XI CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA 2, 3, 4 e 5 de setembro GT de Pensamento Social no Brasil Paper de comunicação Freyre e a sistematização da sociologia no Brasil Por uma leitura dos prefácios de Sociologia: uma introdução ao estudo de seus princípios SIMONE MEUCCI Doutoranda em Ciências Sociais – IFCH/UNICAMP CAMPINAS 2003 1 Apresentaremos, a seguir, os resultados, ainda parciais, da análise comparativa dos prefácios das diferentes edições do livro de Gilberto Freyre Sociologia: uma introdução ao estudo de seus princípios. Há indícios de que este livro pode ter sido um dos mais importantes veículos de difusão da sociologia no sistema acadêmico brasileiro. Embora não tenhamos dados muito precisos sobre sua recepção, sabemos que foi reeditado cinco vezes entre 1945 e 1973. E, com efeito, percorrer quatro décadas no mercado editorial é, sem dúvida, um feito notável para um compêndio científico no contexto intelectual brasileiro. Antes de nos determos na tarefa de exposição de nossas primeiras e parciais conclusões, lembramos que esta análise se insere num trabalho mais amplo, ainda em andamento, que se dedica ao estudo da concepção de sociologia difundida por Gilberto Freyre no Brasil. O interesse pela sociologia de Freyre surgiu quando realizávamos um estudo dos primeiros manuais de sociologia publicados no Brasil por autores brasileiros durante as décadas de 30 e 40. Observamos então que, na maioria dos casos, estes livros eram, tão simplesmente, compilações enciclopédicas das teorias e metodologias consideradas na época fundamentais para a formação dos primeiros portadores do conhecimento sociológico entre nós. Sociologia é, porém, o único, entre estes livros, que se dedica a realizar uma síntese teórica original, com a qual Freyre afirmava querer compreender a complexa realidade brasileira. Entretanto, a despeito de haver indícios que sugerem que Sociologia é um importante e original instrumento de difusão da sociologia entre nós, não há ainda análises significativas sobre este livro. Do mesmo modo, embora se proclame o pioneirismo sociológico da obra de Freyre, não há estudos profundos e críticos sobre a natureza da contribuição realizada por ele para o campo da Sociologia, especialmente no Brasil. Queremos com isso dizer que ainda conhecemos pouco as verdadeiras influências de Freyre. Tampouco sabemos de sua posição no debate acerca dos propósitos e da função das Ciências Sociais que, no Brasil dos anos 50, envolvia nossos principais sociólogos. Também não conhecemos profundamente os conceitos sociológicos fundamentais eleitos por Freyre, o modo como ele os operacionalizou e as implicações das suas escolhas categoriais e de seus usos para o pensamento social brasileiro. São, pois, estas questões que 2 nos inspiram para a realização deste trabalho cujos resultados parciais o leitor conhecerá agora. *** Sociologia é, na realidade, um compêndio composto de dois volumosos tomos. No total são cerca de 770 páginas (o número de páginas varia de acordo com a edição). O primeiro tomo contém uma discussão sistemática acerca da definição do campo sociológico em relação a outras ciências sociais. O segundo, trata do que Freyre chama de Sociologias Especiais, ramos da sociologia que tratam de temas específicos: Sociologia Biológica, Sociologia Psicológica Sociologia Regional, Sociologia Histórica, Sociologia da Cultura. No final do segundo volume há ainda um breve capítulo no qual Freyre discute alguns aspectos da relação entre pesquisa e teoria sociológica. Os dois volumes, segundo Freyre, são a compilação de suas aulas de Sociologia dadas entre 1937 e 1939 na Universidade do Distrito Federal. Segundo seus projetos, mais dois tomos seriam adicionados à Sociologia: um sobre a Sociologia científica e a Sociologia para-científica, e outro sobre as relações entre Sociologia, Engenharia Social e Filosofia Social. (FREYRE, 1962:XIII) Tais novos tomos, entretanto, jamais foram publicados. Há apenas escritos dispersos que sugerem que Freyre de fato fez, nesta época, uma reflexão sobre os temas anunciados. Supomos, pela natureza da discussão, que alguns destes escritos foram reunidos no livro Homens, engenharias e rumos sociais, livro publicado apenas em 1987, logo após a morte de Freyre e que é composto por um conjunto de artigos organizados por Edson Nery da Fonseca. Sociologia foi reeditado cinco vezes pela José Olympio respectivamente nos anos de 1945, 1957, 1962, 1967 e 1973. A segunda edição foi alterada por Freyre. Ele adicionou um décimo tópico ao primeiro capítulo do tomo um. O novo tópico, que denominou de Cultura, organização, espaços e tempos sociais, foi incorporado às edições posteriores. No segundo tomo desta mesma edição, ao quarto capítulo Freyre acrescentou também um tópico denominado Organização, domínio e sucessão sócio-ecológica. Estas duas partes adicionadas à segunda edição referem-se a considerações do autor acerca do que ele denomina de Sociologia regional ou ecológica. É possível que entre 1945 e 1957 ele tenha amadurecido algumas questões acerca desse ramo da Sociologia para o 3 qual ele dedicará especial atenção durante toda a sua vida intelectual. Supomos, aliás, que é neste ramo especialmente que se situa a proposta particular de Freyre para o desenvolvimento das pesquisas sociológicas no Brasil e, mais do que isto, para a reunião de conhecimentos capazes de fundamentar uma forma de intervenção social. Não apenas o conteúdo foi alterado nesta segunda edição, mas também a dedicatória. Na primeira edição, Freyre dedica o livro àqueles que considera seus amigos, os estudantes de Sociologia e Antropologia na extinta Universidade do Distrito Federal (1935-1938) e, também, à Heloísa Alberto Torres. Escreve, ainda, algumas linhas de seu prefácio a estes seus primeiros homenageados: Dos seus alunos afirma que acharam um jeito de sobreviver organizando-se numa sociedade de estudiosos de sociologia com donativo de Affonso Penna Júnior. Diz ainda que tal sociedade estava então para converter-se em Instituto Brasileiro de Estudos Sociais. (FREYRE, 1945: 68) De Heloísa Torres, então diretora do Museu Nacional afirma que, como professora da UDF, deu decisivo amparo ao estudo científico de Sociologia no Brasil. (FREYRE, 1945:69) Na segunda edição não há, porém, nenhuma menção aos seus estudantes da UDF nem à Heloísa. Freyre dedica-o “à memória de Roquette-Pinto”. Esta alteração sugere, por um lado, que Freyre talvez não quisesse mais ter a sua sociologia identificada com a produção realizada no Rio de Janeiro por este grupo de alunos (que achamos ser o grupo Itatiaia que mais tarde fundará o ISEB). Também é possível que ele não quisesse ter sua imagem estreitamente vinculada à vida acadêmica, à medida que irá constituindo uma espécie de auto-representação de persona autônoma e independente em meio aos autores das Ciências Sociais brasileiras. Por outro lado, é possível que Freyre desejasse então homenagear postumamente o antropólogo carioca que, ao seu lado, foi reconhecido como um dos maiores críticos do racismo científico no Brasil. (AGUIAR, 2000: 184) Assim, a menção à Roquette-Pinto transferia possivelmente à Sociologia ares de pioneirismo culturalista. Além destas alterações (que procuraremos analisar e qualificar à medida que a análise avançar) é importante notar que Freyre, como de hábito, escreveu prefácios diferentes para as três primeiras edições. O primeiro prefácio foi então incorporado às edições posteriores como uma introdução. 4 Lembremos que os prefácios são importantes meios através dos quais Freyre não apenas responde aos seus críticos, mas também formula e burila a sua imagem. Parecem ser uma espécie de veículo no qual ele constrói e reconstrói a sua trajetória e suas intenções, antecipa temas da obra em questão, controla o significado de seus textos com o fim de se legitimar.1 Com efeito, os textos de prefácios serão o tema específico desta comunicação. Seu estudo nos antecipará algumas considerações sobre a compreensão de Freyre acerca da Sociologia e a posição que ele reivindicava nesta área. A leitura atenta e comparativa destes prefácios nos permitirá, portanto, conhecer um pouco melhor quais eram as expectativas de Freyre e suas considerações em relação à disciplina sociológica. *** Estes prefácios foram escritos em períodos diversos. Períodos que representam, não obstante, diferentes fases da própria constituição do saber sociológico entre nós. Por isso, acreditamos que em 1945, 1957 e 1962 Freyre responde de modo diferente às novas críticas. Podemos dizer que são três os temas privilegiados por Freyre nestes prefácios: a) a sua trajetória intelectual, b) a caracterização do livro Socologia e de sua recepção c) a concepção de sociologia que ele sustenta em suas páginas, d) a relação entre teoria e pesquisa em Sociologia. Discutiremos, a seguir, como cada tema foi desenvolvido nos prefácios. a) Freyre por ele mesmo No prefácio à primeira edição, partindo do pressuposto de que é sempre forte a presença subjetiva do sociólogo em seus textos, Freyre afirma a necessidade de explicitar seus próprios preconceitos, possivelmente presentes nas páginas de seu livro. Ele então narra, em poucas páginas, sua trajetória intelectual a fim de esclarecer ao leitor os pressupostos que imprimem uma certa orientação particular ao seu texto e que são produto de uma trajetória peculiar. 1 Uma análise dos prefácios de Casa Grande & Senzala foi feita por Gustavo Sorá (1998). Ali há uma interessante discussão acerca do sentido dos prefácios na obra de Freyre. 5 Trata-se, com efeito, não apenas de se apresentar ao leitor, mas de „controlar‟ o seu significado no interior do respectivo campo científico. Freyre impõe ao leitor a sua versão acerca do seu percurso intelectual, explicitando influências, temas, preconceitos e, também, o tipo de contribuição que ele considera ter dado às Ciências Sociais de um modo geral. Vamos, pois, elencar os principais momentos de sua carreira, segundo esta descrição: Freyre afirma que, em primeiro lugar, se voltou contra a mística da pureza da raça e da superioridade anglo-saxã. (FREYRE, 1945:34) Que em Baylor, numa Universidade americana do sul dos Estados Unidos, situada num dos centros mais vivos de mística etnocêntrica anglo-saxônica começou esta reação. Lá, no contexto do racismo e do puritanismo, pensava sobre a natureza e o futuro do país tropical e mestiço. (FREYRE, 1945:34) Afirma ter reconhecido em Baylor, no mestiço e no africano, a capacidade para tornar-se igual ao branco. Afirma, pois, que sua visão diferenciou-se do pessimismo absoluto dos bacharéis (cita Canaã de Graça Aranha como exemplar deste pessimismo e desta visão bacharelesca). Confessa que duas grandes influências o ajudaram neste período: Oliveira Lima e John Casper Branner (da Universidade de Stanford e que preparava um estudo sobre Geologia do Brasil), correspondentes e amigos pessoais que o auxiliaram a se desembaraçar do complexo de inferioridade brasileira. (FREYRE, 1945:35) Freyre afirma ainda que não sofreu influência de autores brasileiros empenhados em reabilitar valores tropicais e nacionais. Nem de Nabuco, nem de J. B. Lacerda, nem de Eduardo Prado, nem de Alberto Torres, Roquete Pinto, Gustavo Barroso, Euclides da Cunha, Sylvio Romero e João Ribeiro. Em Columbia diz ter sofrido a influência de Boas. O conceito de cultura foi determinante para lhe sedimentar idéias. (FREYRE, 1945:37) Em Columbia foi ainda influenciado, segundo suas palavras, por Giddings, Seligman. Cita outros inúmeros autores da Escola de Chicago que o influenciaram. Afirma ter se tornado avesso aos preconceitos liberais e individualistas sob influência de Carlton Hayes (então embaixador da Espanha nos EUA). O mesmo autor teria o tornado um anti-imperialista. (FREYRE, 1945:38) Afirma ser também anti-jesuíta, daquele jesuitismo mais identificado com formas de organização social e de governo hoje extremadas no racismo, em geral, e no fascismo ou no nazismo em particular. (FREYRE, 1945:38) Diz que sob influência de outro amigo pessoal, o anti-rotariano Henry Mancken, tornou-se portador de um preconceito antiburguês norte-americano. Afirma ter se aproximado dos problemas de cultura de Espanha e Portugal pela convivência com professores de Oxford. Em Columbia diz ter realizado um curso com o professor Alfred Zimmern sobre a aristocracia escravocrata da Grécia, o que o teria preparado para lidar cientificamente com a história de sua própria gente. Segundo sua versão, este curso deu origem à sua tentativa de análise sociológica e psicológica do patriarcado escravocrata no Brasil. (FREYRE, 1945:40) 6 Diz ter feito muitas leituras, algumas contraditórias, o que confunde seus críticos paulistas que, por vezes, o acusam de “historicismo grande burguês”. Também diz ser acusado de ser “materialista histórico”. (FREYRE, 1945:43) Confessa ser fortemente influenciado pelas Ciências Sociais americanas e inglesas. E que recebeu menos influência de sociólogos do que de cientistas sociais. Alguns detalhes desta narrativa são significativos. Freyre afirma que sua nova interpretação do Brasil é resultado de influências incomuns, produto de suas relações pessoais que, não obstante, se contrapõem a todo o universo religioso e social em que ele estava inserido em Baylor. Acrescenta, por fim, a estas influências pessoais, a sua estadia e seus estudos em Colúmbia, onde sob influência de Boas, suas questões acerca do destino do Brasil mestiço e tropical ganharam uma conotação de reflexão sistemática orientada pelas novidades científicas no campo das Ciências Sociais. Note-se que Freyre recusa certas influências do campo intelectual brasileiro tais como Nabuco e Euclides da Cunha, por exemplo. Recusa, pois, a herança de nossos pioneiros ensaístas sugerindo a predominância de influências científicas, tais como a de Boas, por exemplo. Quer assim dizer a todos que suas idéias são antes originárias de sua formação científica norte-americana do que das leituras realizadas entre nós. Com efeito, para Freyre, a visão pessimista do Brasil está ligada a uma certa perspectiva bacharelesca (como a de Graça Aranha, por exemplo), comum aos ensaístas brasileiros. E ao se colocar como pioneiro de uma nova interpretação do Brasil que resulta de suas influências científicas está, fato, postulando, embora não explicitamente, sua legitimidade no campo das Ciências Sociais. Uma legitimidade que se fundamenta na sua formação científica especializada. Eis o quadro que Freyre tece por meio da narrativa de sua trajetória: a sua personalidade incrédula em relação valores burgueses e puritanos mais comuns, enriquecida pelas novidades científicas conhecidas nos cursos que freqüentou em Nova Iorque, pela convivência com professores de Chicago e Oxford e pelas suas inúmeras leituras resultou numa interpretação singular não apenas acerca do Brasil, mas também acerca da Sociologia e dos sociólogos. Uma interpretação que, não obstante, torna-se incompreensível para a maioria dos intelectuais brasileiros que estão, pois, muito distantes da influência intelectual americana e inglesa. Influência esta que, aliás, Freyre antecipa 7 como predominante no futuro. Não é à toa que ele afirma que o inglês será a língua mais importante para os estudiosos de sociologia, como uma espécie latim para os filósofos antigos. (FREYRE, 1945) Entretanto, curiosamente, Freyre, ao mesmo tempo em que destaca a sua formação científica especializada não se define como sociólogo, mas genericamente como escritor. Consultemos suas palavras: esta introdução ao estudo de sociologia, não é obra de sociólogo que faça profissão do ensino ou da prática especializada ou exclusiva de qualquer ramo da ciência social. É de alguém, cuja situação é, bem ou mal, a de escritor. Escritor cuja atividade para-sociológica se baseia largamente no fato de ter, em seus cursos universitários, e em viagens da Europa, se especializado com algum rigor e com algum gosto no estudo da antropologia social (em que teve por mestre principal, como já foi dito, o professor Franz Boas), da sociologia, da história social, da economia e do direito público. Este estudo especializado durante anos decisivos na formação intelectual do autor – estudo que de algum modo ele conserva atual pelo contato com atividades universitárias e com revistas e publicações especializadas, embora não como professor de carreira nem como membro de academias e associações de caráter profissional – talvez sirva de desculpa à sua ousadia de publicar um trabalho do gênero que se segue. (FREYRE, 1945: 64-65) Esta declaração é apenas aparentemente contraditória. Devemos prestar atenção ao fato de que a institucionalização universitária das Ciências Sociais, realizada na década de trinta no Brasil, levou ao estabelecimento de uma relação imediata entre a carreira acadêmica e a carreira de sociólogo. A rigor, só era possível ser sociólogo dentro da academia. Freyre, entretanto, longe da academia, sobrevivendo autonomamente graças à venda de seus livros, tinha dificuldades, dentro deste contexto, para tecer sua identidade de cientista social. É então que se define como um escritor que, não obstante, especializou-se com dedicação e prazer em Ciências Sociais por meio de seus estudos nos Estados Unidos e na Europa. E mais do que apenas especializado Freyre se declara em dia com suas tarefas e leituras acadêmicas. Sua especialização e atualização lhe permitem, pois, escrever um compêndio de Sociologia. Nesse sentido, nos parece que a definição de escritor não equivale de modo algum à condição de diletante ou de amador. Ele inclusive considerava necessário combater o diletantismo, principalmente na Sociologia, ramo do conhecimento onde é mais freqüente o 8 fenômeno que, segundo o autor, vulgariza a Ciência Social e impede o desenvolvimento de pesquisas sistemáticas. Freyre afirma ser antes um marginal, que longe da carreira acadêmica é, capaz de vez por outra contribuir para o estudo de problemas sociológicos com pontos de vista e arrojos extra-acadêmicos e extradidáticos, embora de modo nenhum anti-acadêmicos e antididáticos. (FREYRE, 1945: 65-66) O seu afastamento da carreira acadêmica permite, segundo Freyre, liberdade de pensamento, o que resulta em sínteses originais que apenas na sua condição de marginal, livre dos estreitos compromissos didáticos e acadêmicos, podem ser produzidas. Sociologia é, por conseguinte, para ele, um livro cujos resultados expressam esta liberdade. b) Sociologia, o livro, segundo o autor No prefácio à primeira edição Freyre previa que o livro iria surpreender e chocar alguns de seus leitores mais sectários em termos de didatismo e rigor sociológico. Afirma que devido à sua condição marginal, o livro não tem grandes virtudes didáticas. Esta falta, não obstante, é compensada, segundo ele, pela originalidade que caracteriza o livro: Não sendo livro de professor (...) nem de acadêmico, é natural que não seja rigorosamente didático nem ortodoxamente acadêmico. Uma de suas deficiências estará decerto na ausência dessas virtudes; mas é possível que seja, às vezes, compensada por pontos de vista libertos de compromissos ou responsabilidades didáticas; e também por um contato mais livre com a vida extra-acadêmica. (FREYRE, 1945:65) No prefácio à segunda edição, porém, os temores com relação à recepção do livro não se expressam mais deste modo. Há agora longos parágrafos nos quais Freyre quer mostrar ao leitor como Sociologia foi reconhecido entre os mais significativos autores da disciplina no Brasil. Ao apresentarmos esta segunda edição de “Sociologia”, revista, aumentada e atualizada, não devemos deixar de exprimir nosso agradecimento aos que mais generosamente acolheram, no Brasil e no estrangeiro, a primeira edição, quando apareceu em 1945. No Brasil, os Professores ANÍSIO TEIXEIRA, FERNANDO DE AZEVEDO e FLORESTAN FERNANDES, os críticos LUÍS WASHINGTON e CIRO DE PÁDUA – quase todos de São Paulo. O que se explica pelo fato de ser hoje São Paulo, graças principalmente ao professor FERNANDO DE AZEVEDO, mas também a sucessivos professores franceses, anglo-americanos e um pelo menos, inglês, contratados para o ensino de ciências sociais pela sua 9 Universidade e pela Escola de Sociologia e Política, o principal centro brasileiro de estudos sociológicos e universitários. (FREYRE, 1957:11) Este trecho, logo no início do segundo prefácio, expressa o reconhecimento de Freyre de que São Paulo abriga os principais centros de estudo sociológico no Brasil (USP e ELSP em particular). E nestes, que são os mais importantes núcleos da produção sociológica no Brasil, sua obra fora bem recebida pelos principais acadêmicos. Procura assim, ao afirmar a inserção de Sociologia no circuito acadêmico up to date da época, alçá-lo à categoria dos livros acadêmicos importantes. Isso expressa que Freyre queria, pois, ser reconhecido na academia, especialmente entre os acadêmicos de São Paulo, portadores de uma indiscutível legitimidade científica no campo das Ciências Sociais. Como de hábito, Freyre afirma que também entre sociólogos estrangeiros o livro foi bem recebido. Cita, pois, os nomes de José Medina Echavarria, Gino Germani, Francisco Ayala e Rex Hopper como leitores que lhe fizeram críticas bastante favoráveis, embora nunca indique os periódicos onde foram publicadas. (FREYRE, 1957:12) No prefácio à terceira edição acrescenta que a originalidade de Sociologia é reconhecida em todos os continentes, na Europa e nos EUA, na América Latina e no Oriente. Anuncia, inclusive, uma nova publicação em alemão, cuja existência ainda não conferimos. (FREYRE, 1962:XIII) A cada prefácio, portanto, Freyre tenta, na busca por tornar seu livro reconhecido, adicionar mais autores cujas críticas lhe são favoráveis. Busca, numa extensão geográfica cada vez maior, mostrar ao leitor brasileiro o quanto é internacionalmente reconhecido. Interessante notar que, no mesmo sentido da busca de legitimidade para o seu livro, Freyre procura estabelecer uma relação entre Sociologia e Casa-Grande & Senzala. Afirma, num primeiro momento, que Sociologia é a sistematização dos princípios teóricos e metodológicos aplicados na análise realizada em Casa-Grande & Senzala: Acreditamos que se trata, na verdade, de pequena contribuição para uma sistemática sociológica em que a situação do homem social seja considerada no seu máximo de situação existencial ao mesmo tempo que funcional e histórica: critério que antes de ter sido esboçado em seu aspecto teórico, nas páginas de “Sociologia”, desde a sua primeira edição em 1945, já fora seguido pelo autor em obra de Sociologia aplicada: Sociologia entrelaçada com a Antropologia, a História e a Ecologia sociais. Referimo-nos a nosso ensaio de algum modo 10 pioneiro, intitulado “Casa-grande & Senzala”, cuja primeira edição em língua portuguesa data de 1933. (FREYRE, 1957:12) Em outro momento, cita passagens do crítico Jean Pouillon em Les Temps Modernes nas quais o autor elogia o livro Casa-grande & Senzala. Freyre afirma que considera a crítica de Pouillon válida também para o livro Sociologia: procura, desse modo, transferir a legitimidade e o reconhecimento de Casa-Grande & Senzala para o livro Sociologia. O seu maior capital crítico é mobilizado com o propósito de legitimar a proposta teórica e metodológica contida em Sociologia. (FREYRE, 1957:13) Ao mesmo tempo, ao dizer que Sociologia é uma espécie de sistematização de experiências já aplicadas em outras obras, ele se auto-atribui coerência intelectual. Referese, portanto, à Sociologia como uma síntese original, que na forma de um compêndio, apresenta um conhecimento que já dera seus frutos. Interessante notar que este esforço considerável de sistematização da Sociologia se realizava num momento em que a disciplina estava academicamente institucionalizada entre nós, uma ciência nova, para a qual ele, na condição de marginal, procurava contribuir. c) Em defesa da uma Sociologia mista, anfíbia, existencialista e barroca No primeiro prefácio, Freyre coloca vários problemas relativos à inexatidão da disciplina e dos conceitos sociológicos. Discute o fato de que há várias sociologias, tantas sociologias quanto são as seitas sociológicas e compara a disputa entre as diferentes concepções de sociologia às guerras religiosas. (FREYRE, 1945:11) Além destes conflitos relativos à definição da disciplina e à possível supremacia e/ou convivência entre as diferentes formas de defini-la, há também, segundo Freyre, aqueles que nem mesmo acreditam na possibilidade da constituição de uma disciplina sociológica. Autores como Tobias Barreto e João Ribeiro. Para Freyre, entretanto, a sociologia vem paulatinamente adquirindo contornos definidos, com status próprio no conjunto das ciências. (FREYRE, 1945: 12) A conquista desta autonomia, diz ele, tem sido obra de muitos desertores da filosofia e das ciências naturais, tais como Comte e Rickert, por exemplo. E a origem desta discussão faz com que o status da Sociologia oscile entre os terrenos das ciências naturais e da filosofia: ora ela é 11 definida como uma ciência da natureza (como para os franceses), ora como uma ciência da cultura (como para os alemães). Freyre afirma, com efeito, que ele pretende apresentar, nas páginas de Sociologia uma concepção mista da disciplina. Não quer, nesse sentido, se filiar nem ao purismo francês nem ao relativismo alemão. Buscará realizar, segundo seus termos, uma síntese original entre a sociologia européia e a sociologia americana. (FREYRE, 1962: XVI) Diz, pois, que no seu entendimento a Sociologia é mista e anfíbia, ou seja, em parte natural, em parte cultural. (FREYRE, 1945: 12) Tais adjetivos Freyre definirá mais rigorosamente no segundo prefácio, provavelmente devido a incompreensões e críticas recebidas. Devemos tornar claro, a esta altura, que considerando a Sociologia ciência anfíbia, isto é, em parte natural, em parte cultural, como a consideramos nas páginas que se seguem, não pretendemos separá-la em duas; ou em metades antagônicas. De modo algum. Reconhecemos que as duas de tal modo se interpenetram que formam uma só ciência. Simplesmente admitimos sua dupla existência; e que esta exige métodos complexos e não simples, de explicação; uma metodologia múltipla e não singular; estatística e quantitativa, para a descrição e a explicação de uma série de fatos e qualitativa e compreensiva para a descrição e interpretação de outros. A Sociologia porém é uma só ciência como, em sentido ainda mais largo, é uma só ciência, toda a ciência, em geral. Em Sociologia, o bio-social se alonga no sócio-cultural através de fronteiras nem sempre nítidas na vida do homem ou do grupo humano situado. A designação de ciência anfíbia para a sociológica que procuraremos dar relevo no terceiro volume desta série. De modo algum representa a oposição ao critério de unidade que em Sociologia, como nas demais ciências chamadas do homem, é o critério que se ajusta à moderna Filosofia destas ciências ainda em formação e das ciências em geral. (FREYRE, 1957:18) Não há, por estas razões, segundo Freyre, ciência mais dependente das outras do que a sociologia. Ao sociólogo é necessário o apoio indispensável de outras ciências como a antropologia, a história e a economia, por exemplo, e também de métodos empáticos, para dar conta da complexidade das situações sociais. (FREYRE, 1945: 14) Para ele, não é possível se fazer sociologia guardando da primeira à última página rigidez e exclusividade de método. O sociólogo terá, segundo o autor, de valer-se sempre de estudos das ciências vizinhas e de sensibilidade para explicação de sua matéria complexa. Para ele, os problemas de que trata o sociólogo não são sempre apenas e exclusivamente sociológicos, mas complexamente sociais. (FREYRE, 1945: 17) 12 E é em defesa desta idéia de Sociologia mista e anfíbia, situada entre a natureza e a cultura que Freyre irá discorrer ao longo das páginas do livro. Freyre, principalmente no primeiro prefácio, nos adianta os elementos do debate e também a sua posição. Posição esta que ele busca sempre legitimar citando as críticas mais favoráveis que recebeu pela sua obra Casa-Grande & Senzala, de autores considerados reconhecidos entre os cientistas sociais brasileiros, tais como Arbousse-Bastide e Roger Bastide, ambos professores da Universidade de São Paulo (FREYRE, 1945:59-60-61). Sobretudo no prefácio à segunda edição do livro, Freyre irá discorrer ainda mais longamente sobre sua concepção de Sociologia no sentido de defendê-la de críticas e também de buscar legitimá-la em nosso meio intelectual. Deve-se apenas lembrar que se no ano de 1945 (quando da primeira edição de Sociologia) já tínhamos os primeiros sociólogos acadêmicos entre nós, em 1957 estes primeiros cientistas sociais brasileiros estabeleciam, com suas atividades acadêmicas rotineiras, uma espécie de padrão hegemônico de trabalho científico na área, definindo mais rigorosamente autores e procedimentos canônicos e concepções da disciplina e do lugar legítimo de seus cientistas. O desafio era então maior para Freyre no sentido de defender a sua concepção - entre nós incomum - da disciplina. É, pois, neste momento, no prefácio à segunda edição, que sua Sociologia mista e anfíbia receberá mais dois adjetivos incomuns. Ele dirá que ela é também existencialista e barroca. Para defini-la como existencialista Freyre invoca e se apóia na afirmação de que seu livro “Casa-grande & Senzala” foi recebido na França pelos existencialistas e considerado uma espécie de Sociologia ou Antropologia Existencial. (FREYRE, 1957:13) Notamos que se, na primeira edição Freyre invocava a sua formação entre cientistas sociais norteamericanos e ingleses, aqui ele mobiliza também as críticas favoráveis ao seu consagrado livro no campo filosófico francês. Além de, como já chamamos a atenção antes, de transferir ao novo livro as críticas favoráveis de Casa-Grande & Senzala, ele agora lança mão de sua suposta consagração entre filósofos existencialistas franceses para ter seu reconhecimento entre os cientistas sociais brasileiros. Evidente que Freyre procurava se cercar de todas as fontes de legitimidade para ver reconhecida a sua concepção de Sociologia. Agora a sua sociologia era não apenas mista e anfíbia, mas também 13 existencialista e barroca. Com estes adjetivos, Freyre mobiliza as mais variadas origens intelectuais para legitimar sua concepção sociológica, seus métodos e seus procedimentos. Ele afirma que é existencialista a sua Sociologia tão simplesmente porque não parte de nenhuma unidade pré-fabricada da realidade social. (FREYRE, 1957: 14) Acredita que a atenção à situação existencial do homem social evita a abstração prematura e a generalização arbitrária, dando atenção ao concreto, ao vivo, ao regional, ao ecológico ao presente até ao circunstancial. (FREYRE, 1957:14) Por isso mesmo, essa abordagem encontra afinidade entre os Existencialistas que também opõem ao Homem Abstrato o Homem situado (ou os homens situados no dizer de Freyre). Freyre, em seu terceiro prefácio, procura ainda reforçar este argumento dizendo que, em 1956, ocorreu um debate em torno de suas idéias sociológicas no Castelo de Cerezy, na França, com os principais professores de Sorbonne e que ali, atribuíram-lhe a condição de humanista científico que faz interpretação existencial do homem e de situações sócioculturais. (FREYRE, 1962:XIX) Pois esta concepção de existencialista corresponde também, segundo Freyre, à noção de barroco. Barroco é, pois, uma espécie de estilo de vida, de existência e de cultura no qual o homem está em relação íntima com o seu meio, com a paisagem e com o espaço. Assim definido Freyre estabelece uma relação entre o estilo barroco e a abordagem sociológica que se dedica à tentativa de fixação no concreto, no vivo, no criativo e no presente para compreensão das coisas, dos homens, de sua natureza. Como o sentido barroco da vida, a concepção sociológica de sociedade, parte do pressuposto de que ela está sempre em movimento e nunca em repouso. (FREYRE, 1945:15) A rigor, Freyre quer com isto mostrar que as sociedades são criativas, compondo situações diversas e particulares. Freyre afirma que vários grupos de autores sustentam suas reflexões filosóficas, literárias e sociológicas a partir desta concepção de vida e sociedade. Montaigne, Michelet, Proust e Romain Rolland estão, segundo Freyre, entre os autores que concebem a vida e a sociedade segundo uma concepção barroca. Porém, segundo Freyre, a reflexão de natureza barroca vem sendo feita especialmente por autores portugueses e brasileiros. São eles: Fernão Mendes Pinto, Oliveira Martins, Padre Antonio Vieira, Eça de Queiroz, Camões. No Brasil, Euclides da Cunha, Fernão 14 Lopes e Oliveira Lima, José Bonifácio, Sílvio Romero, Alberto Torres, Roquette-Pinto, Gustavo Barroso, Graça Aranha, Gilberto Amado, Gastão Cruls. Todos tratam da realidade social brasileira e portuguesa integrada no ambiente tropical ou quase tropical... (FREYRE, 1957:16) Freyre afirma ainda que esta concepção barroca da vida estava também presente ORTEGA Y GASSET: o espanhol também se preocupou com o processo social em curso, com o “estar sendo”, segundo Freyre. Esses autores, de acordo com Freyre, manifestavam a fluidez da vida sobretudo na linguagem empática. Com efeito, para Freyre, a escrita empática não exclui tratamento científico da matéria sociológica. A vida em fluxo, em processo, homens situados em grupos, em meios, em diferentes atitudes e situações: este é o objeto da Sociologia cuja concepção exige uma relação empática entre cientista e objeto, ou seja, exige procedimentos metodológicos e narrativos que ultrapassam a visão estática do mundo social. (FREYRE, 1957:16) Estas razões, segundo Freyre, justificam a pluralidade de métodos e, principalmente, a defesa do método histórico-biográfico em Sociologia (FREYRE, 1957: 14) No terceiro prefácio, aliás, afirma que o pluralismo cultural é mesmo uma tendência das Ciências Sociais contemporâneas: cada vez mais me convenço de estarmos, nos estudos sociais, em geral e nos de Sociologia, em particular, numa fase pluralista que caracteriza principalmente a metodologia dessas ciências. (FREYRE, 1962:XIV) Principalmente no segundo prefácio ele dedica longas páginas à apresentação de argumentos favoráveis à utilização de cartas e documentos pessoais nas análises sociológicas. Elas são, pois, segundo o autor, a manifestação material do “homem situado” de que trata a Sociologia barroca e existencialista. (FREYRE, 1957:27) E, como de hábito, para legitimar estes procedimentos Freyre cita um conjunto de sociólogos e antropólogos que se manifestaram favoráveis a este recurso de investigação. Entre eles estão Thomas, Znaniecki, Ruth Benedict e Margareth Mead. Especialmente o trabalho The Polisch Peasant in Europe and América, de Thomas e Znaniecki é citado. Freyre o considera uma obra prima da sociologia moderna, cujas críticas (citadas por Freyre), oriundas de uma concepção extremamente positivista e parcial da disciplina científica, não lhe tiram a importância. (FREYRE, 1957:27) 15 Freyre entende a concepção da pesquisa sociológica que busca o homem concreto e situado não se contenta com os textos e os manuscritos oficiais, guardados nos arquivos. Exige a consulta a outras fontes que reconstituam a existência humana em seus meandros, em seus limites e possibilidades reais e cotidianas, tais como anúncios de jornais, testamentos, contas de alfaiates, de chapeleiros, de sapatarias, formas de casas, de móveis ou veículos. (FREYRE, 1957:33) Essas coisas, diz ele, tão miúdas e tão ligadas à convivência humana, exprimem funções, relações, processos de sociabilidade ou de interação social. São espécies de substância da vida social, capazes de expressar e nos fazer decifrar as formas sociais mais amplas. (FREYRE, 1957:36) Freyre discorre longamente, em 1957, acerca da necessidade de consultar fontes que expressem o cotidiano de uma dada sociedade até mesmo para conhecer seus aspectos econômicos. Parece tratar-se a princípio de uma crítica dele aos marxistas que, segundo ele, consideram a história econômica de um ponto de vista muito abstrato. Assim pretende sugerir que, também para a compreensão dos processos econômicos, sua proposta metodológica é válida. A história de instrumentos, de máquinas, de processos de produção e transporte em seus detalhes mais inusitados, diz ele, nos ajudariam a compreender os processos de transformação econômica que ocorrem entre os homens. A reconstituição da história dos indivíduos, de sua mobilidade social, de sua genealogia permite, segundo o autor, o conhecimento exato da composição antropológica e sociológica das classes. Para Freyre é grande a identificação da História Econômica com a Sociologia e a Psicologia Social. (FREYRE, 1957:33-34) No sentido de citar fontes de pesquisa que dêem conta da vida social em seus detalhes Freyre, no segundo prefácio, cita autores de autobiografias com valor artístico, que podem ser também utilizadas com fins sociológicos: Nabuco, José Lins do Rego, Gilberto Amado, Helena Morley são os mais citados. Suas obras são, segundo Freyre, testemunhos de indivíduos condicionados pelo espaço-tempo. Seus autores, diz ele, aceitam a influência do que é cultural sobre o pessoal sem deixar de, ao mesmo tempo, admitir situações particulares nas quais esta influência se expressa. (FREYRE, 1957:28) 16 Àqueles que o acusam de literário Freyre deixa um recado no terceiro prefácio: afirma que os que fazem esta crítica são beletristas fracassados, que se refugiam nos ismos por um ressentimento antiliterário e que ignoram o fato de que sociólogos e antropólogos modernos se aproximam de fontes e processos literários de revelação do homem social. (FREYRE, 1962:XXV) De fato, o prefácio à terceira edição é caracterizado por uma linguagem mais defensiva na qual Freyre se remete, sobretudo, às críticas que o desqualificam como uma espécie de falso literato e falso sociólogo, que não se situa nem no campo ficcional nem no campo científico. Nas suas respostas, Freyre sempre ressalta a estreita relação entre Sociologia e Literatura. A Literatura é, para ele, como vimos, uma fonte de pesquisa preciosa. Mas não apenas isso: ele também compreende que a forma descritiva estilística e empática ou, em outras palavras, literária, é mais adequada para dar conta das dimensões múltiplas e fluidas da realidade. Freyre afirma que os insights e a sensibilidade da literatura resultam em revelações fecundas para a Sociologia científica. Nesse sentido, para ele, os livros literários não deixam de ser secretamente ou latentemente sociológicos. Autores como Simmel, Frazer, Bérgson, Proust, Unamuno e Malraux, segundo ele, possuem obras reconhecidamente sociológicas que são compreendidas também como obras literárias embora representem a realidade social sem o sacrifício da explicação e da exatidão. A descrição técnica, burocrática e cartesiana não oferece, segundo Freyre, uma representação do caráter dinâmico e multi-dimensional da vida social. (FREYRE, 1957:41-42-43) Ser um bom escritor é, portanto, para ele, condição para ser um bom sociólogo. d) Universalismo versus particularismo Freyre realiza em todos os prefácios uma discussão acerca da relação entre teoria e pesquisa em Sociologia, ou, em outras palavras, entre o que ele chama de Sociologia Geral (teórica, que sintetiza abstratamente e generaliza os conhecimentos obtidos por meio de pesquisas) e as Sociologias Especiais (ramos específicos da Sociologia dedicados a desenvolver pesquisas pontuais sobre determinado tema). Usando termos mais abrangentes, 17 Freyre se diz preocupado com as questões relativas ao universalismo e o particularismo em Ciências Sociais. Principalmente na terceira edição, ele cita uma série de autores que discutem internacionalmente o problema da reciprocidade teoria/pesquisa. Parece querer parecer sintonizado com a produção sociológica nos principais centros universitários. (FREYRE, 1962:XIX) Com efeito, a noção de Sociologia existencialista e barroca de Freyre opõe-se, segundo o autor, às correntes sociológicas afeitas a generalizações. (FREYRE, 1957:17) Com efeito, ao considerar o homem situado em seu tempo e espaço, a Sociologia de Freyre é cuidadosa em relação ao estabelecimento de leis de validade universal. Por isso ele afirma que em Sociologia não haverá... ... nada de sistemas nem de leis de validade universal nem para a totalidade social, nem baseadas em uniformidades de comportamentos que condicionem a normalidade social sobre a qual se possam firmar generalizações. (FREYRE, 1945:22) Em seu segundo prefácio afirma ainda mais enfaticamente: ... o leitor das páginas que se seguem há de notar, através de quase todas elas, o empenho de considerar-se incompleta, estéril, ou, no mínimo, prematura em suas generalizações, a Sociologia geral – que não é outra senão a abstracionista – para a qual seja vã ou inútil a outra: a existencial, a do homem social em movimento, vivo, concreto, situado sob diferentes predominâncias de suas situações de relação. (FREYRE, 1957:40) Para Freyre, a Sociologia não deve se precipitar em suas abstrações da realidade, não deve se esquecer nem mesmo dos aspectos distintos de uma mesma realidade, dos seus variados planos e situações existenciais. (FREYRE, 1957:20) As leis genéricas, abstratas, intemporais e inespaciais da Sociologia universalista não manifestam, diz Freyre, nenhuma preocupação com a diversidade das situações humanas existentes. Para ele, os princípios sociológicos universalistas viveram no final do século XIX e início do século XX o seu auge, ao que correspondeu uma necessária, porém mórbida, reação com o surgimento de teorias excessivamente nacionalistas, a exemplo dos princípios jurídico-políticos de Carl Schmitt. (FREYRE, 1945:23-24) 18 Para ele, particularmente, a falência dos marxismos e dos freudismos exigem um retorno às evidências históricas, muitas vezes contrárias às mais simples generalizações. Sobretudo as pesquisas antropológicas e o culturalismo sociológico contribuíram, segundo o autor, para a invalidez dos pressupostos imutáveis da sociologia. (FREYRE, 1957:31) Por isso Freyre se declara favorável ao desenvolvimento das Sociologias especiais, ou seja, das pesquisas sociológicas temáticas cujos resultados podem concorrer para o aperfeiçoamento da Sociologia geral. Ele não pretende atingir nem o extremo do universalismo, nem do particularismo: A verdade é que nos parece razoável admitir não uma sociologia especial, mas várias sociologias especiais com maiores possibilidades de desenvolvimento científico imediato que a geral, sem desconhecermos a necessidade da geral, da pura, da sistemática, da sintética, nem a possibilidade do seu desenvolvimento científico necessariamente mais lento que os das especiais, do qual depende, mas ao qual, ao mesmo tempo dá perspectivas e possibilidades mais largas.(FREYRE, 1945:25) Por fim, afirma que a Sociologia existencialista e barroca será a base para a Tropicologia, um ramo dos estudos sociais, ou, uma Sociologia especial que tem como objeto os espaços sociais tropicais respeitando as suas peculiaridades. (FREYRE, 1957:38) Trata-se de uma ciência para os trópicos que, segundo a definição do autor, não se limita a considerar os problemas tropicais segundo os métodos e conhecimentos boreais ou ocidentais. Trata-se de uma proposta sociológica especial para as condições também especiais da realidade brasileira. Uma proposta que, a rigor, é pouco conhecida em sua gênese e também em sua recepção no campo das ciências sociais brasileiras. *** Nesta conclusão provisória, com base na análise destes prefácios, faremos apenas duas considerações: uma que diz respeito ao lugar reivindicado por Freyre no campo intelectual brasileiro, outra que se refere à própria natureza da proposta sociológica que está apenas esboçada nestes prefácios. I 19 A leitura destes prefácios nos leva a concluir (ainda que provisoriamente) que Freyre queria se reconhecido como um portador especializado do conhecimento sociológico. Discordamos, portanto, de algumas análises (SORÁ, 1998) que nos levam a acreditar que Freyre irá - ao longo dos anos, durante o período de consolidação das Ciências Sociais acadêmicas no Brasil - se retirando do campo das Ciências Sociais e constituindo uma identidade difusa, mais ligada à literatura. Ao comparar os três prefácios notamos, com efeito, que, em 1945, Freyre estava preocupado em ressaltar o caráter científico da sua formação. Isso, ao mesmo tempo em que declarava ser um escritor, uma espécie de semi-sociólogo. Contraditório? Ao nosso ver apenas aparentemente contraditório. Como já foi dito, Freyre tinha dificuldades de dizer-se sociólogo num meio intelectual que associava a carreira de sociólogo à carreira acadêmica. Ele, desvinculado da academia, não exercendo atividade docente, “apenas” escrevendo seus livros, era como um “meio-sociólogo”. Era, pois, sociólogo em sua formação, embora não em sua atuação. Já em 1957, no segundo prefácio de Sociologia Freyre dedicou-se mais detidamente à qualificação de sua concepção de sociologia. Explica-a, aproximando-a de concepções de vida e sociedade sustentadas por autores como Sartre, Proust e Ortega y Gasset. Autores, que, diga-se de passagem, não são reconhecidos como sociólogos. Freyre, com efeito, diz defender uma concepção original da disciplina que, não obstante, está sendo elaborada e aceita dentro do próprio campo das Ciências Sociais, reconhecida também por especialistas que, em crise, discutem a validade das pesquisas e generalizações feitas sob o purismo cartesiano. Esta nova sociologia é uma espécie de síntese entre as idéias sociológicas européias e norte-americanas, entre o racionalismo francês, o pragmatismo americano e o relativismo alemão. Ela é, pois, mista e anfíbia, nem puramente cultural, nem puramente social. É também existencialista na medida em que não concebe o homem abstrato, mas apenas situado em seu tempo, em seu espaço e em sua cultura. E é barroca porque parte do pressuposto de que a vida é fluida, dinâmica, multidimensional. E, por tudo isso, utiliza métodos variados e, por vezes, pouco ortodoxos de pesquisa. Exige, também, uma forma narrativa mais elaborada, fluida, literária. Freyre dedica-se 20 longamente no segundo prefácio a explicitar, fundamentar e legitimar as suas idéias acerca de fontes de pesquisa sociológica que lhe permitem alcançar mais concretamente a vida social em suas minúncias existenciais e barrocas. Sobretudo no terceiro prefácio, escrito em 1962, Freyre se revela impaciente no sentido de responder àqueles que o criticam por sua relação com a Literatura. É então que afirma mais uma vez que Literatura é, para ele, fonte de pesquisa sociológica e a forma empática de escrever é um recurso para atingir a complexidade da vida social. Em nenhum momento, porém, confessa querer ser reconhecido como literato. Ao contrário: apresenta a forma literária como um modo de ser melhor sociólogo. No limite, podemos então indagar: ora, se não reivindicasse um lugar entre cientistas sociais, por que então o esforço de Freyre no sentido de escrever um compêndio sistematizando conceitos e demarcando objetivamente a especificidade da Sociologia? Discutir o problema do lugar reivindicado por Freyre no campo intelectual brasileiro é menos um exercício de preciosismo, do que um meio através do qual colocamos a proposta sociológica dele no centro do debate e das preocupações que se destinam a conhecer a natureza das Ciências Sociais no Brasil. II Freyre, nesta longa discussão prefacial acerca da sociologia mista, existencial e barroca, da relação entre leis e pesquisas sociológicas, marca também uma posição que não é, tão simplesmente, sociológica. É, também, política no sentido amplo do termo. Sabemos que a discussão sobre a necessidade de dar conta concretamente da realidade social é, no Brasil, uma reivindicação antiga que marcou o pensamento brasileiro no início do século XX. Na primeira República, quando se dizia que os equívocos políticos resultavam do desconhecimento da realidade social nacional, surgiu esta reivindicação e, com ela, as condições para a constituição do conhecimento sociológico entre nós. De carona com esta reivindicação estava o pressuposto de que a realidade social brasileira, tão singular, não acomodava os ideais republicanos, compreendidos como universais. Nesse sentido, na origem da sociologia no Brasil há uma espécie de compromisso com o autoritarismo. Ao demarcar nossas particularidades e, com isso, 21 declarar inválidas leis sociais universais, invalidam-se, também, ideais liberais tais como democracia, cidadania, direitos civis, etc. Com efeito, o nosso trabalho de análise da natureza da proposta sociológica de Freyre parte da hipótese de que esta discussão em que Freyre crítica as generalizações sociológicas é, de fato, tributária desta concepção autoritária que, com ele, parece se recriar, ganhar novas cores (a negra) e se alongar até o século XXI não apenas em trabalhos acadêmicos das Ciências Sociais, mas também em produtos da indústria cultural. Nesse sentido, sua Tropicologia seria uma proposta de análise de coisas tropicais, por meio de métodos particulares para apontar soluções (por meio de uma engenharia social), também singulares, ou seja, muito distantes dos valores considerados universais. Não estamos aqui afirmando que o método sociológico que Freyre propõe seja inválido, nem que suas críticas às generalizações sociológicas sejam improcedentes. Mas não podemos esquecer que estas idéias se inserem dentro de uma tradição do pensamento brasileiro acerca da qual temos que refletir. Do mesmo modo, não basta dizer que suas idéias são oriundas de uma concepção autoritária (isso, aliás, já foi muitas vezes dito). É preciso conhecer profundamente seus argumentos, suas fontes, sua proposta intelectual para as Ciências Sociais e, se possível, entender por quais meios ela se reproduziu entre nós. Por fim, devemos nos esforçar por compreender em que medida ela é responsável também pela sociedade que agora temos entre nós. _________________________________________________________________________ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, Ronaldo Conde. Pequena bibliografia crítica do pensamento social brasileiro. Brasília: Paralelo, São Paulo: Marco Zero, 2000. FREYRE, Gilberto. Homens, engenharias e rumos sociais. Rio de Janeiro: Record, 1987. _______________. Sociologia: uma introdução ao estudo de seus princípios. 2 vols. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945. _______________. Sociologia: uma introdução ao estudo de seus princípios. 2 vols. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. _______________. Sociologia: uma introdução ao estudo de seus princípios. 2 vols. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962. SORÁ, Gustavo. “A construção sociológica de uma posição regionalista. Reflexões sobre a edição e recepção de Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. vol.13, no. 36, fevereiro de 1998. 22 23