Avatares do Nome Próprio

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Avatares do Nome Próprio
Chantal Hagué
Avatar vem do Sânscrito Avatara: designa, na religião hindu, cada uma das encarnações do
Deus Vishnu. No sentido figurado, significa metamorfose, transformação de um objeto ou de
um indivíduo que já tenha passado por várias outras, mas pode também tomar o sentido de
desventura. No domínio da informática, tem o sentido da aparência que toma uma pessoa num
universo gráfico virtual, às vezes em 3D, como no filme Avatar de James Cameron que faz
atualmente sucesso no mundo todo.
Penso que esta palavra convém satisfatoriamente ao que quero dizer a propósito das relações
entre o que Lacan chamou de "Nome-do-Pai", ou seja, o significante da função paterna, a que
organiza e estrutura a questão da metáfora paterna e o nome próprio, através dos reveses que
ele pode sofrer.
Se o nome próprio representa uma das vias de acesso possível do Nome-do-pai, estando os dois
numa relação direta, perguntei-me qual impacto uma mudança ou transformação do nome
poderia ter sobre o Nome-do-Pai e o que isto esconderia de uma depreciação do pai propícia a
prejudicar esta metáfora tão útil à construção do sujeito.
Outro ponto de questionamento: de acordo com uma lei recentemente promulgada na França, a
mãe pode escolher dar o seu sobrenome ao filho ao invés do sobrenome do pai, o que era o
usual há gerações (Brasil?). Quais podem ser os efeitos desta mudança nas regras de atribuição
do sobrenome? Como esta criança, criada numa família monoparental, e que ainda por cima
tem o sobrenome da mãe, vai poder escapar a este rebaixamento do pai, reduzido a mero
genitor, ou seja, escapar à depreciação de sua função, ou mesmo a sua forclusão?
Nós sabemos a importância que tem o nome próprio em toda análise. Nós devemos prestar
atenção a como se chama nosso paciente, na medida em que o nome próprio toca no mais
íntimo do sujeito.
O nome próprio é o que recebemos ao nascer, juntamente com um corpo sexuado e, após a
morte, é o que nos resta quando o corpo desaparece, seja inscrito numa lápide ou no atestado de
óbito. Recebemo-lo sem o escolher.
Em seu seminário sobre a identificação, Lacan precisa que a especificidade do nome próprio se
faz não em sua ausência de sentido, como pretende Russel, nem em sua caracterização sonora,
como pretende Gardiner, mas no arraigamento do sujeito no campo da linguagem, no campo do
Outro. Ele fala de uma relação da emissão nominadora com algo que, em sua natureza radical,
é da ordem da marca, do traço, da letra (dimensão do real). Prova disto é que o nome próprio se
transfere de uma língua para outra não podendo ser traduzido. Em contrapartida, é graças a ele
que pode-se decifrar uma língua desconhecida: basta apenas aguardar uma inscrição bilíngüe e
em seguida procura-se por um nome próprio, pois ele é mais ou menos o mesmo nas duas
línguas. Foi a partir dos nomes de Ptolomeu e Cleópatra que Champollion pôde decifrar a pedra
de Rosetta.
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Pode-se dizer então que o nome próprio esteja mais ligado do que qualquer outro à estrutura da
linguagem e, mais particularmente, ao traço que faz a unicidade do sujeito. E é nisto que ele
identifica o arraigamento do sujeito.
O nome próprio tem, assim, sua importância em toda análise pois suas letras podem se
encontrar nas formações do inconsciente do sujeito, assim como seus sonhos, seus lapsos e seus
sintomas. A clínica de Freud nos oferece vários exemplos, a começar pela análise do
esquecimento do nome Signorelli no qual Lacan vê como estas três letras “SIG,” são oriundas
do nome próprio de Sigmund Freud.
Em 1961, quando Lacan comenta sobre o novo episódio fóbico do pequeno Hans, onde suas
angústias se cristalizam não mais sobre os cavalos, mas sobre a grande girafa e a girafinha, ele
conhece o sobrenome de Hans? Naquele momento, em todo caso, ele não tece nenhum
comentário a respeito. Só apenas 15 anos mais tarde, no momento da publicação da versão
francesa das “Minutas da Sociedade Psicanalítica de Viena”, que descobriremos o nome do pai
de Hans: Max Graff (Graff/girafa). Na fantasia com as duas girafas, Hans, a sua maneira,
inscreveu algo de sua rivalidade utilizando as letras de seu nome.
Isto vem sustentar, em todo caso, a tese de Lacan sobre a função da fobia na medida em que ela
introduz uma saída significante chave que permite ao sujeito preservar uma amarra mínima
para não se sentir completamente à mercê do capricho materno. Este significante chave, num
segundo momento, é o nome do pai já que Hans utilizou seu nome para fabricar seu sonho e
nele inscrever algo do seu desejo. É ai que se articula a dimensão simbólica.
Em Lacan, a primeira aparição do Nome do Pai, ou seja, o pai como função simbólica data de
1951. Trata-se então da escritura no singular. O Nome do Pai é um impedimento para que a
criança não goze de sua mãe e, para a mãe um impedimento para que ela não goze de seu filho.
É um significante que representa tudo o que diz respeito à lei, à linguagem, ao nome. A tudo o
que diz respeito à diferença dos sexos. Em síntese, a tudo o que constitui a diferença e que
permite à criança sair da relação dual com a mãe. O pai é esta encarnação do significante, que
advém do fato que ele nomeia a criança com seu nome. Desta forma, ele intervém junto a este
como aquele que a priva de sua mãe. O nome designa, então, esta parte que a criança não tem,
que é orientada para um outro, que é nomeável pelo desejo da mãe: o Nome do Pai
Este triangulação entre a mãe, a criança e o Falo, que o pai real personificará ou não, será
vivido pela criança como “ser ou não ser o Falo”, donde a função estruturante do pai como o
aquele que nomeia a proibição edipiana. Esta metáfora paterna é por conseguinte uma operação
de castração. Lá onde falha o pai real, faz-se apelo ao pai simbólico cuja função é garantir a
castração. O pai não é, então, somente um genitor, mas uma função que depende da maneira
como um sujeito assume o significante no campo da linguagem.
Se o nome próprio tem esta função de sutura e não exatamente no mesmo lugar caso trate-se de
neurose, perversão ou psicose, quais são os efeitos sobre o sujeito quando há mudança ou
transformação do nome? Numerosos exemplos encontram-se em nossa clínica quotidiana.
No tratamento de adultos que foram crianças adotadas, a questão de seus nomes de origem
sempre aparece num momento ou outro. Quantos são aqueles que não o conhecem e que se
encontram face a um buraco inicial? Para aqueles que o conhecem, aparece a questão de como
foi que eles vieram a saber. Esta questões são abordadas nos casos de adoção, mas não somente
ai, pois elas concernem toda mudança de nome ligada à história particular de um sujeito.
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Como por exemplo, um paciente que descobre durante o tratamento que seu nome próprio é um
nome de origem judaica que foi afrancesado pelo pai após a guerra. Uma transformação do
nome, feita pelo pai ainda que por razões de sobrevivência, ou para uma integração mais fácil,
mas mantida escondida dos filhos não é sem efeito sobre o sujeito, devido ao ato da operação
de apagamento que ela comporta.
Penso em uma outra paciente que não era adotiva, mas fora abandonada após o nascimento e
depois resgatada por sua mãe e em seguida reconhecida por seu pai. Tudo isto nos primeiros
seis meses de vida. Sua mãe, oriunda de uma família marcada por vários abusos sexuais é
vitima, por sua vez, de um estupro. Torna-se um grande drama quando ela descobre, algumas
semanas depois, que esta grávida. Como saber quem é o pai? A primeira questão que se coloca
é quem é o genitor. O noivo queria que ela abortasse; ela recusou, mas devido a insistência do
noivo ela abandona a criança que, recolhida num Centro de Assistência Pública, recebeu um
primeiro sobrenome, que era na realidade um nome. Três meses depois a mãe vai buscá-la e a
reconhece. A paciente recebe nesta ocasião um segundo sobrenome, o da mãe. E em seguida,
como o noivo não queria saber da criança, ela a entrega para sua mãe para que esta cuide dela
durante o tempo necessário para que este homem reconheça a criança, de quem ele poderia
muito bem ser o pai. E foi o que aconteceu. Ele escolheu o período de Natal, como data
simbólica, para aceitar reconhecê-la. Sua certidão (livret de famille) carregava as marcas destas
inconveniências do desejo de seus pais: sobre as duas linhas acima do sobrenome do pai havia
dois sobrenomes riscados.
Um dia, quando ela tem 13 anos, seu pai lhe conta a verdade. Pouco tempo depois ela toma o
seu primeiro porre e é hospitalizada em coma alcoólico, o primeiro de muitos. Sua análise
trouxe à luz, dentre outros, o fato de que para ela este sintoma era um modo de se ausentar
como sujeito e que este desaparecimento estava ligado às rasuras inscritas em sua certidão
(livret de famille), aos diferentes nomes que lhe foram atribuídos durante seus primeiros seis
meses de vida, como aos vários outros traços de um percurso particularmente caótico.
Ao invés de reconhecer este pai que de algum modo a havia adotado, mas, ao contrário,
recusando-lhe esta função do Nome-do-Pai, ela o acusava violentamente de ter forçado sua mãe
a abandoná-la. Isto permitia a esta paciente de colocá-lo no rol dos homens estupradores. Os
homens eram desprezíveis e ela era homossexual.
A propósito de uma mãe que se perguntava se ela deveria trocar o sobrenome do seu primeiro
filho, filho este que ela teve com um homem que depois desapareceu, para assim poder dar-lhe
o sobrenome do pai dos seus outros filhos e colocá-lo desta forma no mesmo pé que os outros,
Françoise Dolto respondeu: “uma criança que recebeu um nome deve guardá-lo por toda sua
vida, a menos que este nome tenha sido trocado quando a criança era muita pequena, antes
mesmo que ela pudesse falar....trocar o nome de uma criança aos 10 anos é comparável a uma
fratura de coluna para o inconsciente”.
Em seu artigo “Changer de nom: manquer à perdre” publicado no volume 7 de Clinique
Lacanienne, Jean Pierre Lebrun considera esta opinião muito exagerada e super-egóica. Ele,
entretanto, relança neste artigo a questão fundamental sobre o peso que pode representar para o
sujeito uma mudança de nome. “É que na troca do nome o que pode ser induzido é o risco
crucial de se perder a operação da perda” O nome próprio é aquilo que, presumindo a
potencialidade de um sujeito se sustentar de sua própria enunciação, designa esta operação
necessária do que um sujeito possa se dizer e não somente ser dito. Disto, ele é a própria
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cicatriz. Ele é a cicatriz da humanização do sujeito. Cicatriz que, a exemplo do umbigo, é a
marca de um corte, do corte significante. O nome próprio é o nome da inominável perda.
Em nome da liberdade individual e com a multiplicação das ofertas sedutoras que nos oferecem
a ciência, uma das características da contemporaneidade no Ocidente, mas também em certos
países emergentes, é a importância dada à escolha: escolha do modo de procriação, escolha de
um novo rosto por meio da cirurgia plástica, escolha de um outro sexo para os transexuais,
etc... As regras da atribuição do nome de família também sofrem as inconveniências desta
tendência. Na França, desde janeiro de 2005, a lei autoriza aos pais darem a seus filhos, o
nome do pai, ou o nome da mãe, ou os dois nomes juntos na ordem que escolherem. O que
pensar desta lei social que coloca numa equivalência falsamente simétrica o sobrenome
materno e o sobrenome paterno? (matronyme e patronyme)
Parece-me evidente que esta função do Nome-do-Pai funcionará de forma diferente para o
sujeito caso o seu sobrenome seja o do pai ou o da mãe. O que dizer do sujeito quando a
criança tem, não o sobrenome do pai, mas o da mãe? Como a metáfora paterna será sustentada
pela mãe quando esta preferir dar o seu sobrenome a seu filho ao invés do sobrenome do pai?
Ter o sobrenome do pai nunca foi uma garantia de boa saúde psíquica, mas não existe nesta lei
o risco de se acentuar uma deriva com efeitos imprevisíveis e com contra-golpes para o sujeito?
O fato de que a lei encoraje aquilo que abole a estruturação subjetiva não cria-se ai um risco de
desintegração da metáfora paterna, seja para uma menina ou para um menino?
Estas mutações contemporâneas da promoção do gozo sob forma do imperativo e sem
temporização do dispositivo narcísico, afetam as condições da identidade subjetiva que, de
agora em diante não estão mais sob o primado do Falo, da interdição e da castração, mas sim
das leis do mercado desregulado e das leis da troca.
Temo que os efeitos nocivos desta lei só serão avaliados na geração seguinte. De acordo com
esta lei, os filhos por sua vez poderão escolher para os seus filhos o sobrenome do pai ou o da
mãe. Quando é o sobrenome da mãe que eles escolherão, em função da tendência edipiana, ao
custo de quais sintomas estas crianças terão que assumir a culpabilidade de terem tido o nome
do pai suprimido?
Algumas pessoas trocaram de nome pois este lhes parecia ridículo. A lei também permite isto.
O que se coloca aqui, é a questão do nome próprio ligado a um significante marcante demais
que põe o imaginário em primeiro plano e que corre o risco de esmagar o significante do
Nome-do-Pai como função. Quando o significado se põe em primeiro plano, isto traz o risco do
significante do Nome-do–Pai não ser mais operante.
Um paciente me explica que seu filho de 13 anos falou-lhe de sua intenção de trocar seu nome
tão ridículo logo que pudesse, nome este alvo das brincadeiras de seus colegas. Ele respondeu
prontamente que sim, que ele estava de acordo. Ele mesmo havia vivido esta situação de
deboche, tanto quanto sua mãe logo que se casou com o pai e adquiriu o sobrenome. Ele deu
seu sobrenome ao filho, mas não às duas filhas, às quais ele havia dado o sobrenome da mãe. A
mais velha apresentou, desde a escola primária, um sintoma de debilidade do qual ela se livrou
graças a um trabalho psicanalítico e a segunda começava, no momento desta sequência clínica,
a apresentar o mesmo sintoma que sua irmã. Eu o fiz observar que trocar de nome não era coisa
simples, que não se abandonava o nome do pai dessa forma. Esta observação tocou-o num
ponto delicado pois, na sessão seguinte, ele anunciou-me que estava pensando em interromper
as sessões. Felizmente o tratamento pôde continuar.
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O que dizer deste pai, de sua relação ao Nome-do-Pai e a terceirização que esta função
representa? Não é em função de sua própria relação à metáfora paterna que ele poderá ou não
transmitir a seu filho algo desta terceirização?
Mais tarde em sua teorização, Lacan dará ao Nome-do-Pai uma ancoragem ainda maior no
registro da nominação. O Nome-do-Pai torna-se ao mesmo tempo o nome dado ao Pai (aquele
reconhecido pela mãe e que ocupa seu lugar na metáfora paterna), o nome pelo qual o pai pode
se designar (o Pai que responde à questão de seu nome), e o nome dado pelo Pai. Não é apenas
o nome dado ao pai, mas o nome dado pelo Pai. Esta inversão de sentido é sustentado pelo
buraco do nó borromeano, “ um buraco inimaginável”, como o qualifica Lacan e que
prossegue: “A nominação é a única coisa da qual temos certeza que faça buraco”
Eu proponho-lhes uma última vinheta clínica que ilustra, ao que me parece, esta idéia. Um
paciente conta um sonho: “eu ia ver alguém, um tipo mais para jovem, que estava preso num
lugar, algo entre um hospital e uma prisão. Ele estava sozinho numa escuridão total. Eu falava
com ele e, no momento de partir, como eu ia abandoná-lo, eu lhe deixo o meu nome.” (quer
dizer, seu sobrenome paterno).
Eu não entrarei nos detalhes, mas este sonho foi um ponto de virada em seu tratamento. A
partir daí, ele falou do seu sofrimento quando criança, que tinha sido como uma “agonia” em
relação ao apagamento de seu pai, “desaparecido antes de tornar-se” como ele mesmo dizia. Ele
responsabilizou a veneração que seu pai tinha por sua própria mãe morta muito cedo, o fato que
este pai o havia “abandonado” ao longo de sua infância a uma mãe melancólica. Seu pai lhe
repetia: “sua mãe esta muito cansada, seja bem-comportado com ela”, antes de partir para
longas viagens.
Parece-me que neste sonho, pela chamada do seu nome próprio, nao é sequer o Pai imaginário
que é convocado para tentar mitigar as insuficiências do pai real: é o Pai simbólico, como
última instância, que é chamado a socorrer neste estado de angústia e de desastre narcísico.
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