Patricia Duarte Dietterle

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO
SUL – UNIJUÍ
PATRICIA DUARTE DIETTERLE
ASPECTOS SUBJETIVOS DO CÂNCER DE MAMA FEMININO: UMA
LEITURA PSICANALÍTICA
Ijuí
2016
PATRICIA DUARTE DIETTERLE
ASPECTOS SUBJETIVOS DO CÂNCER DE MAMA FEMININO: UMA
LEITURA PSICANALÍTICA
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Curso de Psicologia da
Universidade Regional Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ
como requisito parcial a obtenção do título
de Bacharel em Psicologia.
Orientador: Prof. Ms. Nilson Heidmann
Ijuí
2016
UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
DHE – Departamento de Humanidades e Educação
A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova o Trabalho de Conclusão de
Curso
ASPECTOS SUBJETIVOS DO CÂNCER DE MAMA FEMININO: UMA
LEITURA PSICANALÍTICA
Elaborado por
PATRICIA DUARTE DIETTERLE
Como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Psicologia
Comissão examinadora
Prof. Ms. Nilson Heidmann (Orientador) – DHE/UNIJUÍ
Prof. Ms. Daniel Ruwer – DHE/UNIJUÍ
Ijuí, RS 02 de dezembro de 2016.
Dedico este trabalho à Deus pelo amparo
e aos meus pais, Antonio e Maria, com
todo meu amor e gratidão, por tudo que
fizeram por mim ao longo de minha
existência. Espero ter sido merecedora de
todo esforço dedicado por vocês em todos
os aspectos, especialmente no que tange
minha educação.
AGRADECIMENTOS
A todos os professores do curso de psicologia da Unijuí, pelas aulas que tanto
contribuíram para a minha formação enquanto psicóloga, em especial ao professor
Daniel Ruwer, que sempre se disponibilizou a me orientar não somente em suas aulas,
mas também nos intervalos. Graças à clareza de suas explicações, este trabalho,
amparado pela ótica psicanalítica, tornou-se possível.
A meu orientador Nilson Heidemann, pelo acolhimento, pelas orientações sempre
muito enriquecedoras, pela calma e confiança transmitidas.
A meu supervisor de estágio no Hospital de Caridade de Ijuí, Tiago Marchesan
Pozzatti, pela vivência proporcionada e incentivo na escrita deste trabalho.
Às amigas que a graduação de psicologia me deu de presente: Maria Dalva Monte,
Mirian Primon, Pamelly Figueiró, Patrícia Soares e Thatiane Leal pelos debates e
aprendizado que fizeram-me contemplar questões para além da graduação, além de
todo incentivo e apoio.
Às minhas psicólogas: Andrea Guerra (in memoriam) e Kenia Spolti Freire, pelo
profissionalismo, apoio e acolhimento.
A meu cão Toad, pelo companheirismo e momentos de descontração.
Aos meus irmãos de alma Américo Cerqueira e Fernanda Lima, por todo amor e apoio.
A meu marido Daniel Dietterle, pelo olhar de admiração que sempre me impulsionou;
pelo amor, dedicação e paciência sempre presentes e tão necessários.
A meus pais Maria e Antonio, pelas razões todas.
RESUMO
O presente trabalho reflete sobre as mais diversas interferências que o câncer de
mama tem sobre a subjetividade feminina. A escolha deste tema se deu justamente
por querer identificar essas intercorrências subjetivas que a mulher sofre na busca por
sobreviver a essa doença tão devastadora. Após o entendimento do que é a patologia
e como se dá o adoecer, há um recorte histórico que revela o desenrolar do sofrimento
das mulheres acometidas por essa neoplasia maligna. Verificou-se que não é somente
o corpo orgânico que sofre os efeitos avassaladores da doença em questão, mas
também toda subjetividade da mulher é ferida, a imagem que ela tem de si é afetada.
Sublinhou-se a visão parcial que a psicanálise tem do seio, que está para além de
nutridor, visto que é também um dos referenciais da identidade feminina. Seguindo o
método de trabalho qualitativo, o estudo se deu através de uma revisão da literatura
sobre o tema, alicerçado pela orientação psicanalítica, a partir da qual é possível
considerar possibilidades de restauração para essa ferida que o câncer deixa na
subjetividade feminina.
Palavras-chaves: Câncer de mama; Subjetividade feminina; Corpo; Imagem; Seio.
ABSTRACT
The present work reflects on the most diverse interferences that breast cancer has on
female subjectivity. The choice of this theme was precisely because of want to identify
these subjective intercurrences that the woman suffers in the quest to survive this
devastating disease. After the understanding of what the pathology is and how it
becomes ill, there is a historical cut that reveals the unfolding of the suffering of the
women affected by this malignant neoplasm. It has been found that it is not only the
organic body that suffers the overwhelming effects of the disease in question, but also
all subjectivity of the woman is hurt, the image she has of herself is affected. Underlined
the partial view that psychoanalysis has of the breast, which is beyond nourisher, since
it is also one of the references of feminine identity. Following the method of qualitative
work, the study was based on a review of the literature on the subject, based on the
psychoanalytic orientation, from which it is possible to consider possibilities of
restoration for this wound that cancer leaves in female subjectivity.
Keywords: Breast cancer; Female subjectivity; Body; Image; Breast.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................... 10
2. BIOGRAFIA DO CÂNCER ................................................................................. 13
2.1 O que é o câncer ............................................................................................ 13
2.2 O câncer de mama ......................................................................................... 15
3. IMPLICAÇÕES DO CÂNCER DE MAMA NA SUBJETIVIDADE FEMININA .... 27
3.1 O corpo na constituição do sujeito .............................................................. 27
3.2 Fenômenos psicossomáticos ....................................................................... 32
3.3 Imagem corporal ............................................................................................ 37
3.4 O lugar do seio na psicanálise...................................................................... 42
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 47
5. REFERÊNCIAS .................................................................................................. 50
10
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho apresenta a temática do câncer de mama em mulheres. A
questão que orientou a investigação foi: quais as intercorrências vivenciadas no corpo
e na alma por essas mulheres adoecidas pelo câncer de mama?
O câncer de mama feminino tornou-se um problema de saúde pública devido
ao número crescente de casos no país, e às expectativas de novos casos, que
aumentam a cada ano. O agravante desses dados é que, em geral, o tratamento se
dá nas fases mais tardias, onde os tumores são detectados em estágios muito
avançados.
O contato com mulheres acometidas pelo câncer de mama se deu em virtude
do estágio realizado no Hospital de Caridade de Ijuí (HCI), no Centro de Alta
Complexidade em Oncologia (CACON), fazendo acolhimento aos pacientes que
chegavam à instituição, atendimento aos que já frequentavam e das reuniões do grupo
Renascer, voltado para mulheres com câncer de mama. Esse grupo foi criado em
março de 2012, devido à alta demanda de mulheres acometidas pelo câncer mamário,
a fim de terem um espaço específico para que elas pudessem expor seus conflitos
mais íntimos, dúvidas e expectativas durante e após o tratamento.
Das vivências desse estágio, nasceu o tema e a problemática deste trabalho:
os impasses subjetivos que o câncer de mama traz, uma vez que este acontece numa
parte do corpo tão referencial para a mulher, que consequências subjetivas terão as
mulheres que recebem o diagnóstico de câncer de mama? Refletir sobre esses itens
que representam obstáculos para as mulheres durante essa travessia do câncer se
faz pertinente, dada sua importância para o trabalho clínico.
Deste modo, através do método de abordagem qualitativo, esta pesquisa
bibliográfica pretendeu reunir, investigar e interpretar o aporte teórico já existente
relacionado ao tema. O referencial teórico utilizado foi em sua maioria, de cunho
psicanalítico, e uma parte de material literário da medicina. Dentre os autores, apoiouse em Siddhartha Mukherjee, médico oncologista, em seu livro O imperador de todos
os males – uma biografia sobre o câncer, lançado em 2012; Sigmund Freud,
11
percorrendo várias de suas obras; Rubens Marcelo Volich, autor de algumas obras
utilizadas e Jean Guir, em A Psicossomática na Clínica Lacaniana.
O trabalho dividiu-se em duas seções. Na primeira, fracionada em duas
perspectivas, abordou-se primeiramente sobre o que é o câncer, num breve apanhado
acerca do olhar da medicina sobre esta patologia. Na segunda perspectiva, versou-se
sobre o câncer de mama, trazendo dados atuais do Instituto Nacional de Câncer José
Alencar Gomes da Silva (INCA), recortes históricos sobre a patologia e começaremos
a tecer as implicações que a doença tem sobre a subjetividade feminina, onde
questionaremos as políticas públicas atuais de prevenção, já que, como dito acima, o
câncer de mama é um problema de saúde pública e muitos casos só são descobertos
quando a doença está num estágio avançado. Foi exposto também o adoecimento, o
stress e a angústia.
Nesse sentido, a hipótese levantada neste estudo é a de que as mulheres que
sofrem com câncer de mama, na maioria dos casos, são geralmente muito vinculadas
ao trabalho, focando toda sua libido nestas atividades.
Na segunda seção, aprofundou-se a investigação dos efeitos subjetivos das
alterações corporais resultantes da progressão desordenada do câncer de mama,
e/ou oriundas do tratamento para combatê-lo. Viu-se como o corpo do sujeito é
constituído, e a relação do sujeito com seu corpo. Destacou-se também os fenômenos
psicossomáticos, na tentativa de apreender as possíveis causas disso que se
desdobra na mulher, para além do orgânico. Discorreu-se sobre a dor psíquica, que
dói tanto ou mais que a dor física.
Tratou-se também sobre imagem corporal, onde alguns questionamentos se
fizeram presentes. Essas mulheres ficarão com uma imagem distorcida de si?
Conseguirão olhar-se no espelho e gostarem do que veem após as mudanças
corporais sofridas? Outro ponto tratado foi o feminino em Freud e o lugar que o seio
ocupa na vida da mulher de hoje e na teoria psicanalítica.
Embora muitos considerem câncer e morte quase como sinônimos – fato que
caiu em desuso, pois a neoplasia maligna nos dias de hoje é considerada uma doença
crônica e não uma doença terminal - é de suma importância ressaltar que o trabalho
12
teve um outro olhar, o objetivo não foi a relação entre câncer e finitude e sim como o
câncer da mama afeta a mulher e sua subjetividade.
13
2. BIOGRAFIA DO CÂNCER
“Viva, portanto, amigo. Viva, viva, de qualquer jeito, na
esperança viva de que o câncer há de morrer de
câncer. Ou morrerá – melhor – pela coragem de
enfrentarmos o horror desta linguagem que faz do
câncer dor maior que o câncer. Pois se souber do
trágico brinquedo que é ver o câncer em tudo desta
vida, o câncer vai morrer – morrer de medo”.
Carlos Drummond de Andrade
2.1 O que é o câncer
O câncer, conhecido na literatura médica por neoplasia1 maligna, é uma
patologia que atinge o homem desde a Antiguidade, já que foi detectado pela primeira
vez em múmias egípcias, 3000 AEC2. A palavra câncer é proveniente do grego
karkinos, caranguejo em português, termo usado primeiramente por Hipócrates, por
volta de 400 AEC. e a significação da doença emerge a partir de algumas
perspectivas: com os vasos sanguíneos inchados à sua volta, o tumor fez com que
Hipócrates pensasse num caranguejo enterrado na areia com as patas abertas em
círculo, coloca Siddhartha Mukherjee, em seu livro “O imperador de todos os males –
uma biografia sobre o câncer” (2012); há também a semelhança visual do crustáceo
com as células dos tumores cancerosos; pela agilidade que o caranguejo se desloca
nos mangues, suas várias patas alcançam locais distantes rapidamente, então alguns
autores dizem que a doença foi assim designada pela capacidade que as células
cancerosas possuem de se disseminar pelos mais diversos locais do organismo.
Nomenclatura usada para designar um conjunto de mais de 100 tipos de
doenças, o câncer possui características clínicas e biológicas diversas, a maioria é
nomeada de acordo com o tipo de célula ou órgão no qual tem origem. Atualmente
sabe-se que, uma única célula de um determinado órgão ou tecido divide-se, modificaNeoplasia: Termo que denomina um conjunto de pulmões.
(http://www.dicionariomedico.com/neoplasia.htm. Acesso em 13 de nov. 2016)
doenças caracterizadas pelo crescimento anormal e em certas situações pela invasão de órgãos à distância. As
neoplasias mais frequentes são as de mama, cólon, pele e pulmões.
(http://www.dicionariomedico.com/neoplasia.htm. Acesso em 13 de nov. 2016)
2 AEC: Antes da Era Comum, em substituição ao a.C, (Antes de Cristo) já que este caiu em desuso.
1
14
se e cresce sem controle formando uma massa de tecido denominada massa tumoral,
ou simplesmente tumor.
Os tumores benignos não são considerados câncer, depois de removidos
cirurgicamente não continuam a crescer na maioria dos casos e não se disseminam
para outros órgãos, enquanto os tumores malignos são os considerados câncer:
podem voltar a se formar após retirados com cirurgia, além da possibilidade de
atingirem outros tecidos e órgãos. As células dos tumores malignos podem se
desprender, invadir e danificar tecidos e órgãos vizinhos. Esta é a forma como câncer
se espalha, a partir de um tumor originário (primário), para formar novos tumores em
outras partes do corpo, a isto dá-se o nome de metástase. As metástases mais
comuns atingem os ossos, fígado, pulmões e cérebro.
É uma doença genética: as alterações ocorrem dentro de genes específicos,
embora a maior parte dos casos não se tratarem de uma doença herdada, já que
apenas 5 % destes possuem origem genética e o restante, 95% dos casos tem origem
em mutações adquiridas do ambiente e hábitos de vida. A formação de um câncer –
carcinogênese - é um processo geralmente lento, onde vários anos podem ser
necessários para que uma célula se prolifere e origine um tumor diagnosticável.
As principais linhas de tratamentos existentes são abordagens cirúrgicas, a
quimioterapia e radioterapia (INCA, 2016) e ainda não há cura ou prevenção
plenamente eficazes para esta patologia, o que surpreende, já que milhares de
doenças surgiram após o primeiro caso de câncer e para grande maioria se descobriu
cura, vacinas, prevenções eficazes. Embora se saiba como surge o câncer – através
de alterações e crescimentos descontrolados em células predispostas – a medicina
ainda não encontrou um antídoto para a doença.
Interessante pensar que, o crescimento das células é o que nos desenvolve
enquanto seres humanos, quando esse crescimento é normal, já que justamente o
desenvolvimento das células é o que constitui nosso corpo orgânico, formando
tecidos, que unindo-se formam órgãos e assim toda a extensão corpórea. E o
crescimento desordenado e sem controle de células malignas destroem tudo isso que
se constituiu durante anos.
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O segredo do combate ao câncer, portanto, está em encontrar meios de
impedir que essas mutações ocorram em células suscetíveis ou descobrir
meios de eliminar as células mutantes sem comprometer o crescimento
normal. A concisão dessa declaração camufla a enormidade da tarefa.
Crescimento maligno e crescimento normal são tão entrelaçados
geneticamente que separá-los pode ser o desafio científico mais importante
que nossa espécie tem diante de si. O câncer está incrustado no nosso
genoma: os genes que desencadeiam a divisão normal das células não são
estranhos ao nosso corpo, mas versões mutantes e distorcidas dos mesmos
genes que desempenham funções celulares vitais (MUKHERJEE, 2012 p.16)
O entendimento de que o câncer é uma patologia resultante dos processos de
mutação celular, possibilitou uma melhor qualidade de vida para os pacientes
oncológicos, tendo em vista que no começo do século XX, a doença era considerada
contagiosa, o que acarretava o isolamento dos acometidos pela doença durante o
tratamento, comenta Ferreira & Castro-Arantes (2014).
E o câncer está estampado em nossa sociedade: à medida que nossa
expectativa de vida aumenta, como espécie, inevitavelmente deflagra-se o
crescimento maligno das células (as mutações nos genes do câncer se
acumulam com o envelhecimento; portanto, o câncer está intrinsecamente
relacionado à idade). Se buscamos a imortalidade, num sentido muito
perverso a célula cancerosa também busca. (MUKHERJEE, 2012 p.4)
Hoje em dia, há uma expectativa de vida cada vez maior tanto do homem
quanto da mulher e todas as descobertas da medicina favoreceram esse quadro, mas
nada se encontrou para impedir as alterações malignas que as células cancerígenas
promovem.
2.2 O câncer de mama
O objeto de estudo deste trabalho é o câncer de mama nas mulheres, e como
ele afeta a subjetividade destes sujeitos afetados pela doença. Segundo o INCA
(2016), para o ano corrente, a previsão é de que surjam 57.960 novos casos de câncer
de mama no Brasil. Desconsiderando os tumores de pele não melanoma, este tipo de
câncer é o primeiro mais incidente em mulheres das regiões Sul, Sudeste, CentroOeste e Nordeste, e, na região Norte, é o segundo mais frequente.
16
O câncer de mama pode ocorrer tanto em mulheres quanto em homens, sendo
que a maior incidência é no sexo feminino. É possível pensar que o câncer de mama
é a neoplasia maligna mais temida pelas mulheres. O tratamento modifica toda a
imagem corporal da mulher, que pode ser seu peso aumentado, alopecia3, a perda
do(s) seio(s), além da eminência de morte, já que muitas vezes receber o diagnóstico
da patologia é sinônimo de uma sentença de morte para grande parte dos pacientes.
Quando se busca sobre as origens do câncer, nota-se que desde os primeiros
casos, diante dos tratamentos empregados se encontra algo que permeia a doença
até hoje: o tratamento doloroso e a vergonha de estar acometido por esta patologia.
Os primeiros casos de câncer dos quais se tem relato na história da medicina,
são justamente os localizados na mama. Mukherjee (2012), aborda que o primeiro
relato foi encontrado em um papiro datado do século VII AEC, relatos do médico
egípcio Inhotep, onde descreveu o primeiro caso de câncer de mama da humanidade:
Uma “massa saliente no peito” — fria, dura, densa como uma fruta e
espalhando-se insidiosamente debaixo da pele; dificilmente haveria uma
descrição mais vívida do câncer de mama. Cada caso descrito no papiro era
acompanhado de uma discussão concisa dos tratamentos, ainda que apenas
paliativos: leite derramado nos ouvidos de pacientes neurocirúrgicos,
cataplasmas para feridas, bálsamos para queimaduras. Mas, com relação ao
caso 45, ele mantém um silêncio atípico. Na seção intitulada “Terapia”, ele
apresenta apenas uma frase: “Não existe”. (MUKHERJEE, 2012 p.14)
Após esse relato, durante muito tempo não há registros na literatura médica
sobre a patologia. Talvez pelo fato de não se conhecer nenhuma terapia possível, não
houve nenhum registro semelhante da doença, embora existam diversos relatos de
tifo, varíola e tuberculose. Mais de dois milênios após os relatos de Inhotep surgem
registros de um novo caso de câncer, novamente de mama. Escritos datados de 440
AEC, do historiador grego Heródoto, relata o caso da rainha da Pérsia, Atóssa. Em
meio ao seu reinado, surgiu em seu seio um caroço que sangrava por ser um tipo de
câncer inflamatório, provavelmente, já que neste tipo de câncer as células malignas
Alopecia: Queda geral ou parcial dos pelos, principalmente dos cabelos.
(http://www.dicionariomedico.com/neoplasia.htm. Acesso em 13 de nov. 2016)
3
17
invadem as glândulas linfáticas da mama, formando uma massa vermelha e
aumentada, aborda Mukherjee (2012).
Atóssa poderia ter deslocado todos os médicos de seu reinado, mas se isolou,
vivendo enrolada em lençóis com vergonha até mesmo de procurar seus médicos. Um
escravo convenceu-a extirpar o tumor, o que lhe deu uma sobrevida, não se sabe de
quanto e se houve retorno ou metástase do tumor.
O que é a vergonha? Ao se buscar em um dicionário de português seu
significado, destaca-se o seguinte fragmento:
Vergonha: [...] 3.sentimento penoso causado pela inferioridade, indecência
ou indignidade [...] 4.sentimento de insegurança causado por meio do ridículo
e do julgamento dos outros; timidez, acanhamento, recato, decoro.
(HOUAISS, 2001 p.2847).
A vergonha, embora um afeto comum e universal não é algo fácil de descrever
e tão difícil quanto, é encontrar suas origens. Produz mal-estar para quem a sente,
mas ao mesmo tempo, situa a existência do outro.
Importante salientar também que a vergonha, é uma ferida narcísica de difícil
cicatrização, presente na memória do sujeito, muitas vezes relacionada a
acontecimentos onde se sente impotente diante do olhar do outro, quando esse olhar
enxerga o que não poderia ser visto - está exposto ao outro.
Segundo Bilenky citando GREEN:
"A vergonha assinala a confissão de uma derrota, a revelação de uma
fraqueza, a perda das aparências e da dignidade e a imagem de seu mundo
interior desmascarado aos olhos do outro”. (Bilenky 2013, p.1 apud GREEN
2003 p. 1657)
Muitas vezes confundida com a culpa, a vergonha distingue-se pela direção.
Embora ambos os afetos sejam relativos à moral e regulamentem o comportamento
do sujeito no social, a culpa é produzida por algo ruim provocado ao outro, voltado
para quem foi prejudicado, seja esse outro verdadeiro ou imaginário. A vergonha é
algo direcionado a si mesmo, a imagem que o sujeito tem de si é exposta, alvejada.
18
A vergonha se faz presente em mulheres com câncer de mama já que sua
imagem corporal é toda alterada pelo tratamento, haja visto que este pode gerar desde
aumento de peso até uma mutilação – perda da mama. Além disso, a quimioterapia
faz com que os pelos corporais caiam, e isso inclui os cabelos.
Para as pessoas submetidas à quimioterapia, a perda dos cabelos é muito
difícil de ser aceita; à conscientização da perda da vitalidade soma-se a
sensação de humilhação e exposição” (OLIVEIRA, 2007 p.138)
Ainda sobre vergonha e culpa, é necessário colocar:
A vergonha, ao contrário da culpa, não pode ser recalcada nem esquecida. A
saída é o encobrimento. O envergonhado procura esconder aquilo que
provoca a vergonha, seja uma característica física ou de personalidade, seja
uma situação que exponha, para ele, uma falha sua. A reação à exposição
vem carregada de angústia e dá lugar a inibições, fechamento sobre si
mesmo, impossibilidade de desenvolvimento. (BILENKY, 2013 p.9)
Tamburrino relata a história de Ágata, que após diversos milagres tornou-se
Santa Ágata, a protetora das mamas:
[...] Ágata, uma mulher de rara beleza que se recusou a casar com
Quintianus, Prefeito e Senador Romano da região da Sicília. Assim, para
castigá-la, Quintianus a mandou para um bordel, mas ela escapou virgem.
Irado, este acusou-a de heresia e mandou torturá-la terrivelmente, e, por fim,
arrancar seus seios! Ainda viva, Ágata foi jogada num calabouço sem direito
a cuidados. Entretanto, a história também narra que Ágata teve uma visão de
São Pedro acompanhado de um jovem arcanjo carregando uma tocha; ele
lhe aplicou óleos medicinais que a deixaram curada, inclusive tendo seus
seios reparados! Mais irado ainda, Quintianus mandou que a torturassem
novamente com o cuidado de não matá-la. Novamente, Ágata foi jogada no
calabouço com seu corpo alquebrado; houve então um terremoto que sacudiu
a prisão e Ágata morreu. Depois de uma história de milagres, Ágata foi
considerada Santa e tornou-se Santa Ágata, Protetora das Mamas.
(TAMBURRINO, 2011, p. 1)
Os tratamentos que combatem a neoplasia maligna evoluíram ao longo do
tempo, desde sempre considerando a cirurgia como meio:
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A primeira esperança para esse tipo de sofrimento foi vislumbrada por Galeno
no século II, o médico mais famoso e importante depois de Hipócrates. Ele
considerava que a mama poderia sofrer uma cirurgia desde que o tumor fosse
superficial e tivesse todas as raízes extirpadas. Na época do Renascimento,
e com a prosperidade do ensino médico, a cirurgia de mama também
alcançou seus benefícios. Entretanto, no século XVIII Lorenj Heister defendia
o uso da guilhotina para tornar a mastectomia um procedimento mais rápido
e menos sofrido. Heister 1 aborda a relação médico paciente da seguinte
forma: ... muitas mulheres podem tolerar a operação com a maior coragem e
sem gemer absolutamente. Outras, entretanto, fazem um escândalo tal que
pode desencorajar o mais destemido dos cirurgiões e dificultar a operação.
Para realizá-la, o cirurgião, portanto, deve ser persistente e não permitir-se
desconcentrar-se com o choro da paciente. (TAMBURRINO, 2011, p. 2)
A mastectomia4, no século XVIII sucedia-se com emprego de guilhotinas,
pontuando o quão drástico eram as cirurgias naquele tempo e não eram as únicas
cirurgias mutiladoras da época, também se extraiam membros, todas com muitos
casos de mortalidade, tanto em decorrência do tratamento em si quanto pela escassez
de recursos que a ciência médica contava no momento e somente os tumores visíveis
eram operados, comenta Ferreira & Arantes (2014).
Pode-se pensar que, a dificuldade em se caracterizar o câncer como tal,
poderia ser pela falta de recursos tecnológicos na época, já que somente através de
exames os quais considerados rotineiros hoje em dia, podem ser detectados e com
isso há um número maior de diagnósticos atualmente:
A introdução da mamografia, para detectar o câncer de mama mais cedo em
sua evolução, aumentou drasticamente sua incidência — resultado
aparentemente paradoxal, que faz todo sentido quando nos damos conta de
que os raios X permitem que tumores sejam diagnosticados em seus estágios
iniciais. (MUKHERJEE, 2012, p.50).
Por volta da década de 1950, a imprensa escrita evitava falar sobre a patologia
em suas páginas:
Mastectomia: Cirurgia através da qual extirpa-se parte ou a totalidade da mama. Pode estar indicada como
tratamento do câncer de mama. (http://www.dicionariomedico.com/neoplasia.htm. Acesso em 13 de nov.
2016).
4
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Depois de um breve período de destaque na imprensa, a doença voltou a
tornar-se o grande inominável, a doença sobre a qual se falava aos sussurros
e jamais publicamente. No começo dos anos 1950, Fanny Rosenow,
sobrevivente de câncer de mama, ligou para o New York Times a fim de
publicar um anúncio de um grupo de apoio a mulheres com câncer de mama.
Rosenow foi transferida, enigmaticamente, para o editor da coluna social do
jornal. Quando lhe perguntou se podia colocar o anúncio, houve uma longa
pausa. “Desculpe, senhora Rosenow, mas o Times não publica a palavra
mama, nem a palavra câncer, em suas páginas. “Talvez a senhora possa
dizer que haverá uma reunião sobre doenças do tórax”, sugeriu o editor.
(MUKHERJEE, 2012, p.12).
Nos dias atuais, os meios de comunicação têm sido grandes aliados para
divulgação da patologia, pois é comprovado que quanto mais cedo se tem o
diagnóstico, mais sucesso terá o tratamento. Desde meados do século passado,
através de diversas ações, o Ministério da Saúde desenvolve diversas estratégias
para controle do câncer através de intervenções isoladas. Nas décadas recentes, isso
se deu por ações dentro do âmbito de programas de controle do câncer, programas
tais que se equiparam a
[...] um conjunto de ações sistemáticas e integradas, com o objetivo de reduzir
a incidência, a mortalidade e a morbidade do câncer em uma dada população.
Em geral, os programas contemplam: prevenção primária (redução ou
eliminação dos fatores de risco); detecção precoce (identificação precoce do
câncer ou de lesões precursoras); tratamento; reabilitação; e cuidados
paliativos. (INCA, 2015, p.5)
Uma das campanhas mais famosas, Outubro Rosa, realizada no referido mês,
é onde se intensifica a divulgação da doença, da importância da prevenção, bem como
se estimula exames de mamografia e é difundida inclusive por empresas privadas.
Embora a prevenção seja bastante divulgada, o comportamento das mulheres ainda
não é suficientemente positivo em relação a exames que podem diagnosticar a
doença, e é o mês do ano onde menos se fazem mamografias, relatam os
profissionais de saúde dos dois maiores hospitais da cidade de Ijuí. Outro dado
importante é que muitos casos apenas são descobertos quando a doença está no
estágio mais avançado.
21
Diante disto, levanta-se uma questão sobre a eficácia das políticas de
prevenção: Qual a função de tais políticas? Haja visto que se observa uma inibição –
há uma queda no número de mulheres que buscam os exames preventivos
justamente no mês onde é mais divulgada a prevenção.
Freud (1929/2014, p.11), diz que “a inibição tem uma relação especial com a
função e não significa necessariamente algo patológico, pode-se também chamar de
inibição a restrição normal de uma função”. Essa limitação funcional do eu, pode ter
várias origens, coloca Chemama (1995). E uma das origens pode ser o medo, a
vergonha. Retomando a questão da prevenção, será que o que inibe a procura por
prevenção seria o medo da descoberta de um câncer?
Durante o período de estágio no setor de psiconcologia do HCI, realizou-se
acolhimento dos pacientes e familiares que chegavam à instituição para uma primeira
consulta ou retorno, além de atendimento a pacientes acamados. Notou-se algo em
comum em alguns pacientes: a negação deles em relação ao adoecimento, ignorando
o câncer e suas implicações, como intervenções cirúrgicas, por exemplo. Esse fato
remete ao conceito de negação, que seria uma tentativa de não aceitar algo na
consciência, algo que incomoda o ego. Em seu texto “A Negação”, Freud nos traz:
Como é tarefa da função intelectual do juízo confirmar ou negar os conteúdos
dos pensamentos, as observações precedentes nos levam à origem
psicológica dessa função. Negar algo num juízo é dizer, no fundo: “Isso é algo
que eu gostaria de reprimir”. O juízo negativo é o substituto intelectual da
repressão, seu “Não” é um sinal distintivo, seu certificado de origem, como
“Made in Germany”, digamos. Através do símbolo da negação, o pensamento
se livra das limitações da repressão e se enriquece de conteúdos de que não
pode prescindir para o seu funcionamento. (FREUD, 1925/2006, p.251)
Isso levanta uma questão, pois talvez essa negação seja o que sustente o
sujeito diante de sua doença. O paciente passa também, nesse processo de
adoecimento tão invasivo como câncer, por uma perda. Freud (1915/2006), no texto
Luto e Melancolia, ao explicar o conceito de luto, aborda que ele não se refere
somente como uma reação à perda de alguém importante, mas a perda de algo na
mesma equivalência: perda de um objeto amoroso, e o processo de luto absorve
enquanto duram todas as energias do Eu, implicando num sério afastamento da
22
conduta normal da vida. Caso isso afete sua autoestima, como pode ocorrer em casos
de mutilação, o quadro clínico é o mesmo, mas estaremos falando de melancolia.
As doenças são ameaças aos seres humanos, comprovam sua fragilidade e
lançam uma hipótese de destruição, de finitude. Entretanto, cada indivíduo estabelece
uma relação metafórica com a doença. Cada uma tem um sentido figurado, um
fantasma próprio. O enfrentamento de qualquer patologia dependerá dos recursos
psíquicos que o sujeito reuniu ao longo de sua vida, bem como se estruturou.
Para explicar a dinâmica do adoecer, em sua obra Psicossomática, Rubens
Marcelo Volich (2016), assinala que há três caminhos prováveis de descarga e
organização das excitações (motora, orgânica e pensamento) também são vias
possíveis para o adoecimento. Diante de um evento conflituoso, um indivíduo bem
organizado psiquicamente poderá desenvolver sintomas ou perturbações psíquicas
da ordem das neuroses ou das psicoses. Um outro indivíduo, com uma precária
organização psíquica, embora não tenha recursos para reagir diante de uma situação
traumática, através de delírios, sonhos ou mecanismos de defesa psíquicos, vale-se
então de processos orgânicos ou motricidade a fim de buscar a descarga ou equilíbrio
da excitação acumulada.
Nessa perspectiva, segundo Volich (2016, p.212), é possível notar o
aparecimento “a manifestação das descargas pelo comportamento, como as reações
psicopáticas, atitudes impulsivas, ou, ainda, diante da insuficiência dos recursos
comportamentais, o aparecimento de perturbações funcionais somáticas”, conforme a
ilustração a seguir:
Fluxograma 1 – Perturbações funcionais somáticas
Células
Tecidos
Órgãos
Desorganizações
Somáticas
Fonte: Volich (2016, p.212)
Coordenação
Senso-Motora
Manifestações
comportamentais
Relações
de objeto
Linguagem
Elaboração
Psíquica
Manifestações
psicopatológicas
23
É digno de nota ressaltar que toda patologia, mesmo que com características
divergentes, regressivas e por diversas vezes extremas - sejam comportamentais,
mentais ou somáticas, também é uma tentativa do organismo de estabelecer
equilíbrio, pois é incapaz de confrontar as tensões externas ou internas por estar
subordinado as essas tensões, através de recursos mais avançados, situa Volich
(2016).
Volich segue versando:
A gravidade de um sintoma ou de uma doença é função tanto dos recursos
do indivíduo para enfrentar tais tensões como da duração e da intensidade
dessas tensões. Naturalmente, o organismo tentará enfrentar essas
situações por meios de seus recursos mais evoluídos, mas diante dos
insucessos de suas iniciativas, ele poderá recorrer regressivamente recursos
cada vez mais primitivos até que se estabeleça uma situação de equilíbrio. A
manutenção destes equilíbrios regressivos dependerá da duração da tensão
ou da capacidade do organismo de reorganizar-se para responder de maneira
mais organizada e elaborada a tais situações. (VOLICH, 2016, p. 212-3)
O câncer sempre teve sua metáfora ligada à morte e a destruição, bem como
o uso da palavra para além da medicina está associada a um crescimento
desordenado, caos, uma condição arrasadora, como por exemplo, o terrorismo é
considerado o câncer social e a guerra do Vietnã e Waltergate foram considerados
“cânceres” na vida política dos EUA, pontua Monteiro (1996).
O câncer de mama não tem uma causa única. Variados fatores relacionam-se
aos riscos de desenvolver a patologia, podendo-se citar: idade, fatores endócrinos,
reprodutivos, comportamentais, ambientais, genéticos, hereditários, sendo a idade um
dos principais fatores que aumentam o risco de se desenvolver câncer de mama, já
que o acumulo de exposições ao longo da vida e as próprias alterações biológicas que
o envelhecimento traz aumentam o risco. Mulheres com mais de 50 anos são mais
predispostas a desenvolver a doença (INCA, 2016). Muito se discute sobre as causas
do câncer de mama nas mulheres, muitas pesquisas apontam o estresse não só como
fator causador, bem como um sintoma que torna a doença mais agressiva.
Sontag (1984), ao comentar Clinical notes on câncer (1883), obra do médico
do Hospital de Câncer de Londres Herbert Snow, destaca que as anotações dele
24
sobre 140 casos de câncer de mama, 103 possuíam registro de um distúrbio mental
prévio, muito trabalho ou outro fator debilitante.
No que tange o estresse, se faz necessário colocar que este não é um termo
psicanalítico. Estresse é uma palavra derivada do inglês stress, termo inicialmente
usado pela física para demonstrar o grau de deformidade acometido por um material
ao ser submetido a uma tensão ou esforço, e o termo migrou para biologia e medicina
como um esforço de adaptação do organismo para o enfrentamento de circunstâncias
na qual se considere ter ameaças à vida e ou seu equilíbrio interno, com isso migrou
também para áreas como a psicologia e a sociologia.
Muito utilizado no ambiente social e clínico, uma vez que está constantemente
no discurso de pacientes, é possível pensar que haja uma banalização do termo
estresse, já que sempre se refere a diferentes conflitos psíquicos, dentre os quais se
pode citar a angústia, ainda que não saibam nomear o que de fato sentem.
Apesar de ser causado também por estímulos psicológicos, o estresse é uma
síndrome da ordem do biológico, do orgânico, o que explica o porquê de o termo não
ser da área psicanalítica, já que a psicanálise não trabalha com corpo orgânico, pontua
Mourão (2003), que coloca ainda:
O objeto de estudo da psicanálise é o inconsciente. Nele, as coisas de um
modo geral (inclusive o corpo), são tomadas em termos de suas
representações, que se articulam em três registros, ou seja, o real
(irrepresentável), o simbólico (linguagem/conceitos) e o imaginário
(fantasias). Essas representações se instituem, basicamente, nas relações
intersubjetivas. (MOURÃO,2003, p.1).
Em grego, Onkos era o termo que denominava uma massa, um fardo: o câncer
era imaginado como um peso carregado pelo corpo:
Outra palavra grega onkos, usada para descrever tumores e de onde a
oncologia tirou seu nome, era o termo utilizado para denominar uma massa,
uma carga ou mais comumente um fardo; o câncer era imaginado como um
peso carregado pelo corpo. Na tragédia grega, a mesma palavra designava
a máscara que com frequência era “carregada” por um personagem para
denotar a carga psíquica suportada por ele. (MUKHERJEE, 2012 p. 61-62)
25
Essa carga psíquica carregada pelo paciente oncológico é a angústia. Dentre
as raízes etimológicas da palavra angústia, a origem grega da palavra destaca a ideia
de “estreiteza, aperto, sufocamento” (ROCHA Z., 2000, p.25).
Mesmo antes do diagnóstico, o câncer de mama já traz sofrimento, por tudo
que poderá trazer se confirmado. Após o diagnóstico, vem angústia de lidar com os
“conhecidos desconhecidos” efeitos colaterais do tratamento, pois muitos deles
ocorrem ou não, dependem de fatores biológicos (gravidade da neoplasia maligna) e
psicológicos do paciente. Não há como excluir a angústia de todo esse processo: ela
costura todo tratamento.
Freud, em Conferências Introdutórias (1916/2014, p.422) inicia sua explanação
sobre angústia comentando que, a angústia é a maior queixa dos neuróticos, que a
nomeiam como seu pior adoecimento, e afirma que “angústia pode realmente alcançar
neles uma enorme intensidade e ter por consequência as medidas mais desvairadas”;
mais a frente, diz que não é necessário definir a angústia, já que esta é algo inerente
ao ser humano, pois todos já experienciamos esse estado afetivo (Freud, 1916/2014).
Um dos conceitos fundamentais da metapsicologia freudiana, a angústia, é o
ponto nodal e um enigma, coloca Freud (1916/2014):
[...] o problema da angústia é um ponto nodal para o qual convergem as mais
diversas e importantes questões, um enigma cuja solução haverá de lançar
luz abundante sobre o conjunto de nossa vida psíquica toda nossa existência
mental. (FREUD, 1916/2014, p. 423)
E diz que a psicanálise vai ter um olhar diferente da medicina no que tange a
angústia.
Em Inibição, Sintoma e Angústia, Freud (1926/2014) altera sua teoria sobre
angústia, já que antes a descrevia como produto de uma mudança automática de
energia de investimento da moção pulsional recalcada. Nesse texto, destaca a função
do ego como encarregado pelo investimento ou desinvestimento de algo que se
percebe ou se apresenta como uma ameaça ou perigo, pontuando que a angústia leva
ao recalcamento e não o contrário. A angústia tem como função alertar ego e superego
26
da proximidade de um perigo, seja exterior ou interior que ameace o indivíduo,
comenta Volich (2016).
As pacientes oncológicas com câncer de mama marcadas pela angústia na
convivência entre fantasia e a morte, que evidencia assim, sua irrepresentabilidade, o
que pulsa no que Rocha, Z. afirma:
“(...) a etapa mais rica da reflexão freudiana sobre a angústia e que abre
maiores perspectivas para uma compreensão mais profunda do seu enigma
é aquela desenvolvida por ocasião dos últimos escritos, ou seja, quando
Freud já dispunha de uma nova tópica, vale dizer, de uma doutrina mais
elaborada do ego e das instâncias ideais do ego, bem como de uma doutrina
sobre a pulsão de morte”. (ROCHA, Z, 2000, p.12)
Embora Freud tenha alterado sua teoria sobre angústia, afirmando que “a
angústia é causada pela falta do objeto”, conforme comenta Chemama (1995, p. 14),
o ponto nodal dela permaneceu intacto em sua obra: a questão sexual. O que pode
se observar no grupo de apoio das mulheres com câncer de mama nominado
Renascer, é que a grande maioria dessas mulheres possuíam uma carga altíssima de
trabalho – eram em sua maioria professoras, donas-de-casa, ou ambas, profissões
que exigem muito envolvimento do indivíduo, e nisso se fez uma questão: Será que
as mulheres que trabalham excessivamente deslocam toda sua libido para o trabalho?
Se a resposta para essa questão for sim, logo propõe-se outro questionamento: Se as
mulheres colocam toda sua energia sexual no trabalho, o que ficaria inibido?
27
3. IMPLICAÇÕES DO CÃNCER DE MAMA NA SUBJETIVIDADE FEMININA
“Meu corpo não é meu corpo, é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me e é de tal modo sagaz que
a mim de mim ele oculta. ”
Carlos Drummond de Andrade
3.1 O corpo na constituição do sujeito
Freud graduou-se em medicina, especializando-se em neurologia. Suas
experiências clínicas, o levaram a escrever juntamente com Joseph Breuer, a obra
Estudos sobre a Histeria, a qual é considerada “como ponto de partida da psicanálise”
FREUD (1895/2006 p.19).
Ao inaugurar uma nova teoria, a partir de suas observações e estudos, surgiu
também o lugar do corpo nesta teoria, quando Freud se afastou da medicina.
Percebeu ao observar as histéricas, que a anatomia clínica em seu saber, nada
contribuía para cessar o sofrimento daquelas mulheres que observava.
O interesse de Freud pela histeria e sua intuição de que as manifestações
dessa doença não apresentavam nenhuma correspondência com a estrutura
anatômica dos órgãos afetados representaram uma verdadeira ampliação da
compreensão das múltiplas possibilidades de manifestação do sofrimento
humano. (VOLICH 2016, p.81)
Em outra publicação, no texto Algumas considerações para um estudo
comparativo das Paralisias Motoras, Orgânicas e Histéricas, Freud assinala que “a
histeria se comporta, nessas paralisias e outras manifestações, como se a anatomia
não existisse, ou como se ela não tomasse disso nenhum conhecimento” Freud (1893
apud CHEMAMA 1993, p.84), ou seja, Freud notou que seus pacientes manifestavam
paralisias e outros sintomas cujas origens não eram detectadas no orgânico.
Observando essas manifestações, Freud que as nomeou de paralisias
histéricas, concluiu serem fruto de um trauma, onde o corpo era o palco de sua
representação, comenta Fernandes:
28
Minha hipótese supõe que, se o corpo que a construção teórica de Freud
anuncia não se confunde com o organismo biológico, objeto de estudo e
intervenção da medicina, ele se apresenta, ao mesmo tempo, como o palco
onde se desenrola o complexo jogo das relações entre o psíquico e o
somático, e como personagem integrante da trama dessas relações.
(FERNANDES, 2011, p.42).
Tudo isso leva à reflexão que, a psicanálise nasceu a partir do momento em
que Freud interroga os caminhos que conduzem os embates psíquicos a surgirem no
campo somático, levando em conta os indícios que a ciência da época repudiava:
lapsos, sonhos e também essa anatomia imaginária. Com isso, funda uma clínica, cria
um aparelho teórico que permitem a ele entender as diferentes relações entre as
manifestações corporais e psíquicas. Toda extensão da obra freudiana, nas
descobertas que fez, nas teorias que desenvolveu, demonstram uma permanente
reflexão sobre essas interações psíquico-somáticas (Volich, 2016).
Quando há uma manifestação corporal dolorosa, da qual não se descobre o
motivo desta dor, pode-se pensar em algo conversivo. Nasio (2007) traz como
exemplo a enxaqueca crônica, que embora o paciente busque diferentes médicos,
nenhum identifica a razão desse distúrbio. A recorrência dessa enxaqueca, descobrese ao se interrogar o paciente está atrelada à uma ocorrência emocional de seu
passado, o que se assemelha aos casos de histeria, o que Freud nomeou de histeria
de conversão.
A histeria é dita de conversão porque a sobrecarga de tensão inconsciente
transforma-se em distúrbios corporais. O que então se converteu no corpo?
A carga de energia inconsciente. Em vez de dizer somatização, como se diz
hoje, genericamente, Freud falava de conversão. Acho o termo “conversão”
muito interessante porque permite trabalhar com nossos pacientes de outra
forma. Quando dizemos somatização, falamos imediatamente de soma, do
corpo. Quando digo conversão, falo do mecanismo, e não do lugar onde isso
se manifesta. (NASIO, 2007, p.101)
O ato cirúrgico não opera somente no corpo orgânico, o sujeito também é
afetado por isto que acontece no orgânico, todas as alterações nele têm interferências
diretas na vida do sujeito, já que o corpo concede uma identidade, é um corpo de
linguagem, sublinha Ferreira & Castro-Arantes (2014).
29
As consequências dessa afetação serão sentidas à posteriori e são muito
singulares, dependerão de como o sujeito metabolizou experiências vividas
anteriormente. Zecchin comenta:
O corpo ao longo da experiência da vida produzirá inúmeras representações
e sempre funcionará de acordo com as motivações inconscientes que
decidem a causalidade dos acontecimentos que cada um poderá atribuir às
experiências vividas. (ZECCHIN, 2004, p.76)
O corpo do ponto de vista psicanalítico, não é um corpo de carne composto de
agrupamentos de células, como é para a medicina. É um corpo construído, cuja
edificação se dará através da interação com os entes parentais que transpassa a
carne, é produzido por uma operação de linguagem e pela exigência continua de
satisfação pulsional, comenta Ferreira & Castro-Arantes (2014).
O bebê humano nasce com uma imaturidade psíquica e orgânica: é necessário
um Outro. Esse Outro (a mãe ou quem faz a sua função) constrói no bebê humano
um corpo: não o corpo anátomo-fisiológico, que se desenvolve através dos cuidados
básicos dispensados pela mãe e sim o corpo erógeno, erotizado, impresso pela mãe,
construído a partir da vida proporcionada a cada parte do corpo, onde acontecem as
inscrições e constituindo-se assim as zonas erógenas, pontua Ferreira & CastroArantes (2014).
A amamentação, é um dos primeiros momentos de saciedade, da qual o bebê
obtém além de alimentação, uma satisfação, que o impelirá buscar prazer,
consequência dessa experiência. A concepção de pulsão assemelha-se à exigência
de constante satisfação, a partir da marca que essa primeira experiência deixou,
nesse sentido a pulsão é:
[...] algo que se impõe a partir de impulso interno que, ao longo de seu trajeto,
delimitam o corpo. Nesse processo, ela marca a indissociabilidade entre
psíquico e somático, por apresentar-se como exigência de trabalho psíquico
constante em busca de uma satisfação que passa pelo corpo. Contudo, ao
mesmo tempo em que insiste na busca de satisfação, fracassa por não ser
possível uma satisfação plena, uma vez que o prazer específico da primeira
experiência fica perdido. (FERREIRA & CASTRO-ARANTES, 2014, p. 46)
30
A mãe proporciona a criança os cuidados vitais, ela pulsionaliza esse corpo,
mapeando, colocando desejos, deixando marcas, interpretando as manifestações do
corpo biológico do bebê, dando significações a isso, assim constrói um revestimento
imaginário.
O corpo se forma através da nomeação do Outro, nomeação situada na
constituição do Eu, já que este Eu é sobretudo corporal. Tem-se então um corpo de
linguagem, portando consigo uma herança simbólica parental em sua constituição,
uma vez que o bebê sai do ventre da mãe para um mundo de linguagem, já existe
antes de nascer, é sonhado e falado por seus pais, o que não acontece de forma
consciente. O bebê constitui-se como um ser que fala a partir das marcas deixadas
pela fala dos entes parentais, aponta Ferreira & Castro-Arantes (2014).
“É a partir dos cortes, das marcas, das inscrições que o Outro irá realizando,
que o corpo subjetivado será constituído”, pontua Levin (1995, p.54). Esse momento,
é vivido como uma relação quase fusional, onde não há uma diferenciação entre mãe
e bebê para o infans.
Entretanto é necessário sair dessa relação dual mãe-bebê, para que a criança
se aproprie de seu corpo. Zecchin (2004), ressalta que essa separação também
deixará marcas, já que o tanto o desejo de retornar àquela relação fusional com mãe
quanto o de seguir procurando autonomia permanecem, emergindo nos mais variados
momentos da vida. Nesses momentos peculiares, onde tem-se dor física e dor
psíquica, existe uma tendência a endereçar o sujeito à procura da fusão perdida.
Através dessa perda será possível construir a identidade subjetiva e singular do
sujeito.
Esta identidade subjetiva também contempla a construção particular da
mama até sua representação simbólica, o seio, aspecto diretamente ligado
ao desenvolvimento feminino e do ser mulher. Nessa história está contida,
como pano de fundo, a primeira experiência de separação, a do bebê e o seio
materno, experiência fundante que separa o de dentro e do de fora. O seio
tem a propriedade particular de ser o primeiro representante de um mundo
separado do corpo do bebê, isto é, tempo em que o bebê já captará os sinais
externos a partir de sua própria percepção. Cria-se assim um espaço onde
os sentidos informarão o que estamos sentindo e estes sinais formarão os
fantasmas, o que interpretamos sobre a experiência e os pensamentos. Por
diferentes que sejam exercerão alterações no meio, no corpo e no estado
psíquico de cada um. Estas modificações, podem ser de caráter objetivo ou
subjetivo, mas produzirão modificações. A relação com o corpo estará então
submetida a como cada um se relaciona com seu próprio corpo, com a
realidade, dependendo das deformações, da compreensão ou até mesmo de
uma certa surdez em relação ao todo. (ZECCHIN, 2004, p. 26).
31
Outro aspecto relevante, é confronto do sujeito com a perecibilidade do corpo,
um corpo desconfigurado pela evolução da doença e ou com os efeitos do tratamento
oncológico, não condizendo com o corpo com o qual o sujeito viveu anteriormente.
Esse corpo, marcado pela patologia, não lhe confere a identidade de outrora, o que
poderia ser traumático.
Freud (1920/2006, p.23) fala da questão do trauma desde o início de sua obra,
entretanto ao investigar os distúrbios funcionais dos militares que lutaram na Primeira
Guerra Mundial, comenta que o trauma surge numa situação de susto, onde o sujeito
é surpreendido e “um ferimento ou dano infligidos simultaneamente operam, via de
regra, contra o desenvolvimento de uma neurose”.
. Mais à frente no mesmo texto, coloca:
Descrevemos como ‘traumáticas’ quaisquer excitações provindas de fora que
sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor. Pareceme que o conceito de trauma implica necessariamente uma conexão desse
tipo com uma ruptura numa barreira sob outros aspectos eficazes contra os
estímulos. Um acontecimento como um trauma externo está destinado a
provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento da energia do
organismo e a colocar em movimento todas as medidas defensivas possíveis.
(FREUD, 1920/2006 p.40)
E Volich (2016) acrescenta:
[...] não há uma experiência traumática em si, mesmo que alguns
acontecimentos da vida, como acidentes, doenças [...] sejam mais suscetíveis
de provocar perturbações que venham a constituir-se como traumáticas.
(VOLICH, 2016, p.98)
Seja qual for a conjuntura, os efeitos do trauma decorrem da conciliação entre
o que o sujeito tem de recursos subjetivos e com que intensidade reagirá a essa
vivência, já que um sujeito que tenha recursos escassos para o enfrentamento de uma
mudança supostamente sem relevância em sua vida pode vivenciar isso como algo
traumático, bem como um sujeito que se estruturou bem, poderá suportar vivencias
intensas e se recompor e superar as consequências rapidamente.
32
3.2 Fenômenos psicossomáticos
Volich (2016) aborda que a psicossomática sob a ótica psicanalítica está para
além da urgência dos processos psíquicos sobre os processos orgânicos. Situa que a
psicanálise fornece subsídios teóricos e clínicos, atuando como operador teórico e
clinico para essa abordagem.
Como operado teórico, possui um modelo conceitual para o entendimento das
relações entre o psíquico e o somático “e das funções do psiquismo no equilibro
psicossomático” (VOLICH 2016, p.145). Já como operador clínico, dispõe de um
parâmetro de escrita, leitura e de interpretação que aumenta a perspectivas do
trabalho terapêutico, seja ele psicológico, médico ou de qualquer outro profissional de
saúde.
Algumas teorias psicossomáticas, outorga ao paciente a incumbência de sua
doença: que é culpado por sua patologia e o somente ele pode promover sua própria
cura, critica Sontag:
Basicamente, a doença é interpretada como um acontecimento psicológico e
as pessoas são estimuladas a acreditar que elas adoecem porque
(inconscientemente) querem adoecer, que podem curar-se pela mobilização
da vontade, e que podem escolher entre morrer e não morrer da doença.
(SONTAG,1984, p.73)
Jean Guir, psicanalista francês, em sua obra A psicossomática na clínica
lacaniana, propõe uma abordagem diferente, afirmando através de suas experiências
clínicas que os fenômenos psicossomáticos são manifestações específicas no
simbólico, afastando o mito de que as doenças são produzidas por significações
pessoais e particularidades psicológicas.
A psicanálise, referencia-se a psicossomática, através do termo fenômenos
psicossomáticos, haja visto que “o sintoma possui um estatuto particular e específico
dentro do campo psicanalítico” (GUIR, 1988, p.27).
Embora não possuam as mesmas condições de formação do sintoma, os
fenômenos psicossomáticos podem se inserir na linguagem, como fruto do
33
inconsciente sobre o somático - portanto dentro do âmbito psicanalítico, aborda Guir
(1988).
Certos significantes, no decorrer da vida do sujeito alteram o funcionamento de
um gene ou um grupo de genes, que serão causadores das manifestações lesionais
estabelecidas no desdobramento dos fenômenos psicossomáticos.
Lacan (1954-1955/1985 apud GUIR,1988) fez diversos apontamentos
assertivos sobre o assunto, afirmando que os significantes se localizam fora do
registro das estruturas neuróticas e são relativos ao real, o que nos mostra a diferença
entre o fenômeno psicossomático da conversão histérica: o fenômeno psicossomático
provoca uma lesão, e quando essa lesão puder ser revertida isso não ocorre
imediatamente, como ocorre na conversão histérica, onde a lesão pode desaparecer
instantaneamente através de uma interpretação.
Outra colocação de Lacan (1964/1985 apud GUIR,1988) é que, nos fenômenos
psicossomáticos, alguns significantes ficariam bloqueados, não conseguindo se unir
a outros significantes “há uma espécie de bloqueio, de congelamento do significante
no corpo do sujeito, um curto-circuito que será responsável pelas manifestações
lesionais”.
Por fim, para melhor compreensão dos fenômenos psicossomáticos, Lacan
(1964/1985 apud GUIR,1988), relembra o experimento de Pavlov com um cão. O
animal não tem nenhum entendimento sobre o desejo do cientista, responde os
estímulos através de uma necessidade fisiológica (alimentar neste caso). Outrossim,
poderia-se dizer que:
[...] a certos significantes impostos ao sujeito psicossomático, este responde
dentro do domínio da necessidade, o que nos remete à situação do bebê
dependente da mãe, que não tem qualquer ideia do seu desejo e para qual
desejo e necessidade podem se confundir. (Lacan, 1964 apud GUIR, 1988)
Guir (1988), propõe que desde as entrevistas preliminares com paciente, seja
indispensável conhecer a família, a fim de localizá-lo dentro desta família e assim
constatar os traços de identificação, e caso seja possível, obter dados como nomes,
datas de nascimento e morte de parentes próximos, pois disto surge um segredo
34
familiar, e isso pode levar muito tempo e estar frente a frente com o paciente neste
momento é importante.
Através da história do paciente, Guir (1988) afirma ser possível elucidar a
dinâmica e os significantes singulares presentes nos fenômenos psicossomáticos,
onde através da fala do sujeito observou-se certas características dos fenômenos,
numeradas abaixo:
1. Surgem, mobilizam-se e somem em virtude de certos acontecimentos e
datas peculiares, podendo causar uma indução ou causalidade
significante, distinguindo-se de uma lesão meramente orgânica, que
não é objeto de desta motivação. Portanto, já se pode dizer, a partir
destas primeiras constatações, que os fenômenos psicossomáticos
diferenciam-se das doenças orgânicas.
2. Os fenômenos psicossomáticos podem ser incitados em animais
(domesticados ou selvagens ao serem capturados) que entram em
contato com a linguagem humana. Eles respondem aos estímulos
devido a função fisiológica, puramente da ordem da necessidade. Isso
demonstra “a potência desordenadora dessa linguagem, em sua
essência de equivocidade” (GUIR, 1988, p.23).
3. Inferiores as construções neuróticas, tais fenômenos não têm nada
especifico no que tange a neurose, a psicose e a perversão, já que todo
sujeito independente de sua estrutura pode manifestar lesões
psicossomáticas. Apesar disso, não seria uma estrutura específica
como as ditas acima, tendo em vista que não há “sujeito
psicossomático”.
O autor pontua ainda, que os fenômenos psicossomáticos são (em sua
causalidade significante) elaborados através de uma ótica: são manifestações no
simbólico, que seriam:
35
Ruptura especifica da estrutura do nome próprio; significantes relativos a
datas que constituem uma cifra ancorada no corpo [...] Solução encontrada
para um defeito de filiação simbólica, esses fenômenos, que se inscrevem
como signos bizarros sobre o corpo, são tomados como parte integrante da
textura do sujeito, constituindo um nó de inércia dialética. (GUIR, 1988, p.24)
Outro ponto que se faz necessário discorrer, é sobre a dor. A dor, para
medicina, é um sinal do corpo que algo em si não está em seu pleno funcionamento.
Para Barreto (1995, p. 19) “ A dor é a melancolia do organismo, um chorar silencioso
do corpo, resultado da incidência do real da separação”.
Freud (1930/2010, p.21) assinalou o corpo como uma das três fontes de
sofrimento humano: “o próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode
sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência”. Ferreira & CastroArantes (2014), ressaltam que, frente ao câncer, o sujeito se encontra com um corpo
que sofre dores, advertindo com isso suas limitações, fragilidades e finitude. Nessas
circunstâncias, vê-se que dor e sofrimento provenientes da incursão dos
procedimentos médicos, noticiam o sujeito de seu corpo. A dor física recorda o sujeito
da existência de seu corpo, ao quebrar seu silêncio.
Segundo Ferreira & Castro-Arantes (2014), nas patologias orgânicas, o
sofrimento oriundo do corpo pode fazer com que o sujeito se recolha. Desse modo,
diante da dor, o Eu não se interessa por nada além de seu mal-estar. Em função de
um esvaziamento da libido objetal, a libido volta para o Eu, o mundo deixa de ter graça,
o excesso de pulsão faz com que o sujeito viva para seu adoecimento.
Juan D. Nasio, em sua obra A dor de Amar, comenta que tanto Freud quanto
Lacan não aprofundaram estudos sobre o tema da dor e pontua que tanto a dor física
quanto a dor psíquica, “é sempre um fenômeno de limite [...] seja o limite impreciso
entre o corpo e a psique, seja entre o Eu e outro, ou principalmente, entre o
funcionamento bem regulado do psiquismo e o seu desregramento” (NASIO, 2007,
p.22).
A psicanálise não diferencia a dor psíquica da dor física, assim como não há
distinção entre a emoção típica da dor psíquica e a emoção típica da dor física, já que
a dor “é um fenômeno misto que surge no limite entre corpo e psique” (NASIO, 2007,
p.22). Ao se estudar sobre dor corporal, excluindo-se os recursos específicos
36
neurobiológicos, a emoção da dor se expressa basicamente por um desequilíbrio
psíquico.
Entretanto, vamos nos ater a dor psíquica, que Nasio (2007, p.20) chama de
“dor de separação [...] quando a separação é a erradicação e perda de um objeto ao
qual estamos tão intimamente ligados”. Essa proposição de Nasio nos leva a pensar
em quantas dores a mulher com câncer de mama passa desde o diagnóstico ao fim
de seu tratamento, uma vez que várias perdas se colocam ao longo de toda sua
travessia pela doença.
Nasio (2007) posiciona a dor psíquica em três categorias de dor: Situa a dor
psíquica como um afeto difícil de ser assimilado pelo pensamento, desviando-se de
imediato. É uma dor que permeia a vida de todos, como se o amadurecimento se
desse através da passagem por essas dores psíquicas; afeto último antes de algo
como a psicose, como a loucura, como um afeto-limite.
A segunda categoria da dor psíquica é dor enquanto sintoma, já que
representa um conflito, de um modo geral. Na terceira categoria proposta, o autor
comenta a dor como objeto do prazer perverso, sádico ou masoquista, e objetivo no
que tange a dor como objeto a ser estudado, por isso não diferencia objeto e objetivo
do prazer perverso, pois como se sabe a dor está no cerne da busca de prazer do
perverso sádico e masoquista.
Nasio (2007, p.31) afirma ainda que a dor psíquica é a dor de amar: “como
afeto que resulta da ruptura brutal do laço que nos liga ao ser ou à coisa amados” ou
seja, quando há perda do ser amado ou quando há perda da integridade física, a qual
explica:
Gostamos do nosso corpo, como o outro mais amado. Ser amputado de uma
perna causa a mesma dor atroz interior que perder o ser mais caro. Essa
perda exige um verdadeiro trabalho de luto, que nos ensinará a amar o novo
corpo desprovido de perna. A lesão que provoca a dor corporal se situa no
nível da amputação, mas a lesão que causa a dor psíquica, se situa em três
planos diferentes, semelhantes aos que definem a perda do ser amado: o da
sensibilidade (a perna é uma parte do meu todo sensível); o do imaginário (a
imagem da ausência da perna muda a imagem do meu corpo); e o do
simbólico (a ordem psíquica perde uma das suas maiores referencias, que é
a integridade do corpo). (NASIO, 2007, p. 13).
37
Volich (2016, p.264) sublinha a dificuldade que é separar, dor e sofrimento, dor
física e dor moral, do ponto de vista da singularidade do sujeito, já que não coincide
com a experiência do sujeito que está em sofrimento, diminuindo o entendimento
dessa vivência. Qualquer dor, mesmo advinda de uma lesão orgânica, reporta o
sujeito as vivencias mais arcaicas de desemparo, do mesmo modo que,
independemente de existir ou não uma lesão, “[...] todo sofrimento psíquico (como a
angústia e depressão, por exemplo) é também acompanhado por sensações
corporais, difusas ou localizadas”.
Diante disso, se faz necessário o entendimento sobre natureza e função das
dinâmicas relativas à dor e ao sofrimento na vida do sujeito, desde a perspectiva de
seu desenvolvimento, levando em conta suas questões metapsicológicas e
psicossomáticas, assim como as circunstâncias de representabilidade dessa vivencia
para o próprio sujeito e para aqueles com o qual convive, assinala Volich (2016).
3.3 Imagem corporal
A patologia não devasta somente a carne, mas também a imagem especular.
Essa vestimenta imaginária, construída através dos anos e das experiências vividas
se distorce e o sujeito precisa se reconhecer no que vê, ainda que não pareça ser ele,
o que remete ao Estádio do Espelho, conceito desenvolvido por Jacques Lacan.
O estádio do espelho é, para Lacan, o momento inaugural de constituição do
eu, no qual o infans, aquele que ainda não fala, prefigura uma totalidade
corporal por meio da percepção da própria imagem no espelho, percepção
que é acompanhada do assentimento do outro que a reconhece como
verdadeira. (COUTINHO JORGE, 2005, p.45)
Mais do que uma fase constituinte da vida da criança, o estádio do espelho é
um momento constitucional que perpassa toda vida do sujeito. Esse momento de
constituição do Eu, Lacan conceituou a partir da leitura que fez acerca dos
movimentos inerentes do narcisismo primário.
38
O “estádio do espelho” ordena-se essencialmente a partir de uma experiência
de identificação fundamental, durante a qual a criança faz a conquista da
imagem de seu próprio corpo. A identificação primordial da criança com esta
imagem irá promover a estruturação do “Eu”, terminando com essa vivência
psíquica singular que Lacan designa como fantasma do corpo esfacelado. De
fato, antes do estádio do espelho, a criança não experimenta inicialmente seu
corpo como uma totalidade unificada, mas como alguma coisa dispersa.
(DOR, 1989 p. 79).
A nomenclatura estádio do espelho, não se atribui a uma experiência real da
criança diante do objeto espelho. O que ela designa é o modelo de relação da
criança com seu semelhante “[...] através da qual ela constitui uma demarcação de
totalidade do seu corpo. Essa experiência pode-se dar tanto em face de um espelho
como em face de uma outra pessoa” (GARCIA-ROSA, 2009, p.212).
Essa experiência também diz respeito a nosso atrelamento ao outro. Os
espelhos – os outros – se alteram ao longo da vida. O outro é nosso espelho e nossa
bússola, nos diz que quem somos e para onde vamos,
No plano imaginário, [...], entre o sujeito e o outro, só existe, a princípio, uma
fronteira frágil, uma fronteira ambígua, no sentido de que é transponível. A
relação narcísica está aberta, com efeito, a um transitivismo permanente.
(LACAN, 1957-1958/1999, p.370)
A vivência de estar com pessoas com as quais as experiências as sejam
semelhantes, que viveram situações tão dolorosas quanto o indivíduo experienciou, é
de suma importância para um sujeito frente ao câncer de mama. No Grupo Renascer5,
as mulheres que fazem parte do grupo possivelmente conseguem, através da
interação umas com as outras, das trocas de experiências entre si, refazer essa
vestimenta imaginária que está fragilizada ou destruída pelo câncer de mama.
A identificação com outras mulheres, que passaram pelos mais diversos tons
de sofrimento, assemelha-se a revivência do estádio do espelho superado durante a
infância, já que o câncer de mama tem como efeito a alteração da imagem corporal
da mulher, seja através da alopecia, através da perda de parte/totalidade de um ou
dos dois seios, alterando tanto seu esquema corporal quanto sua imagem do corpo.
5
Grupo de mulheres com câncer de mama do Hospital de Caridade de Ijuí.
39
A identificação é compreendida às vezes como um fenômeno de imitação
imaginaria que só diz respeito à aparência. Entretanto, quando alguém se
identifica com uma das pessoas a seu redor, contenta-se em tomar
emprestado dela uma de suas características. O aluno vai assumir as
maneiras de seu professor; o amigo, o cacoete de seu amigo; a criança a
mímica paterna etc. Assim, a identificação é em primeiro lugar, uma operação
simbólica, tanto naquilo que a motiva – aquele com quem nos identificamos
– quanto no seu mecanismo - a parte pelo todo. (POMMIER, 1991, p. 31).
Nessa perspectiva, Ferreira & Castro-Arantes pontuam:
[...] a imagem corporal, com a qual o sujeito se identifica, sofre abalos ao
longo da vida, por se tratar de uma vestimenta que não serve tão
perfeitamente ao sujeito, como uma roupa que não garantindo uma veste
perfeita convoca a novos ajustes. Dados certos afrouxamentos da imagem
na operação de reconhecimento próprio, a imagem corporal exige do sujeito
reconstruções frequentes, instaurando ai uma ferida narcísica, ou seja, na
operação de investimento libidinal em sua imagem corporal idealizada. (2014,
p.47)
Algo na constituição do sujeito, nisso onde ele se reconhece, se sente seguro
se constrói em ao redor de uma aparência ilusória, enganadora, já que essa unicidade
corporal onde o Eu se reconhece é permanente:
“[...] há uma fluidez nos limites do corpo, deste corpo que molda uma
identidade. Isso por que se o sujeito não pode prescindir da identificação em
uma imagem, ela sozinha não dá conta do que ele é, ou seja, há algo para
além da imagem em o sujeito pode se estruturar. (FERREIRA & CASTROARANTES, 2014, p.47)
Françoise Dolto, psicanalista francesa reconhecida pelo trabalho clínico com
crianças, em sua obra A imagem Inconsciente do Corpo, diferencia os termos
esquema corporal e imagem do corpo.
ROCHA, I.P. utiliza a metáfora da arvore para explicar essa diferença:
40
[...] Ao considerá-lo uma árvore (o corpo), o esquema corporal seria entendido
como as raízes, o tronco e os ramos, pois esses elementos representam a
estrutura que compreende a verticalidade, a lateralidade, a
biodimensionalidade ou a sua trimendisionalidade. A imagem corporal é
representada, na metáfora da árvore, pelas folhagens, frutos, roupagem,
aludindo à ideia de que o corpo é resignificado pela sua imagem, formado
num processo dinâmico e de múltiplas influências sócio-histórico-culturais,
mas que busca a sua âncora na “estrutura” do esquema corporal. (ROCHA,
I.P., 2009, p.4)
Dolto (2004) aponta o esquema corporal, inicialmente, igual para todos os
indivíduos (em semelhança de idade) humanos. Já a imagem do corpo, é singular,
relacionada com sujeito e suas vivências, sendo um compêndio vivente das
experiências emocionais.
A imagem do corpo é a cada momento, memória inconsciente de todo o vivido
relacional e, ao mesmo tempo, ela é atual, viva, em situação dinâmica,
simultaneamente narcísica e inter-relacional: camuflável ou atualizável na
relação aqui agora. (DOLTO, 2004, p. 15)
Dolto (2004) sugere que a imagem do corpo, além de sempre inconsciente é
sustentada pelo esquema corporal e é através disso que nos comunicamos com outro,
já que a imagem do corpo ampara o narcisismo, e é nela que o tempo vai de encontro
com o espaço, onde o passado inconsciente ecoa na relação corrente. No presente,
sempre há uma repetição de algo de uma vivência passada. “A libido, é mobilizada na
relação atual, mas pode-se encontra-se ali, desperta, re-suscitada, uma imagem
relacional arcaica, que permanecera reprimida e que retorna, então”. (DOLTO, 2004,
p. 15).
“O câncer é uma gravidez demoníaca”, comenta Susan Sontag, em seu livro A
doença como metáfora (2007, p. 19). Esse comentário da autora traduz parte do
sentimento das mulheres com câncer, que gestam em si, algo maligno. Tanto um ser
humano, quanto um câncer, são gerados a partir de uma única célula, que se divide e
se multiplica. No ser humano, na construção do aparato biológico essas células
permitem a construção de uma vida. No câncer, essas células geram um tumor
maligno que pode levar à morte.
41
O câncer de mama, se dá, justamente no órgão provedor da mulher, onde de
uma maneira geral, somos alimentados física e psiquicamente, local que após o
nascimento somos acolhidos, um dos símbolos da maternidade. Pommier (1991, p.31)
ressalta que “O ser do feminino recebeu desde sempre sua definição canônica na
maternidade”
Torna-se mãe aparenta responder as dúvidas de identidade feminina, ainda
que tais soluções tragam consigo angústia, quando se realizam, sublinha Pommier
(1991). Entretanto, o feminino está para além da maternidade, ainda que a sociedade,
por séculos tenha limitado seu valor apenas para procriação, a fim de que a espécie
humana se perpetuasse.
Numa época onde, a mulher ainda tinha seu valor reduzido somente a
reprodução e cuidados do lar, Freud adentrou na psicanálise ao escutar aquelas
mulheres, pois “foi o mistério dos sintomas sem base orgânica, que provocavam
simultaneamente dor e prazer, que levou Freud a se aventurar mais intensamente na
investigação dos caminhos da alma” (MAURANO, 2014, p.11).
Todavia, ao teorizar sobre a sexualidade infantil e o complexo de édipo, Freud
usou como referência o homem e não a mulher, sempre falou da menina a partir do
menino. Revistando a obra freudiana, nota-se que apenas dois de seus textos são
nomeados com temática do feminino são eles “Sexualidade Feminina” (1931) e
“Feminilidade” (1932).
Em seu texto Feminilidade, Freud (1932/2006) comenta que “Através da
história, as pessoas têm quebrado a cabeça com o enigma da natureza da
feminilidade”. Se no início de sua obra, Freud afirmara que o feminino estava
associado a passividade, neste texto ele altera essa consideração:
Até mesmo na esfera da vida sexual humana, os senhores logo verão como
é inadequado fazer o comportamento masculino coincidir com atividade e o
feminino com passividade. Uma mãe é ativa para com seu filho, em todos os
sentidos; a própria amamentação também pode ser descrita como a mãe
dando o seio ao bebê, ou ela sendo sugada por este. Quanto mais se
afastarem da estreita esfera sexual, mais óbvio se lhes tornará o “erro de
superposição”. As mulheres podem demonstrar grande atividade, em
diversos sentidos; os homens não conseguem viver em companhia dos de
sua própria espécie, a menos que desenvolvam uma grande dose de
adaptabilidade passiva (FREUD, 1932/2006, p.114).
42
Mais à frente, Freud (1932/2006) aborda que a feminilidade é um enigma e que
a psicanalise é incapaz de solucioná-lo, discorrendo que seria uma tarefa muito difícil
descrever o que é uma mulher, mas que a psicanálise se esforça para questionar
como a mulher se desenvolve desde criança, e para explicar isso, em linhas gerais,
diz que natureza feminina é definida por sua função sexual, enfatizando que essa
influência muito se estende e que masculino e feminino não se limitam a anatomia, e
como se constitui como tal é algo desconhecido.
Ao final do texto, Freud (1932/2006, p.134) diz que este está “incompleto e
fragmentado” e que não menospreza, no entanto, “o fato de que uma mulher possa
ser uma criatura humana também em outros aspectos”. Freud não relevou a influência
que o social desempenha no desenvolver psíquico e sexual feminino, o que é muito
relevante para se entender o enigma da feminilidade.
3.4 O lugar do seio na psicanálise
Uma das primeiras referências encontradas sobre o seio na obra freudiana foi
em um texto de 1892, chamado Um caso de cura pelo hipnotismo. Nele, Freud
(1892/2006) relata o caso de uma jovem mulher que se tornara incapaz de amamentar
seus filhos, e isso se repetiu com os três filhos que teve. Freud relata que,
anteriormente a primeira gravidez, a mulher teve excesso de trabalho enquanto
estudante e depressão. Toda sua impossibilidade de amamentar era acompanhada
por problemas digestivos, vômitos, dificuldades para dormir e uma profunda
depressão. Após algumas sessões de hipnose, a paciente conseguiu amamentar.
Sobre este caso, Volich comenta:
43
Apesar de ter percebido a relação entre os problemas de amamentação, as
experiências infantis de sua paciente com sua mãe no terreno da
alimentação, as experiências infantis de sua paciente com sua mãe no
terreno da alimentação, e a agressividade inconsciente dirigida contra esta,
Freud analisa tais manifestações a partir de seu caráter sintomático. Ele
considera como uma perturbação de uma função orgânica segundo modelo
clássico das manifestações histéricas. Tendo tratado “com sucesso” sua
paciente pela hipnose, não deu importância aos seios enquanto órgãos de
expressão dos sintomas, nem à relação entre os problemas de amamentação
e os problemas digestivos, os vômitos principalmente, e tampouco à
depressão de sua paciente. (VOLICH, 1995, p.56)
Gradualmente, o seio surge nos escritos freudianos, principalmente como
objeto “ da experiência primitiva de gratificação, através de sua função na satisfação
da fome do bebê – uma de suas necessidades mais primordiais e urgentes. Uma
experiência paradigmática, estruturante da experiência alucinatória e da erogenidade”
pontua Volich (1995, p.56) e assim segue em outros textos, onde Freud enfatiza a
relação entre o bebê e o seio.
Tal relação se estabelece no cerne das elaborações freudianas, o que leva a
Freud a conceber:
[...] de forma rudimentar o estatuto das relações entre o sujeito e seus objetos
de desejo, bem com o da prova de realidade, duas de suas mais importantes
concepções. O seio, objeto originário da experiência de satisfação, é o
protótipo do objeto perdido. A prova de realidade tem como objetivo a busca
deste objeto, o que leva Freud a defender que toda descoberta de um objeto
de satisfação nada mais é do que uma redescoberta. No final de sua vida,
Freud considera a perda do seio materno como a vivência central que permite
a distinção entre a identificação e o investimento do objeto. (VOLICH, 1995,
p.57)
Outro apontamento de Volich (1995) é que a satisfação alcançada no seio
materno, através da amamentação é a origem de todos os prazeres do sujeito.
Entretanto, não é considerado sua função na dinâmica psíquica da mãe. Apesar de
afirmar que a criança substitui um objeto sexual plenamente, não observa a função do
seio enquanto instrumento primeiro de dominação materna sobre a criança, sobre isso
Volich discorre:
44
Dar o seio e cuidar de seu filho são também modalidades do controle sobre
seu objeto de desejo, bem como expressões doo poder materno. Mesmo se
com o tempo Freud incluiu a representação do seio materno, na equação
simbólica seio=fezes=pênis=bebê, ele nunca chegou a considerar o seio
como órgão que pudesse representar a potência materna ou mesmo
feminina. (VOLICH,1995, p.60)
Os seios são órgãos nos quais a função erógena e relacional é indiscutível, e
estão muito vinculados com a imagem que a mulher tem de si: a auto-imagem
feminina, real e fantasmática comenta Volich (1995). Isso não era desconhecido por
Freud, já que em seu texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), ele
aponta o seio como sendo uma zona erógena. Todavia, na extensão de sua obra e
particularmente, no que diz sobre a feminilidade “esta perspectiva fundamental foi
quase sempre negligenciada” (VOLICH, 1995, p.57).
Freud expressou, em seus escritos, sua dificuldade ao escrever sobre a
feminilidade, e sobre isso Volich sublinha:
[...]em diferentes momentos, qualificou-a (a mulher) de “pouco acessível”,
“continente negro”, descrevendo também seis conhecimentos neste campo
como “lacunares” ou “insuficientes”. Filho de sua época (também de seu
gênero...), Freud se deixou levar muitas vezes por formulações controvertidas
sobre a natureza e o desenvolvimento femininos, formulações que oscilam às
vezes entre a ingenuidade, o preconceito, e mesmo a imprecisão.
(VOLICH,1995, p. 57-58)
Portanto, é neste cenário que se coloca o silêncio de Freud no que tange o
papel do seio na constituição da sexualidade e identidade feminina, destaca Volich
(1995).
Se o seio tem toda essa importância no início e decorrer da vida psíquica do
sujeito, por que nenhum (a) psicanalista deu ao seio um lugar de destaque em outras
áreas da feminilidade, para além do aleitamento?
O seio aparece em nossas palavras, quando queremos dizer que é algo é o
centro de alguma coisa - pode-se substituir ‘centro’ por ‘seio’. Aparece como destaque
em algumas culturas, como por exemplo a americana, onde seios grandes são
referenciais para a mulher. Aqui em nosso país também é possível destacar isso, pois
embora nossa cultura aponte o quadril como referência, o número de mulheres que
45
fazem uso de silicone a fim de ressaltar os seios é crescente há muitas décadas. Outro
ponto que é possível sublinhar, é que a mulher ao mudar sua posição sexual, tem
como atitude primeira ocultar e ou retirar os seios.
Volich (1995), versa que as resoluções freudianas não apontaram os seios
como um instrumento singular do exercício do desejo da mulher, eles não são
ponderados “como uma fonte pulsional em busca de seus próprios objetos: uma boca,
uma mão, um olhar”. Lanouzière apud VOLICH (1995, p. 62)
As observações do cotidiano, bem como a clínica psicanalítica, apontam que o
não olhar de Freud para a função fantasmática dos seios na constituição feminina não
se justifica, na medida em que, um prognóstico ruim (potencial ou real), as patologias
mamarias e os riscos oncológicos da mama salientam em particular “a importância
histórica, relacional, imaginária e libidinal destes órgãos no agenciamento das
vivências das mulheres de sua feminilidade” VOLICH (1995, p. 63).
Uma pesquisa clínica voltada para analisar as repercussões da incidência das
patologias mamárias, levou Volich (1995, p.56) a desenvolver um trabalho no qual
observou as reações das mulheres frente “à patologia real da mama, ao risco
oncológico subjacente à existência de uma incidência familiar da mesma, ou ainda ao
fantasma de tais eventos”. Esses eventos são diferentes e característicos de qualquer
risco que ameace a integridade corporal feminina, fomentam alterações marcantes
nas dinâmicas relacionais e psíquicas da mulher. Acrescenta também, que “Toda
ameaça à integridade dos seios é ameaça às referências identificatórias” (VOLICH,
1995, p.64)
Observou neste trabalho que, as patologias da mama e todos os riscos, são
tidas como fator ameaçador a estadia na vida adulta, aparentando desse modo o
perigo de regressar há um tempo onde foram privadas deste símbolo. Esses
fantasmas surgem na mulher, geralmente, ao sentirem-se inseguras ou incapazes,
gerando uma maior dependência as pessoas em sua volta, assinala Volich (1995).
Os efeitos das patologias mamarias também recaem sobre as representações
ou experiências de maternidade. Estreitamente atribuída a idade da mulher, destaca
o seio como um elemento fundamental na relação com os filhos, assim como as
recordações atribuídas a tais experiências. Para aquelas que consideravam ainda
46
uma nova gestação, as ameaças reais ou potenciais aos seios, foram vividas como
um risco à sua capacidade materna e, a manifestação deste fantasma se dava através
do medo de não poderem amamentar os filhos que gostariam de ter.
As contribuições de Volich (1995), que ao sublinhar a singularidade dos seios,
como alicerce real e fantasmático de uma parte fundamental da identidade feminina e
de seu destino, demonstra que desde os primórdios da infância, as vivencias
femininas são definitivamente distintas das masculinas. Considerar e compreender
essas especifidades, é crucial para uma escuta sem preconceitos, tornando possível,
especialmente, a compreensão dos conflitos e angústias ocasionados pelo câncer de
mama, bem como as patologias mamarias.
47
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo teve por finalidade traçar algumas considerações teóricas acerca
dos efeitos subjetivos que o câncer de mama provoca na mulher, efeitos esses
ocasionados tanto pela patologia quanto pelo tratamento em si. A partir disso, se fez
necessário um recorte nos escritos da medicina com o objetivo de entender o que é o
câncer, como surge e se desenvolve, para a seguir falarmos do câncer de mama em
si, e então buscar as variadas adversidades psíquicas que a mulher encontra ao lutar
por sua vida frente a esta neoplasia maligna.
O câncer nasce da mesma forma que o ser humano, a partir de uma
multiplicação de células, com a diferença de que nele o crescimento é desordenado e
essas células - malignas no caso do câncer - também buscam por vida. Dentro de si,
o sujeito afetado pelo câncer encontra um embate, onde células benignas e malignas
lutam por sobrevivência.
Em um dos atendimentos no HCI, a fala de uma das pacientes chamou atenção:
“Eu não quero ficar como as pessoas que vi aqui. Prefiro que essa doença me mate
logo a ter que viver sem um peito, tem uma mulher ali que está sem um pedaço do
rosto”. Sobre isso, pode-se refletir sobre a importância do seio para a mulher. O seio
nessa fala pode ser pensado como o centro da vida dessa mulher. Mas que centro é
esse? É o centro da sexualidade? Centro da maternagem? Viver sem esse seio é viver
sem o centro, seja ele qual for.
Surgindo no seio feminino, o câncer é avassalador. Tendo em vista os aspectos
discutidos no decorrer do trabalho, entendeu-se o porquê de ser o tipo cancerígeno
mais temido pelas mulheres. Os recortes históricos acerca do câncer de mama
mostraram a vergonha que a mulher sempre teve de ser acometida por essa doença,
buscando muitas vezes se proteger do olhar do outro.
O ditado popular diz “a prevenção é o melhor remédio”, mas apesar dos
esforços públicos pela divulgação da prevenção, o mês dedicado a isto é o mês onde
menos são realizados os exames que podem detectar a doença, e sobre isso
questionou-se a eficácia das políticas públicas e também se o medo de um possível
diagnóstico positivo seria o fator que impediria as mulheres de se prevenirem.
48
Sobre a hipótese de que a maioria das mulheres com câncer de mama, em
geral, seriam muito ligadas a seus empregos, não se permitindo aos prazeres da vida,
voltando toda sua libido para seus ofícios, isso se faz pertinente, uma vez que grande
parte destas mulheres exercem funções que demandam muita energia e dedicação:
são em sua maioria donas de casa e professoras.
Foi tecida uma conceituação do corpo, e da relação do sujeito com seu
adoecimento, a partir de uma leitura psicanalítica, com as quais compreende-se que
as alterações corporais advindas do câncer e seu tratamento, têm diversos efeitos
subjetivos.
Constatou-se a permeabilidade da imagem que o sujeito tem de si, e como os
espelhos através dos quais ele se reconhece, se alteram ao longo da vida. A mulher
ficará com a imagem distorcida? Ou conseguirá se olhar novamente no espelho e
gostar do vê? A resposta encontrada para essas perguntas depende dos recursos
subjetivos de cada mulher, do que ela fará com essa experiência de adoecer de câncer
de mama, e já que isso promoverá mudanças em diversos aspectos de sua vida, é
algo de um estatuto muito singular.
Entendeu-se que, a constituição psíquica se dá através do Outro e jamais
deixa-se de ser atrelado ao outro. Estar-se-á destinado a essa condição de
assujeitamento: deixa-se de ser assujeito da mãe para ser assujeito das vicissitudes
da vida
Viu-se que, as mulheres que fazem parte do Grupo Renascer têm a
possibilidade de reconstruir sua imagem, o próprio grupo faz semblante, devolve uma
imagem através da palavra, das trocas de experiências, começa a dar um lugar para
o momento em que aquela participante do grupo se encontra, possibilitando um
renascimento. Alinhado a isso, dependendo dos recursos psíquicos que possui, cada
mulher sairá de uma forma deste grupo.
Percebeu-se também que é de suma importância dar um outro lugar para o
seio, para além de nutridor. Freud concebeu o seio como objeto de prazer da criança,
deixando de lado a função dinâmica psíquica da mulher portadora deste seio.
Constatou-se que qualquer fator que ponha em risco a integridade do seio, representa
uma ameaça as referências identificatórias da mulher. Exemplo disso, em tempos
49
atuais, os seios são referência para a mulher: quando deseja realçar sua feminilidade,
os expõe e/ou os aumenta. Ao mudar sua posição sexual, os esconde ou os retira.
Por fim, considerou-se que este trabalho contribui de forma significativa para
um trabalho clínico com mulheres afetadas pelo câncer mamário, tendo em vista os
aspectos discutidos ao longo do mesmo. Enquanto psicólogos, cede-se a escuta,
acolhe-se esse sujeito que tanto sofre diante de uma doença que causa vasto
sofrimento, portanto, entender e considerar as dinâmicas que envolvem a identidade
feminina se faz pertinente, e vendo o seio de outros ângulos para a mulher, favorece
uma escuta mais humana, sem preconceitos, gerando uma maior compreensão
acerca das angústias e conflitos promovidos pelo câncer de mama.
Dar esse trabalho como finalizado, não significa encerrar este percurso: ao
longo da escrita, nasceram questionamentos diversos que apenas um trabalho mais
aprofundado poderia responder.
50
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