro” acerca de objetos, como parecem
51
EaD
Enio Waldir da Silva
fazer no caso da ciência? Pode-se perceber por que é necessário forçar um pouco a linguagem
para demonstrar que, na aquisição do conhecimento, nenhum ser humano pode ser considerado
um ponto de partida; nós nos encontramos sobre os ombros de outros, de quem aprendemos um
cabedal já adquirido de conhecimento que, se tivermos a oportunidade, poderemos ampliar. Se
tentarmos trazer para nossa própria rede conceitual o desenvolvimento de longo prazo do conhecimento humano, tanto em seus aspectos não científicos quanto em seus aspectos científicos, os
conceitos sugerem que uma polaridade estática – tais como “sujeito” e “objeto” ou “subjetivo”
e “objetivo” em seus sentidos tradicionais – resulta inadequada. O paradigma epistemológico
clássico de uma solidão individual, de um “sujeito” isolado caçando aqui e agora o conhecimento
das conexões dos “objetos” dentro da imensidão de um mundo desconhecido, começando do zero
e absolutamente sozinho, não é muito útil (Elias, 2008, p. 545).
As Ciências Humanas, e em especial as Ciências Sociais, enfatizam as dimensões subjetivas
da realidade social, pois sempre vão se referir aos homens, suas relações e representações. Nesse
sentido, a subjetividade está determinada pela relação entre o sujeito e o objeto, pois ao estudar
o cientista social conceitua e abstraí a ponto de relacionar essa experiência ao seu modo de vida,
proporcionando, em maior ou menor grau, uma reflexão crítica de sua posição na sociedade.
Ocorre também a situação de que o objeto estudado é consciente e capaz de estabelecer
uma relação mais complexa com o cientista do que nas outras ciências; um grupo social que não
concordasse com aquilo que um cientista escrevesse sobre eles, mesmo que ele estivesse correto,
exerceria, certamente, uma coerção maior sobre o pesquisador do que qualquer outro objeto das
Ciências Naturais sobre o pesquisador desta área.
Dada essa situação específica entre sujeito e objeto do saber, caberia definir qual é relação
entre os valores do pesquisador e a produção do conhecimento? Traçados esses limites, qual
seria então o método mais adequado, aquele que proporcionaria uma melhor compreensão da
realidade social?
Segundo Löwy, o método de observação adequado às Ciências Sociais deve reconhecer
que seu objeto de estudo possui um caráter histórico, ou seja, suscetível de transformação pela
ação humana (1978, p. 15).
Também deve ser observado que a relação entre sujeito e objeto do conhecimento é completamente parcial. Disso, apreende-se que o objeto de estudos do pesquisador social se apresenta
como parte atuante de sua vida, levando-o a perceber que a análise que ele empreende não é
apenas do objeto em si, mas de sua relação com aquele e dos dois com o restante da sociedade. A
atividade científica não se apresenta como uma esfera dissociada do restante da atividade social;
os problemas vividos pelo cientista em sua relação com as várias determinações de sua existência
influenciam na maneira como ele analisa e compreende o seu objeto, assim como na maneira como
o conhecimento é utilizado. O conhecimento produzido pelas Ciências Sociais é, pois, definido,
e em grande medida, pela visão de mundo da classe social à qual o cientista pertence.
52
EaD
sociologia do conhecimento
A realidade social é infinita. Toda ciência implica uma escolha, e nas ciências históricas
essa escolha não é um produto do acaso, mas está em relação orgânica com uma certa perspectiva
global. As visões do mundo das classes sociais condicionam, pois, não somente a última etapa da
pesquisa científica social, a interpretação dos fatos, a formulação das teorias, mas a escolha do
objeto de estudo, a definição do que é essencial e do que é acessório, as questões que colocamos
à realidade, numa palavra, a problemática da pesquisa (Löwy, 1978, p. 15).
A realidade com a qual trabalham os sociólogos nunca afirma com certeza se o que lhes
dizem sobre ela está de acordo com o que ela é verdadeiramente. Logo, nunca podemos comparar
o discurso com a realidade.
As mudanças em curso hoje tornam difícil uma análise, visto que requer uma sensibilidade própria, dadas as diversas transformações nas relações dos indivíduos e de seus contextos e
planos. No conhecimento científico, a análise sociológica enfatiza o equívoco das pretensões da
ciência em ser desvinculada dos quadros sociais.
O conhecimento científico parte de quadros operativos essencialmente construídos, justificados pelos resultados conseguidos, que chamam a uma verificação experimental. A ciência
busca a união do conceitual e do empírico e, se cultiva a pretensão de ser desvinculada, será,
talvez, porque é uma classe de conhecimento que tende ao desinteresse, ao “nem rir nem chorar” (Espinoza; Garcia; Alberto, 1994), tende para o aberto, à acumulação, à organização e ao
equilíbrio.
Segundo Bourdieu, a aplicação metódica da razão e da observação empírica ao reino social,
exige, de um lado, em todos os momentos, uma suspeita em relação ao pensamento comum e às
ilusões que este engendra continuamente e, de outro, um esforço ininterrupto de (des/re)construção analítica única, capaz de extrair do abundante emaranhado do real as “causas internas e
as forças impessoais ocultas que movem os indivíduos e as coletividades” (Bourdieu, 1982).
Seção 2.1
Democratizar a Cognicidade
Segundo Boaventura de Sousa Santos (2004), o objetivo epistemológico de hoje é o de
congregar uma massa crítica de pesquisadores majoritariamente das semiperiferias, trabalhando em diferentes países e sem a tutela da ciência central, reivindicando a possibilidade de uma
outra ciência, menos imperial e mais multicultural, de uma outra relação mais igualitária entre
53
EaD
Enio Waldir da Silva
conhecimentos alternativos e que esta constelação de conhecimentos possa estar a serviço da
luta contra as diferentes formas de opressão e de discriminação. A tese de Santos é de que todo
o conhecimento científico-natural é científico-social; todo conhecimento é autoconhecimento;
todo conhecimento é local e total; todo conhecimento visa a se transformar em senso comum.
Uma vez que o conhecimento científico é hoje uma forma privilegiada de conhecimento, cuja
importância para a sociedade é evidente, interessa saber quais são suas naturezas, suas potencialidades, seus limites e suas contribuições para o bem-estar da sociedade. Ou seja, como é
possível reconhecer o conhecimento científico fora destes lugares privilegiados de produção, no
mundo social, político e cultural e como conferir mais inteligibilidade ao seu presente, ao seu
passado e dar sentido ao seu futuro (Santos, 2004, p. 17).
A inserção do conhecimento no mundo social, explicando-o e transformando-o, construiu
um paradoxo em relação às transformações do mundo. “Foi feita no mundo, mas não é feita de
mundo”, pois ao operar com suas próprias lógicas ficou distante da sociedade, da natureza e dos
cidadãos, como se estes não tivessem lógicas próprias também. Assim se refere o autor:
A evolução dos saberes tem a ver com uma pluralidade de fatores: com o crescimento exponencial da
produção científica e a conseqüente proliferação das comunidades cientificas; com o extraordinário
aumento da eficácia tecnológica propiciada pela ciência, uma eficácia posta tanto a serviço da guerra
como da paz; com as transformações na prática científica à medida que o conhecimento científico for
transformado em força produtiva de primeira ordem e a questão das relações entre ciência e mercado
se transmutou na questão da ciência como mercado (Santos, 2004, p. 19).1
Os posicionamentos de Santos originaram-se em suas próprias investigações, quando se
deparava com obstáculos evidentes, desde sua tese de Doutorado no Rio de Janeiro, quando
se viu confrontado pelo saber jurídico popular ignorado pelo Direito oficial, passando pelos
debates sobre o capitalismo liberal e os usos da tecnologia na lógica de produção dos anos 80,
até o momento da “guerra nas ciências”, quando aconteceu a maior expressão de arrogância
epistemológica das ciências, pois se achava, a ciência, a única forma de conhecimento válida e
postada no lugar certo: no cento dos países centrais.
Santos (1997) resolve, então, criar um espaço para esclarecer as várias interrogações sobre
o papel da ciência em novos tempos. Este espaço foi construído com o projeto “A Reinvenção
da Emancipação Social”, que contou com a participação de 69 cientistas de países considerados
1
Esta posição de Santos é bem discutida no livro Conhecimento Prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez
Editora, 2004. Na Introdução o autor esclarece aos seus adversários qual é sua real posição sobre ciência e cognicidade:
abrir um diálogo franco e honesto sobre o impacto da ciência na sociedade. Vieram colaborar com ele no Projeto
inúmeros filósofos, sociólogos, biólogos, antropólogos, economistas, cientistas políticos, psicanalistas, matemáticos e
pesquisadores envolvidos com os estudos culturais de vários países que não opinam concordando com Boaventura,
mas pondo divergências racionais, autênticas e honestas, próprias de quem quer argumentar para se entender. É uma
demonstração da proposta dialogal que o autor defende sobre as posições contemporâneas sobre ciência.
54
EaD
sociologia do conhecimento
estratégicos, não centrais, em que as Ciências Sociais tinham diferentes experiências dos países
centrais, por serem países esquecidos e que estavam resistindo à globalização neoliberal. Estes
países eram: Brasil, Colômbia, África do Sul, Índia, Moçambique e Portugal.
Nas palavras do próprio Santos:
Este projeto possui alguns riscos, tanto pelo êxito fácil, ou seja, pela cooptação hegemônica, ou tanto
ao fracasso pela inviabilidade. Porém, o autor acredita que nesse momento correr o risco é a única
alternativa contra a mercenarização científica. Este projeto assume a pluralidade de conhecimentos
rivais e alternativos e procura dar-lhes voz. Também privilegia a definição de um vasto campo analítico
definido segundo uma orientação geral, priorizando a globalização contra-hegemônica e possibilitando,
assim, contribuir para a reinvenção da emancipação social. Só haverá emancipação social na medida
em que houver resistência a todas as formas de poder. Para que se possam democratizar internamente
as ciências, é preciso reconhecer a pluralidade desta. Para isto, faz-se necessário promover um conhecimento capaz de apreender os diversos processos de construção teórica. Também se faz necessário,
dentro desse processo de democratização da ciência, relacionar a comunidade científica com os cidadãos, entre os conhecimentos científicos e as capacidades cognitivas que sustentam a cidadania.
Desta forma, poderão desenvolver métodos que permitam estabelecer relações mútuas e influências
recíprocas entre as partes e o todo (Santos, 1997).
A realidade possui sua mais viva expressão na vida cotidiana, porque esta se apresenta
como um mundo intersubjetivo e intrasubjetivo. Por outro lado, a rotina da vida cotidiana traz
consigo a dúvida a respeito da realidade. Ou seja, impede sua problematização. Esta só se dá
a partir de um novo conhecimento porque rompe a continuidade da realidade cotidiana. Nesse
sentido, entendemos que é o acervo social do conhecimento que levamos para nossa prática cotidiana, que irá estabelecer nossa relação com o senso comum e, portanto, com sua superação.
A questão central para nós, na visão de Berger e Luckmann, é reconhecer que o mundo da vida
cotidiana proclama-se a si mesmo e quando quero contestar esta proclamação tenho de fazer um
deliberado esforço, nada fácil (Santos, 1997).
Com efeito, existem outros saberes e modos de conhecimento – as próprias práticas sociais,
por exemplo – não redutíveis ao conhecimento científico. De acordo com esta perspectiva, a ciência
deve valer-se das virtudes inerentes ao senso comum – unidade entre causa e intenção; prático,
pragmático e espontâneo; contemporâneo e complementar à experiência cotidiana; evidente;
interdisciplinar e imetódico – de maneira que a vida da experiência esteja condicionada, senão
dirigida, pela necessidade da experiência da vida.
Em realidade, para Santos a ciência pós-moderna, ao sensocomunizar-se, não despreza o
conhecimento que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir
em autoconhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida.
55
EaD
Enio Waldir da Silva
Esta questão remete-nos ao cuidado que temos de ter quanto ao perigo que corremos –
enquanto pretensamente intelectuais – de utilizarmo-nos de categorias analíticas inadequadas
e/ou privilegiar generalizações. Ao desconsiderarmos toda a diversidade e profundidade implícitas na e da vida cotidiana, distanciamo-nos, afetivamente, de uma interpretação que considere,
mais fielmente, saberes outros produzidos e ou gestados no dia a dia da prática social (Santos,
1997).
Não podemos, entretanto, confundir diálogo e troca de saberes com a substituição de um
saber pelo outro. A realidade, em toda sua infinita complexidade, não pode ser apreendida a
partir de uma única perspectiva ao mesmo tempo em que não pode prescindir dela. O que se
está propondo é uma ruptura com a monocultura epistemológica, em grande medida imposta
pela ciência moderna na perspectiva da maximização da contribuição de cada saber em relação
à explicação e compreensão da realidade. Esta última não pode ser reduzida ou reproduzida
numa única perspectiva. Afinal, os saberes não estão imunes ao princípio da incompletude
(Santos, 2005).
Por exemplo, se a análise da dinâmica do comportamento das classes populares em sua
relação com o todo do complexo societário se der a partir de um campo conceptual que privilegie
termos como falsa consciência, alienação, ignorância, arcaísmo, atraso, etc., estaremos desconsiderando outras formas de resistência e de saberes que não passam necessariamente por algum
ideal de organização coletiva. De outra parte, corremos o risco de sermos alvos da indiferença,
porque insensíveis e incapazes de perceber a riqueza implícita na lógica interna da vida das
classes populares.
Esta sabedoria seria, ao ser considerada, um passo adiante na superação daquilo que Bourdieu denunciou como a eleição do todo pela perspectiva de uma parte. Em outras palavras, as
considerações relativas ao todo devem estar condicionadas pela relação deste com suas partes
inerentes. Isto é, o conhecimento de determinada realidade e/ou fenômeno pressupõe a assunção
de sua referência inconteste com esferas circundantes, as quais contribuem para a configuração,
movimento e/ou substância dessa mesma realidade.
Dentro deste processo de reinvenção e construção existem alguns princípios orientadores
(Santos, 2000, p. 330), quais sejam: criar novas formas de conhecimento baseadas numa nova
retórica, que seja dialógica e empenhada em constituir-se como tópica emancipatória, ou seja,
como tópica de novos sensos comuns emancipatórios, capaz de facilitar uma resolução progressista
da transição paradigmática. Para essa tarefa duas representações inacabadas da modernidade
são importantes. O princípio da comunidade, assente nas ideias de solidariedade de participação
e o princípio estético expressivo assente nas ideias de prazer, de autoria e de artefactualidade.
Também é possível incluir a separação do Direito moderno relativamente ao Estado e a sua rearticulação com a política e a revolução. Diante desses campos analíticos o autor observa que
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EaD
sociologia do conhecimento
é possível realçar as várias formas de opressão nas sociedades capitalistas, ao mesmo tempo
em que abrem novos espaços para uma política cosmopolita, para diálogos interculturais, para
a defesa da autodeterminação e da emancipação, espaços possibilitados pela globalização das
práticas sociais.
Não podemos entender Boaventura de Sousa Santos se não retomarmos sua leitura da
ciência moderna. Para ele, o que há de específico na dimensão conceitual da ciência moderna
é a ideia de inferioridade do outro. Não apenas a ideia, mas aprofundando-a e legitimando-a.
Ao invocar a credencial da legitimidade, tem sua validade e credibilidade asseguradas? Esta se
justifica pela produção de superioridade/inferioridade. As concepções que deram sustentação à
modernidade: a suposição de uma ordem universal; um modelo de racionalidade (o ocidental);
uma ideia de sujeito (o sujeito poderoso); as metanarrativas (grandes sistemas explicativos e
totalizantes); a supremacia do homem (como espécie, como gênero, como medida de todas as
coisas); uma cultura (a ocidental) como o lugar privilegiado a partir do qual se inventam e nomeiam as “outras” (Santos, 2010, p. 150).
A ciência em geral, e a modernidade em particular, via de regra, tiveram uma relação
marcadamente instrumental com a vida. Preocupada e embasada na capacidade de conhecer e
transformar a natureza, procurou eliminar a imprecisão, a ambiguidade e a contradição. O que
até hoje foi ignorado e rejeitado vem à tona. A ideia de ordem e estabilidade do mundo revela
como o determinismo mecanicista da modernidade separou o que serve daquilo que não serve;
o estético, do útil; a cultura, da natureza, etc.
O pensamento moderno ocidental é abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis
e invisíveis, com as invisíveis fundamentando as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas por meio de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos:
o universo deste lado da linha e o universo do outro lado da linha. A divisão é tal que o outro
lado da linha desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente e é mesmo produzido como
inexistente (Santos, 2010).
Para Santos, no campo do conhecimento o pensamento abissal da modernidade estaria em
conceder à ciência moderna o monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso, em
detrimento de outros conhecimentos como o sociológico, o filosófico e o teológico, assim como
destes para os saberes populares, leigos, plebeus, camponeses, indígenas, etc. Estes não são
considerados científicos e sim crenças, opiniões, magia, idolatria, intuições, afetividades. São,
no máximo, matéria-prima para a ciência.
Neste lado que não foi considerado pela ciência moderna se esconde uma vasta gama de
conhecimentos e experiências desperdiçadas e sem uma localização, apesar de sabermos que
estão nas regiões colonizadas. É justamente nesta zona que se construiu novas e fortes concepções de conhecimentos.
57
EaD
Enio Waldir da Silva
Há necessidade de reorganizar o que conhecemos por ciência. Ao desencadear uma
nova concepção, uma reflexão epistemológica e diversificada sobre o conhecimento científico,
Boaventura de Sousa Santos (2000), cita: em vez da eternidade, temos a história; em vez do determinismo, imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, espontaneidade e a
auto-organização; em vez da reversabilidade, irreversabilidade e a evolução; em vez da ordem,
a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente (p. 70-71).
Para Santos (2000), o saber que não considera os outros saberes do mundo é um “conhecimento desencantado e triste”. Aquilo que é considerado como não ciência (senso comum)
não possui a mesma credibilidade, por sua informalidade, flexibilidade possibilidade de várias
leituras. Embora não seja quantitativo é real, move os corpos, faze agir. Para isso é necessário
fazer algumas rupturas epistemológicas, tais como:
A primeira: todo processo científico só pode acontecer quando o pesquisador sai da linguagem do senso comum e busca uma linguagem técnica, própria de um saber rigoroso que busca
encontrar a verdade, pois a ciência, nesse momento, se opõe à opinião. Dentro da linguagem do
senso comum não é possível acontecer saber rigoroso e concatenado.
Quando, contudo, a ciência tiver acabado sua pesquisa e discurso, torna-se necessária
a segunda ruptura: é preciso voltar à linguagem do senso comum, para que os resultados de
suas pesquisas sejam acessíveis a todos os membros de sua comunidade. A ciência só pode ser
constituída dentro de uma linguagem rigorosa, entretanto os resultados da ciência devem ser
traduzidos dentro da linguagem cotidiana, da linguagem própria dos que não pertencem à comunidade científica.
Os conhecimentos conquistados devem ser divulgados ao público numa linguagem a ele
acessível. Esse trabalho de construção e desconstrução (próprio da hermenêutica) dos conhecimentos alcançados, graças ao rigor do trabalho científico, é uma etapa essencial, pois toda
ciência é uma atividade social e, como tal, trará impacto e consequências relativas à qualidade
de vida dos membros da sociedade em que ela se exerce.
Os cidadãos comuns têm o direito e o dever de conhecer o que fazem e pensam seus
cientistas, porque também eles são corresponsáveis por tudo o que se faz e acontece no seio da
sociedade em que vivem. Os resultados da pesquisa científica sempre trarão impactos, ao mesmo
tempo positivos e negativos sobre a vida dos cidadãos. A verdade da ciência não é algo atemporal
e acima de qualquer suspeita: ela pode ser usada de modo abusivo, ideológico e autoritário; por
isso, todos os cidadãos têm direito a discutir, ao menos, as consequências positivas e negativas dos
resultados da pesquisa. A verdade da ciência se dá sempre na e para a sociedade: ela é prática
e social, pois “que diferença faz, para você e para mim, em instantes precisos de nossa vida, se
esta fórmula-mundo ou aquela fórmula-mundo é verdadeira” (Santos, 2000, p. 44).
58
EaD
sociologia do conhecimento
Santos julga que, até hoje, ao colocar a questão de saber se o estatuto científico das Ciências
Humanas ou Sociais é igual ou diferente ao das Ciências Naturais, este questionamento, da forma
com foi exposto, não apenas é insolúvel, mas também constitui um obstáculo epistemológico ao
avanço do conhecimento científico, tanto para as Ciências Sociais quanto para as Ciências Naturais: “Para superar isso, é preciso inverter os termos da questão: partir da precariedade do estatuto
epistemológico das ciências naturais (o que implica uma ruptura total com a filosofia positivista)
e perguntar se as ciências naturais são iguais ou diferentes das ciências sociais.” (2000, p. 51).
Agora estão em questão, sobretudo, as próprias Ciências Naturais. O autor afirma que hoje
as Ciências Naturais ainda são diferentes das Ciências Sociais, mas aproximam-se cada vez mais
destas e é previsível, em futuro não muito distante, se dissolverem nelas. E isso graças a duas
razões teóricas. Primeiro, porque o avanço científico das Ciências Naturais é
[...] o principal responsável pela crise do modelo positivista e, em face dela, as características, que
antes ditaram a precariedade do estatuto das ciências sociais, são reconceptualizadas e passam a
apontar o horizonte epistemológico possível para as ciências no seu conjunto. E, em segundo lugar,
a materialidade tecnológica em que o avanço científico das ciências naturais se plasmou não fez com
que os objetos teóricos das ciências naturais e das ciências sociais deixassem de ser distintos, mas fez
com que aquilo em que são distintos seja progressivamente menos importante do que aquilo em que
são iguais (2000, p. 52).
Se quisermos sair do impasse imposto pelo positivismo às Ciências Humanas, precisamos
superar o paradigma controlador e manipulador da ciência moderna. É preciso ver que toda
ciência é práxis social. E fenômenos sociais são estudados pelas Ciências Sociais e não pelas
Ciências Naturais. Na medida em que se toma consciência dessa obviedade, a concepção de
como se relacionam esses dois tipos de ciência se transforma, os dogmatismos se esvaem e, desta
forma, as Ciências Sociais e as Ciências Naturais – cada qual mantendo suas peculiaridades e
objetos específicos – caminham lado a lado na tentativa de propor a verdade a que elas tiveram
acesso, visando à construção de um mundo que proporcione, a todos seus habitantes, condições
de existência e qualidade de vida que sejam condizentes com sua dignidade. Isso só acontecerá,
no entanto, se o paradigma da ciência moderna for superado.
Em síntese, a proposta de Boaventura de Sousa Santos pode ser assim resumida: A descolonização da ciência assenta no reconhecimento de que não há justiça social global sem justiça
cognitiva global. A justiça cognitiva global só é possível mediante a substituição da monocultura
do saber científico pela ecologia dos saberes: Saber Prudente: um saber sempre em diálogo aberto
com as múltiplas culturas em relação de complementaridade; Saber Decente: aproximado das
diferentes formas de vida que as respeite e as elucide sem colonizá-las; Saber Emergente: Considerar as diferentes formas de saberes, as criatividades experienciadas existentes no mundo
para além da forma privilegiada institucional da ciência; Saber Urgente: trata-se de não fazer
59
EaD
Enio Waldir da Silva
ciência pela ciência, mas produzir saberes que unam as ansiedades individuais para diminuir as
ansiedades de todos, especialmente que encaminhe alternativas para o sofrimento dos excluídos,
dos que vivem em vulnerabilidade social.
No livro Semear outras soluções – os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos
rivais (Santos, 2005) o autor esboça sete teses sobre a diversidade epistemológica do mundo.
A ideia de Santos é apresentar algumas balizas para produzir debates sobre a natureza e o
âmbito da diversidade de conhecimentos produzidos no mundo e sobre o modo como ela pode
contribuir para a construção de projetos sociais de emancipação social. Vamos resumir estas
teses:
Tese 1 – A diversidade epistemológica do mundo é potencialmente infinita. Todos os conhecimentos são contextuais e tanto mais o são quanto se arrogam não sê-lo.
Um sistema de conhecimento epistemológico que envolva as práticas sociais é a proposta
da tese anterior. A ciência moderna requer sobre todos os aspectos um saber reflexivo sobre as
ações e consequências das práticas sociais que possam ser aplicadas nos vários contextos do
mundo.
Tese 2 – Todo conhecimento é parcelar e as práticas sociais só raramente assentam numa
forma de conhecimento.
Os diferentes tipos de conhecimento, cujo valor prático tem um critério de verdade, devem
dar relevância a toda atividade humana em que a questão epistemológica é aquela que questiona sobre as hierarquias dentro das constelações do conhecimento, tanto pela sua operatividade
quanto pelas suas consequências.
Tese 3 – A relatividade dos conhecimentos não implica o relativismo.
O relativismo pode ser tratado aqui como a ausência de critérios de hierarquias de validade.
Essa ausência recai sobre um vazio quando os diversos tipos de conhecimento são considerados
com pesos iguais.
Tese 4 – O privilégio epistemológico da ciência moderna é um fenômeno complexo que não
é explicável apenas por razões epistemológicas.
As transformações epistemológicas dentro deste processo assumem um caráter de pluralismo epistemológico que torna possível a democratização radical e a descolonização do saber
e do poder. Não é possível pensar em modelos de transformação social sem pensar em proceder
às transformações epistemológicas.
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EaD
sociologia do conhecimento
Tese 5 – O pluralismo epistemológico começa pela democratização interna da ciência.
Para que se possa democratizar internamente as ciências, é preciso reconhecer a sua
pluralidade. Para isto, faz-se necessário promover um conhecimento capaz de apreender os
diversos processos de construção teórica. Também se faz necessário, dentro deste processo de
democratização da ciência, relacionar a comunidade científica com os cidadãos, entre os conhecimentos científicos e as capacidades cognitivas que sustentam a cidadania. Desta forma poderão
desenvolver métodos que permitam estabelecer relações mútuas e influências recíprocas entre
as partes e o todo.
Tese 6 – A descolonização da ciência assenta-se no reconhecimento de que não há justiça
social global sem justiça cognitiva global. A justiça cognitiva global só é possível mediante a
substituição da monocultura do saber científico pela ecologia dos saberes.
O colonialismo permanece hoje sob a forma de colonialidade do poder. Ela se manifesta entre
norte e sul, entre o centro e as periferias, sob a forma de colonialidade de saber científico.
A diversidade epistemológica do mundo não tem reconhecimento. Os saberes não científicos e não ocidentais, não são levados em conta, no máximo são tratados como conhecimentos
alternativos. Essa condição os desarma e os torna vulneráveis.
A ecologia de saberes seria a proposta adequada para a solução da descolonização da ciência, e um novo tipo de relacionamento entre o saber científico e outros saberes, pois garantiria
assim a igualdade de oportunidade aos diferentes saberes.
Tese 7 – A transição da monocultura do saber científico para a ecologia de saberes torna
possível a substituição do conhecimento-regulação pelo conhecimento-emancipação.
A ciência pode contribuir para a transmissão do conhecimento-regulação pelo conhecimento-emancipação a partir do momento em que estiver receptiva a sua democratização. Faz-se
necessário construir um saber concebido como solidariedade para alcançar a emancipação social
(Santos, 2005, p. 97-101).
Para finalizar, segundo Boaventura de Sousa Santos a ciência é um exercício de cidadania
e solidariedade e a sua qualidade é aferida, em última instância, pela qualidade da cidadania e
da solidariedade que promove ou torna possível.
Evidentemente que teríamos muitas outras abordagens para a Sociologia do Conhecimento, como a de Niklas Luhmann, Jürgen Habermas, Pierre Bourdieu, Norbert Elias, Edgar
Morin, Zygmunt Bauman, Humberto Maturana, etc., mas preferimos a abordagem de Boaventura de Sousa Santos por estar no entremeio dos debates também apontados por estes autores
e por ter demonstrado teses essenciais que brotam do interior dos movimentos sociais que ele
acompanha.
61
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Enio Waldir da Silva
Seção 2.2
O Conteúdo Esquecido pela Ciência: a afetividade
Como assegura Pedro Demo (1997a), o conhecimento pode ser o distintivo principal do
ser humano, pode ser virtude quando comparece como alavanca central da emancipação, em
particular como estratégia de superação da misantropia (esta é entendida como miséria política,
econômica, cultural, social e miséria de relações sociais e éticas). O conhecimento pode ser o
método central da análise da realidade, conferindo ao ser humano a condição de intervenção
consciente e competente, mas pode ser ideologia com base científica a serviço da elite, sobretudo
quando vende a ideia de que é isento de valores. O conhecimento pode ser artimanha do ser
humano, quando constrói consciência crítica para deturpá-la nos outros, usando ciência apenas
em sentido estratégico. O conhecimento pode ser a perversidade do ser humano, quando é feito
e usado para fins de destruição (Demo, 1997a, p. 299).
Em sua ironia sociológica Demo vai dizer que:
Tudo que é profundo, é passageiro; a intensidade transforma-se em extensão, se perdurar; vira rotina;
a profundidade tem a lógica do momento, e no momento pode ser avassaladora, total, plena, não na
extensão esticada; ser passageiro denota, ao mesmo tempo, a fugacidade da vida, mas, sobretudo, sua
maneira própria de ser; passar não é vicissitude, é essência; o que é bom, acaba; o bom extenso, enjoa,
satura, enoja; acabar é condição de qualidade, para não se esvair na rotina, que a tudo mata, porque
não deixa passar; a coisa mais histórica que a história conhece é o desgaste no tempo; qualidade é a
capacidade de se confrontar com este desgaste, impondo ao tempo, no momento, a intensidade que a
extensão nega; a criatividade é uma dinâmica provisória, não uma situação definitiva; a criação mais
profunda do ser humano não é uma sociedade acabada, mas por se fazer; toda instituição envelhece;
por isso, viver é, essencialmente, renovar-se; quem se renova não deixa de envelhecer. Isto é implacável
para um ser histórico, mas impõe à extensão temporal momentos de criatividade intensa; utopia é o
afrontamento dos limites, dentro dos limites; buscamos a perfeição, sabendo que nenhuma história é
perfeita; a perfeição da história é a oportunidade possível de aperfeiçoá-la; só pode ser momentânea
a sensação de plenitude, dentro de uma história que não pode jamais ser plena; qualidade é essencialmente uma esperança, que vale sobretudo pela capacidade de mobilizar, fazer fé, comprometer,
envolver; realizar-se é saber ceder; toda convivência participativa, se, de um lado, enriquece a pessoa,
porque ninguém se realiza sozinho, de outro, estar juntos é estar cercado de limites; na comunidade,
somos melhor, mas temos menos.2
2
Demo, P. Pesquisa qualitativa. Busca de equilíbrio entre forma e conteúdo. Revista Latino Americana de Enfermagem,
Ribeirão Preto, v. 6, n. 2, p. 89-104, abril 1999.
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sociologia do conhecimento
Não há então um conhecimento puro, mas debater sobre ele é fundamental para que encontremos entendimentos que nos façam sempre mais humanos. Nesse sentido merece destaque
a contribuição de Maturana (1998) para se pensar o conhecimento com um conteúdo quase
sempre deixado de fora: a afetividade/emoção/amor.
Maturana usou na Biologia o conceito de autopoiesis – autoformação – para indicar a característica de todo ser vivo de poder reagir, em seu meio, de maneira reconstrutiva, e não apenas
passiva, como estaria dito no reflexo condicionado. Tomando o conhecimento que se constrói na
escola é possível de dizer que talvez tenha sido esta a contribuição mais forte contra a tradição
escolar do treinamento em apoio às teses de Piaget, por exemplo.3
Para este biólogo chileno, o conhecimento é uma construção da linguagem. A noção de
linguagem trabalhada pelo autor é a referenciada e construída nas relações, que, por sua vez, são
emocionadas. Na pesquisa do sistema nervoso foi formulando sua ideia de ser vivo como sistemas
de organização circular, nos quais o que se conserva é a circularidade. Inaugura a concepção de
autonomia do ser vivo, a autopoiése. Pensar o conhecimento a partir da autopoiese só é possível
se entendemos cada vivente como sistema fechado, auto-organizado e auto-organizável.
Segundo Maturana (1998), o que determina, em última análise, a organização do vivo é sua
própria autopoiese, mas o que desencadeia é a relação que se estabelece entre vivo-meio-vivo. O
organismo se autogere, mas só o faz na relação com outros organismos. Isso quer dizer que não é
possível determinar quais as ações subsequentes num processo autopoiético. É possível, contudo,
saber que o vivo age e reage diante das circunstâncias, uma vez que vai organizando seu conhecer
a partir do próprio ato de viver, pois viver e conhecer são mecanismos vitais. Conhecemos porque
somos seres vivos e isso é parte dessa condição. Conhecer é condição de vida na manutenção da
interação ou acoplamentos integrativos com os outros indivíduos e com o meio.
Os estudos de Maturana (2001) explicitam o sinônimo entre conhecer e viver. A noção de
viver-conhecer está diretamente vinculada com o modo de se relacionar e de se organizar nessa
relação. Não se trata de adaptação ao meio. O viver-conhecer na relação significa, ao mesmo
3
Em seus primeiros estudos de Medicina, no Chile e depois na Inglaterra, Maturana foi mapeando uma compreensão
dos seres vivos como “entes dinâmicos autônomos em contínua transformação em coerência com suas circunstâncias
de vida”. A busca aprofundada desse desejo de compreender melhor a dinâmica do ser vivo levou-o a estudar Biologia
em 1956, quando inicia seu Doutorado em Harvard. Inicialmente sua busca perquiritória residia na neuroanatomia
e fisiologia da visão. Ao longo de seu caminho investigativo foi traçando um quadro mais amplo de seu interesse
biológico: o modo de operar sistêmico da neurobiologia e a organização sistêmica dos seres vivos. Mais tarde, suas
pesquisas levaram-no à tese de que o visto é especificado pelo operar da retina, e não uma simples abstração do objeto
material no qual a visão bate. Começou a pôr em xeque a noção absoluta da objetividade real. Maturana pauta-se por
uma noção da Biologia em que as emoções possuem um papel fundamental no desenvolvimento do sistema biótico.
Acentuando o papel das emoções no viver humano, foi descobrindo o operar do sistema na construção do conhecimento
como ação biológica. Propõe a emoção como o grande referencial do agir humano. Ver mais sobre o autor em:
Maturana, R. Humberto. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. São Paulo: Psy,
1995.
______. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
______. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
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Enio Waldir da Silva
tempo, a criação/recriação desse espaço relacional, e de outros, e a criação/recriação do sistema
em relação. Pode incluir, em algum momento, a adaptação, mas vai além dela. Dessa relação
criativa, meio-sistema, é que emerge o social.
Para Humberto Maturana, os desafios para construir o conhecimento centram-se na superação da valorização demasiada da razão desvinculada do sentimento. A sociedade moldada
por este tipo de pensamento tornou-se mecanizada e o humanidade se encontrou sufocada por
esta chamada instrumentalização da vida, distante do verdadeiro sentido do viver. A razão é,
sim, uma característica importante da essência humana, porém a razão isolada do sentimento
se torna fria e destrutível (1995).
Cada indivíduo tem uma humanidade com uma estrutura lógica baseada no afeto. O afeto clama por unidade. Os seres humanos são seres autopoiéticos cuja força operante está nas
emoções. Estas são disposições corporais que orientam as ações. Só aceitamos o racional se ele
é premissa que entrelaça com o emocional. Foi a partir das emoções em si e do reconhecimento
delas no outro que começaram os laços sociais. Descobriu-se como operá-las no seu sistema e se
promoveu a construção do conhecimento como ação. Por isso a máxima sabedoria não é oposta
à igualdade. A ciência só é importante quando promove a vida, quando elucida a vida. A emoção – afetividade – é central na história evolutiva humana. Nós, seres humanos, nos originamos
na emoção e somos dependentes dela. As relações humanas que não respeitam as emoções ou
não estão nelas fundamentadas, não são relações sociais. As emoções não são o que obscurece o
entendimento, não são restrições à razão: as emoções são dinâmicas corporais que especificam
os domínios de ação em que nos movemos (Maturana, 1998).
Os seres humanos não são o tempo todo sociais, somente o somos na dinâmica das relações
de aceitação mútua. Sem ações de aceitação mútua não somos sociais. O importante é o bemestar de cada um em conjunto com o todo e assim o bem-estar do todo a partir do bem-estar de
cada um. O ter perde vez para o ser, isto porque nada pode superar o valor do ser que é único e
por isso assume legitimamente o direito incondicional de elemento importante e insubstituível
do processo de construção e concretização da vida ou do cotidiano social e por isso é preciso
reconhecer-se como sujeito, pois sem a aceitação e respeito por si mesmo não se pode aceitar e
respeitar o outro, sem aceitar o outro como legítimo outro na convivência, não há fenômeno social
e nenhuma humanidade se realiza contra esta lógica, que jamais é a mesma em dois indivíduos.
Por isso solidariedade não é misericórdia do outro ou para com o outro: é ação racional, científica
que se liga à vida (Maturana, 1998).
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sociologia do conhecimento
Quando ficamos atrelados ao interesse do capital desaparecemos como seres humanos,
seremos em si um corruptor. A autoconsciência não está no cérebro – ela pertence ao espaço
relacional que se constitui na linguagem. Então a autoconsciência surge quando o observador
constitui a auto-observação como uma entidade ao distinguir a distinção da distinção no linguajar
(Maturana, 1998, p. 28).
A linguagem deve ser compreendida como espaço construído por ações que se tornam comuns. Em outras palavras, que esta comunicação não se trata da aceitação de mesmos conceitos.
A noção corrente de linguagem que lida com os pressupostos da racionalidade e da estrutura
cerebral linguística é entendida como lugar de leitura e interpretação dos signos. Não é mais a
razão que fundamenta e embasa as ações e a comunicação, mas sim a emoção, que não pode
ser abarcada pela linguagem enquanto construção racional, mas pela linguagem construída nas
coordenações de ações consensuais (Maturana, 1998).
O educar deixa de ser entendido como um ato da fala enquanto apresentação de quem
domina determinadas informações pronunciadas como verdades e passa a constituir-se em
comunicação de sistemas viventes nas ações comuns. Não existe intervalo no ato de educar no
conviver. O ato pedagógico é assim entendido como toda ação que alguém realiza no conviver. Ao
contrário de dispensar a especificidade pedagógica, esta perspectiva pretende tornar os espaços
artificiais de educação mais plenos das experiências do conviver. O conhecimento passa a ser
compreendido como organização do vivo nas relações que vai vivenciando, como fenômenos.
O próprio ato de conhecer-viver se constitui em uma leitura da relação cognoscente-vivente.
Por isso, nesta perspectiva, o conhecer-viver é elemento fundamental no processo de conscientização. Passa a ser uma consciência de si na relação, posto que na relação é que se estabelece
a identificação do outro como legítimo outro.
A escola precisa ser forte para combater as misantropias humanas (as misérias econômicas,
políticas, sociais e culturais), as violências sociais (explosão do lado demens dos indivíduos) e
para fortalecer os laços sociais que asseguram a ordem e a boa vivência. É preciso conhecer para
viver, sem viver não se conhece, sem conhecer pouco se vive, viver é condição de vida na manipulação da interação ou acoplamentos integrativos com os outros indivíduos e com o meio.
As interações sociais baseadas na obediência, na exclusão, na negação, no preconceito,
não podem ser ditas sociais, pois agridem, negam a nossa condição biológica básica de seres
dependentes das emoções, fazem a cultura do não reconhecimento e nos fazem sofrer.
A democracia é uma obra de arte político-cotidiana que exige atuar no saber que ninguém
é dono da verdade, e que o outro é tão legitimo quanto qualquer um. A democracia é uma conspiração ontológica que surge do desejo de viver juntos num país em circunstâncias nas quais o
mundo que trouxermos será o mundo que viveremos juntos e que constituíra de fato este país.
65
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Enio Waldir da Silva
Na dinâmica humana sempre se formam grupos. Isto está relacionado com as aceitações, com
as conversações, com os encontros. A aceitação ética se constitui na preocupação com o outro,
dá-se no espaço emocional e tem a ver com a sua aceitação.
Por isso as novas concepções para o conhecimento que se queira promover deve partir das
seguintes compreensões:
– A solidariedade é próprio da lógica humana, não a competição;
– A responsabilidade de cada um é primar pela qualidade individual para promover a liberdade
de todos;
– Hoje, como sempre e mais do nunca, precisamos viver juntos – iguais e diferentes;
– A cultura do diálogo faz brotar a beleza da humanidade da vida, que existe em todo o ser humano;
– O que existe não é medida para o que pode vir a ser construído;
– Viver longamente, com saúde, feliz e de modo simples;
– Conhecer é libertar as inteligências.
Passaremos a tratar agora de um lugar especial no qual o conhecimento científico fez morada, se instalou, se reproduziu e continua a ser visado por todos: a universidade.
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EaD
Unidade 3
sociologia do conhecimento
A UNIVERSIDADE E O CONHECIMENTO
OBJETIVO DESTA UNIDADE
•Recuperar o papel da universidade na produção de conhecimentos científicos, na edificação das
culturas e orientação da vida social. Abordar sua situação atual e os desafios a ela colocados.
AS SEÇÕES DESTA UNIDADE
Seção 3.1 – O Que Foi e o Que é uma Universidade
Seção 3.2 – A Universidade e as Ciências Humanas Hoje
Seção 3.3 – Universidade Comunitária e as Ações Solidárias
No começo de sua história, a universidade desempenhava uma função simples, de formação
de cultura geral. Aos poucos, contudo, foram sendo agregadas outras funções, como a formação
de profissionais para as diferentes atividades que socialmente foram se criando, a produção de
conhecimentos e técnicas para as múltiplas necessidades sociais, o que a levava a ser articuladora
cultural e integradora de indivíduos à sociedade. Nos últimos tempos foi agregada também uma
série de atividades fora dos muros da instituição e mais próxima dos problemas sociais, chamada
de extensão universitária.
Seção 3.1
O Que Foi e o Que é Uma Universidade
A universidade é uma instituição marcada pela diversidade, complexidade e pluralidade,
fruto da reflexividade do mundo social em que está inserida. Estudos têm mostrado que a universidade é influenciada pelos diversos contextos socioculturais que a envolvem, que influenciam
em seus objetivos e lhe proporciona sentidos.
67
EaD
Enio Waldir da Silva
Entende-se que ela, no entanto, apesar de ser diversa, complexa e plural, é uma instituição
organizacional que guarda dimensões científicas específicas, tem sua especificidade institucional, por ser um lugar de produção sistematizada de conhecimentos que preparam homens para
atuarem em lugares sociais e ao mesmo tempo contribui para a inserção social dos indivíduos.
Ela está inserida na diversidade e complexidade de relações sociais, e ela própria é, ao mesmo
tempo, uma relação social, expressão e orientadora de relações sociais.
A dimensão social do conhecimento produzido e ensinado pela universidade mudou muito
ao longo da História. Estudos mostram que a universidade assumiu diversas características no
decorrer da história e que seu conceito estava relacionado à função social atribuída a ela. Assim,
a Universidade Medieval, tutelada pelo Papa, preparava quadros para o funcionamento da Igreja
Católica, como os especialistas em Filosofia, Teologia, Direito Civil e Canônico. Na Modernidade,
na França e na Inglaterra, a revolução industrial e a consolidação do Estado Nacional fizeram
com que a universidade se voltasse para a formação de profissionais técnicos e formação da elite
governamental.
No meio desta perspectiva se destacaram as universidades alemãs por instituírem uma
maior reflexão conceitual da própria universidade, inserindo a concepção do nacionalismo,
em que a formação dos profissionais deveria se dar com base nas ciências resultante de uma
instituição voltada para a pesquisa científica e com uma autonomia especial. A universidade
americana voltou-se para a formação de quadros científicos e massa de profissionais ligada ao
projeto nacional e na América Latina ela serviu inicialmente aos colonizadores e logo depois a
uma elite dominante.
Boaventura de Sousa Santos (1986) analisa as realidades pragmatistas, tecnicistas e excludentes inseridas na vida da universidade e, ao mesmo tempo, propõe a ela um projeto democratizante e emancipatório. Como o principal problema da sociedade atual é a exclusão social,
é este um dos principais desafios da universidade, que está em tensão com a sociedade, com
o Estado e até mesmo entre si (por serem, também, instituições epistêmicas). Muitas reformas
foram feitas para tentar amenizar, dispersar ou gerenciar essas tensões.
Podemos citar alguma das principais contradições do gerenciamento universitário, segundo
Santos (1986):
A) Produção de alta cultura versus produção de padrões de culturas e conhecimentos úteis à
industrialização (força de trabalho qualificada), o que a leva a uma crise hegemônica – descentralização intelectual: quando não desempenha funções contraditórias, leva os grupos a
procurarem outros meios para preencher o déficit funcional. É a mais ampla das contradições,
porque nela está a causa da exclusividade dos conhecimentos que produz e transmite, ou seja,
se exige delas formas de conhecimento difíceis de incorporar com as concepções do liberalismo,
que requer conhecimentos técnicos para ocapitalismo em expansão, em reconstrução.
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EaD
sociologia do conhecimento
B) Hierarquização dos saberes especializados versus exigências de democratização e igualdade
de oportunidades, o que a leva à crise de legitimidade – desvalorização da formação/diploma:
quando as condições sociais não são aceitas, seus objetivos coletivamente assumidos são visualizados como não cumpridos. Isto é um espectro social dos destinatários, que são tanto os
cidadãos quanto o capitalismo organizado.
C) Autonomia institucional versus produtividade social, submissão a critérios de eficácia e
produtividade de natureza empresarial, o que a leva à crise institucional – desvios da tarefa
intelectual para a organizacional: quando não pode garantir seus pressupostos e quer impor a
eles modelos organizativos vigentes em outras instituições reconhecidas como mais eficientes.
Esta exigência provém da crise do Estado Providência e do capitalismo desorganizado.
A universidade estaria, então, em crise, e o entendimento dela só seria possível contextualizando-a com as articulações que mantém com o sistema social. A sociedade atual vive com
agravamento de crises em todos os sistemas. A universidade reage a elas, mas reações efêmeras
diante da sociedade liberal que exige dela conhecimentos mais técnicos, que ela não podia
incorporar. A sua crise atual é fruto do estágio do capitalismo desorganizado em que o Estado
Providência se encontra (Santos, 1996, p. 191).
As universidades, que durante muito tempo detiveram o monopólio da investigação científica, perderam em favor de governos e da indústria. Quando estes não encontram chão firme
para suas ações vão buscar novamente na universidade as práticas dos cientistas para delas se
apropriarem (Santos, 1989, p. 131). Isto também faz parte das condições da transição paradigmática em que a modernidade, ao mesmo tempo em que entra em crise, em colapso, como projeto
epistêmico, também se abriu para múltiplas possibilidades, inclusive para o aparecimento de
novas utopias.
No século 20, as universidades se tornaram instituições centrais, lugar de inovações científica, social e mesmo política, uma vez que nelas são preparados os quadros futuros. É no seio
da universidade que as grandes transformações da sociedade do século 20, seriam anunciadas
ou preparadas (idem, p. 126). Em meados desse século modificaram-se os antigos sistemas universitários, que passam a ser reflexo da diversidade de aspirações e das reais inserções profissionais existentes. Crescem as demandas, as organizações internas se diferenciam, promove-se a
abertura das disciplinas e se diversifica os modelos pedagógicos e tenta-se tornar a universidade
um braço da instituição de políticas do Estado de Bem-Estar-Social.
Nos anos 60 este contexto utilitarista e produtivista induziu a universidade a ampliar ainda
mais as suas funções, para além das de investigação e de ensino. Viu-se aumentar o número de
universidades e de alunos e docentes, o ensino em si se expandiu, as investigações universitárias
ampliaram-se para novas áreas de saber. As novas funções da universidade foram favoráveis ao
objetivo de integrar as comunidades, na perspectiva de desenvolvimento.
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Enio Waldir da Silva
Outra investida para tornar a universidade uma instituição de caráter extensionista foi
realizada em 1987, quando o relatório da OCDE atribuiu dez funções à universidade: educação
geral pós-secundária; investigação; fornecimento de mão de obra qualificada; educação e treinamento altamente especializados; fortalecimento da competitividade da economia; mecanismos de
seleção para empregos de alto nível, por meio de credencialização; mobilidade social para filhos
e filhas das famílias operárias; prestação de serviços à região e à comunidade local; paradigma
de aplicação de políticas nacionais (ex: igualdade de oportunidade para mulheres e minorias
raciais); preparação para papéis de liderança social (Santos, 1996).
Hoje, os sistemas universitários vêm experimentando evoluções diferentes. As diferenças
caracterizadas no ensino superior são próprias da diferenciação que se dá em diversos níveis
socioeconômicos e culturais: diferenciação no mercado de trabalho, requisitos para a formação,
mecanismos de controle e cobrança, direitos, privilégios, orientações de valores e da vida acadêmica, a forma de sustentabilidade do ensino superior e a expressão do nível de desenvolvimento
tecnológico dos países (Neves, 1999).
Uma interpretação que contextualiza a universidade brasileira ao mesmo tempo em que
aponta algumas saídas é a de Marilena Chauí. Ela observa que a universidade como instituição
social aspira à universalidade, que
tem a sociedade como seu princípio e sua referência normativa e valorativa... se percebe inserida na
divisão social e política e busca definir uma universalidade (ou imaginada ou desejada) que lhe permita
responder às contradições impostas pela divisão. Então, como instituição social, a universidade é um
devenir, uma construção constante que está amparada numa concepção de possibilidade de destruir
os fins capitalistas pelo que até agora ela atuou e de construir uma nova história como resultante de
ações de seres humanos conscientes (Chauí, 1993, p. 216).
Chauí (1999) também se opõe enfaticamente a esta tendência de adaptar a universidade
ao mercado. Segundo ela, isso só reforça os privilégios, tira a autonomia do livre-pensar dos
docentes, reforça a hierarquização esquizofrênica entre o que seja pesquisador e professor,
reforça o poder burocrático, a perda dos ideais de serviço público, as ideias de “descartável”
do pensamento pós-moderno, etc. Esta mercantilização da universidade a induz ser como uma
organização, torna-a uma espécie de entidade isolada,
[...] cujo sucesso e cujo fracasso se medem em termos de gestão de recursos e estratégias de desempenho e cuja articulação com as demais se dá por meio da competição... Sua eficácia e seu sucesso
dependem de sua particularidade... Tem apenas a si como referência... Pretende gerir seu espaço e
tempo particulares, aceitando como dado bruto sua inserção num dos pólos da divisão social, e seu
alvo não é responder às contradições e sim, vencer a competição com seus supostos iguais [...] (Chauí,
1993, p. 219).
70
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sociologia do conhecimento
Esta definição de universidade, enquanto organização é negada pela autora, porque,
segundo ela, a universidade é tratada como uma mera montadora de automóveis ou uma rede
de supermercados, próprio desta época de acumulação flexível e de desregulação trazidas pelo
neoliberalismo (Idem, p. 218).
Estamos passando pelo enfrentamento de uma ideologia que conduz a universidade de
uma condição de instituição científica à de organização empresarial, atrasando ainda mais o
avanço da estruturação de universidades democráticas. A autora apela para um combate lúcido
em defesa da universidade pública ancorado nos fundamentos de uma ética democrática (Chauí,
1999, p. 5).
A crítica centra-se sobre a ideologia neoliberal, que pretende dar rumos à universidade. O
problema atinge mais intensidade quando se refere ao seu caráter público e a sua autonomia da
mesma. Este também é tema de Roberto Romano, que realça a importância de a universidade ser
pública estatal. Assim, para ele, a universidade é pública ou ela tende à anulação de seus fins.
Também as ciências vão ficar cada vez mais separadas da ética e da moral e podem ficar isoladas
a interesseiros imediatistas, incapazes de pensar num processo civilizatório que proporcione vida
feliz para todos os homens (Romano, 1998):
A universidade atual enfrenta o risco de se tornar empresa vinculada diretamente ao mercado, pois a
multiplicidade de público a que ela procura se adaptar exige, cada qual, um tipo de resultado. Assim,
torna-se difícil encontrar um modelo ideal de avaliação da universidade. O modelo que mais tem
aparecido é o liberal, que concebe a universidade como um tipo particular de produção, cujo trabalho
científico está relacionado com o sistema de clientes, lucros, resultados imediatos, mercadorias, etc.,
e, também como ótica de mercado burguês, excluindo os que não podem pagar (p. 33).
O contexto social, político e cultural continuamente pressiona a universidade a cumprir
funções que nem sempre lhe são próprias. Alguns autores esforçam-se em defini-la de forma a
ultrapassar essas determinações práticas. Tavares dos Santos a vê como “uma agência formadora
da ciência e da tecnologia, assim como configura um lugar de produção do imaginário coletivo,
capaz de articular prática e simbolicamente a sociedade política e a sociedade civil” (Tavares
dos Santos, 1998). Para este autor a função da universidade é sempre política, pois ao produzir
um saber original, capaz de revolver sistemas de pensamentos, pelo qual se afirma a rebeldia
cultural e a revolução científica, ela cria espaço para a produção do saber democratizante da
sociedade civil e da sociedade política.
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Enio Waldir da Silva
Como locus de pensamento, ela deve ser capaz de pensar o novo século no horizonte crítico
de uma inovação cultural com base na cultura de resistência e no novo saber científico, em que
se possa introduzir ideias de relatividade e descontinuidade na formação profissional e científica
de homens capazes de responder à complexidade do desenvolvimento social. Isso significaria
criar a contemporaneidade e universalidade do saber científico da sociedade global.
Como locus de busca, de pesquisa, a universidade deveria tornar-se uma cidade de pesquisadores, na qual se faz a crítica da experiência imediata, se constrói problemáticas científicas,
se faz diálogos rigorosos e respeitosos, se cultua o pluralismo teórico-metodológico, onde se
enraíza a paixão pelo estudo do objeto, ao mesmo tempo em que se prioriza a lógica de criação
(Tavares dos Santos, 1998).
Com isso seria possível disseminar um habitus de pesquisa a partir da dúvida metódica,
da formulação de hipóteses, disciplina para a pesquisa, organização flexível, questionamento e
criatividade. Também seria possível produzir uma cidadania científica, como forma de participar
da democracia social a partir da posição privilegiada da universidade; produzir um imaginário
social que articule a sociedade civil e a sociedade política e que seja uma instituição plural plurifuncional, multifacetada e formadora de ciência e tecnologia. Esta seria uma utopia necessária à
universidade para que ela ajudasse na superação da modernização excludente (Idem, p. 186).
Outros autores vão dimensionar a função da universidade sempre ligada à construção do
futuro. “A função da universidade seria a de trabalhar estruturas mentais mais avançadas e de
remeter a herança cultural a um patamar crítico capaz de possibilitar a avaliação da inserção na
escola e no mundo e de buscar antever as possibilidades do futuro” (Franco, 1998).
Isso implicaria que, mesmo sendo um lugar de racionalidade científica, a universidade
devesse fazer a construção intersubjetiva, no coletivo que produz, reproduz e espelha relações
da sociedade. Isto é, ela poderia contribuir para emancipar as pessoas da ignorância de não
saber avaliar as opressões e a propiciar vias emancipatórias que a ciência e a técnica produzida
e disseminada na universidade trazem para a sua vida. Isto seria criar uma cultura crítica capaz
de atribuir valor ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia, que levasse em conta o sistema
de crenças, as tendências afetivas e cognitivas (Idem, p. 202).
Tornar os conhecimentos acessíveis e instrumento de desenvolvimento da cidadania é uma
obrigação que deve estar implícita à formação do bom profissional. Esta seria uma das melhores
maneiras de socializar o conhecimento: formar a nova geração de cientistas pesquisadores e
profissionais, capazes de saber diagnosticar os dias de hoje de modo a clarificar as forças que
incidem sobre a ciência e o mundo da vida.
72
EaD
sociologia do conhecimento
Enquanto instituição política e pública, a universidade deveria produzir uma política própria, levando em conta as políticas estatais estabelecidas para o setor. Ela vive delimitada por
políticas corporificadas em normas e regulamentos e por planos institucionais, mas isso não pode
ser empecilho para a construção de entendimentos na tessitura da argumentação, das influências e das concessões resultantes de diferenciais de interesses, identidades e de culturas, que
a põem em constante conflito. Em vista disso, ela deve promover um campo para as diferentes
argumentações de modo a criar pontos comuns que permitam trabalhar os problemas e as soluções, partilhar o saber entremeado com concessões e firmar posições diante de interlocutores
(Franco, 1998).
Essa característica multifuncional exigiu gastos muito maiores, sem produzir fontes de
recursos capazes de cobri-los, ao mesmo tempo em que o aspecto administrativo ficou prensado
entre a necessidade de promoção do bem-estar de professores, alunos e funcionários e a necessidade de desenvolvimento da pesquisa e do ensino. Este problema tem ressonância diferente
nos diversificados sistemas de ensino superior que temos no Brasil.
Para Duhram, seria necessário uma avaliação mais profunda da universidade, que leve em
conta a heterogeneidade das instituições e que promova uma política também diferenciada para
as federais, as estaduais, as comunitárias e as privadas. Como um de seus principais problemas
é a ausência de fundos suficientes para fazer frente as suas atividades, a autora encaminha algumas soluções: aumento do número de vagas; melhoramento do desempenho didático de forma
a diminuir a evasão e a repetência; melhorar a qualificação do corpo docente; consolidação da
atividade de pesquisa por meio do desenvolvimento de cursos de pós-graduação; captação de
recursos mediante pesquisa, atividades de extensão e de prestação de serviços à população, etc.,
e completa observando que “uma instituição com fraco desempenho em pesquisa poderia compensar essa deficiência aumentando e melhorando o atendimento na Graduação ou na extensão,
e vice-versa” (Durham, 1993, p. 28).
Seção 3.2
A Universidade e as Ciências Humanas Hoje
A universidade constitui-se em um espaço de formação e de realização de conhecimentos
pela ação de ensino, de pesquisa e da extensão. Dessa forma, a ciência, a política, a economia,
a cultura e a tecnologia estão implicadas na sua responsabilidade, tanto no seu interior, quanto
73
EaD
Enio Waldir da Silva
no seu exterior. Esta implicação se expressa de forma argumentada na ação formativa da própria
capacidade de debater. Neste sentido a universidade é o nome que se dá para as versões dos
saberes em franca discussão de argumentos que buscam convencer sem vencer.
O processo comunicativo imbricado em sua institucionalidade é mais que enunciação,
afirmação, análise ou convencimento, pois os argumentos devem buscar o outro, envolvê-lo e ser
acessível a quem escuta sem dissolvê-lo nas retóricas aliciadoras. Todos têm direitos recíprocos
à palavra e esta para se tornar argumento precisa de autonomia, de diferencialidade, de igualdade e da dúvida metódica em convivência na comunidade de fala. As provisórias conclusões,
as fundamentações transitórias, geram novos debates, novas perspectivas, novos horizontes,
novas fontes para as autocríticas coerentes e novos pontos de partida para a realização de novos
conhecimentos comunicativos.
O oposto do discurso da universidade é a fala que busca calar o outro, que busca o fundamento último, a certeza absoluta, a crença, exaltações, atemoriza, acua, ofende, agride, o
silenciamento, competição, acomodação, repetição, instrucionismo.
As Ciências Humanas, hoje, estão em desvantagem diante das áreas mais técnicas do saber.
As universidades vêm cedendo às pressões externas de cunho político, ideológico e econômico, e
também aos apelos, muitas vezes infundados, internos. Cada vez mais estão deixando de serem
livres e segundo Derrida,1 o momento é propicio para a autocrítica dentro das universidades de
forma a se reverem os princípios e objetivos, redescobrirem a si mesmas e de relembrarem o
verdadeiro papel da universidade: produzir coletivamente e transmitir, comunicar abertamente
os conhecimentos formativos de sujeitos cidadãos.
Esta discussão importantíssima e vital para todas as instituições de ensino é discurso
corrente nas áreas das chamadas humanidades que, segundo Derrida (2003), se tornaram o
principal polo crítico e de reflexão fundamentada e objetivada do papel das ciências no mundo
social. Para este autor, as Ciências Humanas deveriam ser o cerne teórico e político de uma instituição de ensino, chegando a ser impossível imaginar a erradicação da área humanística das
universidades, o que vem ocorrendo.
Como esclarece Marilena Chauí,2 órgãos dentro do MEC e o Banco Internacional de
Desenvolvimento (BID) impulsionam tal fenômeno, com suas políticas técnicas e metodologias
que pressionam as universidades para simples adequação e sujeição a estratégias e exigências
globais, inclusive de setores que têm interesses estranhos, diversos e opostos à instituição.
Derrida, Jacques. A universidade sem condição. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
1
Chauí, Marilena. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.
2
74
EaD
sociologia do conhecimento
A dimensão formativa do caráter humanístico e interdisciplinar que deveria estar presente
em toda a universidade é fundamental para a construção da cultura democrática participativa. A
existência de elementos conceptivos e práticos da formação humanística da universidade instiga
potenciais possibilitadores de espaços de diálogos em busca de sentidos ou de soluções para os
problemas próprios da vivência democrática.
Os discursos presentificados nos projetos institucionais se fundamentam nos entendimentos
que se tem sobre os principais compromissos da universidade com os processos democráticos.
Essas expressões têm a ver com as concepções de vida dos agentes universitários, os seus valores políticos, sua relação com os objetivos fundantes de suas histórias, de suas relações com
as ciências e as profissões. Expressam também as inserções no entorno social, as condições de
produção de conhecimentos, a mentalidade geral do momento histórico, as demandas objetivas
da comunidade, etc.
Mesmo que a universidade não seja uma microssociedade ela traz consigo a marca das
relações sociais globais, produz e reproduz as condições societais com uma relativa autonomia
e com regulações próprias. Sua especificidade no contexto da sociedade é, muitas vezes, razão
das muitas ações planejadas. O conjunto das lógicas das ciências também pressiona a universidade para garantir suas reproduções. Então, os atores, as ciências e o mundo social querem
reproduzir-se no interior da universidade, tornando-a um campo de forças e um campo de lutas.
Este espaço de luta só existe pelos atores que aí se encontram com seus capitais simbólicos
movimentados em relações objetivas. É a posição que estes atores ocupam nesta estrutura que
determina ou orienta as tomadas de posição de onde ele fala e dispõe suas forças para dominar
ou se defender da dominação.3
A universidade é, portanto, um espaço de jogo político, mas não deveria reproduzir o jogo
perverso da política da sociedade, na qual os indivíduos lutam por privilégios dos espaços e
não por projetos universais equilibrados e sustentados na diversidade dos interesses. No seio
da universidade é onde se pode vivenciar o verdadeiro jogo democrático que pressupõe espaços
abertos para o diálogo de entendimentos, as falas abertas e comunicativas e não um enredo em
que somente asseclas entendem. Devem ser argumentos que envolvem o outro e não retórica
que dissolve e alicia a fala do outro.
Trata-se de vivenciar a autoridade do argumento com direitos recíprocos da palavra de atores
autônomos que mesmo sendo desiguais convivem, compartem oportunidades, que fazem questionamentos, buscam debates, fundamentam razões, produzem abertamente os procedimentos a
serem adotados, alcançam compreensões mútuas, duvidam rigorosamente, pesquisam, elaboram
3
Bourdieu, Pierre. Os usos sociais da ciência. São Paulo: Unesp, 2004.
75
EaD
Enio Waldir da Silva
as potencialidades do saber pensar de forma autônoma.4 É isso que torna uma universidade uma
instituição e não uma organização burocrática inserida no jogo medíocre do mercado de bens
artificiais que produzem falsos ou alienados consumidores.
A democracia é um discurso muito presente não só nas Ciências Humanas. Elas, no entanto,
congregam o panorama complexo dos debates contemporâneos a respeito da democracia que
se reconhece e se constitui um repertório de argumentos novos que implicam um desafio epistemológico às ciências nas últimas décadas. Sociologicamente falando, a convivência social ou
a simples relação social implica gerenciar desigualdades, pois sempre se entendeu que os seres
humanos não conseguem apenas ser diferentes, querem ser dominantes. Chegamos a um novo
tempo em que se compreende que precisamos quebrar com esta trajetória histórica e afirmarmos
as possibilidades da vida em cooperação, em completudes, em solidariedades, sustentada social,
política, econômica e ecologicamente. Isto faz com que as fronteiras dos saberes, das ciências,
se tornem tênues, tanto que alguns autores, como Boaventura de Sousa Santos,5 aborda a biodiversidade de saberes que podem ser rivais, mas não inimigos, diferentes, mas não superiores
ou inferiores, hierárquicos, mas não privilegiados, etc., e que são importantes para formar uma
cultura democrática e participativa baseada na prudência, na emergência e na urgência. Na
universidade se cruzam à diversidade de saberes elementares para se articular pensamentos
alternativos que pensam mundos alternativos. São os saberes das ciências, das artes, da Filosofia, da religião e do senso comum, etc., que têm suas trajetórias, suas experiências, e são fortes
a ponto de terem um equilíbrio de importância.
Estes saberes estão na universidade e não adianta fecharmos os olhos para eles e argumentar que o que vale é só o saber da ciência. São essenciais para se produzir conhecimentos
prudentes, emergentes e urgentes que possam enfrentar a crise institucional, procedimental e
de legitimidade vivenciada nas universidades. A prudência nos leva a pensar na identidade da
universidade (não confundi-la com outras instituições ou organizações); a emergência nos remete aos desafios de criar sempre, de inovar, de propor iniciativas novas, próprias para o tempo
em que vivemos, e a urgência nos leva a observar as novas configurações de deslocamento da
ciência, da tecnologia, dos processos produtivos e distributivos do mundo social que concorrem
com a universidade e a sufocam.
Se a instituição não criar procedimentos fortes e mais perenes, pode sucumbir à lógica
do mercado com suas modas e reduzir seu papel a produzir ansiosos consumidores de produtos
artificiais, preocupados apenas em conquistar lugares que lhes deem potenciais financeiros para
ficar na fila dos bazares espalhados pelo mundo. Corremos o risco de tornar a universidade um
aeroporto, em um bazar ou um hipermercado de diplomas.
4
Habermas, Jurgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002.
Santos, Boaventura de Sousa. Semear outras soluções. A biodiversidade dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005 .
5
76
EaD
sociologia do conhecimento
A urgência de discussões e de ações que diferenciem a universidade de outros lugares
sociais é tal que reconhecidos pensadores acadêmicos não têm relutado em expor suas opiniões
em debates a respeito de assuntos de interesse comum, tais como a guerra, a violência, as minorias, as organizações internacionais, os blocos políticos e econômicos regionais, as ações em
favor de relações socioambientais sustentáveis, os direitos humanos...
Com isso estaremos bloqueando as forças que querem estabelecer re­gras mercantis para
a produção do conhecimento, concedendo financiamentos semelhantes aos utilizados para
a concorrência pública para a construção de estradas, por editais. Com efeito, para vencer a
“concorrência”, os pesquisadores consorciados deverão demonstrar sua “capacidade técnica”
de produção, por meio de indicadores claros e precisos, tais como o volume de sua produção
anterior e a pre­visão dos produtos resultantes da investigação. Para garantir a continuidade da
produção científica, os consórcios de pesquisa estabelecerão uma disciplina interna rígida, de
cumprimento de tempos e movimentos, segundo o cronograma preesta­belecido e ratificado pela
agência de fomento. Obviamente, caberá a cada equipe de pesquisa o desenvolvimento de parcela
preestabelecida do trabalho científico: do pesquisador sênior ao bolsista de iniciação científica,
passando pelos mestrandos e doutorandos, cada qual com sua tarefa, todos em ordem unida sob
a supervisão do pesquisador-líder e todos vigiados pelos prazos das agências de fomento (Trein;
Rodrigues, 2011).
É o que acontece quando na universidade não se cria o diálogo. Não basta ter a visão, o
olhar, há que se saber ouvir, escutar as vozes, sobretudo porque se constitui pela produção de
sentidos dos atores que nela interagem e que para atuar ali não se isolam do mundo onde se inserem e onde está inserida a própria universidade. Somente se houver esforços organizados dos
saberes interdisciplinares, próprios da formação humanística, é possível mostrar a diversidade
dos saberes, das culturas, dos lugares sociais, das formas de poder.
Assim, os indivíduos poderão se situar nas relações sociais de que eles e a universidade
fazem parte, garantindo um espaço para que o aluno exercite sua cidadania nos fazeres de sua
própria formação, participe do mundo que está sendo construído e para que este jovem (em sua
maioria são jovens que saem do Ensino Médio) reforce seus potenciais de reflexão na coordenação de suas ações, fortaleça sua autonomia, sua emancipação e seus laços de solidariedade.
Além disso, pode situar o mundo prático profissional na correlação de sustentabilidade social,
política e cultural da vida econômica em que estamos inseridos ou na qual vão se inserir após
a formação.
O que promove a necessidade de se voltar a dialogar sobre a formação humanística na
universidade são questões expostas por autores como Derrida, Habermas, Bourdieu, Boaventura
e Chauí: a situação de mercadorização das aprendizagens, as ações para mera subsistência da
universidade enquanto organização, a falta de verdadeiras comunidades de diálogos e compreen77
EaD
Enio Waldir da Silva
sões, a lutas dos atores internos para manter seus espaços, a crise de legitimidade dos diplomas,
etc., que criaram a fragilidade de respostas às pressões externas e o interesse do mercado foi
pouco a pouco entrelaçando-se com sua identidade.
As Ciências Humanas e Sociais não poderão provar seu valor em meio a uma onda de
demanda por eficiência, lucratividade e resultados, como se fossem arautos dos avanços tecnológicos a serviço do aperfeiçoamento do mercado e a criação de emprego.
Jürgen Habermas6 indica o caminho da interdisciplinaridade pela teoria crítica da racionalidade, porém a racionalidade não é entendida por ele apenas no sentido cognitivo-instrumental, mas num sentido bem mais amplo, que inclui os elementos éticos normativos e estéticos
subjetivos do mundo da vida. Além disso, tal racionalidade ampla, que possibilita a articulação
interdisciplinar entre os saberes, tanto na sociedade como, mais especificamente, na universidade, exerce-se pela argumentação; por um processo argumentativo em que todos os implicados
estão em igualdade de condições para argumentação que questiona e tematiza as pretensões
das ciências específicas quando se apresentam como objetivamente neutras em relação a valores
éticos. A ciência e a tecnologia têm na ética a sua condição de possibilidade. A estratégia da
argumentação como ponto de vista ético é o que possibilita à comunidade humana em geral e à
comunidade acadêmica em especial, se reencontrarem.
A formação universitária é inspirada na pretensão essencial das Ciências Humanas de
emancipação, de autonomia e de construção da cultura democrática e tem uma vantagem evidente:
não fica a reboque do ópio do consumismo que leva o ser humano à miséria de sua existência.
A Universidade, neste sentido, pode ter quatro dimensões institucionais:
Como instituição social: complexo de relações sociais em que atores, com competência
comunicativa argumentativa, partilham saberes científicos, sociais, culturais e filosóficos, assegurando formação expressa nas titulações para os indivíduos ocuparem lugares sociais, exercerem
poderes.
Como instituição científica: lugar de armazenamento das codificações linguísticas da
produção sistemática de conhecimentos, as energias intelectuais e as tecnologias aplicáveis
edificantemente na historicidade.
Como instituição de ensino: articula processos de aprendizagens a partir das energias
intelectuais históricas armazenadas nas bibliotecas, nos habitus escolares, nos procedimentos
pedagógicos de seus docentes e para formarem profissionais; como instituição pública: espaço
público legítimo da pluralidade de ideias promotoras do ideal da universalidade da humanidade da
vida, das diferencialidades, das identidades e da complementaridade das vivências e culturas.
6
Habermas, Jurgen. A idéia de universidade. Processos de aprendizagem. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos,
S/L, S/E, Vol. 74, jan-abr. 1993.
78
EaD
sociologia do conhecimento
Como instituição comunitária: é uma comunidade de atores que preserva o principio da
igualdade, da solidariedade, da sustentabilidade social, política, econômica e ecológica que
compartilham regulações e vivências entre administradores, docentes, alunos, funcionários e
comunidade; fundamenta-se na ampliação da esfera pública e nos interesses universais dos
diferentes atores internos e externos; o fundamento das ações está na busca do bem comum e
na emancipação humana.7
Sem querer depositar muita esperança ou responsabilidade na universidade (pois já existem outras instituições também fortes formadoras e produtoras de conhecimentos), podemos
afirmar que ela tem um papel mediativo entre a ciência e a sociedade e insere-se na implicabilidade racional da modernidade. É muito difícil delimitar o seu raio de ação, além de produzir
habilidades nas pessoas. Seu paradoxo está no seu potencial de colonizar o mundo da vida e,
ao mesmo tempo, produzir espaço para reflexão de descolonização e construção de uma cultura
mais comunicativa e menos instrumental. Contém em si o potencial de fazer brotar as forças
práticas das perspectivas democráticas, intrínsecas aos conhecimentos, das inovações científicas
e da razão reflexiva dos pressupostos da ética do discurso. Pode reconstituir de forma edificante
as intencionalidades de emancipação humana que enuncia um novo paradigma em que a materialidade das práticas humanas promovam a liberdade, a inclusão social e o equilíbrio ecológico.
Este poder está em seus espaços para a linguagem e para o agir comunicativo, que reunidos em
uma perspectiva formativa, pode trazer a razão motivacional para se pensar a criação de uma
sociedade justa. Faz parte deste processo pensar as condições formais do conhecimento, do
entendimento linguístico e da ação (seja na vida cotidiana, isto é, nos planos das experiências
organizadas metodologicamente ou dos discursos organizados sistematicamente) e reconstruir
as pressuposições e condições pragmático-formais do comportamento explicitamente racional.
A universidade não pode mais produzir um agir estratégico de manipulação, transmissão de
informações e indução de comportamentos e provocar a violação das pressuposições pragmáticas do entendimento linguístico. Trata-se, agora, da questão de construir uma racionalidade
comunicativa na qual sejam reabilitadas as estruturas de comunicação, em que seja valorizado
o ato de fala e sejam resgatadas, discursivamente, estas pretensões, para descolonizar o mundo
da vida, além de criar as condições ideais de falas.8
Os processos organizados de aprendizagem, no interior das universidades, podem carregar
a incumbência de formar uma racionalidade baseada na competência comunicativa, no poder do
argumento e na vontade de participar de diálogos que busquem cooperativamente compreensões.
Por outro lado, a universidade é uma organização que sedimenta sistemas parciais funcionalmente
Habermas, 1993.
7
Silva, Enio Waldir da; Frantz, Walter. As funções sociais da universidade: o papel da extensão e a questão das
comunitárias. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002. 248 p. (Coleção Ciências Sociais).
8
79
EaD
Enio Waldir da Silva
especificados de uma sociedade altamente diferenciada. Exige-se uma excessiva pretensão de
exemplaridade para a universidade. É irreal que ela se sustente pela forma comum de pensar
dos seus membros. O seu âmbito operativo não se limita ao horizonte de mundo partilhado por
seus membros e suas formas de aprendizagem científica organizada não dependem de um feixe
convergente de funções advindas de um modelo dominante. Múltiplas funções são assumidas
por diferentes pessoas em diferentes lugares institucionais e com diversos pesos relativos. Todos
juntos, fazendo, de uma ou de outra forma, um trabalho científico, preenchem, não uma função,
mas um feixe de funções que podem convergir e articular-se entre si e formar uma comunidade
comunicativa e pública de investigadores com conteúdo igualitário e universalista presente nas
formas de argumentação científica. Os processos universitários deveriam viver da força estimulante e produtiva de um encontro discursivo que traz consigo a “nota promissória” do argumento
surpreendente e da autogestão participada. 9
É nessa perspectiva que entendemos que a universidade mantém uma estrutura que garante uma formação cidadã com pretensão de universalidade, e, assim, ela consegue assentar
sua identidade e garantir que suas funções sociais não possam ser subsumidas no mercado de
bens materiais. Sobretudo porque ao serem ministrados componentes curriculares da área humanística, em todos os cursos da universidade, tem-se a possibilidade de debate, pela razão, das
diferentes concepções de natureza, de vida, de universidade. Pelo diálogo e pela interlocução das
diferentes áreas do conhecimento busca-se o entendimento e a universalidade de forma crítica e
reflexiva, viabilizando-se o entendimento, em que a produção de sentido se dá não pelo interesse
particular, mas pelo interesse da coletividade.10
A crise dos paradigmas, a relação teoria-prática, a educação crítica, a causa dos movimentos
sociais, a razão cooperativa e solidária, a prática política nas esferas públicas, o desenvolvimento
social, o equilíbrio ambiental, etc., são seus temas principais, abordados pela formação humanística. Justamente estes temas, entretanto, não são muito apropriados para vender análises
ou “soluções” para as crises do capitalismo. A ética da formação humana teima em não morrer,
porque foi fundada nos valores para além do utilitarismo prático de inserção. Querer isto nada
tem de ultrapassado e brilha na rede tecida para garantir os esforços em mudar o mundo. Na
realidade prática e utilitarista, os individualistas, sob o prazer do consumo, pouco querem mudar.
Outros desejam uma mudança que significa sair da exclusão do consumo e inserir-se nele. Os
seres humanos construíram oportunidades de sonhos como nunca! Os mais miseráveis sonham
9
Idem.
10
Dalla Rosa, Magna Atella C. A universidade contemporânea: percursos da Unijuí. Dissertação de Mestrado. Unijuí,
2005.
80
EaD
sociologia do conhecimento
com essas possibilidades, com as mesmas coisas dos ricos! Não veem mais a contradição, sob a
ótica de “classe”, mas de consumidor individual excluído. O negócio é incluir-se: por um cursinho,
pelo furto, pelo crime, pela escola, etc (Frantz, 2005).
A situação é tal que muitos intelectuais chegam a fazer apelos para que a universidade não
caia na onda do pragmatismo, na volúvel vala do mercado, como observam Trein e Rodrigues:
Um mal-estar assombra a Academia: o mal-estar provocado pelo fetiche do conhecimento-mercadoria
e o seu canto de sereia − o produtivismo. Professores, pesquisadores e estudantes universitários, e até
mesmo os chamados “gestores de Ciência & Tecnologia”, enfim, a Academia, parece estar desagradada
e, em alguma medida, degradada pela direção e pelo ritmo do desenvolvimento das transformações
em curso no chamado sistema brasileiro de ciência e tecnologia. Em que pesem os inúmeros depoimentos e estudos que vêm demonstrando os limites desse processo e suas nefastas conseqüências
pessoais, institucionais e científicas, os membros da Academia parecem igualmente convencidos da
inevi­tabilidade dessa marcha forçada ao Desenvolvimento Científico & Tecnológico e também de suas
proclamadas finalidades “sociais”. Contudo, não podemos concordar que o prolongamento, sob formas cada vez mais aperfeiçoadas, do atual modo de produção do conhecimento científico conduzirá a
sociedade brasileira – enfim – ao télos de uma Economia Competitiva, pela mão do Desenvolvimento
Científico & Tecnológico. Nesse sentido, é urgente que nos organizemos coletivamente para dissolver
os fantasmas que nos assombram (2011).11
Ainda resta uma esperança se as universidades garantirem sua autonomia de optar por
outras vias mais próximas da responsabilidade social e não do irracionalismo do mercado. É o
que se objetiva nas universidades comunitárias, tratadas no texto a seguir
Seção 3.3
Universidade Comunitária e as Ações Solidárias
As Ciências Humanas vêm fazendo um esforço para demonstrar que a solidariedade é uma
das características comuns dos sentimentos humanos, é um dos elementos universais presentes
na lógica da humanidade dos indivíduos e não a competitividade, como vinham defendendo as
concepções liberais da modernidade.
Trein, Eunice; Rodrigues, José. Espaço aberto – O mal-estar na Academia: produtivismo científico, o fetichismo do
conhecimento-mercadoria. In: Revista Brasileira de Educação, v. 16 n. 48 set.-dez. 2011.
11
81
EaD
Enio Waldir da Silva
Quando essa força humana de solidariedade é percebida e desenvolvida, vemos brotar
a grandeza da igualdade humana. Por isso, o processo educacional escolar deveria ser a terra
fértil de onde brotaria esta força emancipadora, no entanto muitas outras forças atravessaram as
práticas educativas e podaram a árvore da liberdade e, em muitos casos, torrando suas folhas e
queimando seus galhos.
A universidade, como um lugar escolar da aprendizagem da universalidade da vida, precisa
ser entendida, hoje, como uma instituição que atua para além dos fundamentos da ciência e da
educação escolarizada. Ela se envolve também com a situação de exclusão dos indivíduos, dos
bens culturais produzidos pelas civilizações, pois o fundamento de uma instituição democrática
não é construído em meio a circunstâncias opostas aos princípios de liberdade e da solidariedade.
Nesse sentido, não somente seus alunos deverão ser os únicos a se beneficiar de suas ações.
Esse entendimento permeia os novos diálogos sobre o papel da universidade hoje e subjaz ao
novo sentido da extensão universitária, integrada ao ensino e à pesquisa. Ou seja, a universidade
dialogal estará fazendo educação científica, para além dos costumeiros procedimentos escolares,
quando ela democratizar a produção e a distribuição dos conhecimentos, levando e buscando os
saberes fruto das experiências das ações solidárias de indivíduos e grupos (Silva, 2010).
Evidentemente, a universidade não está acima ou fora da realidade política, social, econômica e cultural da sociedade, mas não necessariamente precisa estar submetida a essa realidade,
como se somente o que existe fosse possível de existir. Sua existência diz respeito muito mais
ao futuro do que ao presente. E foi a imaginação de um futuro mais promissor que levou muitos
atores da universidade a provarem, com argumentos sólidos, que a lógica humana não é apenas
constituída de concorrência e de evolução competitiva, e sim de lógicas solidárias.
A grandeza da História humana está marcada pelos momentos em que houve ações coletivas
solidárias. Quando a humanidade apenas competiu, se corroeu, entrou em violência, guerras e
decadências. Por isso, recuperar os princípios que ligam indivíduos a indivíduos, grupos a grupos, sociedades a sociedades é um dos papéis nobres da universidade.
Em termos práticos, não se pode esperar mais do que a universidade pode fazer como instituição científica, formativa, social, pública e comunitária. Ela não é o Estado, não é um movimento
social, uma Igreja, um partido e nem uma empresa. Pode, no entanto, manter boas relações com
todos esses setores, que têm uma excelente expectativa sobre ela. Um dos exemplos ilustrativos
dessas expectativas é o movimento de instituições em defesa da promoção da inclusão social de
populações vulnerabilizadas pela pobreza, por meio da disponibilização de tecnologias sociais.
Basicamente se desafia a universidade a articular a extensão, o ensino e a pesquisa em favor da
produção de tecnologias sociais para segmentos populacionais excluídos.
82
EaD
sociologia do conhecimento
Defende-se que a extensão universitária deve ser ela própria uma metodologia de ação
da universidade atual, uma atividade que é meio (ação coletiva para resolver problemas) e ao
mesmo tempo fim (geradora de tecnologia e conhecimentos). Como meio e fim ela procura criar
condições para os entendimentos das vivências coletivas e do papel dos saberes sistematizados
(científicos) e dos saberes experienciados (comuns) neste processo. Ou seja, além de reposicionar
o papel da ciência e tecnologia na sociedade, a extensão também busca outros saberes para integrar as ações planejadas, edificar as ciências, desafiar as tecnologias e para entender e ajudar
a resolver problemas da população.
A extensão é fruto da proposta de universidade que as instituições de ensino superior
carregam. Como tal, para ser universidade, precisa de unidade interna (uni + versões). Sem a
interação interna que forma os tendões para “ex-tender” (“tender” – tendões – que se esticam –
extensão) não tem como ir ao outro, para fora de si, para a sociedade. Sem o reconhecimento de
si não há como reconhecer o outro e nem formar laços de unidade (universidade e sociedade).
Externamente, as universidades têm dificuldades de buscar parceiros francos que possam
atuar de modo edificante para as ciências e para promover desenvolvimentos recíprocos. A universidade e a sociedade precisam dialogar, não podem ficar isoladas uma da outra. Efetivar esse
diálogo, no entanto, é um grande desafio, dadas as complexidades inerentes às instituições, aos
setores sociais e às funções dos campos nos quais os agentes sociais estão inseridos.
Um dos elementos fundamentais desse diálogo é a participação direta, aberta e franca. A
compreensão do tipo “participação” é também necessária para a efetivação dos interesses na
universidade, no mundo escolar, nos setores sociais. Participar é um grande desafio diante da
gramática do social, da gramática das ciências e da complexidade da urgência e da emergência
do tempo em que vivemos.
Como uma das qualidades da democracia, a participação não implica apenas a presença
física dos sujeitos nas instâncias planejadoras, decisórias e de execução das ações. É preciso que
se participe de forma qualificada pelo uso do argumento e de informações, de fala e de escuta, ou
seja, precisa-se criar uma prática de diálogo que assegure a essência das relações criativas dos
saberes diferenciados. Precisa-se de disposição para falar e ouvir, entendendo e fazendo esforço
para que o outro a entenda, sinceridade dos interesses, respeito pela fala do outro, ambiente
apropriado para a fala, construção coletiva dos entendimentos e a formulação da argumentação
que vai orientar as ações coletivamente planejadas.
A universidade deve possuir essas capacidades comunicativas e a consciência dos contextos
políticos, sociais e culturais, pois somente assim é possível se efetivar o processo participativo
de fato. Se tivermos espaços de falas os entendimentos mútuos poderão acontecer e se ampliar,
fundamentando a universidade como dialogal e potencializando os setores sociais para uma
vida emancipada.
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Enio Waldir da Silva
A extensão é, pois, para nós, esse espaço apropriado de diálogo com a comunidade e é um
método que parte de um sujeito, a universidade, que não é instituição colonizadora, e sim socializadora. Traz a força institucional de ação e reflexão, espaço de poder compartilhado, exercida
pelas mais diversas formas, por meio das mais diferentes áreas e campos de saberes.
A sociedade, representada pelas diferentes necessidades e interesses de pessoas ou grupos
sociais, possui grandes expectativas com relação à universidade, especialmente quando se trata
de desenvolvimento regional e organização de comunidades para o debate de seus problemas e
necessidades. É aí que se localiza um dos espaços concretos da extensão universitária: na qualificação dos cidadãos, seja para o trabalho, para a política, para a cultura, entre outros.
Enfim, a extensão é um processo pelo qual a universidade constrói procedimentos articuladores de seus atores internos, em processos comunicativos, para atingir seus fins, sua razão
democrática e para promover relações cooperadas com outros setores sociais, que fortaleçam
identidades, solidariedades e a qualidade de vida. Embora idealista, essa concepção de universidade e de extensão está por trás dos projetos de extensão da Unijuí e aparece nas exposições
dos seus relatórios finais. Ao mesmo tempo, orienta os estudos dos grupos que vão atuar com
populações em vulnerabilidade social. Interessa agora é ver como o conceito de solidariedade
pode ser o fio condutor desta perspectiva.
3.3.1 – A Solidariedade Como Meio e Fim da Ação Universitária
Foi a emergência do mercado capitalista que destruiu grande parte dos laços de solidariedade, pois transformou as cidades em lugares de concentração de propriedades imobiliárias, de
trocas e de acumulação de lucros. Foi no capitalismo que mais se atacou a cultura de solidariedade e confinou o homem nos cálculos de benefícios particulares e concorrenciais. A pintura, a
beleza das casas, a poesia, a prosa de amigos, a organização das ruas, dos teatros, etc., poderiam
ter tido outro rumo, criado outra imagem das vivências humanas aproximadas.
Em vez disso, o mercado e suas leis mergulharam as cidades na tristeza e na fúnebre aquisição de bens, matando a solidariedade da alegria. Somos, no entanto, aquilo que fomos e apesar
da avalanche da lógica capitalista, a solidariedade existe, embora para alguns, que só conhecem
a cultura do competir, vida solidária somente exista em lendas.
Há lugares em que grupos produzem riquezas para poderem melhor aproveitar sua vida,
torná-la prazerosa, tornar as trocas uma forma de relação social. Alguns descobriram que a vida
podia ser de outro modo e criaram alternativas que davam sentido ao direito social natural: o
direito de viver segundo a natureza social dos sujeitos, pois sofremos quando o outro sofre e
lutamos para diminuir o sofrimento dele, nos dedicamos ao outro como nos dedicamos a nós.
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sociologia do conhecimento
Aristóteles também dizia que o homem é um animal político por natureza e imaginava que
a cidade iria somente aumentar esse potencial e realizar a justiça, por que esta é fruto da razão
humana. Muitos buscam no outro os elementos de igualdade, como a amizade, a compreensão,
a solidariedade e, quando encontram as diferenças, respeitam-nas e buscam formas de saber
tratá-las, conviver com elas.
As diferenças não podem ser fundidas numa unidade abstrata, mas numa cooperação de
diversidades e numa multiplicidade de relações originais, que não foram totalmente perdidas,
pois a lógica humana ainda persiste. Esta lógica clama por unidade, integração, respeito, dignidade e felicidade como parte da livre sociabilidade e do direito de cada um ao reconhecimento
(jus naturale cive sciale) e é a sociabilidade que une esses grupos num todo sem que jamais esse
“todo” se imponha às partes, mas antes viva dessas multiplicidades (Duvignaud, 1986, p. 84).
Essas diferencialidades e igualdades são percebidas pelo grupo da universidade que vai aos
setores excluídos. Ali se percebe uma sabedoria subjacente, não colonizada e nem colonizadora.
E, se os laços vivos da liberdade persistem contra a lógica perversa do aprisionamento do lucro
imediato, não há por que, como assegura Habermas (2001), nos desesperarmos com o poder, a
razão e o Estado. Estamos vivos, pensantes e capazes de linguagem, na universidade, na rua,
na associação, na comunidade, então tudo pode ser criado.
Como destaca Boaventura de Sousa Santos (2004), existem muitas experiências de vidas
emancipadas espalhadas por aí, necessitando serem unidas em uma nova alternativa de vida,
em uma nova epistemologia e na utopia da igualdade, que continua viva.
Essas práticas solidárias existentes não foram ainda acompanhadas de conhecimento científico. As ações de aprendizagem realizadas pelas universidades precisam reconhecer os laços
que integram os sujeitos, pois a vida microscópica dos grupos nem sempre segue as divisões
eleitorais ou econômicas. A convivência (e a solidariedade), despida de seu caráter mítico, corresponde a essas associações de indivíduos que suscitam laços, indubitavelmente passageiros
e frágeis, em torno das refeições tomadas em comum, da música, da dança, ou, simplesmente,
de uma ligação amigável, laços de vizinhança, de bairros – para além dos tradicionais laços
familiares, de trabalho, de clubes, universidades, etc. Ali se cultiva a afetividade, o prazer, a respeitabilidade e a autoridade, que raramente se cristalizam em organizações ou associações ou
seitas. Os homens não agem somente porque estão presos a uma situação tornada insuportável,
mas também porque estão ligados a determinadas visões do possível. As situações que ainda não
foram vividas mobilizam mais forças do que constrangimentos, pois a natureza social do homem
leva-o a imaginar sempre um ideal, a ter sempre uma expectativa do outro e a aspirar laços para
além daquilo que recebeu quando nasceu (Duvignaud, 1986).
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Ao recuperarmos aqui o termo solidariedade, não queremos confortar a consciência de uns
ou justificar esmolas da má-vontade de outros. Qualquer expressão racional que esteja permeada
pela dignidade humana sabe que o pluralismo da vida coletiva não pode mais sofrer ações para
se apagar. Os laços de sangue, de lugar, de convivência precisam ser renovados e fortalecidos.
Os potenciais de solidariedade existem em todos os homens, embora adormecidos em muitos
ou sem espaços para se expressar em outros. Esses potenciais, porém, nem sempre aparecem ou
emergem espontanea ou voluntariamente, necessitando de um contexto preparado especialmente
para isso. Um dos papéis do processo educativo é fazer brotar essa força solidária e organizar
espaço e tempo para que ela se desenvolva nas vivências coletivas.
Não é só a educação escolar, porém, que se organiza com essa finalidade. Nos últimos
tempos, criaram-se muitas instituições e organizações que pressupoem a construção de consciências solidárias, cooperativas e associativas capazes de resolver os principais problemas de
sustentabilidade social, econômica, política e ambiental das coletividades e indivíduos em vulnerabilidade social.
É o caso das Incubadoras de Economia Solidária, que são resultados dessa cultura de
solidariedade, que tenta emergir e ganhar vida social. Elas atuam no sentido de promover cidadania, trabalho e inclusão social, baseadas nos princípios e valores da Economia Solidária,
a saber: cooperação, autogestão, solidariedade, valorização do trabalhador e desenvolvimento
sustentável.
Na universidade falta maior teorização dessas práticas para que elas possam ter um reflexo mais amplo em seus fins: a produção e socialização de conhecimentos, de tal forma que
transforme essas energias emancipatórias dos grupos incubados, que começam, sob a forma de
movimentos por sobrevivência, a se converter em iniciativas econômicas solidárias. No contexto da economia regional há possibilidade, pelo tipo de produto com que lidam e seu impacto
ambiental e na organização urbana, de esses empreendimentos incubados transformarem-se
em uma verdadeira economia cooperativa, com uma rede de apoio que permite a manutenção e
expansão como parte dela: bancos, governos locais, projetos de pesquisas tecnológicas, programas de estímulo ao emprego [...].
De parte da universidade, cujas características também são de cooperação solidária, poderá ser uma grande parceira na organização e expressão das tecnologias sociais emergentes,
projetos de pesquisas focados, estudos emergentes, monitoração de desempenho da autogestão,
instituição de tecnologias, formação de trabalhadores, atualização de conhecimentos, informação
sobre sistemas de produção, finanças, comercialização, cadeia coordenada de fornecedores e
compradores mútuos, divulgação de produtos, manutenção das decisões participativas do grupo
nos parâmetros da administração e redistribuição dos lucros das associações, busca de cooperação
entre o Estado, instituições e rede de consumidores...
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sociologia do conhecimento
Algumas fontes reflexivas servem para manter nossa postura cultural de extensionistas da
universidade e para criarmos entendimentos da solidariedade que possa mobilizar grupos ou
amparar projetos destinados a sujeitos sociais com muitas diferenças nos modos de vivência,
angústia presente em muitos atores que atuam na economia solidária.
Habermas (2002) contribui aqui com sua discussão no processo de formação de uma nova
razão emancipatória, que somente aconteceria pelos entendimentos construídos nos diálogos
francos. A solidariedade, então, estaria presente e expressa nos diálogos para entendimentos formadores de razão pública. Segundo este autor, na razão pública moderna, tudo aquilo que podia
ser referido como expressão da inteligência humana passa a expressar modelagens técnicas para
fazer dar certo o produtivismo, os fins da economia e da administração técnica do poder (Estado),
empresariando mercadologicamente todas as ações coletivas. A ciência, a técnica, a educação,
o Estado, o Direito e a cultura passaram a ser a linguagem do poder dominante.
Habermas (2002) argumenta que, nos séculos 19 e 20 houve a divisão entre as esferas
privada e pública: as instituições privadas assumiram cada vez mais o poder público, ao passo
que o Estado penetrou no domínio privado, fazendo valer os princípios do mercado. À medida
que a esfera pública incorporava uma base de participantes mais ampla, mais se acentuavam
as desigualdades presentes na sociedade civil, de modo que o processo do debate público crítico em torno de um interesse geral objetivo foi se convertendo numa negociação de interesses
conflitantes.
Ademais, com a ascensão de redes de comunicação de massa cada vez mais densas e centralizadas, os canais de comunicação tornaram-se mais regulados, e as oportunidades de acesso
à comunicação pública ficaram sujeitas a uma pressão seletiva ainda maior. A consolidação do
poder da mídia e sua confluência com interesses econômicos e políticos impulsionaram uma esfera
pública na qual a informação foi dando lugar ao entretenimento e os processos comunicativos
críticos cederam espaço às representações voltadas ao comportamento conformista. A esfera pública se desenvolveu no âmbito de uma “arena infiltrada pelo poder na qual, mediante seleção
tópica e contribuições tópicas, se trava uma batalha não apenas para influenciar, mas também
para controlar os fluxos de comunicação que afetam o comportamento, na mesma medida em
que tais propósitos estratégicos são dissimulados” (Habermas, 2000).
As forças do capitalismo tardio minaram ainda mais o potencial emancipatório da esfera
pública, embora esta, baseada na sociedade civil, ainda permaneça em alguns enclaves, desperdiçada ou desprezada. É este, também, o novo desafio das Ciências Sociais: pesquisar, trazer esse
potencial para se estabelecer precondições para uma mediação discursiva ideal, uma vez que se
encontram espraiados no mundo da vida, nas associações civis, grupos de interesses e instituições
voltados à formação de consensos propiciadores de ações coordenadas pela política.
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Por essa razão a esfera pública está para além do Estado e nas entranhas da sociedade
onde estão os indivíduos com linguagem, capazes de crítica e produção de entendimentos para
ações interconectadas. É neste sentido que se constata a necessidade de formalizar ou de criar
espaços institucionalizados para discussões deliberativas, com regras procedimentais que garantam a razão pública dos interesses e possam facultar atos discursivos ideais e que consigam
livrar os discursos de instrumentalismos implícitos em diferentes capitais culturais portados
pelos indivíduos.
O único poder que deve prevalecer nesse espaço é o da fala argumentada. Tem-se a igualdade de forças das vozes motivadas para o entendimento. As dimensões ideológicas, multiculturais e emocionais das linguagens tornam-se públicas e podem ser objeto de diálogo para que,
no final, prevaleça a dimensão racional das razões públicas e suas motivações locais, nacionais
ou globais. De qualquer forma, a nova esfera pública seria expressão de espaços semelhantes
a condutos comunicativos estimuladores do imaginário social, que propiciam a construção de
sociedades mais comunicativas reunidas em torno de expectativas coletivas.
Trata-se, então, de uma nova ideia de república (razão pública) que tem por base a autodeterminação da comunidade, que encaminha seus procedimentos para serem institucionalizados, compatibilizando administrações complexas, racionalidades e participação. A instância
geradora de poder legítimo é a esfera pública, a dimensão da sociedade onde se dá o intercâmbio
discursivo. Esse poder comunicativamente gerado tem primazia sobre o poder administrativamente gerado pelo Estado, não só normativamente, mas porque o segundo deriva do primeiro
(Habermas, 1995, p. 45).
No caso de Habermas (1995), a universidade não pode deixar de ser uma protagonista
do diálogo que vai em direção ao seu entorno e provoca a motivação dos atores para expressar
entendimentos da pragmática vivenciada. Seus atores precisam também estar movidos por essa
vontade de entendimento e de ação coletiva para realização de interesses universais: no nosso
caso, o tema do diálogo proposto pela universidade seria a vida em solidariedade.
Boaventura de Sousa Santos (2002) nos mostra que as alternativas de produção não capitalistas não são apenas econômicas: o seu potencial emancipatório e suas perspectivas de êxito
dependem, em boa medida, da integração que consigam entre processos de transformação econômica e processos culturais, sociais e políticos. O êxito das alternativas de produção depende
de sua inserção em redes de colaboração e de apoio mútuo, em que as ansiedades individuais
convergem para as universais, traçando mapas para fazer emergir soluções alternativas (posto
que a diminuição das ansiedades individuais só é possível com a redução da ansiedade de todos).
A Economia Solidária teria potencial emancipatório e suas perspectivas de êxito dependem, em
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sociologia do conhecimento
boa medida, da integração que consigam entre processos de transformação econômica e processos culturais, sociais e políticos. Dependem também de sua inserção em redes de colaboração
e de apoio mútuo.
A dimensão de solidariedade se coloca aqui com mais ênfase nas interconexões (redes)
dos indivíduos postados em suas atividades de produção e distribuição, pois estas já são fruto
de formas alternativas de conhecimentos. Colocá-las em rede solidarizaria os êxitos e o fracasso,
produzindo novos saberes e novas alternativas solidárias que sejam fortes e críveis o suficiente
para se contrapor à força da lógica capitalista (Santos, 2002, p. 64-74).
Percebe-se, então, que o conceito central aqui é a solidariedade. Podemos constatar isso
também em Amartya Sen (2000), que nos afirma que a solidariedade é uma situação concreta
que alimenta uma dimensão ontológica do ser humano:
Como tudo está interconectado, também na vida social a reciprocidade é irremovível e faz parte da
condição humana. [...] É também atitude, compromisso político e ético com o destino em comum que
une a vida planetária. A mundialização é um processo de crescente interdependência, onde o planeta
torna-se um sistema fechado, formado por bens comuns e indivisíveis, fundamenta o projeto de uma
globalização solidária. Solidariedade é a nova razão que emerge da compreensão que nossas esperanças somente serão satisfeitas na conexão com as esperanças dos outros [...]
Neste sentido, recuperar a ideia de solidariedade é enraizar a cultura da responsabilidade.
Amartya Sen (2000) assim se pronuncia sobre esse tema:
Essa questão da responsabilidade suscita outra. Uma pessoa não deveria ser inteiramente responsável
por aquilo que lhe acontece? Por que outros deveriam ser responsáveis por influenciar a vida dessa
pessoa? Essa idéia parece estar na mente de muitos comentaristas políticos, e a concepção do esforço
pessoal encaixa-se bem no espírito da época presente. Há quem afirme que depender de terceiros
não só é eticamente problemático, como também derrotista do ponto de vista prático, pois enfraquece
a iniciativa e os esforços individuais, e até mesmo o respeito próprio. Quem melhor do que o próprio
indivíduo há de zelar por seus interesses e problemas? (p. 321-330).
Assim, trabalhar para criar a cultura de solidariedade prescinde de um entendimento de
que estamos fortalecendo as dimensões de responsabilidade e não de dependência.
Uma divisão de responsabilidades que ponha o fardo de cuidar do interesse de uma pessoa sobre os
ombros de outra pode acarretar a perda de vários aspectos importantes como motivação, envolvimento
e autoconhecimento, que a própria pessoa pode estar em posição única de possuir. Qualquer afirmação
de responsabilidade social que substitua a responsabilidade individual só pode ser, em graus variados,
contraproducente. Não existe substituto para a responsabilidade individual (Sen, 2000, p. 336).
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Trata-se, no fundo, de promover uma discussão que mostre que o sofrimento dos outros tem
tudo a ver comigo e que o fundamento da dignidade da humanidade da vida está em qualquer
pessoa. Não se trata de fazer imaginar um super-homem capaz de resolver todos os problemas
que o afetam, mas de entender que sem esse esforço seus problemas não serão resolvidos. As
liberdades substantivas de que desfrutamos para exercer nossas responsabilidades, contudo,
são extremamente dependentes de circunstâncias políticas, culturais, sociais, econômicas e
ambientais:
Uma criança a quem é negada a oportunidade do aprendizado escolar básico não só é destituída na
juventude, mas desfavorecida por toda a vida (como alguém incapaz de certos atos básicos que dependem de leitura, escrita e aritmética). O adulto que não dispõe de recursos para receber tratamento
médico para uma doença que o aflige não só é vítima de morbidez evitável e da morte possivelmente
escapável, como também pode ter negada a liberdade para realizar várias coisas – para si mesmo e
para outros – que ele pode desejar como ser humano responsável. O trabalhador adscritício, nascido
na semi-escravidão, a menina submissa tolhida por uma sociedade repressora, o desamparado trabalhador sem-terra, desprovido de meios substanciais para auferir uma renda, todos esses indivíduos são
privados não só de bem-estar, mas do potencial para levar uma vida responsável, pois esta depende do
gozo de certas liberdades básicas. Responsabilidade requer liberdade (Sen, 2000, p. 322).
Nesse caso, analiticamente, podemos perceber que o autor insiste em mostrar a dificuldade
de você imaginar ações solidárias em indivíduos municiados de sofrimentos individuais. Precisariam, antes, ter sua liberdade substantiva garantida: alimento, renda, educação, saúde, para
que sejam aproveitadas as oportunidades econômicas, a liberdade de escolhas, as facilidades
sociais, as transparências e a segurança.
O caminho entre liberdade e responsabilidade é de mão dupla. Sem a liberdade substantiva e a capacidade para realizar alguma coisa, a pessoa não pode ser responsável por fazê-la.
Ter, porém, efetivamente a liberdade e a capacidade para fazer alguma coisa impõem à pessoa o
dever de refletir sobre fazê-la ou não, e isso envolve responsabilidade individual. Nesse sentido,
a liberdade é necessária e suficiente para a responsabilidade.
Vê-se então que é fundamental para o trabalho dos atores da universidade, com os atores
sociais em vulnerabilidade, a busca do Estado, para que esta proporcione o mínimo de liberdade
(as substantivas), sustentando na base o agir responsável das pessoas, ampliando a capacidade
individual de auferir rendas que possam ser partilhadas coletivamente. Além do Estado, outros
sujeitos podem garantir este apoio:
A alternativa ao apoio exclusivo na responsabilidade individual não é, como às vezes se supõe, o
chamado “Estado babá”. Há uma diferença entre “pajear” as escolhas de um indivíduo e criar mais
oportunidades de escolha e decisões substantivas para as pessoas, que então poderão agir de modo
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responsável sustentando-se na base. O comprometimento social com a liberdade individual obviamente
não precisa atuar apenas por meio do Estado; deve envolver também outras instituições: organizações políticas e sociais, disposições de bases comunitárias, instituições não governamentais de vários
tipos, a mídia e outros meios de comunicação e entendimento público, bem como as instituições que
permitem o funcionamento de mercados e relações contratuais. A visão arbitrariamente restrita de
responsabilidade individual – com o indivíduo posto em uma ilha imaginária, sem ser ajudado nem
estorvado por outros – tem de ser ampliada, reconhecendo-se não meramente o papel do Estado, mas
também as funções de outras instituições agentes (Sen, 2000, p. 321-323).
Não se trata de uma mera atuação para enfrentar os medos de uma classe média assombrada
com as possibilidades de perder seu bem-estar. Segundo Zygmunt Bauman (2008),
os medos que assombram a maioria de nós diariamente surgem da segurança demasiado pequena
do bem-estar; eles, os pobres, pelo contrário, estão seguros na sua miséria. A instabilidade é a última
coisa de que se queixariam as pessoas marcadas pela vida de pobreza. A razão ética deve ser canalizada para o Estado de bem-estar social, pois a ética sozinha é vulnerável [...] “O Estado é o guardião
do meu irmão” [...] Nos cuidados dos nossos riscos, nossa miséria é outra... A qualidade humana da
sociedade deve ser mantida pela qualidade de vida de seus membros mais fracos [...] Na modernidade
líquida somente os pobres sentem que sua vida muda, sai da desgraça... têm paz de espírito e sentem
melhor as opções possíveis... Meus esforços para tornar o Estado democrático me tornam éticamente
guardião de meu irmão, mas só afirmar que ele é um dependente é motivo para pessoas decentes se
envergonhar... responsabilidade pela necessidade do outro (p. 103).
Já para Touraine (1988), o sujeito hoje debate-se para se proteger e isso significa proteger
os seus, aqueles com os quais guarda profunda afinidade. Sabe que precisa ser forte e, por isso,
não pode se fechar e nem se abrir demais:
É preciso superar, de um lado, o mercado e, de outro, a comunidade, pois ambos são armadilhas
para a plena realização do sujeito... A reivindicação dos direitos culturais diz respeito a coletividades, mas novidade é que grupos definidos em termos de nação, etnia ou religião, que só tinham
existência na esfera privada, adquirem agora uma existência pública às vezes suficientemente forte
para questionar sua pertença a determinada sociedade nacional... É o direito a ser diferente, que
significa: aquilo que cada um de nós exige, e, sobretudo, os mais dominados e os mais desprotegidos,
é ser respeitado, não ser humilhado e até, exigência mais ousada, ser escutado – e mesmo ouvido
e entendido (p. 198).
Esse sentimento de sujeito não é privilégio das classes médias. Aquilo que assegurava a
identidade como ordem religiosa, política ou social provou ser algo manipulador e repressivo.
Só lhe resta “o Eu que está mais reflexivo e capaz de dizer estou vivo” e procura condições para
ser ator da própria história.
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No caso dos sujeitos excluídos, parceiros da universidade, é perceptível como eles selecionam aqueles que dizem desse sofrimento e demonstram estar tratando da divisão e da perda
de identidade e os convidam não a entrar para uma grande causa, mas antes de tudo reivindicar
o seu direito à existência individual. Os atores da universidade devem ter a percepção desse
sofrimento dos indivíduos e criar canais para que o desejo de ser sujeito possa se transformar em
capacidade de ser ator social, combinando a defesa da identidade cultural com a participação no
sistema econômico e político, tornando-os capazes de uma ação coletiva e até de um movimento
social.
Essa postura supõe a abertura da comunidade e a reconstrução, além do mercado, de
um sistema alternativo de produção e comercialização. Somente por meio de ações coletivas
é possível a reconstrução do sujeito. Nesse sentido, sujeito é vontade, resistência e luta, e não
mais experiência imediata de si mesmo e nem há movimento social possível fora da vontade de
libertação do sujeito tornado ator social, que deve ser descoberto a partir de suas experiências
e vivências.
A identidade do sujeito só pode ser construída por três forças que se complementam: a) o desejo pessoal
de salvaguardar a unidade da personalidade dividida entre o mundo instrumentalizado e o mundo
comunitário; b) a luta coletiva e pessoal contra os poderes que transformam a cultura em comunidade
e o trabalho em mercadoria; e c) o reconhecimento interpessoal e também institucional do outro como
sujeito (Touraine, 1998, p. 205).
Nesse entendimento não há solidariedade se o sujeito não se reconhecer como tal e não
reconhecer o outro como também sujeito. Jamais se procura o outro se não se valoriza a si mesmo,
se não há reconhecimento. É aí que entra a educação preparadora da força que compreende que
os sujeitos precisam se encontrar e atuar cooperadamente.
O professor Walter Frantz (2008), mostra que a solidariedade pode ser fruto de uma educação e de uma cultura despida de imediatismos e munida de sentidos cooperativos.
A educação decorrente do processo de democracia participativa e direta, característica da autogestão,
é mais durável, eficiente e eficaz para a construção de novas formas políticas, que deveriam inspirar
também os aparelhamentos institucionais do Estado. Ou seja, a educação resultante da democracia
participativa e das relações sociais solidárias reforça a cidadania dos seus atores, tornando-a importante potencial para o desenvolvimento.
O desenvolvimento parte de uma opção por uma vida solidária em que se constata que a
sociedade contemporânea está em crise: a lógica do lucro da economia capitalista de mercado
(embasada na competição e no individualismo/egoísmo) e a economia capitalista de Estado (o
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sociologia do conhecimento
assim chamado socialismo real existente, fundamentado no planejamento central) não conseguiram contemplar as necessidades materiais e sociais dos homens. Destes dois sistemas é possível
buscar o que se tem de melhor e integrar à economia solidária.
Vivemos o caos pela exclusão social e pela concentração de renda, dentro do que cada
um busca ao se organizar, produzir uma ordem provisória. A economia solidária aparece, no
contexto da crise, como uma nova esperança de organização de uma nova ordem, embasada na
inclusão social e na equidade das oportunidades de trabalho e renda Não pode ser uma nova
oportunidade à certeza dos pensamentos, das verdades absolutas, das ideologias, das ditaduras
das ideias, dos conceitos e das práticas políticas. Deve ser o espaço da liberdade à criatividade
para “pôr ordem no caos social” que desafia a todos, nesses tempos de fracasso das certezas e
das verdades (Frantz, 2008).
Para Frantz, dentro do desenvolvimento e no entorno dele está o processo educacional que
constrói as consciências dos valores e das capacidades cooperativas para o desenvolvimento
progressivo e permanente das pessoas e das coletividades humanas enquanto sujeitos ativos e
conscientes de seu próprio desenvolvimento pessoal e social e de sua própria educação, acolhendo e potenciando toda a diversidade humana. É como uma dinâmica horizontal, continuada e
permanente que se dá com base na própria vida e a partir do intercâmbio de experiências, não
meramente nas formas institucionalizadas.
É nesse sentido que o movimento da economia solidária assume uma perspectiva educacional que procura desatar as inteligências e movimentar o olhar para o outro: as pessoas, a
água, a terra, o ar, os animais, colocando estas potências em cooperação em um novo processo
civilizatório.
Essa educação deve perseguir o ideal dos seguintes princípios:
Que se tenha como ponto de partida a própria vida, o trabalho e o saber acumulado de cada sujeito e
da comunidade; que esse processo educativo seja integral, incluindo todos os aspectos da vida e as
dimensões objetivas e subjetivas do ser humano; que nesse processo se pratiquem todos os valores
humanos inerentes a uma formação integral, tais como a cooperação, a co-responsabilidade, a autonomia, a solidariedade e a amizade; não seja um aprender “para”, nem se confunda com aprendizagem
técnica, mas que as próprias vivências se convertam em aprendizagem (Frantz, 2008).
Dessa forma, o autor defende um processo educativo permanente e para além do tempo
legal educacional, com o objetivo principal de criação de uma mentalidade prática distinta das
atuais, de tal modo que se faça possível a construção de uma nova realidade socioeconômica e
cultural, solidária e sustentável, capaz de promover o desenvolvimento. Nesta concepção, tal
sentimento somente acontece se forem postos em prática os potenciais inerentes a cada pessoa
e à coletividade humana, resultando em um processo qualitativo, em contraposição ao caráter
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meramente de crescimento, que tem vieses essencialmente quantitativos. Desse modo, o conteúdo
da solidariedade é o mútuo entendimento, a mútua compreensão, a (re)ligação como imperativo
ético primordial de um em relação ao outro, à comunidade, à humanidade, no dizer de Morin
(2005), passaria por uma reforma no pensamento capaz de criar uma imagem de civilização que
compreenda a autoética:
A compreensão rejeita a rejeição, exclui a exclusão. Enclausurar na noção de traidor aquele que depende de uma inteligibilidade mais rica impede o reconhecimento do erro, do delírio ideológico, do
descontrole, dos desvios. A compreensão exige que nos compreendamos a nós mesmos, reconhecendo
as nossas insuficiências e carências, substituindo a consciência da nossa insuficiência. Exige, no conflito
de idéias, argumentação, refutar, em lugar de excomungar e de lançar anátemas. Exige a superação
do ódio e do desprezo. Exige resistir à lei de talião, à vingança, à punição exterior, especialmente durante os períodos de histeria coletiva. Ainda não começamos a reconhecer que a importância mortal da
incompreensão está na fonte de todos os males humanos. A compreensão está presente no que há de
melhor no homem. A tragédia humana não é somente a morte, mas também o que vem da incompreensão. Nossa barbárie não se reduz à incompreensão, mas a comporta. A incompreensão alimenta a
barbárie nas relações humanas, na civilização. Enquanto permanecermos como somos, continuaremos
bárbaros e mergulhados na barbárie. A compreensão que afasta a barbárie nutre-se da aliança entre a
racionalidade e a afetividade, ou seja, entre conhecimento objetivo e o conhecimento complexo. Para
lutar contra as raízes da incompreensão é preciso um pensamento complexo. Daí, mais uma vez, a
importância de “trabalhar pelo pensar bem”. Introduzir a compreensão profunda em nossos espíritos
significa civilizar profundamente. Todas as tentativas de aperfeiçoamentos nas relações humanas
fracassaram, salvo em comunidades efêmeras, em momentos de fraternidade, pois não houve enraizamento das faculdades humanas de compreensão. Todo o potencial de compreensão existe em cada
um, mas em estado de subdesenvolvimento. Compreender é compreender as motivações interiores,
situar no contexto e no complexo. Compreender não é tudo explicar. O conhecimento complexo sempre
admite um resíduo inexplicável. Compreender não é compreender tudo, mas reconhecer que há algo
de incompreensível. Deveria ser possível ensinar a compreensão na escola primária e continuar na
secundária e na universidade e em todos os lugares onde se esforçam para criar saídas para problemas coletivos: criar a consciência da necessidade simultaneamente mental e moral da autocrítica e
favorecer a auto-ética (2005, p. 123).
Essas palavras de Morin (2005) vão ao encontro de atores da universidade e os provocam a se deslocar para fora, ir além do tempo e do espaço escolar. A disposição para trabalhar
com os diferentes precisa dessa cultura da tolerância e da compreensão. Trata-se de criar uma
cultura do nós e não remeter o outro para fora da humanidade, de compreender o outro como
outro. É necessário que a humanidade tome consciência de que pensar a vida como um projeto
possível e viável significa pensá-la na sua complexidade, com um sentimento de comunidade e
de solidariedade, com os outros e com a natureza. Sem dúvida, com um caminho aberto de possibilidades aleatórias, a tomada de consciência de nossas raízes terrestres, bem como de nosso
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destino planetário, depende cada vez mais de uma reforma radical de um ensino educativo que
inclua os princípios do pensamento pertinente com o contexto, o global, o multidimensional e o
complexo como base para a concidadania terrestre.
O futuro do homem, da humanidade e da História não está inscrito na natureza do homem.
A universidade, por isso, precisa ser um lugar também preparado para dar possíveis respostas
às seguintes perguntas: O homem saberá compreender-se como um ente planetário e biosférico? Terá ele consciência terrestre e cósmica para agir com solidariedade e ética? Saberá ele dar
um rumo condizente ao planeta que habita e integra? A virtualidade de sua hominização estará
comprometida pelo desregramento e desordem que ele mesmo engendrou? Saberá ele fazer uso
da sua racionalidade para enfrentar os desafios e problemas da era planetária?
Em outras palavras, a economia solidária já se constitui em algumas repostas e, quando
pensada junto a ideia de desenvolvimento, pressupõe-se entender que a sustentabilidade terá
de ter por base as vivências sociais, econômicas, culturais, políticas e ecológicas; no entanto, a
questão maior para ser entendida é o próprio homem em suas relações sociais.
Nas palavras de Frantz (2008), a Economia Solidária é um embrião de uma nova cultura
de responsabilidade individual e coletiva, de cooperar para solidarizar e que, para tanto, abriga
indivíduos livres que lutam por muito mais do que a mera satisfação das necessidades imediatas. Esse processo relacional é educativo porque cria a cultura de que o outro é bom, acessível
e importante para um viver junto ao outro. Mostra que a solidariedade não é misericórdia do
outro, mas integração das qualidades daquilo que se faz, valorizando o trabalho humano para
emancipação transcendente, que coloca em cooperação as inteligências e as boas energias do
ser humano.
Quando a universidade atua na comunidade, está mostrando que reconhece a solidariedade,
a cooperação, a sustentabilidade e o equilíbrio ecológico como respostas aos grandes problemas
sociais que nos atingem. É como um movimento social e pedagógico com significado político
que encarna a construção compartilhada da ética e da vida humana, permeada pela alegria do
e no conhecimento coletivo (Barcelos; Silva, 2010, p. 181).
Encerramos este livro-texto de Sociologia do Conhecimento convidando você a entrar na luta
pela economia solidária partindo da definição genérica de que ela é uma proposta civilizacional de
uma nova plataforma cognitiva por onde se organiza uma nova estrutura social, um novo modelo
de desenvolvimento sustentável socialmente, economicamente, politicamente e ecologicamente,
para que o conhecimento não seja convertido em mercadoria ou na sua produção.
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