Reflexões sobre a crise geral do capitalismo contemporâneo Charles Chelala 1 Introdução O presente artigo se origina na palestra proferida em janeiro de 2009 para os participantes amapaenses do Fórum Social Mundial realizado em Belém-PA. Duas importantes ressalvas devem ser feitas antes de se adentrar ao assunto: a primeira diz respeito ao formato, que não se propõe a aprofundar os temas tratados, mas tão somente suscitar pontos de reflexão sobre a crise mundial contemporânea do capitalismo global. A segunda ressalva relembra que um processo de crise sistêmica como o atual, por mais que guarde determinadas semelhanças com momentos anteriores, é repleto de singularidades que só estarão mais claras e consolidadas a posteriori. Tal ponto se justifica até porque não se esgotaram todos os desdobramentos possíveis da presente crise. A estrutura do artigo é apresentada com a seguinte subdivisão: i) a origem das crises no capitalismo; ii) a crise geral do capitalismo contemporâneo; iii) impactos da crise (global, Brasil e Amapá) e iv) reflexões sobre a crise. 1. A origem das crises no capitalismo O momento atual reafirma a convicção de que as crises são inerentes ao capitalismo, sistema que se desenvolve em ciclos de expansão, auge, crack¸ recessão, eventual depressão e retomada. Isto não é novidade, pelo contrário, a literatura econômica é rica em estudos sobre o caráter cíclico da economia capitalista. Pode-se citar pensadores das mais diversas matizes ideológicas que se debruçaram sobre o tema, como Robert Malthus, David Ricardo, Karl Kautski, Otto Bauer, Rosa Luxemburgo, Rudolf Hilferding, Vladimir Lênin, Joseph Schumpeter, entre outros. Entretanto, o “estado da arte” sobre a crise econômica encontra-se em Karl Marx e em John Keynes, antagônicos ideologicamente, com linguagem e 1 Economista, mestre em desenvolvimento regional. [email protected]. 1 elementos de análise distintos, objetivos díspares, mas que chegaram a conclusões muito parecidas. Como Marx foi pioneiro, é razoável supor que Keynes se apropriou da construção teórica marxista, sistematizando-o à lógica de sua ideologia burguesa. Em um brevíssimo resumo, pode-se afirmar que ambos concluem que a essência das crises cíclicas está localizada na disparidade entre a produção e o consumo. Para Marx, essa diferença ocorre porque a produção capitalista só é racional na esfera privada, com a busca da reprodução ampliada de capital, ou seja, cada empresário atrás de seu lucro individualmente. Em escala global, no entanto, a produção é anárquica, ou seja, não pode ser planejada para atender plenamente ao consumo, que depende de outras variáveis, como renda, inflação, níveis de emprego, etc. Esta contradição produção-consumo é insolúvel nos marcos do capitalismo, mas se mantém em níveis de “normalidade” quando a demanda é superior à oferta. Entretanto, a tendência é que, em dado momento, a oferta venha a superar a demanda instalando-se, assim, a crise de superprodução. Adicione-se como contribuição marxista à compreensão das crises capitalistas, a teoria da “tendência histórica à redução da taxa de lucro”, fundamentada na alteração da composição orgânica de capital em desfavor do capital variável2. Essa alteração é necessária no processo de competição entre as empresas, na qual se aprofundam os níveis de exploração relativa da maisvalia, aumentando o montante global do lucro, mas reduzindo sua taxa percentual e também diminuindo a massa salarial no total da renda nacional, com impacto evidente no consumo. Assim, ainda que existam várias formas de se contrabalançar essa tendência de queda da taxa de lucro, a crise econômica surge como necessária para estourar as “bolhas” e retomar o processo de reprodução ampliada. 2 Marx considera “capital variável” a parte do capital responsável pela geração do excedente de valor no processo produtivo (mais-valia), ou seja, a “mercadoria força de trabalho”. A composição orgânica do capital vem a ser a relação existente entre o capital variável e o capital constante (máquinas e equipamentos), que somente transfere seus custos para o valor final da mercadoria. 2 John Maynard Keynes, economista britânico, viveu a grande depressão dos anos 30 do século passado e, mantendo intocado o escopo geral da teoria econômica vigente, conseguiu romper com a noção de que as forças de mercado agindo livremente conduziriam ao equilíbrio e à melhoria geral do bem estar. Pelo contrário, o laissez-faire traria inevitavelmente o desequilíbrio ou o equilíbrio sem o pleno emprego. Isso porque, segundo Keynes, o aumento da renda não se traduz em aumento proporcionalmente igual no consumo, uma vez que a propensão marginal a consumir3 é decrescente conforme se aumenta a renda. Em outras palavras, o ritmo de aumento da produção (que gera renda) é mais intenso que o ritmo de aumento do consumo. Desta maneira, haveria descompasso da demanda esperada e a demanda efetiva. A solução para a recomposição da demanda seria o gasto público, mesmo o mais improdutivo deles, retratado com ironia pelo economista britânico: Se o tesouro se dispusesse a encher garrafas usadas de papelmoeda, as enterrasse a uma profundidade conveniente em minas de carvão abandonadas, que logo fossem cobertas com o lixo da cidade e deixasse à iniciativa privada – de acordo com os bem experimentados princípios do laissez-faire a tarefa de desenterrar novamente as notas (...) o desemprego poderia desaparecer. (...) Claro está que seria mais ajuizado construir casas ou algo semelhante, mas, se tanto se opõem dificuldades políticas e práticas, o recurso citado não deixa de ser preferível a nada (Keynes, 1988, p.96). Se Keynes via a solução intervencionista para as crises, Marx não compartilhava do mesmo otimismo, avaliando que as complexas e insanáveis contradições da economia capitalista sempre conduziriam processos críticos recorrentes, cada vez maiores e mais profundos, com todas as ações contrárias, inclusive as do Estado, não passando de medidas apenas paliativas e procrastinatórias antes da superação do próprio modo de produção. Como houve um longo período de bonança relativa4 desde as últimas décadas do século passado até meados de 2007, pulularam teses defendendo que as crises eram coisa do passado e que o sistema já dispunha de 3 Parcela percentual da renda destinada ao consumo, que é bem menor entre os mais ricos do que entre os mais pobres, uma vez que a renda destes é totalmente empregada em consumo, nada sobrando para poupança. 4 Relativa porque nem mesmo entre os países ricos a bonança foi generalizada, basta ver o exemplo do Japão em longa e duradoura recessão, isso para não falar das crises asiática, russa, mexicana, argentina, brasileira, etc, ocorridas no período. 3 sofisticados mecanismos de minimização e contenção desses desequilíbrios. Ou seja, o novo capitalismo neoliberal e globalizado teria conseguido recriar o sistema sem riscos de grandes depressões, apenas com breves e passageiras turbulências, majoritariamente nos países dependentes periféricos. Mas a história tinha outros planos... 2. A crise geral do capitalismo contemporâneo Retomando a ressalva de que é mais fácil compreender um processo como o atual depois de completadas suas principais manifestações, neste subitem tratar-se-á de descrever as causas particulares da atual crise do capitalismo. É importante renegar, de pronto, que o fenômeno se restringe apenas a um estouro da bolha de financiamento subprimes5, ou que a grave situação atual teria sido decorrente de uma “barbeiragem” do Federal Reserve em 15 de setembro de 2008, quando se recusou a socorrer o centenário Lehmann Brothers, como já havia feito com a AIG e com o Citigroup. Por mais que os fatos particulares acima tenham contribuído e possam até serem considerados estopins, a crise já vinha se gestando há bastante tempo. O capitalismo sempre empreende “fugas para frente” quando os meios para superar suas crises é o combustível para novas e maiores rupturas posteriores, conforme observa Marx em trecho desatacado por François Chesnay: A produção capitalista aspira constantemente a superar estes limites imanentes a ela, mas só pode superá-los recorrendo a meios que voltam a levantar diante dela estes mesmo limites, e ainda com mais força. (Marx, 1973 apud Chesnay, 2008). Em meados da década de 1970 as crises do petróleo, da inflação e dos déficits públicos colocaram em xeque o modelo intervencionista keynesiano, que havia propiciado mais de três décadas de forte expansão econômica. A retomada da expansão foi fundamentada em um conjunto de fatores, entre os quais se destacam: i) adoção das medidas de redução do Estado e de hegemonia do mercado, com as privatizações, liberalização do comércio internacional, livre fluxo de capitais, além da desregulamentação do Estado de 5 Os notórios clientes de duvidosa capacidade de honrar seus débitos nos EUA, para os quais foram empurradas hipotecas imobiliárias que inflaram a bolha do setor. 4 bem-estar6; ii) ampliação da fração financeira do capital, que se elevou a montantes dezenas de vezes superior à movimentação do capital produtivo, criando uma fabulosa riqueza fundamentada na especulação; e iii) ampliação geográfica da esfera de influência e do espaço de expansão capitalista com a anexação do ex-Estados socialistas, sobretudo com a inserção da China na lógica de expansão do capital. Com esta sistematização, evidencia-se que os dois primeiros fatores: o “neoliberalismo” e a “financeirização do capital”, transformaram-se de soluções (1970) em causadores da crise geral do capitalismo atual. Apenas como exemplos mais evidentes, pode-se citar o efeito da desregulamentação neoliberal do sistema bancário e a bolha de riqueza imobiliária fictícia norteamericana. Quanto à terceira forma de superação da crise anterior, ressalte-se que esta nova fronteira de expansão capitalista deu-se de maneira mais factual do que planejada e, a se observar pela violência dos efeitos da crise na Rússia e pelo impacto que a “freada brusca” da China está produzindo na demanda mundial, ficam evidentes os sinais de saturação do terreno livre de ampliação capitalista no ex-bloco socialista. Para não deixar de comentar qual o papel dos subprimes, é ilustrativo denominar o processo de “crise das maçãs podres”. Em síntese, havia uma “bolha” no mercado imobiliário norte-americano, ou seja, os títulos deste mercado estavam sobrevalorizados. Com o intuito de alavancar suas posições, os bancos passaram a emprestar para clientes com duvidosa capacidade de honrar seus compromissos. Para tentar reduzir os riscos desses clientes subprimes, os bancos mesclaram os seus títulos com outros de melhor qualidade, oferecendo tais produtos ao mercado com taxas atrativas de retorno. Na prática, todos sabem o que acontece quando se misturam em um mesmo cesto maçãs boas e maçãs podres. A partir do momento que se espalhou a crise de confiança no sistema financeiro, houve uma corrida para se desfazer dos títulos imobiliários, pois ninguém sabia o alcance do contágio dos 6 Modelo de Estado que garantiria aos cidadãos condições mínimas de saúde, previdência e leis trabalhistas. 5 subprimes, rompendo-se assim, o principal mecanismo de equilíbrio do sistema: a credibilidade. Esta foi a causa imediata do estouro violento da bolha. 3. Impactos da crise (global, Brasil e Amapá) Os impactos da crise repercutem de forma semelhante às ondas propagadoras que se formam ao atirar uma pedra em um riacho: os efeitos iniciais vão produzindo novos cada vez maiores em alcance e profundidade. As primeiras vítimas foram cinco das maiores instituições financeiras de Wall Street: Bearn Stearns, Goldman Sachs, Morgan Stanley, Merryll Lynch e Lehman Brothers. Se bem que os seus executivos não deixaram de embolsar generosos bônus pelos prejuízos que causaram aos aplicadores e aos que hipotecaram suas residências tendo sido delas despejados após a eclosão da crise. A destruição do capital fictício que circulava sob a forma de investimentos em ações de empresas também se constitui em um dos sintomas mais marcantes da débâcle: em outubro de 2007, o valor da somatória das ações de todas as empresas nas bolsas de todo o mundo alcançava a cifra de US$ 62,58 trilhões. Um ano depois, em novembro de 2008, este valor era de US$ 29,60 trilhões7, ou seja, “desapareceram” aproximadamente US$ 33 trilhões do mercado de ações. Entretanto, de todos os efeitos perversos de um processo de crise sistêmica do capital, o pior deles é o desemprego. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, no ano de 2009 haverá 50 milhões a mais de desempregados, com o número de pessoas sem trabalho passando de 190 para 240 milhões. O “formidável exército de reserva” localiza-se, majoritariamente, nos países periféricos e dependentes, nos quais os efeitos da falta de trabalho são muito maiores pela ausência de uma estrutura mínima de seguridade social. Por mais que também estejam havendo demissões nos países ricos, estas são minoradas pela capacidade de ação dos Estados em minimizar seus efeitos. Assim, a idéia de que o principal impacto se daria nos países que produziram o momento de hoje, no caso, “gente branca de olho azul”, é pura ingenuidade ou apenas marketing. Fonte da informação: “Valor on line”, citando o blog do economista-chefe da Liquidez Corretora, Marcelo Voss. <www.valor.com.br> acesso em 11 de novembro de 2008. 6 No Brasil, primeiramente, é interessante analisar a reação do governo, que começou dizendo que a crise não chegaria ao Brasil. Depois, passou a afirmar que o “tsunami” nos alcançaria como uma “marolinha”. Ultimamente, o tom é de que a crise é grave e precisa de atenção redobrada. É claro que crise atinge o Brasil de maneira também brutal, com demissões em massa, queda nos lucros das empresas, adiamento ou cancelamento de investimentos, queda da arrecadação tributária, redução das exportações, enfim, de diversas maneiras e em vários setores. No entanto, graças à uma década de bonança, principalmente pela conjuntura externa e pela perigosa reprimarização8 da pauta de exportação do país, além da atração de dólares para o mercado de capitais brasileiro ou para compra de empresas locais, o Brasil se encontra em situação menos desfavorável do que em outras ocasiões. Também é notório que, por não possuir uma economia tão internacionalizada9, em comparação com outros países, a queda da demanda internacional será menos sentida no Brasil. Também se diz recorrentemente que o sistema financeiro no país é mais regulado e por isso não foi atingido pelo redemoinho, pelo contrário, as instituições bancárias brasileiras obtiveram excelentes resultados em 200810. Neste caso, é importante relembrar as verdadeiras causas para o fenômeno. A origem é a necessidade de rolagem da dívida pública, o que obriga o Governo Federal a ser o grande tomador de empréstimos disponibilizados pelos bancos. Com este cliente de risco zero, somado aos elevados juros praticados e altas tarifas por serviços, conforma-se o ambiente fortemente propício à atividade bancária no Brasil. Até os nossos subprimes, não apresentam risco de calote, pois seus empréstimos são consignados em folha de pagamento. Este quadro revela uma grande distorção da economia nacional, que concentra fortemente a renda nacional no setor financeiro. 8 De 2006 para 2008, o valor em dólares da exportação brasileira de bens manufaturados cresceu 23,5%, enquanto que a exportação de produtos primários evoluiu mais que o triplo: 81,3%. (fonte SECEX/Ministério do Desenvolvimento). 9 A internacionalização da economia se mede pela relação entre a soma das exportações e importações (corrente de comércio) sobre o PIB do país. No Brasil esta relação não alcança 20%, enquanto que nos “Tigres asiáticos” aproxima-se de 80%. 10 Banco do Brasil, Itaú e Bradesco apresentaram lucros acima de US$ 3 bilhões cada, estando entre os cinco mais lucrativos das Américas, respectivamente em 3º, 4º e 5º lugares. Fonte: www.estadao.com.br/economia, acesso em 25 de março de 2009.. 7 Já em relação à economia do Amapá, dois são os impactos que preocupam: o primeiro é a queda dos preços das commodities11, o que tem efeito direto em nossas exportações, excessivamente dependentes destes produtos. O segundo advém do fato de a economia do Amapá ter na administração pública12 seu eixo dinâmico central. Para o primeiro aspecto, já se observa alguma retração em investimentos previstos para o Amapá, em especial no setor mínerosiderúrgico. Além da redução dos preços internacional destes produtos, a quebra dos bancos de investimentos e a quedas das bolsas de valores pelo mundo também influenciaram, pois os empreendimentos recém implantados no Amapá buscaram financiamento nestas instituições, que hoje em dia já não estão mais disponibilizando crédito. Quanto ao segundo aspecto, a grande participação do setor público na economia do Amapá é, simultaneamente, uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem da “economia do contracheque” revela-se na estabilidade de emprego de parcela significativa da população ocupada do Amapá, os servidores públicos. Cabe aqui esclarecer que o Amapá não ficou imune às demissões neste processo, em especial na região central do estado (Pedra Branca e Serra do Navio), bem como no sul (Laranjal e Vitória do Jari), áreas fortemente influenciadas por empreendimentos que estão sendo mais fortemente castigados pelos efeitos da crise mundial. Mas a soma da remuneração dos servidores públicos federais, estaduais e municipais no Amapá alcançou a cifra de 1,5 bilhões de reais em 2006 (dados do SIAPE e dos balanços municipais e estadual). Este montante representa 29% do PIB amapaense, percentual exponencialmente maior que média nacional, onde a soma dos salários públicos é de apenas 2% do PIB do Brasil (CHELALA, 2008). 11 Mercadorias de baixo valor agregado, homogêneas que são comercializadas em bolsas internacionais, como minérios, grãos, etc. 12 Em pesquisa para dissertação de mestrado, constatei que o Amapá é a unidade da federação na qual a magnitude do Estado na socioeconomia é a mais expressiva do país (CHELALA, 2008). 8 Assim, o principal componente da demanda local, que é a renda do funcionalismo público, cumprirá um papel crucial neste período de “vacas magras”. Pode-se argumentar que a vantagem não está assegurada, pois os governos já estão sendo afetados com a queda da arrecadação. Ocorre que a redução da receita não deverá impactar as “despesas obrigatórias de caráter continuado”, categoria na qual se enquadra o pagamento da folha de pessoal. Pela hierarquia dos gastos públicos, os cortes deverão atingir inicialmente os investimentos do governo. No campo da desvantagem, por outro lado, já está havendo queda na receita de transferências constitucionais da União para o nosso estado, em especial do FPE – Fundo de Participação dos Estados, do qual Amapá é dependente na proporção de 78% de suas receitas. A crise geral derrubou a atividade econômica redundando em menor arrecadação, mas a causa principal é a renúncia fiscal concedida pelo governo Lula ao IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados e ao Imposto de Renda, justamente os tributos que servem de base para o FPE. Segundo o Tesouro Nacional, a queda bruta de transferências para o Amapá em janeiro e fevereiro de 2009, em comparação com o mesmo período de 2008, foi de aproximadamente R$ 10 milhões. Apenas o FUNDEB cresceu no período, impedindo um resultado ainda pior, pois o FPE amargou uma queda de R$ 13 milhões, ou 5,4%. Analisados os impactos em esfera global, nacional e regional, cabe agora tecer algumas considerações. 4. Reflexões sobre a crise Para concluir, algumas breves reflexões sobre a crise, as quais serão concentradas em apenas três pontos: i) o dilema do governo Lula, ii) colapso do neoliberalismo e iii) efeitos (inconclusos) do processo. Para se analisar primeiro aspecto, é necessário voltar alguns anos. No Brasil foi implantado o “modelo liberal periférico”13 que se caracteriza por especificidades agrupadas em três blocos: i) liberalização, privatização e 13 Denominação criada pelos economistas Luiz Filgueiras e Reinaldo Gonçalves (2007) 9 desregulação; ii) subordinação e vulnerabilidade externa estrutural e iii) dominância do capital financeiro. A denominação “liberal” é atribuída em função de medidas adotadas de abertura internacional nas dimensões comercial, produtiva, tecnológica e monetário-financeira; implementação de alterações nas legislações previdenciária e tributária, reconhecidas como “reformas”; desestatização de empresas e desregulação das relações de trabalho, desmontando aparatos do Estado de bem-estar vigentes no país. Além de liberal, o modelo também é considerado por Filgueiras e Gonçalves (2007, p. 22) como periférico porque: É uma forma específica de realização da doutrina neoliberal e da sua política econômica em um país que ocupa posição subalterna no sistema econômico internacional, ou seja, um país que não tem influência na arena internacional e se caracteriza por significativa vulnerabilidade externa estrutural nas suas relações econômicas internacionais. Complementando o corolário de características do modelo é observado que a dinâmica macroeconômica orienta-se para a subordinação à predominância do capital financeiro e à lógica especulativa dos mercados de capitais. Este modelo “liberal periférico” adotou-se inicialmente no governo Collor, aprofundou-se no governo Fernando Henrique e manteve-se inalterado, segundo a avaliação dos autores citados, no governo Lula, que teria sido auxiliado por um cenário externo bem mais favorável do que o enfrentado pelo seu antecessor, facilitando sua tarefa, pois “deu novo fôlego ao modelo, legitimando-o politicamente e soldando-o mais fortemente aos interesses das diversas frações de classe participantes do bloco de poder dominante” (FILGUEIRAS; GONÇALVES, op.cit. p. 24). De fato, no plano interno, o governo Lula manteve a ortodoxia econômica originada no Plano Real e, facilitado pela elevação de preços de commodities e pela ausência de crises externas, passou a apresentar equilíbrio nas contas externas, além de dar maior ênfase às políticas sociais compensatórias. 10 Entretanto, há uma importante diferença entre o governo Lula e o de seus dois antecessores imediatos. Por mais que, no fundamental, a política econômica tenha sido mantida intacta e a orientação geral seja a mesma, no campo da ideologia o governo buscou resgatar o papel do Estado a uma parcela das funções que lhe eram atribuídas na conformação anterior, que vigorou até o início da década de 1990. Um ponto sintomático e atual desta posição ideológica pró-Estado do governo Lula, tem sido a defesa do investimento estatal em infra-estrutura para se garantir o crescimento econômico do país, cujo carro-chefe é o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Apesar do forte conteúdo eleitoreiro do PAC, há que se admitir que, pelo menos na retórica governamental, a linha política central é a de resgatar o papel do Estado como protagonista dos investimentos e como indutor do crescimento econômico. Até o momento, pouco se viu de concreto, com considerável possibilidade de permanecer apenas o conteúdo de marketing do PAC. Por isso, a marca mais evidente acerca do posicionamento do governo Lula é a sua ambigüidade quanto ao tema Estado e economia Observa-se um distúrbio bipolar no cérebro do governo, pelo qual o presidente tem tentado equilibrar-se entre a defesa do Estado, até o ponto em que esta não venha a ferir os humores do mercado e a crença das benesses da ortodoxia econômica neoliberal. Por outro lado, seu liberalismo deve ser velado, a ponto de não o confundir com os sociais democratas e de tal forma que possa manter, em parte, os aliados históricos do campo da esquerda brasileira. Esta tem sido uma tarefa da qual Lula havia conseguido, até então, cumprir com maestria. Ocorre que a época da bonança se foi e este sutil equilíbrio está fortemente ameaçado pela conjuntura externa. Enquanto os demais governos estão torrando trilhões de dólares pelo mundo afora, o Brasil ainda mantém taxas de juros altas, carga tributária elevada14, e política de superávit 14 As reduções de IPI para automóveis, construção civil e outros, aparentemente, são ínfimos diante da necessidade de debelar a crise. 11 primário15, medidas inadmissíveis para momentos em que o gasto público é o motor da recomposição da demanda. Por isso, provavelmente não haja mais condições de se manter “em cima do muro” como o fez em seis anos de mandato, e o desenrolar dos acontecimentos deverá lhe exigir uma decisão de orientação geral da política econômica do governo: expansiva ou contracionista. A segunda reflexão aborda o colapso do neoliberalismo. O neoliberalismo sustenta o retorno à crença de que a vida econômica seria regida por uma ordem natural que emerge do livre jogo das forças de mercado, a partir de decisões individuais de ofertantes e demandantes, no qual o mecanismo de ajuste é a prática de preços. Assim, estava sendo novamente delegado ao “mercado” o papel de justo alocador de recursos e distribuidor de produtos na sociedade, deslocando o Estado de qualquer participação nesta função, conforme tinha desempenhado durante a “era de ouro”. Há alguns aprimoramentos na doutrina neoliberal em comparação com o liberalismo de Smith, Ricardo e Say. Por exemplo, por mais que defenda a hegemonia do mercado, o neoliberalismo não crê em sua plena capacidade alocadora, exigindo que haja regulações estatais, em especial na política monetária, a fim de corrigir as eventuais e já conhecidas distorções, como inflação, desequilíbrio de oferta e monopolização de setores. Como já havia sido construída uma ampla base estrutural de intervenção do Estado, tornou-se necessário “desmontar” o modelo keynesiano existente. A Grã-Bretanha e os Estados Unidos assumiram a dianteira neste processo. A grande maioria das nações, de uma ou de outra forma, aderiu ao modelo neoliberal, o qual dispôs de um receituário: o “Consenso de Washington”, termo criado pelo economista John Williamson, em 1989, ao definir uma agenda com dez pontos específicos de reformas a serem implementadas no subcontinente, enumerados a seguir por Kuczynski e Williamson (2004, p.284): Déficits orçamentários (...) pequenos o bastante para serem financiados sem recurso ao imposto inflacionário; 15 A meta atua, de 2,5% do PIB, ainda que seja menor do que a anterior, de 4,25% é muito elevada para o momento. 12 Gastos públicos redirecionados de áreas politicamente sensíveis que recebem mais recursos do que seu retorno econômico é capaz de justificar... para campos negligenciados com altos retornos econômicos e o potencial para melhorar a distribuição de renda, tais como educação primária e saúde, e infra-estrutura; Reforma tributária (...) de forma que alargue a base tributária e reduza alíquotas marginais; Liberalização financeira, envolvendo um objetivo final de taxas de juros determinadas pelo mercado; Uma taxa de câmbio unificada a um nível suficientemente competitivo para induzir um crescimento rápido nas exportações não tradicionais; Restrições comerciais quantitativas a serem rapidamente substituídas por tarifas que seriam progressivamente reduzidas até que fosse alcançada uma taxa baixa uniforme da ordem de 10% a 20%; Abolição de barreiras que impedem a entrada do investimento estrangeiro direto; Privatização de empresas de propriedade do Estado; Abolição de regulamentações que impedem a entrada de novas empresas ou restringem a competição; A provisão de direitos garantidos de propriedade especialmente para o setor informal. Os dez pontos contidos nas recomendações resumiam de forma nítida todas as medidas que deveriam ser adotadas para a implantação da doutrina neoliberal. Por mais que, aparentemente as posturas defendidas pelo documento sugerissem uma redução do Estado na economia, esta só se faria sentir em setores específicos, uma vez que, como apoio à livre circulação de capitais, domínio das finanças e ambiente propício às empresas transnacionais, o documento mantinha o aparato estatal atuante. Neste sentido, as recomendações do documento são avaliadas por Boaventura de Souza Santos (1998, p.3) da seguinte forma “O Estado fraco, que emerge do Consenso de Washington, só é fraco ao nível das estratégias de hegemonia e de confiança. Ao nível das estratégias de acumulação é mais forte do que nunca, na medida em que passa a competir ao Estado gerir e legitimar no espaço nacional as exigências do capitalismo global”. Ainda assim, apesar da recomendação aos países emergentes de adoção das políticas contidas no “Consenso de Washington”, as nações desenvolvidas, via de regra, não fizeram aquilo que preconizaram, pelo contrário, adotaram fortes políticas intervencionistas. Em outras palavras, receitaram o remédio, mas não o ministraram em si mesmos. Todas as ações sequer reverteram a tendência de aumento de participação do governo na economia, quando vistos pelos indicadores de receitas e despesas públicas em relação ao PIB. 13 A crise demoliu quase a totalidade das recomendações do “consenso”. Estiam-se em US$ 15 trilhões a soma de recursos repassados pelos governos para impedir a disseminação maior da crise ou mesmo tentar fazer a atividade econômica reagir. Evidentemente, a maior parte foi enterrada, como as garrafas sugeridas por Keynes16, nas instituições financeiras falidas, numa clara capitulação do mercado frente ao Estado. Junto com a intervenção dos governos há o retorno do protecionismo, como no pacote de ajuda do governo dos EUA, em que as empresas auxiliadas devem adquirir seus produtos, preferencialmente, de fornecedores norteamericanos. No “neo-intervencionismo” há algumas medidas ícones, como a demissão do dirigente mundial da General Motors, Rick Wagoner, determinada pelo presidente Barack Obama como uma condição exigida para repassar o pacote de ajuda financeira à empresa. Aliás, a ajuda aos gigantes do automobilismo americano, (GM, Chrysler e Ford) tem sido um dos episódios mais caricatos da atual crise. Desde a polêmica dos jatinhos, que os forçou a voltarem a Washington enfrentando 850 km de viagem em carros híbridos, até a promessa de seus presidentes “sobreviverem” com salários anuais de 1 dólar. Hoje está consolidada não mais a “proteção à indústria nascente”17, mas a “defesa da indústria senil”18. É importante ressaltar, no entanto, que a nova modalidade de intervenção que se observa atualmente é bem diferente daquela observada entre 1950 e 1980. Aparentemente, hoje os governos promovem uma intervenção “envergonhada”, como que se desculpando junto ao mercado por ter que recorrer a estes meios e deixando claro que, após passada a pior fase da crise, farão questão de devolver tudo à iniciativa privada. 16 Ver citação neste artigo, no capítulo I. No século XIX, o economista alemão Georg Friedrich List (1789-1846) elaborou a teoria da “defesa da indústria nascente”, segundo a qual, o Estado tem um papel fundamental e indispensável para promover a passagem da economia do estágio agrícola para o industrial. A ação consistiria em medidas protecionistas para que as indústrias nascentes de países menos desenvolvidos tivessem possibilidade de enfrentar a concorrência com as poderosas indústrias de países ricos. 18 Termo cunhado pelo economista John Kenneth Galbraith quando analisou as dificuldades da indústria automobilística dos EUA frente ao Japão dos anos 1980. (GALBRAITH, 1989) 17 14 Como perspectivas, não é possível afirmar qual será a nova ordem mundial que emergirá desta crise. Tampouco se sabe se todos seus efeitos já se manifestaram. Seguramente, esta não será a última crise do sistema. Primeiramente porque parece inesgotável o volume de recursos envolvidos na operação salvamento, sendo quase nula a ação contrária ao destino que se está dando ao dinheiro público. Por outro lado, hoje se vive um período de inexistência de alternativas concretas postas na ordem do dia. Sequer há um mínimo de consenso na crítica do momento atual. Ainda assim, a “sacudida” cumpriu importante papel, alterando determinadas convicções, por exemplo: i) comprovou que o sistema não é imune a crises, pelo contrário, se há algo de certeza no capitalismo é a ocorrência das crises; ii) desmontou todo o aparato doutrinário do neoliberalismo; iii) desnudou a relação íntima existente entre o Estado e a economia, trazendo à tona a necessidade de se carrear recursos públicos para salvar o sistema e; iv) revelou o perigo que se esconde na financeirização da riqueza, desmontando a idéia que, por estar em uma esfera apenas monetária, as turbulências do mercado especulativo não contagiariam a economia real. As evidências apontam que os efeitos do presente processo não deverão ser considerados historicamente como desprezíveis. Pelo contrário, vivencia-se, hoje em dia, um momento importante do desenvolvimento da história da humanidade. Macapá (AP), abril de 2009 15 Referências CHELALA, Charles..A Magnitude do Estado na Socioeconomia Amapaense. Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Regional. Unifap: Macapá, 2008. CHESNAI, François. O capitalismo tentou romper seus limites históricos e criou um novo 1929, ou pior. Artigo publicado no site Carta Maior. <www.cartmaior.org.br> acesso em 11.01.2009. FILGUEIRAS, Luiz e GONÇALVES, Reinaldo. A economia política do governo Lula. Rio de Janeiro. Contraponto. 2007 GALBRAITH, John Kenneth. O Pensamento Econômico em Perspectiva. São Paulo. Ed. Universidade de São Paulo. 1989. MARX, Karl. El Capital México, FCE, 1973, Vol. III KEYNES, John M. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo. Ed. Nova Cultural. 1988. KUCZYNSKI, Pedro-Pablo, WILLIAMSON, John (orgs.). Depois do Consenso de Washington. Retomando o Crescimento e a reforma na América Latina. São Paulo. Saraiva, 2004 SANTOS, Boaventura de Souza. A reinvenção solidária e participativa do Estado. São Paulo. Seminário Internacional Sociedade e Reforma do Estado. MARE. 1998. www.cartamaior.com.br www.estadao.com.br/economia www.desenvolvimento.gov.br/secex www.tesouro.fazenda.gov.br/estados www.valor.com.br 16