Adriana Marques Battagin Significado da cirurgia de revascularização do miocárdio em um grupo de idosos da cidade de São Paulo O profissional atuante ou interessado em entender a Geriatria e a Gerontologia precisa estar atualizado quanto às peculiaridades anatômicas e funcionais do envelhecimento, capacitando-se para discernir com precisão os efeitos naturais deste processo (senescência) das alterações produzidas pelas inúmeras afecções que podem acometer o idoso (senilidade). Dentre as afecções que acometem os idosos a prevalência de doenças cardiovasculares, vem aumentando em todo o mundo. A Doença Arterial Coronariana (DAC) é a causa mais comum do sofrimento do músculo miocárdico. A redução do calibre arterial, provocada pela presença de placas de gordura (ateroma) aderidas à parede do vaso, causa diminuição do fluxo sanguíneo coronário. (Iglezias et al, 2001). O tratamento da Doença Arterial Coronariana (DAC) pode ser clínico ou cirúrgico. O tratamento clínico se baseia no acompanhamento médico, utilização de medicamentos, redução ou eliminação dos fatores de risco, atividades físicas, objetivando o controle da doença e a melhora dos sintomas (Dalgleish & Reynolds, 2001). O tratamento cirúrgico, chamado de Revascularização do Miocárdio (RM), tem como objetivo restaurar o fluxo sanguíneo para o músculo cardíaco. A abordagem cirúrgica é realizada pela esternotomia mediana, um vaso é retirado de outra parte do corpo e realizase a junção entre a porção superior à lesão e a porção localizada abaixo da lesão. Os vasos utilizados para realizar a RM e desviar o fluxo de sangue da obstrução podem ser: veia safena, artéria torácica interna, artéria epigástrica e/ou artéria radial. A RM envolve vários riscos e complicações desde um Infarto Agudo do Miocárdio (IAM), arritmias, infecções nas incisões e no esterno, sangramento até acidente vascular encefálico e/ou insuficiência renal (Kauffman, 2001). Oliveira et al (2001) mostraram que os fatores de risco que mais influenciaram na mortalidade foram: cirurgia de urgência, idade avançada e reoperação. Atualmente, os avanços da medicina permitiram resultados mais satisfatórios em relação à morbidade e mortalidade de indivíduos idosos com DAC tratados cirurgicamente com Revascularização do Miocárdio (Kauffman, 2001). Segundo Romano (1998), a cirurgia significa um processo de cura, recuperação e simboliza a ressurreição: “Por mais que os procedimentos técnicos tenham avançado, as fantasias, a respeito desse órgão único e centralizador, não se amenizam e o ato cirúrgico assume a dimensão de renascimento, ressuscitação. E renascer tem um sentido mais amplo do que voltar da morte – é começar uma vida nova, livre dos defeitos anteriores, uma outra chance, com novos valores e propósitos de vida.” (Romano, 1998, p.257). A recuperação após a cirurgia depende de múltiplos fatores, entre eles a saúde geral do paciente, o desejo e o temor vividos pelo paciente de se submeter a cirurgia cardíaca e o apoio dos familiares frente às incapacidades iniciais. Em minha jornada profissional foram numerosos e variados encontros com seres humanos únicos, situações em que temas complexos como envelhecimento e doença repercutiam, tanto no paciente quanto no profissional diretamente envolvido na situação. Tantos sentimentos e sensações, despertados pela experiência de tocar fisicamente outra pessoa, em função da profissão de fisioterapeuta, despertaram-me maior interesse pela pesquisa, quando encontrei identificação na obra de Pedro Paulo Monteiro (2003): Envelhecer, histórias, encontros, transformações. Monteiro (2003), ao vivenciar diversos tratamentos de fisioterapia para idosos, apresentou reflexões sobre a importância da aceitação do velho e de sua forma diferenciada de viver; sobre as relações de poder e os preconceitos implicados na relação terapeuta-paciente idoso; questões intimamente relacionadas com o descaso e o temor em relação à velhice, comuns em nossa sociedade ocidental. Ao tratar de pacientes com doenças cardíacas, devemos conciliar a técnica com a experiência humana, considerando o coração não somente pelo aspecto anatômico, como bomba propulsora, mas somando isto ao significado simbólico deste órgão, presente em nossa civilização. Esse significado do coração não é uma criação exclusiva de pintores, poetas ou escritores, mas sim uma criação da mente, do inconsciente, que influi em nossa maneira de ver os acontecimentos, principalmente as doenças que põem em risco a nossa vida, como as doenças cardíacas (Jung, 1998). O papel do coração, como centro das emoções, é reconhecido desde o início da Medicina. Hipócrates e seus discípulos (460 – 377 a. C.) diziam que “o coração não podia ficar doente, porque seria incompatível com a vida”. Depois dele, Aristóteles (384 –322 a. C.) advertia que o coração “era o último órgão a morrer”. (Oliveira e Ismael, 1990). É inevitável a relação do significado do coração com o padecimento provocado pela doença cardíaca, uma vez que o coração está ligado a símbolos afetivos, como: amor, fé e a própria sobrevivência. O coração é o foco de queixas de fundo emocional, é o órgão mais carregado de simbologia – templo das emoções – o coração como o centro da vida e da morte, adquire o poder de transformar o comportamento das pessoas (Helman, 1998). Ainda que se trate de uma analogia, sabe-se que as emoções são formas de comunicação e produzem reações corporais que podem agravar as doenças, especialmente as doenças cardíacas, diabetes e asma. Em virtude das fantasias criadas por este simbolismo e pelas alterações psicológicas causadas pela própria doença, torna-se necessária uma abordagem que vai além do coração orgânico, levando em conta as emoções, os sentimentos, enfim, a subjetividade de cada paciente. O fisioterapeuta, pela proximidade física com o paciente, muitas vezes, torna-se um interlocutor, alguém com quem se pode compartilhar a dor, tanto física quanto psíquica. Remen (1993) relatou que os profissionais e os pacientes necessitam ampliar o foco e perceberem com igual sensibilidade, não só o que se encontra errado, mas também o que está certo, pois existem partes/recursos na pessoa doente que podem ser despertados, vindo a colaborar no restabelecimento do bem-estar. ii Outro ponto a destacar na obra de Remen (1993) é à tendência do pensamento contemporâneo a enxergar a doença e não a pessoa, por exemplo, quando dizemos que somos a doença e não a temos: “sou diabético”; “sou cardíaco”. A presença de rótulos dificulta a percepção da individualidade, torna a situação estática e estimula a desesperança. Um estudo realizado com seis sujeitos, sendo três do sexo masculino e três do sexo feminino, acompanhados e avaliados antes, um mês e três meses após a cirurgia cardíaca. Nesta pesquisa foi um roteiro de questões foi desenvolvido pela pesquisadora, estas questões serviram de referência e de apoio para a condução da entrevista. Análise e interpretações No caso dos pacientes desta pesquisa, o contato humano nas entrevistas e as respostas obtidas sugerem que os participantes se beneficiaram da intervenção, seja na redução dos sintomas ou seja na esperança de uma vida melhor: “Ah... eu tô sentindo minha vida não é tão ruim assim...” (Amélia, resposta à entrevista de um mês após cirurgia). “Hoje eu estava na minha sobrinha, eu dormi lá e vim para casa, cheguei em casa, preparei o almoço, almocei e estou vendo televisão..lavei louça, limpei fogão.” “...Ainda penso assim...a vontade que eu trabalho e pinto a casa, eu faço tudo, gosto de ver minha casa limpinha e tudo...eu se sinto mais ou menos com 50 anos...” “Também agora me sinto bem mesmo, ainda mais depois da cirurgia, né, que eu estou muito bem mesmo, graças a Deus.” Este resultado assemelham-se aos da literatura, conforme comentou Rabelo (1999), que pacientes da faixa etária de 60 anos acima referiram melhora estado funcional e vida mais independente após a cirurgia. Observou-se que os familiares, ansiosos em favorecer a recuperação do paciente, acabam privando-o do contato com vários elementos de seu cotidiano. Segundo Bruno (2001), a família ao proteger e poupar o idoso, “...o alija das decisões, sonega-lhe informações, privao da participação, tira sua liberdade de escolha, chegando mesmo a decidir o que ele deve comer e vestir.”(p.145). A redução da capacidade funcional apresentou-se, para alguns participantes deste grupo, acompanhada de um aumento na escala de depressão. Depreende-se daí que a perda da funcionalidade e da independência pode ter despertado sentimentos de inutilidade e depressão nestes pacientes. A expropriação da autonomia do idoso ocorre lentamente, no seio da família e na sociedade como um todo (Bruno, 2001), o que tende a colaborar para o desenvolvimento do sentimento de inutilidade, que pode desencadear a depressão. iii Interessante notar que o único dos participantes que não apresentou sinais de depressão foi aquele que mais ativamente se dedicava a uma atividade profissional, Tobias trabalhava como vendedor ambulante, teve a recuperação mais rápida e retomou totalmente suas atividades após 30 dias do evento cirúrgico. Estar engajado numa atividade e gozar de independência poderia ter favorecido sua rápida recuperação? Teria ocorrido neste caso uma maior motivação para a vida frente ao prazer obtido no trabalho? Ao vivenciar proximamente a experiência dos pacientes, percebe-se que as colocações de Monteiro (2003) ganham sentido: “Os velhos afastados e isolados nutrem-se de um sentimento de desesperança, insegurança, desproteção que causa sofrimento devido à falta de sentido na vida. Esse vazio existencial faz com que o velho fique suscetível à doença, porque uma vida sem sentido sempre gera desespero, depressão e perda de autoestima, retirando-lhe qualquer motivação para enfrentar os seus desafios e reconhecer aquilo que lhe está faltando para restabelecer uma melhor qualidade de vida.” (Monteiro, 2003, p.76) Observou-se neste grupo uma elevada expectativa em relação à cirurgia cardíaca. Atribuir ao evento cirúrgico a possibilidade de retomar as atividades habituais sem sofrer com os sintomas da doença foi o aspecto que mais se destacou na análise das entrevistas. Tal expectativa, obviamente gerou ansiedade, mas esta parece ter sido canalizada favoravelmente como fator motivacional, conforme se observa nos fragmentos de alguns depoimentos: “Significa que é minha vida com o problema que eu tenho de uma hora pra outra eu posso...pra mim significa tudo...eu sarando, beleza pura” “Eu espero que vai ser bom pra mim...eu fazendo isso aí Deus me ajuda que eu vivo mais uns tempo, né?” “Eu acho que é importante...como eu vejo diversas pessoas feito” iv Observou-se que o temor poderia estar relacionado, concomitantemente, ao papel do coração como órgão de fundamental importância para manutenção da vida: “o coração é tudo”, frase dita por um dos pacientes que agrega a opinião dos outros. Um paciente se sentiu fortalecido pela presença humana da equipe médica, demonstra a importância capital da subjetividade do paciente. Pode-se dizer que nesta situação o paciente foi visto como ser humano total e não apenas como doente cardíaco. Remen (1993) ressalta a importância do profissional de saúde considerar a subjetividade: “Geralmente, os aspectos subjetivos do paciente são considerados problemáticos; sentimentos, atitudes, crenças e fantasias podem interferir num plano de tratamento e, de algum modo, precisam ser afastados. Entretanto, quando as energias subjetivas são focalizadas e utilizadas, tornam-se não parte do problema mas parte de sua solução.” (Remen, 1993, p. 42). Benson e Stark (1998), em seu livro Medicina espiritual, colocam que quando o médico leva em conta as crenças e os valores dos pacientes “...pode devolver a eles a dignidade e o senso de controle que muitos dizem ter perdido em sua interação com médicos e profissionais de saúde.” (p.205). Os pacientes demonstravam preocupações no sentido de dar trabalho aos filhos, ficar em casa sem ocupação, perder perspectivas de uma vida digna: “...Deus me ajuda, que eu vivo mais uns tempo, né? Pra num dá muito trabalho pros filhos, né?” “Antigamente eu costurava muito, mas agora não costuro. Eu não tenho cabeça, habilidade.” “...depois que ficou viúva né, agente tem vez que sente muita solidão.” “Agora eu não ocupo nada, não faço nada, ando pouco...pra mim os dias são tudo igual, de segunda a sábado é tudo igual...” “...pra que chegar aos 90 e ficar gagá, pelo menos eu agora estou por dentro de tudo...enquanto eu for útil pra alguma coisa eu não me incomodo posso viver 90, se for útil.” Ante estes depoimentos, nota-se a primordial necessidade que tem os idosos de “sentir que suas vidas têm significado e que estão contribuindo para o seu bem-estar, mas também para o seu desenvolvimento social...” (Lopes, 2000). v De acordo com Birman (1995), observa-se uma modificação nas relações estabelecidas pela sociedade atual com a velhice, sendo esta objeto de cuidados especiais: “...a problemática da velhice passa a se transformar em tema importante para as criações literária e cinematográfica, de forma que passamos a conviver com heróis e heroínas da terceira idade” (p.36). Referências bibliográficas a 1-Benson, H. ; Stark, M. Medicina espiritual. 11 .ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1998. 2-Birman, J. Futuro de todos nós: temporalidade, memória e terceira idade na psicanálise. In: Veras, R. (org) Um envelhecimento digno para o cidadão do futuro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, p.29-48, 1995. 3-Bruno, M.R.P. Autonomia e cidadania: caminhos e possibilidades para o ser idoso. Rev. Kairós: gerontologia. Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento. Programa de Estudos Pós-graduados em Gerontologia-PUC-SP. São Paulo: EDUC. 2001, 4 (1): p.143154. 4-Dalgleish, J.; Reynolds, P. Aterosclerose e coronariopatia. In: Kauffman, T.L. Manual de reabilitação geriátrica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001. 5-Helman, J. The thought of the heart. In: Porto, C. Doenças do coração. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998. 6-Iglezias, J.C.R.; Oliveira, J.L., Dallan, L.A.O. et al. Preditores de mortalidade hospitalar no paciente idoso portador de doença arterial coronária. Rev. Bras. Cir. Cardiovasc. V.16, n.2, p.94-104, 2001. 7-Jung, C.G. Man and his symbols. In: PORTO, C. Doenças do coração. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998. 8-Kauffman, T.L. Manual de reabilitação geriátrica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001. 9-Lopes, R.G.C. Saúde na velhice: as interpretações sociais e os reflexos no uso do medicamento. São Paulo: Educ, 2000. a 10-Monteiro, P.P. Envelhecer: histórias, encontros, transformações. 2 .ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. 11-Rabelo, R.C. Cirurgia cardíaca no idoso. In: Petroianu, A. ; Pimenta, L.G. Clínica e cirurgia geriátrica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 1999. 12-Ramos, V. Corpo e movimento no envelhecimento: reflexões de idosos sobre as transformações do seu corpo. Rev. Kairós: gerontologia. Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento. Programa de Estudos Pós-graduados em Gerontologia-PUC-SP. São Paulo: EDUC, vol 4, n. 1, p.67-82,2001. a 13-Remen, R.N. O paciente como ser humano. 2 .ed. 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