Encenação e Cenografia para Dança 2 Encenação e Cenografia para Dança Eliana Rodrigues Silva Eliana Rodrigues Silva Pó s - d o u t o r a p e l a U n i ve r s i té d e Pa r i s 8 , D o u to r a e m A r te s Cê n i c a s , p r o f e s s o r a e e x- D i r e t o r a d a E s co l a d e D a n ç a , U FBA . e - m a i l : l i a r o d r i g u e s1@ h o t m a i l . co m Dedicado a Ewald Hackler 19 NABSTRACTRESUMORESUMENABSTRACR resumo abstract resumen Este ensaio pretende traçar um panorama sobre as funções e características da cenografia e de elementos cênicos para a dança, através da observação e análise de alguns exemplos representativos do Ballet Clássico, da Dança Moderna, Pós-Moderna e Contemporânea. Palavras-chave: dança; coreografia; cenografia; crítica. This article intends to discuss several functions and characteristics on scenery conception and scenic elements for dance, through observation and critical analysis of Classical Ballet, Modern, Post Modern and Contemporary dance pieces. Key-words: dance; scenery; choreography; criticism. Este ensayo pretende delinear un panorama sobre las funciones y características de la escenografía y de los elementos escénicos para la danza, por medio de la observación y el análisis de algunos ejemplos significativos del Ballet Clásico, de la Danza Moderna, de la Danza Posmoderna Y de la Danza Contemporanea. Palabras-clave: danza; escenografia; coreografia; crítica. Encenação e Cenografia para Dança Eliana Rodrigues Silva A primeira impressão que o público tem de uma apresentação teatral, seja em palcos convencionais ou em espaços alternativos, é a composição do espaço cênico. Quando a platéia adentra um espaço de apresentação teatral ou quando a cortina se abre, a primeira percepção da identidade do trabalho é estabelecida através da captação visual do aparato cênico. Ali, frente ao público, estão elementos que vão definir o espaço e, muitas vezes, o tempo da ação, seja de forma realística ou simbólica. Como se fosse uma pintura onde personagens irão atuar, a arquitetura do espaço cênico, da iluminação, bem como a escolha e a manipulação de objetos e outros recursos, são os elementos que vão propiciar a identificação e contato entre palco e platéia. A função básica dessa composição é, então, localizar, elucidar e identificar visualmente a ação num ambiente que trará significado aos elementos dramáticos do trabalho escolhido, enfatizando o tema, o enredo e o ambiente emocional. Independente da natureza do trabalho definir-se como encenação de uma forma literária, como na tragédia clássica; de uma forma musical, como na ópera; ou, ainda, a montagem de espetáculos que se baseiam em som e imagem, como é o caso do ballet clássico e da dança moderna, o design apropriado de cena deve sempre enfatizar a ação. Nas formas literárias, o espaço cênico define-se a partir da natureza das peças e do enredo propriamente dito. Segundo Pavis (1996, p.122) “[...] nas tragédias clássicas o espaço é um lugar de passagem, que não caracteriza o meio, mas parece favorecer um suporte intelectual e moral para o personagem. É um lugar abstrato e simbólico. Tudo significa pela diferença e toda caracterização é supérflua.” No espaço das peças de caráter naturalista, ao contrário, a cenografia deve recriar ao máximo a realidade que cerca os personagens. Assim como no texto, a cena deve mostrar com fidelidade a vida em seus aspectos sociais, históricos, econômicos e até morais. Antoine (1858-1943), fundador do Teatro Livre, explorou com propriedade o princípio de transpor para o palco a realidade cotidiana. Para O Pato Selvagem, de Ibsen, Antoine trouxe pinho da Suécia para a França no intuito de conferir veracidade ao cenário através do aroma inalado pela madeira. Em meados de 1888, ele concebeu também o cenário para Les Banches, de F. Icres, pendurando em cena enormes pedaços de carne recém-cortadas em açougue, chocando o público e a crítica na época. Por outro lado, o espaço simbólico desmaterializa o meio e o estiliza em universos subjetivos ou oníricos, dando à cena uma lógica diferente da realista, como é o caso, por exemplo, dos cenários criados para peças como O Sonho, de Stringberg . “O espaço perde então toda a especificidade em favor de uma síntese das artes cênicas e de uma atmosfera global de irrealidade (Gesamtkunstwerk)” (Pavis, 1996, p.122). 21 diálogos possíveis w w w. f sb a . e du . b r/d i a l o g o sp o ssi ve is janeiro/junho 2007 O espaço expressionista, por sua vez, segue os princípios da parábola e molda-se em lugares definidos como a prisão, a rua ou o asilo e é testemunha de uma crise profunda que dilacera a consciência ideológica dos personagens. Sem sutilezas, o espaço parece querer traduzir a crise interior do ser humano e os cenários são distorcidos atestando esse desconforto, exatamente de acordo com o espírito da pintura expressionista. Um bom exemplo desse espaço é Von Morgens bis Mitternatch, de G. Kayser, encenada em torno de 1920. Obra chave do Expressionismo alemão, essa peça vai contestar os pilares da sociedade, tendo no enredo a mudança radical da perspectiva da vida de um simples bancário num cenário onde a cidade torna-se um espaço ameaçador e deformado como reflexo da desarrumação interna do personagem. Contudo, independentemente da escolha e do tratamento temático, do estilo e da natureza do trabalho, a plasticidade dramática é inseparável de uma abordagem visual. Nas comédias modernas, por exemplo, os recursos de aumentar ou reduzir proporções dos elementos de cena são largamente usados no sentido de fortalecer a comicidade. O recurso de distorcer as proporções abre uma brecha dialética entre personagens e espaço, sugerindo a pequenez ou a grandeza dos primeiros em relação às instituições ou à vida social propriamente dita. A concepção cenográfica para espetáculos de dança, por outro lado, precisa atender a demandas específicas, uma vez que o espaço cênico vai ser definido a partir dos padrões criados pela coreografia. O design de cena para a dança precisa oferecer bastante espaço vazio para que os dançarinos tenham amplas possibilidades de movimentação em todas as direções. O Ballet Clássico, mais ainda que a Dança Moderna ou Contemporânea, objetiva fazer o corpo do dançarino crescer em cena e tornar-se livre. O cenógrafo precisa ajudar a criar essa ilusão de liberdade e amplidão. O palco de dança, quando não há movimento, é essencialmente percebido pela platéia apenas em suas dimensões básicas de altura e largura. É exatamente o movimento que vai revelar a presença da terceira dimensão, dando volume e, conseqüentemente, dinâmica ao espaço. Originalmente, a cenografia para dança foi, por natureza, um objeto estético sem autonomia, de caráter puramente decorativo, condicionado ao significado do conjunto a que pertencia, com cujos elementos se articulava. A partir do momento em que as danças populares foram trazidas para a corte no século XV, na França e Itália, passando a entretenimento de nobres, a dança começa a tomar novas feições de espetáculo. O Ballet de Cour ou Dança Palaciana era uma fórmula de mídia mista na qual a poesia, a pintura, a música e a dança desempenhavam papéis iguais, com a consideração adicional de que os personagens principais espelhavam a pirâmide do poder. 22 Encenação e Cenografia para Dança Eliana Rodrigues Silva O divertissement era representado pela nobreza para a nobreza e esse modelo viveu seu ápice em 1581, com o Ballet Comique de la Reyne Louise, transformando-se com o tempo em Ballet Melodramatique (que veio a ser a ópera italiana) e, finalmente, no Ballet à Entrée. Esse último gênero consistia em números encenados de teatro com interlúdios de dança, sendo, portanto, o precursor dos ballets narrativos do Rei Luís XIV, o Rei Sol. O Ballet Comique de la Reyne Louise, por exemplo, encenada na Salle Bourbon do Pallais du Louvre em 1581, tinha, no enredo, o resgate de Ulisses das mãos de Circe, a feiticeira má. De um lado da imensa sala sentava-se o Rei, com cortesãos a sua volta. Na outra extremidade, um enorme telão pintado representando e palácio e os jardins de Circe. Carruagens magníficas e carros alegóricos com fontes de quatro andares e florestas montadas atravessavam o espaço, intercalando a ação com números de música, dança ou poesia, numa clara tendência para o exagero e o maneirismo. Quando a dança sai das cortes e começa a freqüentar salas teatrais, essa maquinaria grandiosa é substituída pela pintura de telões e alguns objetos complementares em cena. Esses telões pintados eram cenários ilusionistas magníficos e compunham a montagem de maneira espetacular e opulenta. O modelo das danças narrativas teve o seu apogeu no século XIX com os ballets românticos, nos quais histórias povoadas de fadas, ninfas, bonecas e princesas faziam o deleite da audiência, demandando uma cenografia compatível com o clima de sonho e irrealidade. Em geral, os ballets românticos apresentavam um primeiro ato com cenas que se passavam num palácio ou numa aldeia e um segundo e terceiros atos, chamados de ballet branco, em ambientes com características mais irreais, reinos de sombras, lagos encantados, cenários fantasiosos, como é exatamente o que ocorre em O Lago dos Cisnes, Giselle, O Quebra-Nozes e em muitos outros ballets. Serge Diaghilev, diretor dos Ballets Russes, no início do século XX, revolucionou o panorama do ballet, especialmente no que diz respeito à concepção de cenografia e figurino. Diaghilev trabalhou em colaboração com alguns dos maiores artistas plásticos do nosso século como, por exemplo, Picasso, Matisse, De Chirico, Ernst e Miró, além de compositores como Debussy, Satie e Ravel e de dançarinos excepcionais, como Nijinsky e Danilova. Os cenógrafos mais freqüentes para as montagens do Ballets Russes foram Alexander Benois e Leon Bakst, dois artistas que modificaram significativamente a concepção meramente decorativa do cenário para a dança, concedendo-lhe a importância de obra de arte autônoma. O belíssimo design de Benois para o ballet Petroushka (1911), numa explosão de cores primárias ou a beleza da composição cênica para Shéhérazade (1910), de Baskt, justificam a sua encenação até os dias de hoje, talvez muito mais pelo valor artístico e estético do 23 diálogos possíveis w w w. f sb a . e du . b r/d i a l o g o sp o ssi ve is janeiro/junho 2007 seu design do que propriamente pela coreografia. A cenografia evoluiu de um simples elemento de adorno para ter um significado essencial e autônomo devido à sua qualidade pictórica, podendo, inclusive, ser admirada por si própria. Ao lado dessa concepção cenográfica decorativa, outra corrente começa a se formar e a defender o design de cena estrutural em lugar de puramente pictórico. Para esses artistas, o décor devia ser integral e não incidental; devia revelar e não apenas decorar o ambiente; devia ser escultural e simbólico, como nos sistemas criados por Adolphe Appia (1862-1928) e Gordon Craig (1872-1966), nos quais o cenário pintado devia ser substituído por formas plásticas, esculturas, plataformas ou escadarias. Appia e Craig, reformadores da mise en scène teatral, defendiam a concepção de cenografia como um corpo vivo no espaço, com um jogo rítmico próprio. Essa concepção conjugava-se perfeitamente com os experimentos iniciais de Isadora Duncan na proposta de dança expressiva e também Loie Füller, nas invenções com iluminação. A dança moderna, com austeridade de concepção, trouxe na sua gênese a possibilidade de se utilizar o palco sem qualquer adorno ou referência. A ênfase deveria ser no movimento expressivo e qualquer outra interferência não era bem-vinda. O despojamento cenográfico permitia apenas o uso de cortina de fundo preta ou ciclorama e, em algumas criações, podemos observar a utilização de plataformas ou rampas em cena, como é o caso, por exemplo, de With my Red Fires (1937), de Doris Humprhey. Nesse sentido, a idéia cenográfica dos sistemas de Appia se encaixava com perfeição à criação coreográfica da época. A cena crua, austera e com bons recursos de luz pode ser perfeitamente observada em Der Grune Tisch, de Kurt Jooss (1932), coreografia de caráter sócio-crítico sobre os horrores da guerra. Com estrutura episódica, a coreografia começa com uma grande mesa de bilhar num palco nu, com pano de fundo negro, onde discutem veementemente dez políticos vestidos de fraque e máscaras grotescas. As cenas sucedem-se, tendo como presença constante a morte, numa alusão às danças macabras da Idade Média e apenas recursos de luz, na maioria focos e luz quentes, como o vermelho ou amarelo, são utilizados. Essa austeridade estética, no entanto, vai ganhar aspectos novos a partir da colaboração entre a coreógrafa Martha Graham e o escultor Isamu Noguchi, iniciada em meados dos anos trinta. Noguchi trouxe para a cena da dança esculturas e objetos que, além de compor esteticamente o ambiente, provocavam uma leitura de referência imediata na platéia. A coreógrafa, com sua habilidade teatral única, extraía desses objetos suas propostas fundamentais e transformavaos em verdadeiras extensões do corpo e do movimento do dançarino, fazendo-os participarem ativamente da coreografia. A cenografia 24 Encenação e Cenografia para Dança Eliana Rodrigues Silva tornava-se um prolongamento da coreografia e vice-versa. Frontier (1935), coreografia que se tornaria um ícone da dança moderna e expressava a luta, determinação e orgulho dos pioneiros colonizadores da América, tem o seu cenário assim descrito pelo próprio Noguchi: Frontier foi meu primeiro cenário. Era para mim a gênesis de uma idéia preencher o imenso espaço vazio para dar forma a ação. Uma corda, pendurada nos dois cantos superiores do proscênio terminava na área central do fundo do palco, seccionando e espaço tridimensional do palco. Essas linhas pareciam querer atirar todo o volume de ar sobre a cabeça dos espectadores. Na convergência das cordas, coloquei uma cerca onde a coreografia deveria começar e terminar. As cordas brancas criaram uma sensação curiosa - uma convergência do olhar e ao mesmo tempo, um escape para o infinito. Esse cenário foi o ponto de partida para todo o meu trabalho daí por diante: o espaço se tornaria um volume que deveria ser trabalhado como uma escultura (apud Steinberg, 1980, p.184). Graham e Noguchi trabalharam juntos durante quatro décadas e pode-se dizer que essa longa colaboração influenciou o trabalho de ambos. Como uma via de mão dupla, o escultor colocava em cena o quadro imaginado pela coreógrafa que, por sua vez, dava vida ao cenário. Colaborações estreitas como essa, em que o trabalho de dois artistas completam-se e influenciam-se mutuamente, podem ser observadas na obra de Bertold Brecht com o cenógrafo Caspar Neher, que, em muitos dos seus sketches, já desenhava o personagem, influenciando, dessa forma, a montagem. Srindberg e o artista plástico Edvard Munch ou Diaghilev e o cenógrafo Leon Bakst também trabalharam em estreita colaboração. Em meados dos anos cinqüenta, Merce Cunningham, ex-solista da Martha Graham Dance Company, propôs uma série de modificações na concepção coreográfica e cênica para a dança, quebrando todos os cânones regulamentares da Dança Moderna. Dentre outras premissas básicas, sua proposta artística determinava que qualquer espaço seria passível de ser coreografado, fosse ele construído ou não para fins cênicos. Ao lado do palco italiano tradicional, as possibilidades cênicas se ampliaram generosamente. Muitos experimentos foram feitos e a dança passou a ser encenada em espaços absolutamente inusitados, como em estacionamentos de shoppings, praças, topos de arranha céus, museus e galerias de arte ou mesmo dentro da casa dos coreógrafos, mudando radicalmente a “planta baixa” da composição coreográfica e, conseqüentemente, a perspectiva e a experiência do espectador. A utilização da iluminação e objetos cênicos como elementos de design cenográfico também ampliou-se a partir dos experimentos de Alvin Nikolais a partir dos anos sessenta. Acusado por alguns críticos de despersonalizar os dançarinos, tornando-os meros suportes para a cenografia, Nikolais compôs através da manipulação de objetos, tecidos, estruturas tubulares, esculturas e iluminação, sendo um 25 diálogos possíveis w w w. f sb a . e du . b r/d i a l o g o sp o ssi ve is janeiro/junho 2007 dos precursores da tecnologia visual para a cena da dança. A partir desse momento histórico, a pluralidade pós-moderna instala-se numa combinação entre a ironia do pastiche e as referências de correntes anteriores, com citações literais ou modificadas. Muitas são as possibilidades da concepção cenográfica para a cena de dança e teatro a partir dos anos de 1960. A utilização de outros media de comunicação como recursos audio-visuais, possibilidades amplas de escolha e manipulação espacial, variedade de materiais para construção de cenários mas, principalmente, a liberdade artística, enriqueceram sobremodo a criação cenográfica. O que se vê hoje pode variar de simples telões pintados ou a austeridade do palco da dança moderna, projeções de slides e filmes, recursos poderosos de iluminação, cenas que se transformam magicamente perante os olhos da platéia através de maquinaria e alta tecnologia, utilização dos mais inusitados objetos cênicos e mesmo elementos da natureza como água, terra ou fogo fazendo parte do cenário. A primeira versão de Education of a Girlchild (1972), da coreógrafa pós-moderna Meredith Monk, foi apresentada em sua própria casa, para provocar a impressão de um espaço-realidade. Da mesma coreógrafa, Juice (1969) é apresentado nas rampas do Guggenheim Museum de New York. Na mesma década, o Ballet Stagium, de São Paulo, apresentou-se para as populações ribeirinhas do Rio Amazonas sobre uma plataforma flutuante intinerante. O grupo de butoh japonês Sankai Juku concebeu um espetáculo no qual cinco dançarinos descem lentamente em cordas do topo de um prédio em Manhattan no início dos anos de 1980. Em Strange Fish (1992), coreografia do grupo inglês DV8, na sua versão para vídeo da BBC de Londres, sob direção de Lloyd Newson, a ação modifica-se conforme o espaço apresentado. Desenvolvido numa seqüência de quinze cenas, o espaço alterna a ação entre uma capela, um corredor, um quarto e um bar. O corredor parece fazer o papel de centro nervoso da coreografia, uma vez que é o elemento de repetição entre as cenas além de situar-se exatamente no centro dos ambientes. No entanto, se à primeira vista a construção do espaço teatral parece seguir as características de espaço realista (como aquele que se utiliza no drama puro, com importância fundamental para a definição da ação e dos personagens), à medida em que o trabalho desenvolve-se, o espaço fluidifica-se, alterando-se e tomando características claras do drama lírico, isso é, como se fosse o reflexo do mundo interior das personagens. Uma cena chama especial atenção desse aspecto, quando as tábuas do chão do quarto começam a soltar-se como num terremoto, formando-se um poço de água muito suja de onde começa a emergir um braço de alguém que se debate querendo sair. Essa é sem dúvida uma construção metafórica interessante entre ambiente físico e emocional. Por outro lado a repetição do uso espacial do corredor, como centro convergente da ação confirma a idéia de que o ambiente não é moldura determinante para a ação (Rodrigues, 2003-2004, p.15). O grupo Tran Chan, na Oficina de Dança Contemporânea de 1987, 26 Encenação e Cenografia para Dança Eliana Rodrigues Silva apresentou a coreografia E o Lixo Cultural Dançou, em que uma de suas cenas acontecia na rampa de entrada da platéia do Teatro Castro Alves. Em um outro espetáculo do mesmo grupo, Quase Com Certeza (1981), o final do espetáculo acontecia quando as dançarinas saíam correndo do palco do então Teatro Santo Antônio, da UFBA, e dançavam nos jardins externos, penduradas em gangorras. Lia Robatto dirigiu o espetáculo Mobilização em 1978, para um elenco de oitenta participantes, entre músicos, atores, dançarinos e artistas plásticos numa interessante proposta cênica de utilização de todo o espaço físico do Teatro Castro Alves. A platéia intinerante assistia cenas simultâneas acontecendo na marquise externa, no foyer, no palco, na platéia, nos camarins, nas coxias, nos bastidores e até na casa de máquinas. O espetáculo Dança?!, do Grupo Ecos de Salvador, apresentou-se em 1980 na sala principal de exposições do Museu de Arte Moderna, Solar do Unhão, contando com o design cenográfico do artista plástico Murilo e coreografia de Lia Rodrigues, Lívia Serafim e Leda Muhana. Nesse trabalho, os espectadores sentavam-se no meio do espaço entre os pilares de sustentação do telhado e as cenas ocorriam ao redor da platéia. O público acompanhava o desenrolar da apresentação mudando o seu ângulo de observação e cada cena contava com elementos cênicos diferenciados, como grandes cubos coloridos, tecidos e barras de exercício dentre outros. Além disso, a concepção cenográfica e coreográfica utilizava também elementos da própria arquitetura local como as janelas, as vigas do telhado e a bela escadaria de acesso à sala. Essa mesma concepção de platéia móvel pôde ser observada na montagem para Divinas Palavras, de V. d’el Inclán, direção de Nehle Franke, no Teatro Gregório de Matos em Salvador, 1998. A arquibancada, sustentada por andaimes sobre roldanas, movia-se em espaço semicircular ao longo do espetáculo frente a diversos cenários interligados que representavam a caatinga, cercas, trilhas, casinhas de barro batido, o ambiente de um bar e uma feira. Ainda nessa concepção, foi criada a encenação para o espetáculo Ilnx, do Grupo de Dança Contemporânea da UFBA em 2006, sob direção de Leda Muhana. Enquanto a coreografia se desenvolvia simultaneamente em vários espaços do teatro, também a platéia, que se sentava em praticáveis com roldanas, se movia, se desmembrava e voltava a se reunir com diversas formações espaciais, provocando uma experiência sui generis na platéia. Mesmo no palco tradicional italiano, as inovações cenográficas para a dança e o teatro têm ocorrido de forma engenhosa e criativa, especialmente no que concerne à utilização de elementos cênicos. Sunday in the Park with George (1984), dirigido por James Lapine, com música composta por Stephen Sonheim, constitui um bom exemplo de apuro cenográfico para palco convencional. Uma elegia à 27 diálogos possíveis w w w. f sb a . e du . b r/d i a l o g o sp o ssi ve is janeiro/junho 2007 obra de George Seurat, esse espetáculo foi considerado como musical modernista de grande genialidade. O leitmotiv da obra é o quadro L´aprés midi à Grande Jatte (1884), que mostra uma multidão de burgueses parisienses do século XIX em um parque e que constituiu, com seu tratamento metódico e sua objetividade quase científica, de certa forma, um manifesto contra a pintura mais livre e “genial” dos impressionistas. O espetáculo acontece à medida que Seurat pinta o seu quadro e, no final do primeiro ato, o que vemos em cena é uma reprodução da obra, construída com telões pintados, efeitos de luz, alguns objetos e personagens, numa imagem bastante fiel ao pontilhismo de Seurat. A coreografia Whisper Moon (1985), de William Forsythe, cenografia de Axel Mantley, para o Stuttgart Ballet se utiliza da composição rítmica do cenário desenvolvida pelos sistemas de Appia. Rampas e plataformas, iluminação climática em tons de azul, figurinos e elementos cênicos que enfatizam o grotesco e as distorções do expressionismo alemão compõem a cena de maneira uniforme e impactante. Em 1990, o Grupo Corpo, de Minas Gerais, apresentou o trabalho 21, coreografia de Rodrigo Pederneiras e cenografia de Paulo Pederneiras. A coreografia propõe traçar um painel vivo da cultura popular, inicia com iluminação e figurino monocromático que, aos poucos, vai se enchendo de cores. Na cena final, bailarinos com malhas multicoloridas e um telão de fundo pintado como se fosse uma imensa e colorida colcha de retalhos, remete de imediato à riqueza e explosão de cores da brasilidade. Um outro trabalho do mesmo grupo, intitulado Bach (1997), constitui um exemplo do casamento entre coreografia/música/cenografia. Trata-se de um coreografia abstrata com a criação musical livre de Marco Antônio Guimarães sobre música de Bach para órgão, em que a cenografia brinca não só com a textura, a qualidade musical, mas também com a imagem dos princípios construtivistas góticos e da tensão entre o profano e o divino. O trabalho inicia-se com enormes pingentes dourados (quem sabe, numa alusão aos tubos sonoros do órgão) que descem do teto do palco frente ao ciclorama azul profundo. Depois da introdução musical, que dá tempo à platéia de usufruir da bela imagem e fazer sua leitura referencial, os dançarinos descem por esses pingentes e a coreografia se desenvolve, numa constante alusão à busca do homem pelo divino em oposição à sua condição profana e terrena. A luz enquanto elemento cênico tem sido utilizada pela dança, uma vez que é uma forma de composição que não interfere no espaço da dança propriamente dito, pelo contrário, o define e amplia. A iluminação para coreografia não só fornece o clima desejado, mas também pode delimitar espaços e definir cenas com muita precisão. A coreógrafa Ana Vitória Freire, ex-componente do Grupo Tran 28 Encenação e Cenografia para Dança Eliana Rodrigues Silva Chan, no solo intitulado Valises (1997), desenvolve o seu trabalho a partir de um corredor de luz que parte da diagonal direita baixa e desaparece na esquerda alta. Sempre olhando para trás e carregando uma mala em cada mão, a coreografia evolui à medida em que o corredor vai diminuindo até que, finalmente, a dançarina sai do palco e o que ainda resta de luz se apaga. A iluminação cumpre aí papel essencial no sentido de que define precisamente a idéia de tempo que se esvai e dos caminhos sem retorno que uma pessoa pode escolher na sua vida. Por outro lado, uma outra concepção tem se tornado recorrente nas produções coreográficas contemporâneas, quando o chão do palco é totalmente preenchido. Pina Bausch e o seu Tanztheater, em muitas coreografias desconstrói a cena de palco despojado, cobrindo o chão com um tapete de flores, pinheiros, terra, lixo ou água. Sem lançar mão de recursos tecnológicos sofisticados, Pina afirma que “gosta de ver como esses elementos interagem com o movimento e como eles provocam emocionalmente os dançarinos” (Serroni, 1994, p.126). Em Nelken (1998), peça comemorativa dos vinte e cinco anos da companhia, Pina encheu o palco de cravos, por onde passeia uma dançarina nua tocando um acordeón. Café Müller (1980) acontece numa sala abarrotada de cadeiras onde a própria coreógrafa dançava de olhos vendados. Em O Barba Azul (1977), o palco está coberto de papel rasgado e lixo. No Ateliê de Coreógrafos Brasileiros, em 2003, Jussara Miranda, na coreografia 3 Motivos, cobriu o palco do Teatro Castro Alves com uma infinidade de garrafas pet vazias, elementos emblemáticos da cultura urbana, compondo, de forma muito precisa, a cenografia. Unetsu (1986), coreografia e design cenográfico de Ushio Amagatsu para o grupo Sankai Juku, provoca na platéia uma sensação de suspensão do tempo, a partir do recurso de colocar em cena um fio de areia que cai lentamente do teto do palco, como se fosse uma ampulheta, durante todo o tempo da apresentação. Além da beleza da imagem, cria-se um tempo virtual quase hipnótico, completando com clareza a proposta da coreografia. Suzanne Linke, coreógrafa alemã da mesma linha de Bausch, num dos seus mais belos solos, intitulado In Bade-Wannen (1984), faz uma banheira transformar-se em seu partner. Com música de Erik Satie, Linke dança dentro, em volta e com a banheira, como um cão preso numa corrente em volta de uma árvore, desesperançosa e, ao mesmo tempo, profundamente apaixona por essa escravidão. Ainda na corrente da dança-teatro, Johann Kresnic, em obra sobre a vida da poeta Sylvia Plath, coloca em cena fragmentos da realidade cotidiana da escritora como, por exemplo, sua mesa de trabalho, sua máquina de escrever, sua cama e o fogão onde ela colocou a cabeça para suicidar-se. Silent Cries (1996) é um solo de Jiri Kylian, para o Nederlands 29 diálogos possíveis w w w. f sb a . e du . b r/d i a l o g o sp o ssi ve is janeiro/junho 2007 Tanz Theater, com música de Debussy, que mostra uma dançarina dentro de um cubo de vidro, iluminado perpendicularmente. À medida que o solo progride, a dançarina, com seus movimentos vai pintando as paredes da sua suposta prisão e a dança termina quando não podemos mais vê-la. O uso de elementos e objetos é uma tônica quase sempre presente nos trabalhos do Tran Chan, uma vez que não aparecem apenas como complemento de cena ou mero décor. Em algumas peças, esses elementos são agentes propiciadores da movimentação, como, por exemplo, na coreografia Coisas Miúdas (1997), de Betti Grebler, na qual bolsas são usadas e tomam uma imensa gama de significados, como âncoras, proteção, muletas, desafio, funcionando, muitas vezes, como chave para a criação do movimento, para a construção dos personagens e para a interpretação por parte do público. Uma coreografia que exemplifica bem esse princípio é Aérea 1 (1993), também de Betti Grebler. Cinco dançarinas fazem evoluções com pequenas bolas nas mãos, num exercício contínuo de ludicidade e precisão espacial matemática. A movimentação é absolutamente orgânica e não se sabe se a bola é extensão do corpo ou o corpo movimenta-se para acompanhar a bola. Nesse particular, o virtuosismo está não na dificuldade física, como no ballet, nem na dramaticidade exacerbada, como na Dança Moderna, mas exatamente na estranheza provocada pelo lúdico e pela beleza do movimento orgânico. Parecendo banhistas do início do século ou estudantes fazendo seus movimentos de ginástica rítmica, a movimentação parece seguir a linha agógica da música de um film noir. Na ironia e no humor, o Tran Chan faz o seu statement of belief mais eloqüente. Presente em quase todas as peças, a ironia - que é característica marcante no pastiche pós-moderno - nasce não apenas do tema mas, principalmente, do movimento e, muitas vezes, da economia na escolha e na manipulação dos elementos cênicos. O Sofá, coreografia de Leda Muhana, Betti Grebler e Fafá Daltro, apresentada em 1997, é um dos únicos trabalhos em que o grupo se utiliza de um set cenográfico especialmente concebido para a coreografia. O leitmotiv dessa coreografia foi a movimentação das mãos quando manipulam agulhas de tricô, o que provocou a construção dos personagens, três velhinhas conversando. Para essa idéia inicial, Edir Guimarães concebeu um pequeno sofá móvel que deslizava em linha reta, de lado a lado do palco à medida que a coreografia progredia. Sobre o sofá, um quadro vazado onde se podia ver o rosto de uma mulher que, na realidade, era quem movimentava o cenário, cuja expressão mudava continuamente como se reagisse à ação das dançarinas. A combinação entre movimentação, construção dos personagens e cenografia resultava numa cena onde a comicidade e a ironia atingiam a platéia em cheio sem, no entanto, cair no lugarcomum a que, muitas vezes, a dança chega quando quer utilizar o 30 Encenação e Cenografia para Dança Eliana Rodrigues Silva viés do humor. Mais recentemente, com a utilização de alta tecnologia em cena, podemos perceber o enriquecimento da cenografia para dança com a utilização de vídeo projetado pelos e nos dançarinos, de ângulos os mais variados, como, por exemplo, projetado do teto para o chão, sobre os dançarinos. Outra variante que tem sido usada com freqüência são os cenários que se modificam durante a coreografia, que vão se construindo e desconstruindo de acordo com o enredo ou clima desejado. Nesse sentido, podemos citar o cenário de Les Cités Invisibles (2004), coreografia de Fréderic Flamand baseada no livro de mesmo título de Ítalo Calvino. Uma enorme estrutura metálica se transforma silenciosamente para cada cena que se sucede, determinando para cada “cidade” a sua organicidade, seu ambiente, sua fantasia. Outro bom exemplo de cenário que se modifica foi criado para a coreografia CASA (2002), de Deborah Colker. Uma estrutura em madeira, montada em palco tradicional, mostra o corte vertical da planta de uma casa. A platéia vê salas, quartos, escadas, banheiro, cozinha, varandas, janelas, onde a cena acontece e os bailarinos parecem brincar. O impacto visual da composição da cena, seja ela arquitetada pela escolha e manipulação de objetos, elementos cênicos, recursos de outras artes, como a escultura, a fotografia, o vídeo, a iluminação, cenários construídos ou outros adaptados, ou ainda pela escolha e manipulação de espaços alternativos, de fato constitui um elemento de identificação do espaço e do tempo da ação proposta e estabelece o clima, a ambientação psicológica correta para o tema a ser desenvolvido. No entanto, ao lado dessas funções, a cenografia estabelece metáforas interessantes que enriquecem a leitura da obra e, em última análise, também revelam a visão de mundo do autor, do coreógrafo ou do diretor. 31 diálogos possíveis w w w. f sb a . e du . b r/d i a l o g o sp o ssi ve is janeiro/junho 2007 Re fe rê ncias Bentham, Frederick. The Art of Stage Lighting. New York: Theatre Arts Books, 1976. Bland, Alexander. A History of Ballet and Dance. In: the Western Word. New York: Peager Publishers, 1976. Clarke, Mary and Clement Crisp. The Ballet Goer’s Guide. New York: Alfred Knopf, 1981. Cohen, Selma Jeanne. Dance as a Theatre Art. New York: Harper and Row Publishers, 1974. Cypriano, Fábio. Pina Bausch Ergue sua Babel. Revista Bravo, n. 13, out. 1998. Horst, Louis; Russel, Caroll. Modern Dance Forms. In: Relation to other Modern Arts. New York: Dance Horizons, 1977. Morgan, Barbara. Martha Graham. New York: Dobbs Terry, 1980. Parker, W. Owen. Scene Design and Stage Lighting. 3. ed. 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