“O que fazemos com a parte que não enterramos?”: espectro em A

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“O que fazemos com a parte que não enterramos?”: espectro em A
confissão da leoa e A menina Morta1
Jaqueline de Almeida Freitas2
Prof.ª Dr.ª Maria Ângela de Araújo Resende (Orientadora)3
RESUMO: Uma reflexão em torno das noções de morte e sobrevivência em A confissão da
leoa (2012), de Mia Couto; e A menina morta (1954), de Cornelio Penna. Este trabalho procura
analisar os romances a partir da perspectiva do espectro, um termo introduzido por Jacques
Derrida em Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a Nova Internacional.
As personagens Silência e a menina morta são lidas como ausências espectrais capazes de
despertar memórias de violência que, embora enterradas, sobrevivem de maneira latente no
tecido social, esperando a oportunidade adequada para emergirem no cotidiano de opressão que
caracteriza as sociedades tradicionais em que as obras têm seus enredos desdobrados.
PALAVRAS-CHAVE: Memória; Espectro; Sobrevivência
ABSTRACT: A reflection regarding the notions of death and survival in A confissão da leoa
(2012), by Mia Couto; and Amenina morta (1954), by Cornelio Penna. This work seeks to
analyze the novels from the perspective of the spectre, a term introduced by Jacques Derrida in
Spectres of Marx: The State of the Debt, The Work of Mourning and the New International. The
characters Silência and menina morta will be read as spectral absences capable of awakening
memories of violence that, although buried, survives in a latent way in the social system,
waiting the right opportunity to emerge in the daily life of oppression who configures the
traditional societies which the works have their plot unfolded.
KEY WORD: Memory; Spectre; Survival
1
Trabalho apresentado para obtenção parcial dos créditos na disciplina Memória e identidade cultural, ministrada
pela Prof.ª Dr.ª Eliana Tolentino no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de São João
del-Rei.
2
Mestranda no Programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal de São João del-rei. E-mail:
[email protected].
3
Doutora em Estudos Literários pela Universidade federal de Minas Gerais e docente no Programa de Pós-
graduação em Letras da Universidade Federal de São João del-rei. E-mail: [email protected].
O romance A confissão da Leoa (2012) do moçambicano Mia Couto (1955 – ), pode
encontrar semelhanças aqui, “onde o mar acaba e a terra principia”, n’A menina morta (1954),
de Cornelio Penna (1896 – 1958). Com tramas que se passam em sociedades tradicionais, essas
obras se dedicam a narrar a experiência de mulheres que vivem sob uma relação de poder
orientada pela dominação masculina. A análise partirá do conceito de espectro em Jacques
Derrida, no qual o que importa dos mortos é justamente aquilo que deles não pode ser enterrado,
a presença em forma de lembrança que assombra os vivos. Silência e a menina morta, serão
consideradas elementos que instauram a conjuntura necessária para a emergência de memórias
que até então existiam sob forma subterrânea no tecido social. Essas memórias permanecem
bastante vivas esperando a oportunidade adequada para se expressarem. Devido ao contexto de
violência e coerção, os relatos da experiência podem tomar diferentes formas e se manifestarem
de maneiras distintas quando encontram audiências dispostas a ouvir.
1. O rasgar de uma estrada que, aos poucos, nos devora os filhos
No início, havia duas mortas. Silência, vítima de um ataque de leão; a outra, silêncio
apenas. Com ritos fúnebres começam os romances A confissão da leoa e A menina morta, cujos
enredos serão perpassados pela aparição espectral destas personagens mortas. Elas aparecem
desde o início dos romances como existências ausentes, delineadas aos olhos do leitor segundo
as lembranças dos que as conheceram em vida. No primeiro caso, Silência se faz presente como
dor na memória da mãe Hanifa Assulua, como fantasma que guia a introspecção da irmã
Mariamar, e como força para a indignação de Dona Naftalinda diante da violência sofrida pelas
mulheres de Kulumani. No segundo, a morte da menina paira como uma espécie de tensão,
assombrando o destino da Irmã, Carlota; extinguindo os últimos resquícios de afeto cultivado
em ambiente hostil pelas agregadas Celestina, Dona Virgínia, Sinhá Rola e Dona Inacinha,
eternas dependentes da caridade alheia; além de figurar, aos olhos das amas Joviana e Libânia,
bem como, para os demais escravos da Fazenda do grotão, uma entidade digna de devoção,
certa espécie de santa, cujas miúdas graças em vida consistiam em distribuir moedas e livrar
um negro ou outro do açoite. Em ambos os casos, as personagens marcadas pela perda, não
partilham apenas a memória comum de quem foram suas mortas, mas também o fato de
ocuparem um lugar periférico na ordem que configura a sociedade tradicionalmente patriarcal
em que estão imersas.
Para Jacques Derrida (1994), o espectro pode ser compreendido como uma espécie de
política da memória e da herança, na qual algo do passado, embora tendo sua morte
enfaticamente reconhecida, emerge intempestivamente no presente, assim como ocorre no caso
de Silência e da menina. Conquanto tenham a morte reiterada pela descrição de todos os
procedimentos funerários, elas não são esquecidas, e constituem entidades bastante presentes
ao longo de toda trama, as misteriosas condições de suas mortes dando o tom de suspense em
torno dos acontecimentos. Essa aparição espectral, segundo o filósofo, irrompe dotada de um
dever de justiça para com a vida, de modo a conduzi-la à uma espécie de sobrevida com força
para desajustar, por meio de uma lógica de suplementaridade, a identidade do tempo presente
no qual insurge. Tomadas dessa maneira, as duas mortes podem ser entendidas como uma forma
de abertura para a ocorrência de eventos que fogem ao ordinário do cotidiano, tais como, a
chegada de Arcanjo Baleiro à Kulumani; a mudança de Carlota, da corte para a fazenda do pai,
e uma espécie de impulso para que Mariamar, ao lembrar da irmã, evoque acontecimentos que
há muito estavam enterrados dentro de si. São esses acontecimentos que farão emergir do
silêncio que paira sobre a vida dessas mulheres, memórias de violência e dominação capazes
de suplementar a narrativa hegemônica na qual essas sociedades tradicionais se sustentam.
Embora, em um primeiro momento, tanto Arcanjo Baleiro quanto Carlota são vistos
como uma espécie de aliados por aqueles que detêm o poder, porém, essas projeções não se
realizarão ao longo das tramas. A crença de que poderiam estar a serviço da manutenção do
exercício da violência é percebida quando o administrador local, Florindo Makwala, demonstra
depender do caçador para dar fim aos leões e, desse modo, convencer seus superiores de que
consegue manter sob controle a região que lhe fôra circunscrita, reforçando também a
autoridade que encontrava resistência por parte das tradições locais. Assim também ocorre com
Carlota, no contexto da segunda metade do Oitocentos no Brasil, em que o poder das elites
agrárias se encontrava ameaçado pela iminência da abolição da escravatura e o fim do Império,
o casamento arranjado pelo pai da jovem, o Comendador, seria uma forma de aliança na qual
ele poderia dar manutenção na tradição familiar, isto é, pelo casamento aumentar em honra o
nome familiar e crescer no domínio de terras, no governo de homens.
Em interessante reflexão sobre o enigma que a esfinge propõe a Édipo, Peter Stallybrass
(2008) argumenta que a pergunta e a resposta foram cogitadas por ambos porque o caminhar
não era algo tão natural quanto para àqueles que possuíam pernas humanas e saudáveis. Com
isso em mente, pode-se pensar que o fato de Carlota e Arcanjo Baleiro não corresponderem às
expectativas inicialmente projetadas talvez decorra do alheamento das personagens em relação
ao lugar que haviam chegado, o que as impedia de partilhar naturalmente da ordem local. Desse
modo, se recorrermos à historiadora Sheila de Castro Faria (1995), ao falar da passagem de
matrimônios arranjados para aqueles movidos por inclinação romântica, saberemos que ela
interpreta essa mudança como indício do declínio da família patriarcal, o que, por sua vez, nos
leva a compreender a dissonância entre Carlota e a lógica que rege a ordem da fazenda, a
personagem se distanciando dos preparativos de noivado para preocupar-se em indagar aos
escravos e parentes pobres acerca dos segredos que envolviam a casa e a morte da irmã.
Também o caçador, ao se distanciar dos homens locais para buscar informações sobre as vítimas
dos leões, dedica-se a ouvir vozes subalternas, a de outras mulheres da aldeia, atenção que não
condizia com o costume vigente. Ainda que fosse uma moradora local, Mariamar também
partilha desse alheamento no que toca à gramática social do lugar em que habita, não apenas
por pertencer à uma família de assimilados, vivendo algum tempo na casa das missões e sem
participar por completo dos ritos que orientavam a tradição de Kulumani, mas ainda por estar
durante todo o romance voltada para a própria subjetividade, envolvida em esclarecer as lacunas
que fragmentam sua memória individual. Tudo isso são, de certa forma, fatores que corroboram
para os distanciar da ordem natural das coisas, e voltarem-lhes o olhar para aquilo que a aparição
espectral quer mostrar, conduzindo o leitor até interior da esfera subalterna daquelas sociedades.
Silência e a menina, as duas mortas dos romances, pertenciam a esse núcleo subalterno
dentro da organização patriarcal das sociedades nas quais viveram. Elas integravam, pela
convivência diária restrita ao ambiente doméstico, um grupo de mulheres que, dada a condição
de dominação, eram privadas da voz ativa na comunidade. Nesse sentido, Carlota e os
narradores Arcanjo Baleiro e Mariamar, ao seguirem em busca de informações em torno da
conjuntura em que as mortes ocorreram, são guiados por estes espectros até as memórias
periféricas que desafiam a coerência do discurso dominante, hegemônico. Na medida em que
se enveredam pelo caminho delineado pelos mortos, Carlota e Arcanjo Baleiro se distanciam
das expectativas projetadas inicialmente e, dotados de uma espécie de justiça, aqui
compreendida não como uma abstração transcendente, mas uma coerência para com aquela
aparição espectral, deixam-se guiar até às memórias silenciadas. Aos olhos de Dona Naftalinda,
o caçador representaria então uma forma de caminho para salvar as mulheres que sofriam
diariamente a dominação sustentada pelos costumes da aldeia, na qual o grande perigo eram os
próprios homens, haja vista a morte de sua empregada Tandi. Hanifa Assulua também o procura
para matar lhe o marido, Genito Mpepe, que violentava à ela e as filhas; assim como Mariamar,
a qual, até certo momento do enredo, também contava com a chegada do antigo amante para
ser resgatada dos silenciosos perigos que rondam as mulheres de Kulumani. Carlota, por sua
vez, considerada por todos uma espécie de sobrevida da irmã mais nova, tem sua identidade
mesclada com a da morta, percebida assim, como uma espécie de versão já crescida dela e, em
decorrência disso, constituindo certo receptáculo d as projeções que eram feitas à irmã. Recebia
a dedicação sufocante das parentes agregadas que a viam como uma companheira na partilha
dos sofrimentos e da solidão cotidiana causados pela vida reclusa na fazenda; assim como a
devoção dos escravos, despertada da menina morta. É somente pela disposição de Carlota em
ouvir as muitas histórias paralelas contadas por escravos e agregados sobre a fazenda, as quais
contestam a narrativa ilustre do tradicional passado familiar, que ela poderá conduzir o gesto
de desagregação da casa senhorial, reiterando assim, a ideia de que conhecer, por meio do
suplemento, aquilo que existe em falta, é um fator crucial para que se alcance a ideia de justiça
proposta pelo espectro.
Dessa forma, podemos dizer que a morte de Silência e a da menina foram uma abertura
necessária para a aparição de Carlota e Arcanjo Baleiro, assim como a emergência de
testemunhos, dos quais o relato de Mariamar se destaca. Guiados pela aparição espectral dessas
existências ausentes, promoveram uma disjunção na ordem do presente de modo a delinear a
conjuntura necessária para a emergência de narrativas que, diante do clima de mistério e tensão
em que as tramas se desenrolam, fazem aflorar memórias profundas de um passado impreciso.
Essas memórias, há tanto tempo guardadas, se mostram valiosas, não apenas por carregarem
histórias de opressão e violência, cujas marcas ainda são sentidas, mas mais ainda pela
fugacidade que permeia suas fragmentárias sobrevivências: a quase inaudita experiência
passada pelas vozes sussurradas daqueles que veem vedada a oportunidade de se expressarem
abertamente na malha social. São essas sobrevivências que constituem o suplemento de que
fala Derrida, isto é, aquilo que, uma vez silenciado, emerge no agora para se inserir na memória
coletiva e desestabilizá-la.
2. Enterrada viva para que me lembrasse sempre de nunca nasci
Paul Ricoeur (2007), ao discutir os processos que envolvem a passagem da memória ao
arquivo e daí aos documentos, ressalta o cuidado e desconfiança que envolvem uma etapa em
específico, aquela do momento em que a memória é declarada. Para ele, o testemunho existe
em uma atmosfera de confiança e suspeita que, nascida no momento de percepção da cena
vivida, persiste nas fase de retenção da lembrança, e se acentua na ocasião em que dado
acontecimento é declarado. Isso ocorre porque a substância do testemunho é contingente à
opacidade característica da autodesignação, na qual a impressão afetiva de um acontecimento
e o modo em que ele é narrado estão sujeitos tanto à fatores de ordem afetiva, isto é, a maneira
como a testemunha foi tocada pelo ocorrido molda o tom de importância para a informação que
chega ao receptor; e de ordem cultural, pois as normas e circunstancias em que os testemunhos
são expressos e reconhecidos, bem como, as maneiras de narrar que os delineia podem variar
segundo os sistemas sociais em que são proferidos. Nesse sentido Jacques Derrida (2005), ao
discutir o gênero do perdão a partir da instauração da comissão da verdade e reconciliação
durante o processo de democratização sul-africano, descreve uma situação em que o testemunho
era particularmente difícil por causa da natureza da violência que a vítima sofreu e
principalmente pelos fatores culturais envolvidos. É o caso da questão de gênero que subjaz ao
julgamento do estupro, no qual os homens optavam por acusar seus carrascos de
“sodomização”, crendo que estupro era algo relegado às mulheres; e elas, por sua vez, eram
socialmente inibidas de falar no meio familiar e público, além de precisarem, no momento do
testemunho, de desnudarem-se para apresentar as “provas” da violência sofrida. Todos esses
aspectos que envolvem as condições para que a memória se expresse, levam a crer que atentar
para as nuances que configuram a maneira de relatos e acontecimentos emergirem em A
confissão da leoa e A menina morta, podem ser reveladores indícios da condição de dominação
em que as personagens estão sujeitas.
Diz uma sura do Corão que Deus só imporá a cada alma o que ela puder suportar.
Oxalá fosse sempre assim e cada criatura tivesse o seu quinhão de sofrimento ministrado, com
parcimônia, por um Criador afeito ao cálculo comedido (FLORENTINO; GOES, 1997, p.15).
Com essas palavras, Manolo Florentino e José Góes, desmitificam a natureza da escravidão e
atribuem-na à cobiça do homem. A passagem faz-se pertinente para nos atentarmos à conjuntura
que conforma os testemunhos, isto é, o modo como as personagens interpretam e transmitem
suas memórias acerca da relação de poder que caracteriza o patriarcalismo em sociedades
tradicionais. Nesse sentido, os relatos de abusos e violências sofridas aparecem de maneira
fragmentada e envolvidos por elementos fantasiosos e explicações místicas. No texto de
Cornelio Penna uma maneira de falar alegoricamente sobre a crueldade dos senhores pode ser
observada principalmente nas histórias contadas pela escrava Dadade. Outras explicações
místicas para agressões também estão presentes na obra de Mia Couto, um exemplo é quando
Adjiru Kapitamoro atribui a dominação masculina existente em Kulumani ao exílio perpétuo
da Deusa Nungu, além das explicações em torno da infertilidade de Mariamar, dizendo que
decorriam de maldição por ela ser assimilada e não haver passado pelos ritos de entrada à vida
adulta, quando na realidade a causa eram as sequelas no ventre causadas por agressões do pai,
Genito Mpepe. Essa forma de narrar situada entre mito e realidade, imaginação e medo podem
demonstrar o quanto a lógica da dominação é naturalizada por aqueles que a sofrem, o que para
Pierre Bourdieu (2007), contribui para que os dominados, ao incorporar essas normas, reiterem
formas de organização em que são desfavorecidos, exemplos disso seriam Hanifa Assulua, que
culpa Mariamar quando é estuprada pelo pai; e Dona Virgínia, que se devota a fazer com que a
família patriarcal alcance perpetuação. No entanto, por outro lado, esses aspectos que levam à
hipertrofia do real na forma de expressão, também podem denotar certa forma de subterfugio
para que o testemunho adote aparência inofensiva e aqueles que narram não sejam coagidos ou
castigados, além de fazer com que os romances adquiram aos olhos do leitor certa nuance
alegórica que, aliada ao mistério imposto pelos mortos, coloca os acontecimentos em um ângulo
que metaforiza e reflete os temas abordados.
Outra característica que se impõe à maneira como a memória se apresenta no interior
das obras é a fragilidade. Por se tratarem de situações ligadas à personagens que, por diferentes
razões têm vedada a possibilidade de falar de modo aberto e claro, o leitor frequentemente se
depara com informações que, ao se expressarem por vozes sussurradas, passam a existir de
modo fragmentado, intercaladas pela recorrência de silenciosas lacunas. Uma das causas para
a ocorrência da fragmentação da memória no momento em que é expressa pode ser atribuída,
para Paul Ricoeur (2007), à dificuldade que envolve o testemunho quando os acontecimentos a
serem narrados tratam de situações de intensa violência para com aqueles que viveram a
experiência nos próprios corpos, o que, consequentemente, cria obstáculos ao processo de
lembrança da vítima. Nesse sentido a trajetória de Mariamar é exemplar no que tange os dilemas
que atravessam os atos de esquecer e de lembrar. As versões que a personagem faz dos
acontecimentos, intercaladas com as de Arcanjo Baleiro, têm início na ocasião da morte da irmã
que a guia na busca por retroceder a vida e preencher os silêncios e incoerências que
fragmentam as lembranças e lhe adoecem a mente. Na medida em que Mariamar avança no
rastro do espectro de Silência, a dificuldade entre não falar para esquecer, ou lembrar e
emudecer é metaforizada nesse caminho retrospecto: proporcionalmente, ao passo em que as
lacunas do passado são preenchidas por memórias tão dolorosas, o silêncio se instaura na vida
presente da personagem até que ela se cale por completo ao fim do romance.
A fragmentação na maneira como as memórias emergem decorre também de certo
sentimento de medo nutrido pelos indivíduos que têm sua condição disposta à mercê daqueles
que, detendo o poder sobre os outros, podem exercê-lo em diferentes maneiras e situações,
conforme preferir. Em A menina morta, a governanta Frau Luiza, na condição de empregada e
estrangeira, vive amedrontada em desagradar os patrões e ser obrigada à procurar nova maneira
de sobreviver em terra pouco conhecida; o mesmo medo também atormenta as parentes
acolhidas como agregadas na casa do Comendador, Dona Inacinha, Sinhá Rola, Celestina e
Dona Virgínia, todas mulheres desprovidas de recursos próprios que, não possuindo maridos
ou irmãos responsáveis por elas, dependem da boa vontade do primo rico para lhes garantir o
de comer e de vestir, além de conservar a honra e preservar a posição social que ocupavam
antes de empobrecerem. É esse receio de serem abandonadas à própria sorte que faz delas
personagens cuidadosas com o que dizem, o tom dado ao sabor da situação, guardando para si
as ofensas sofridas e, rancorosamente, descontando-as em seus subordinados. Em outros casos,
o medo decorre de ameaças que não se restringem ao plano do simbólico, implicando em
castigos físicos e risco de morte, o que levava ao emprego de subterfúgios para se proteger na
ocasião de fala, basta ver o caso dos cativos da fazenda do Grotão, em especial as mucamas
Libânia e Joviana, sempre reticentes e evasivas nas explicações que davam acerca de
acontecimentos antigos que marcaram a história da fazenda. Em A confissão da leoa, o cuidado
para se expressar também era uma preocupação das mulheres de Kulumani, dia e noite rondadas
pela iminência de algum ato violento, Hanifa Assulua, por exemplo, que chegou a levar Arcanjo
Baleiro para lhe matar o marido, cuidava para lamentar apenas diante de outras mulheres e da
filha, Mariamar, que por sua vez, escrevia as próprias confissões e assim estava protegida dos
olhos de uma maioria não alfabetizada.
Michael Pollack (1989) afirma que para alguém relatar os próprios sofrimentos é
necessário que encontre uma escuta, porém, por muitas razões, isso pode não acontecer. Uma
das causas seria porque aquele que ouve não quer ser culpabilizado, assim como faz o
administrador em relação às acusações de Dona Naftalinda pois, embora soubesse que o
comportamento dos homens em relação à Tândi contrariava as leis, ele procurava não se
indispor com eles afim de manter a região sob controle. Porém, em se tratando de sociedades
tradicionais de base patriarcal como as de Kulumani e a do vale do Paraíba do século XIX, não
se pode atribuir a fragmentação dos relatos apenas à falta de audiência decorrente do sentimento
de culpa, mas sim ter em vista que a dominação masculina era naturalizada nessas formas de
organização coletiva, e por essa lógica, o que as mulheres poderiam ter a dizer possuía um peso
pouco relevante, fazendo com que a atenção ao que estava ligado à elas fosse considerada algo
frequentemente dispensável. Assim, as lacunas de silêncio que caracteriza essas formas de
discurso da memória também se deve aos momentos de espera, em que as personagens
aguardam por alguém que se interesse em ouvir o que elas têm a dizer. Não apenas elas
aguardam esses momentos surgidos entre uma e outra tarefa doméstica, mas também os velhos,
Dadade e Adjiru Kapitamoro que, semelhantes ao narrador do tom “pedagógico” de Walter
Benjamin (1987), têm muito a dizer e ensinar, mas são, na maior parte do tempo, desacreditados
como loucos ou mentirosos. Em vista disso, podemos compreender a importância de figuras
como a de Silência e a menina morta no papel de espectros, pois são elas que guiam o foco
narrativo que incide nas personagens principais, Carlota, Arcanjo Baleiro e Mariamar,
conduzindo-os para o interior da esfera em que os subalternos dos romances transitam, de modo
a constituírem a audiência necessária para que a memória tome voz e sobreviva.
3. Eu não cabia num mundo guiado por arcaicos mandamentos
Homi Bhabha (2003) acredita que certos pares como privado e público, psíquico e
social, passado e presente são incapazes de existir cada um autonomamente, eles se
desenvolvem antes por uma relação de intimidade intersticial do que por divisões binárias. Para
o teórico, o que mantem essas esferas da vida interligadas é uma espécie de temporalidade
intervalar própria da realidade, também responsável pelo aspecto fronteiriço da distância
estética que configura a imagem discursiva entre dado espaço circunscrito e o mundo, entre a
história e a literatura. Compreendido assim, um movimento estético que distancia o mundo pela
imagem não poderia ser propriamente transcendental, pois a imagem ainda conteria o mundo
“entre parênteses”, como ele mesmo diz. É importante evocar aqui essa reflexão de Bhabha
porque demonstra que a cultura não se restringe a um local particular ou forma específica. No
que toca o aspecto ético e estético de A confissão da leoa e A menina morta, a dimensão da
cultura pode ser percebida por meio da interioridade das personagens, que permeada de
memórias coletivamente partilhadas, remete à violências e coerções exercitadas no interior de
sociedades tradicionais identificadas à Moçambique e Brasil do século XIX, conforme
representados por Kulumani e Porto Novo, além de revelar também pontos de semelhança com
a sociedade burguesa ocidental, que se compraz na própria modernidade, embora também se
oriente, em muitos aspectos, segundo a dominação masculina.
Desse modo, quando Mia Couto e Cornelio Penna ambientam seus enredos em espaços
regidos pela ordem do patriarcalismo com o objetivo de enfocar personagens que segundo essa
forma de organização social ocupam um lugar subalterno, eles compõem romances constituídos
por uma espécie de narrativa deliberadamente fragmentada que, justamente por apresentar o
silêncio como resposta a muitas questões, e não esclarecer todos os pormenores que envolvem
as tramas, dá a dimensão da experiência lacunar que é própria daqueles que têm a fala cerceada.
Essa maneira de apresentar a alteridade, humanizando o outro para despertar o pathos no leitor,
se aproxima da ideia de encenação apontada, por Gayatri Spivak (2010), na base do conceito
de “re-presentação”, uma vez que demonstra considerar as dificuldades de agenciamento em
torno do que se compreende por sujeito, em vez de se ater apenas àquela outra dimensão
também existente no termo, “falar por”, que tende a pressupor um sujeito essecializado e
homogêneo.
Porquanto os relatos de memória nasçam de pequenos momentos roubados à coerção
cotidiana, as silenciosas lacunas que os circundam não diminuem a força de sobrevivência que
carregam. As reflexões, que consideram a potência de vida e subversão que um pequeno
lampejo de experiência contém em si mesmo, podem ser encontradas no ensaio que DidiHuberman (2011) dedicou à vida e obra de Pier Paolo Pasolini. O filósofo afirma que, quando
Pasolini procurou inserir em seus filmes elementos da cultura popular do povo italiano, que
desaparecia aos poucos diante do contexto de intensa assimilação do modo de vida burguês e o
decorrente processo de espetacularização da imagem, ele lhes dá uma espécie de sobrevida.
Embora minúsculas, tal qual esplendor de vaga-lume, essas sobrevivências possuem um saber
clandestino, que contribui para uma perspectiva diferente e suplementar, dotada de força
política para desarticular o discurso hegemônico social no qual emergem, motivando, assim,
eventuais reconsiderações que tenham em vista essas experiências. O mesmo gesto de
sobrevivência é possível de ser apontado nos romances, uma vez que, as memórias daqueles
que sofrem a dominação, reduzidas humanidades que se ascendem em meio ao silêncio
ameaçador, tecem uma narrativa outra, que, ao se opor à “memória oficial”, entra em disputa e
conduz, segundo Michael Pollak (1989), à rearranjos sucessivos da memória coletiva.
The time is out of joint, diz Hamlet. Para Jacques Derrida essa expressão esclarece a
conjuntura necessária para a aparição do espectro, um tempo desarticulado e fora de si, sem
uma junção assegurada ou determinável, aspectos que podemos identificar à ocasião em que as
obras A menina morta e A confissão da leoa foram escritas. A primeira, publicada na década de
1950, época em que o Brasil acabava de passar pelo Estado Novo do presidente Getúlio Vargas,
pode ser lida como uma forma de colocar em perspectiva a situação de mulheres e de egressos
do cativeiro e seus descendentes, questionando, desse modo, a homogeneidade do processo
nacionalista de centralização do estado que ignorava desigualdades de gênero e socioculturais
em seu projeto. O segundo, mais recente, inserido nos debates pós-coloniais do estado
Moçambicano, procura demonstrar o quanto o dilema entre tradição e modernidade é ambíguo,
pois nem um, nem outro está isento de formas de opressão. Com efeito, ambos os romances são
tão espectrais quanto suas personagens, Silência e a menina morta, não apenas por evocarem
temas como o patriarcalismo, herança do passado reiterada pela tradição, e daí fazerem aflorar
memórias que há muito foram silenciadas; mas também ao atuar por meio do que Derrida
compreende por “trabalho”, isto é, segundo certa potência de transformação em relação às
disputas pela memória coletiva que está na base do discurso que se pretende hegemônico.
A importância da potência de transformação característica do espectro é acentuada
quando se considera as temporalidades que envolvem a construção cultural da nacionalidade,
conforme discutida em Homi Bhabha (2003). Para ele, a construção discursiva de uma nação,
isto é, o argumento pelo qual é justificada a união de um grupo de indivíduos que, auto
identificados pela diferença em relação a outros indivíduos, se reconhecem enquanto um único
corpo social denominado povo, se dá em duas temporalidades disjuntivas: a pedagógica, de
caráter continuísta e cumulativo, que tem sua autoridade preestabelecida por uma origem
comum historicamente fundada no passado; e a performativa, repetitiva e recorrente, que
permite a esse povo, enquanto sujeitos contemporâneos, atuarem presentemente nessa narrativa
a fim de redimir e reiterar a vida nacional. É na tensão entre um e outro que a totalidade da
nação se vê confrontada com o suplemento da narrativa, uma instância subalterna que,
intervindo e insinuando “no-lugar-de” uma falta anterior, transforma o tempo disjuntivo em
discursos a favor da integração de indivíduos “marginais”, excluídos do que se compreende por
centro. Assim, pode-se dizer que os romances de Mia Couto e Cornélio Penna discutidos neste
trabalho, também são espectrais na medida em que podem ser lidos como uma forma de
movimento suplementar de representação, seja no que toca o mundo tradicional ou os discursos
nacionais homogeneizante.
4. Considerações finais
Embora Cornelio Penna e Mia Couto tenham vivido em épocas distintas foi possível
observar que ambos têm uma maneira similar de abordar as formas pelas quais as memórias
subalternas emergem. Em seus romances a morte não é tida como algo definitivo, mas sim
como um evento capaz de instaurar a disjunção temporal adequada à aparição do espectro,
responsável, portanto, por evocar memórias que há muito estavam silenciadas. Em contextos
de grande coerção, como são os de Kulumani e da fazenda do Grotão, a memória pode existir
subterraneamente, aguardando o momento e uma audiência adequada para se fazer presente. A
maneira como isso ocorrerá, isto é, o modo pelo qual ela será expressa, pode ser fragmentado e
permeado de mistérios, seja por causa de elaborações místicas ou de lacunas decorrentes da
espera silenciosa, o que, por sua vez, não diminui a força dessas sobrevivências.
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