Seria a capacidade cognitiva um suporte necessário e suficiente

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Seria a capacidade cognitiva um suporte
necessário e suficiente para justificar o
Aconselhamento Filosófico?
Edson Siquara de SOUZA1
Edson Renato NARDI2
Resumo: Este trabalho pretende argumentar que a prática de Aconselhamento
Filosófico como uma abordagem que vise a ajudar a pessoa com problemas e
sofrimentos diversos precisa se basear em fundamentos que a tornem completamente distinguível de qualquer outra empresa do ramo da ajuda, tais como a psicologia e as diversas psicoterapias, quais sejam, o método filosófico e o uso da
razão. É com o uso desses fundamentos na análise e discussões sobre o problema
a ser resolvido, utilizando-se do conhecimento filosófico sobre o homem e suas
relações com o mundo e a vida e de métodos comuns a outras terapias, como empatia, que o Aconselhamento Filosófico pode se tornar uma prática efetiva para
ajudar as pessoas de forma consistente e duradoura, pois desenvolve nelas uma
competência cognitiva especial que outras áreas do conhecimento e das ciências
não têm como desenvolver.
Palavras-chave: Aconselhamento Filosófico. Razão. Cognição. Empatia.
Edson Siquara de Souza. Engenheiro eletrônico, analista de sistemas, licenciado em Filosofia e
pós-graduado em Aconselhamento Filosófico pelo Claretiano – Centro Universitário, mestrando em
Estética e Filosofia da Arte, Certificate of Higher Education in Philosophy – Oxford University (em
encerramento), psicanalista pelo CPMG (em formação), MBAs pelo COPPEAD/UFRJ, IBMEC/RJ e
FDC/MG. E-mail: <[email protected]>.
2
Edson Renato Nardi. Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP), campus de Araraquara (SP). Mestre em Educação pela mesma instituição.
Coordenador dos cursos de Pós-graduação e Graduação em Filosofia, pelo Claretiano – Centro
Universitário. Atua profissionalmente também na rede pública de ensino, há cerca de 23 anos, como
docente efetivo nas disciplinas de Educação Física e Filosofia. Atualmente, promove investigação
a respeito dos rituais de passagem no espaço escolar, os fundamentos filosóficos e sociológicos
da cultura corporal do movimento e a implantação do aconselhamento filosófico no Brasil.
E-mail: <[email protected]>.
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Would the cognitive capacity be a necessary
and sufficient support to justify the
Philosophical Counseling?
Edson Siquara de SOUZA
Edson Renato NARDI
Abstract: This essay will argue that the practice of the Philosophical Counseling
as an approach that tries to help a person with problems and a variety of suffering
needs to be built upon basis that makes it completely different from any other
enterprise that is in the business of helping, such as psychology and a variety of
psychotherapies, which are: the philosophical method and the use of reasoning.
It is with the use of those basis in the analyses and discussions about the problem
to be solved, using the philosophical knowledge about mankind and its relations
with the world and life and with common approaches from other therapies like
empathy, that the Philosophical Counseling can become a consistent and enduring
practice to help, since it develops a especial kind of cognitive competency that
others areas of knowledge and sciences has no way of developing.
Keywords: Philosophical Counseling. Reason. Cognition. Empathy.
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1.  INTRODUÇÃO
O Aconselhamento Filosófico (AF) é uma prática no ramo da
filosofia surgida no início dos anos 1980, em que o filósofo, com
seu conhecimento sobre filosofia e com o uso do método filosófico,
busca ajudar uma pessoa que esteja sofrendo com algum tipo de angústia, problemas com relacionamentos, insegurança, falta de sentido na vida, questões profissionais, perda de entes queridos, medo
da morte, entre outros. De uma maneira geral, essa prática pode ser
vista como próxima de outras terapias psicanalíticas, tais como a
terapia cognitiva-comportamental, mas com diferenças importantes
que a distinguem dessas outras disciplinas.
O presente trabalho visa posicionar o AF não como uma terapia, mas como um conjunto de exercícios de cunho intelectual que
busca desenvolver o aparelho cognitivo da pessoa com o uso da razão crítica, ou seja, a pessoa que está sofrendo deve, idealmente, se
reconhecer como intelectualmente ou cognitivamente competente
ou capaz de desenvolver o potencial nela presente para lidar com os
problemas inevitáveis que afligem a todos indiscriminadamente. É
esperado, portanto, que a pessoa não esteja necessitando de medicamentos ou internações em hospitais especializados em problemas
mentais ou com qualquer problema de ordem biológica, nem com
traumas onde as técnicas desenvolvidas por Sigmund Freud seriam
melhor indicadas.
Para essa demonstração faremos uma rápida exposição histórica sobre a evolução do Aconselhamento Filosófico desde seu
surgimento. Indicaremos a proposta de AF que julgamos mais
consistente com o sentido filosófico do termo e caracterizaremos
a verdadeira contribuição e, portanto, sua principal diferenciação,
quando comparada às outras terapias que dela se aproximam.
2.  EVOLUÇÃO HISTÓRICA
É importante inicialmente indicarmos como e por que surgiu
essa iniciativa de usar conhecimentos e técnicas filosóficas para
ajudar pessoas que sofrem. O AF pode ser visto como parte de um
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leque de ações para levar a filosofia para as ruas, visando estimular
as pessoas a pensarem sobre suas vidas individuais, sobre as sociedades em que vivem, sobre política, religião etc., de forma crítica
e racional. Para aqueles que tiveram contato com a filosofia e com
sua história, a filosofia é como uma empresa que possui um método
próprio, moldado pela razão, para entender a fundo qualquer aspecto de um problema, principalmente aqueles que possuem caráter
subjetivo, como os relacionados à natureza humana.
Esse movimento, na verdade, teve inspiração naquele que é
conhecido como o Pai da Filosofia, Sócrates (469 a.C. – 399 a.C.),
que saia pelas ruas de Atenas indagando as pessoas sobre o que
elas sabiam ou pensavam saber, estimulando-as ao raciocínio para
encontrar a verdade. Sócrates pode ser assim entendido, pois levava
a filosofia para o povo e a praticava, ou seja, sua filosofia era um
modo de vida que possui dois aspectos fundamentais para o AF: o
filósofo como praticante e como divulgador do método.
Segundo Hadot (2014, p. 102), com Sócrates e seu método
dialético:
O interlocutor se dá conta então de que ele não sabe verdadeiramente por que age. Todo o seu sistema de valores
lhe parece bruscamente sem fundamento. Até então ele
se identificava de algum modo com o sistema de valores
que comandava sua maneira de falar (e sua vida). Agora se
opõe a ele. O interlocutor está então cortado em dois: há o
interlocutor que, no constante acordo mútuo, se identificou
com Sócrates e, doravante, não é mais o que ele era antes.
Sócrates afirmava que seu único saber era de que nada sabia
e, costumeiramente, levava seu interlocutor a aporia3, mas no AF
este é um estado que podemos considerar como inicial e necessário,
pois o espanto de sermos confrontados em nossas crenças abre o caminho para o saber, para o novo, para uma descoberta empreendida
por aquele que sofre.
Na era moderna a filosofia pode ser vista como sendo uma
atividade puramente acadêmica, e aqueles que nela se envolvem
profissionalmente desenvolvem teorias filosóficas ou comentam
Segundo Abbagnano (2012), aporia é um termo usado no sentido de dúvida racional, de dificuldade
inerente a um raciocínio, e não no estado subjetivo de incerteza. É, portanto, a dúvida objetiva, a
dificuldade efetiva de um raciocínio ou da conclusão a que leva um raciocínio.
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sobre as teorias filosóficas dos outro. Assim, com o tempo, acabam
distanciando a filosofia da vida na sociedade.
O AF faz parte de um conjunto de iniciativas que buscam então devolver a filosofia às suas origens, sem, no entanto, retirá-la do
meio acadêmico, local propício para sua evolução. Esse movimento
faz da filosofia um empreendimento social, já que ele permite dar à
sociedade ferramentas para que seus indivíduos busquem uma vida
melhor para si e para todos na comunidade. Aqui não queremos dizer que passa a haver duas filosofias, uma praticada na academia e
outra na rua; na verdade, elas interagem entre si, como uma espécie
de sistema que se retroalimenta, pois a prática se fundamenta na
teoria, que, por sua vez, evolui com a prática.
Nesse contexto surge então movimentos como o Café Filosófico, criado por Marc Sautet (1947-1998), na França, onde pessoas
se reúnem especificamente para tratar de assuntos de cunho filosófico em bares, cafés, livrarias e restaurantes; programas de TV e rádio falando sobre filosofia e discutindo questões da sociedade com
filósofos, como, por exemplo, sobre o tema do aborto; cursos livres
para leigos e participação de filósofos em debates e palestras de
todo gênero. Também encontramos filósofos atuando como consultores de empresas para ajudar executivos a organizar o pensamento
e torná-los mais críticos ou apoiá-los em decisões de natureza ética.
Com esses movimentos, surge um interesse renovado pela filosofia,
em que se pode notar um aumento na procura de cursos de filosofia
para formação em nível superior e em pós-graduação.
Foi dentro desse contexto de retorno da filosofia à Ágora4 que
surgiu, então, a ideia do AF como uma “terapia para o são” (MARINOFF, 1999). Mas nesse ponto a filosofia entra em um campo
onde já atuam outras disciplinas, apesar de não ser possível negar
que, desde a Grécia antiga, a filosofia como um modo de vida é
praticada e muitos dos filósofos antigos poderiam ser vistos como
aconselhadores filosóficos, o que a tornaria a mais antiga de todas
essas outras disciplinas. Das áreas de conhecimento no campo da
saúde mental talvez a mais conhecida seja a psicologia, cujas raízes
podem ser traçadas até Sócrates, Platão e Aristóteles (ATKINSON,
2009), que investigavam perguntas como “o que é consciência? As
4
Ágora: praça principal das antigas cidades gregas.
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pessoas são naturalmente racionais ou irracionais? Existe realmente livre escolha?” entre outras de natureza similar que já eram feitas
desde então.
A psicologia moderna teve início em 1879, com Wilhelm
Wundt (1832-1920), filósofo Alemão que desenvolveu uma pesquisa sobre introspecção para estudar processos mentais. Desde então
novos ramos e propostas surgem, como o Estruturalismo, Funcionalismo, Comportamentalismo, Gestalt, Psicanálise com Freud e,
mais recentemente, uma vasta gama de possibilidades de tratamento, cada uma aderente a uma determinada perspectiva, como psicologia biológica, cognitiva, desenvolvimentista, de personalidade
e social, clínica e de aconselhamento, educacional e escolar, organizacional e de engenharia; além das que mais se aproximam do
AF, como cognitivo-comportamental e terapia racional, emotiva e
comportamental.
Dada essa multiplicidade de opções terapêuticas e sendo a
filosofia crítica por natureza, é de se esperar que ela possua justificativas importantes para retornar a essa área de atuação. Então,
por que, mesmo com surgimento de diversas ciências que tratam
da saúde mental, a filosofia acredita poder contribuir de forma diferenciada delas?
3.  DESENVOLVIMENTO DA PROPOSTA DO AF
A filosofia como esclarecedora e, talvez por isso, consoladora
é uma perspectiva antiga. Hadot (2014, p. 22) nos diz sobre aprender a viver que, para os estoicos,
[...] a filosofia é um exercício. A seus olhos, a filosofia não
consiste no ensino de uma teoria abstrata, ainda menos na
exegese de textos, mas numa arte de viver, numa atitude
concreta, num estilo de vida determinado, que engloba
toda a existência.
Essa mesma perspectiva perpassa todas as escolas helenísticas e romanas. Para essas escolas filosóficas,
[...] a principal causa de sofrimento, desordem, inconsciência para o homem são as paixões: desejos desordenados,
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medos exagerados. A supremacia da preocupação o impede de viver verdadeiramente. A filosofia aparecerá, em
primeiro lugar, como uma terapêutica das paixões (HADOT, p. 22-23).
Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), filósofo romano, escreveu 124 cartas a seu discípulo Lucílio, cujo conjunto forma uma das principais
obras do pensador. Em praticamente todas, Sêneca procura estimular seu discípulo a exercitar a filosofia todos os dias e impedir que
qualquer outra atividade o afaste desse objetivo, pois, para Sêneca,
por exemplo, na carta de número 16,
O objetivo da filosofia consiste em dar forma e estrutura à
nossa alma, em ensinar-nos um rumo na vida, em orientar
os nossos atos, em apontar-nos o que devemos fazer ou pôr
de lado, em sentar-se ao leme e fixar a rota de quem flutua à deriva entre escolhos. Sem ela ninguém pode viver
sem temor, ninguém pode viver em segurança. (SÊNECA,
2014, p. 55).
Na interpretação de Campos5 (2014, p. XXX),
[...] a filosofia cumpre o papel de uma pedagogia e também
o de uma terapia, implicando a este termo um maior empenhamento do sábio no desempenho da sua missão do que
uma tarefa meramente pedagógica exigiria. A filosofia
deve curar os males da alma, e não somente definir em que
eles consistem [...] Se tal suceder, a filosofia terá falhado
o seu objetivo.
É importante notar, nessa posição de Campos, que a filosofia
e, como consequência o AF, não deve se limitar apenas ao seu aspecto didático-educativo, comum ou esperado na interação professor-aluno, mas estimular o exercício “espiritual” que possa “curar
os males da alma”. Assim, parece-nos, o AF também se diferencia
das outras terapias, pois nele o filósofo deve ser praticante daquilo
que defende e acredita. O exercício espiritual requerido ao cliente
para que ele possa se ajudar deve, idealmente, ser também feito pelo
aconselhador, o que nesse aspecto coloca a relação potencialmente
entre iguais, mas sem sê-lo, pois o aconselhador precisa ser aquele
que deve “iluminar” o caminho para que o cliente dê, ele mesmo, os
passos. Esse “iluminar” não significa iluminar determinado cami5
J. A. Segurado e Campos, tradutor, autor do prefácio e das notas de Cartas a Lucílio.
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nho, mas o todo, de forma a permitir ao aconselhado o exercício da
melhor opção de forma racional. Mas uma relação entre iguais cria
mecanismos no campo da empatia que potencializa a assimilação
do cliente das orientações e métodos que a filosofia oferece. Neste
ponto já é possível perceber que ests relação que inicialmente pode
ser vista como a existente entre mestre e discípulo evolui para tornar o discípulo também mestre, ou seja, um filósofo como o mestre.
Para a filósofa americana Nussbaum (2009, p. 3, tradução
nossa),
A ideia de uma filosofia prática e benevolente – uma filosofia que exista para o bem dos seres humanos, de forma
a endereçar suas mais profundas necessidades, de enfrentar suas mais urgentes perplexidades, e tirá-los da miséria
existencial e colocá-los em alguma medida em um estado
de crescimento – traz a ideia do estudo da ética Helenística
revigorante para o filósofo que se pergunta o que a filosofia tem a ver com o mundo.
Seria esperado então uma uniformidade metodológica no
exercício do AF, já que este se baseia no método dialético entre o
filósofo e seu interlocutor (aquele que está em busca de ajuda) e
o pensamento filosófico de séculos. No entanto, não é o que tem
acontecido com essa nova empreitada. Diversas metodologias vêm
sendo tentadas, não havendo ainda uma que seja reconhecida como
fundamental, o que Raabe (1999, p. 1) coloca como uma “falta de
identidade”. Para esse filósofo,
É geralmente aceito que os três principais objetivos e propósitos básicos do aconselhamento filosófico sejam a resolução de problemas, o aumento da autonomia do cliente e
de sua força interna para evitar ou resolver por ele mesmo
problemas futuros de certos tipos. Para que isto ocorra o
cliente deve ser ajudado a desenvolver conhecimentos de
ordem prática e teórica assim como um tipo particular de
disposição. O Aconselhamento Filosófico deve consequentemente ajudar o cliente a desenvolver um tipo de consciência que aprofunda o autoconhecimento e uma vigilância
moral (RAABE, 1999, p. 160, tradução nossa).
Aqui é indicada uma outra característica do AF que pode
também ser usada para diferenciá-lo das outras terapias e da psiEducação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 125-138, jan./jun. 2017
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quiatria, pois em ambos se percebe a notória busca da solução de
um determinado problema, como um trauma de infância ou uma
deficiência específica de algum neurotransmissor. No AF a ideia é
de fortalecimento do sujeito de forma que ele possa enfrentar qualquer problema que não seja de ordem química ou traumática, o que
acaba sendo verdadeiramente um tipo de ajuda que potencialmente
é perene.
Boécio (480 d.C. – 525 d.C.), sendo ele mesmo um filósofo,
estadista e teólogo, se vê injustamente acusado, condenado à morte
e impiedosamente torturado. Entre as torturas físicas e o sofrimento
pela perda do poder, das posses, da vida que levava, usa figurativamente uma conselheira na própria prisão, a Filosofia em pessoa
para curá-lo. As sessões com sua aconselhadora resultam no livro A
Consolação da Filosofia6, o mais lido na idade média depois da Bíblia e que poderia ser aqui citado em sua totalidade de tão alinhado
ao método do AF. Mas destacamos apenas um pequeno trecho onde
Boécio pergunta à Filosofia se há a possibilidade de livre arbítrio
ou se “o encadeamento do destino abrange também os movimentos da alma humana” (BOÉCIO, 2012, p. 134), em que a Filosofia
responde:
Sim, o livre arbítrio existe, e nenhum ser dotado de razão
poderia existir se não possuísse a liberdade e a faculdade
de julgar. Com efeito, todo ser naturalmente capaz de usar
a razão possui a faculdade do juízo, que lhe permite distinguir cada coisa. Portanto, é ele que julga o que deve ser
evitado e o que deve ser procurado.
Pode-se depreender que, mesmo com problemas extremos
onde a morte se apresenta como um fim injusto, como no caso de
Boécio, a Filosofia e o uso da razão podem ser as únicas ferramentas que permitem algum tipo de consolação e enfrentamento dos
momentos mais difíceis de nossas vidas.
Raabe (1999, p. 171) estudou para a sua tese as diversas formas de AF disponíveis na literatura, inclusive comparando essa
prática com a da psicanálise freudiana e outras terapias derivadas
dessa e da psicologia. Ele chega à conclusão de que o método ideal,
Boécio, é possível entender, faz um autoaconselhamento usando de seu conhecimento de filosofia,
pois estava preso e ninguém podia ajudá-lo; Freud, a seu termo, faz uma autoanálise, pois sendo por ele
a psicanálise criada, ninguém a conhecia para ajudá-lo.
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aquele que responde a todas as expectativas expostas nos outros
métodos, é o que ele desenvolveu e se apresenta em quatro estágios: 1) “free floating” (mover-se livremente); 2) resolução imediata do problema; 3) ensinar e aprender; e 4) transcendência. De
forma bastante resumida, esses estágios apresentam as seguintes
características:
1o estágio – o aconselhador passa a conhecer o cliente, e este,
o método do AF. É neste estágio que o aconselhador vai saber se
deve partir para “cuidar” do problema imediato trazido ou se seria
o caso de informar que o AF não é indicado para o problema em
questão. Talvez o cliente não saiba exatamente o que o perturba, o
que deverá ser identificado paulatinamente nas entrevistas;
2o estágio – neste estágio Raabe (1999) indica que o problema identificado, ou caracterizado, no estágio anterior deve seguir, então, o “tratamento”. O aconselhador deve ajudar o cliente
a entender o problema, colocá-lo em uma perspectiva que possa
ser analisado, discutido, debatido, pensado, ajudando o cliente a
resolvê-lo, sem, no entanto, dar uma solução.
3o estágio – aqui o autor coloca o problema da falta de estudo
de cunho filosófico da maioria das pessoas, isto é, a falta de preparo
das pessoas de serem analistas críticos de seus próprios sentimentos e de suas vidas como um todo. A experiência no estágio anterior, aquele que endereça, especificamente, o problema trazido pelo
cliente, deve estimulá-lo a não apenas acreditar no método filosófico para uma “cura”, mas confiar no seu próprio desenvolvimento
cognitivo e no crescimento ocorrido e que deve, assim, ser perpetuado. Nesse caso, diferentemente de outras terapias, como indicado
por Raabe (1999), o aconselhador filosófico deve buscar tornar seu
cliente um filósofo, para que, a partir desses encontros, ele possa se
autoanalisar e se tornar autônomo na solução de seus próprios problemas. Para tal, o aconselhador precisa, verdadeiramente, ensinar
seu cliente no processo complexo de pensamento crítico.
Nossa interpretação é que esse estágio é onde o AF se faz
realmente importante e se diferencia, fundamentalmente, das outras disciplinas que cuidam do bem-estar mental. O que se deseja
neste estágio é que o aconselhador possa simultaneamente desenEducação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 125-138, jan./jun. 2017
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volver em seu cliente a capacidade de raciocínio e entendimento de
questões de cunho filosófico, o que pode ser interpretado como um
desenvolvimento cognitivo com o trato de questões filosóficas. O
sucesso da empreitada do aconselhamento filosófico é então incutir
no cliente a capacidade para que ele possa “desenvolver suas (próprias) habilidades filosóficas” (RAABE, 1999, p. 187), melhorando
sua competência em pensar de forma crítica, criativa, construtiva e
produtiva.
4o estágio – neste estágio o cliente é levado a pensar fora de
suas questões individuais e transcender ao mais abrangente, a um
contexto onde sua relação se expande para aquela onde a família,
a comunidade e o mundo passam a ter uma perspectiva diferente.
Segundo Hadot (1995, p. 103, tradução e grifo nosso),
Então, todos os exercícios espirituais são, fundamentalmente, um retorno ao eu, no qual o eu é liberado de um estado de alienação no qual foi colocado por preocupações,
paixões e desejos. O “eu” libertado desta maneira não é
mais meramente um egoísta apaixonado por sua individualidade: é a nossa moral pessoal, aberta a universalidade
e objetividade, e participando do pensamento e natureza
universal.7
Raabe (1999, p. 198-200) identifica algumas perguntas que
ilustram essa fase, lembrando que filosofia é muito mais fazer perguntas do que respondê-las: ao invés da pergunta mais natural ligada a ética na qual se quer saber o que é a coisa certa a fazer,
pergunta-se “Como alguém encaminha a questão sobre o que é
certo e errado?” ou “Como devemos viver? Ou por que razões?”.
Raabe (1999) oferece uma outra analogia que parece descrever esse
estágio de forma mais clara, a da caverna de Platão, onde o escravo
que vivia na caverna acorrentado vendo sombras passa a viver livre
fora da caverna.
Com relação aos métodos aplicados ao AF, existem diversos,
como já apontado, inclusive defensores de que o uso de um determinado método é limitador para o AF, como o do próprio iniciador
desse movimento, o filósofo Achenbach. Mas, mesmo que não haja
um método único que seja aceito por todos os aconselhadores filo7
Raabe (1999) menciona uma parte reduzida deste trecho na p. 197.
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sóficos e estudiosos dessa empresa, parece-nos que ter a meta de
tornar o aconselhado um filósofo é um ponto em que todos concordariam. Isso significa dizer que é esperado que o aconselhador
filosófico seja uma pessoa que usa a filosofia como forma de vida,
pois em algum momento o aconselhador e o cliente terão uma relação entre iguais.
4.  CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo exposto, podemos entender que o AF poderia ser visto
e interpretado de forma muito resumida como aulas particulares
de filosofia orientada ao cliente, buscando torná-lo um filósofo e
tratando de temas de interesse dele. No entanto, é importante ressaltar que o cliente busca o AF, normalmente, porque está sofrendo
e precisando de um tipo de ajuda que provavelmente não encontrou
em outras terapias, incluindo remédios. Então, o AF deve ser mais
do que simplesmente dar conhecimento às pessoas que não tiveram
acesso as ferramentas e conhecimentos filosóficos tornando-as filósofas, mas deve fundamentalmente fortalecer o sujeito para que
este, com o uso de sua razão desenvolvida com o exercício intelectual de entender o pensamento filosófico de séculos e colocá-los em
perspectiva, possa enfrentar a vida e seus sofrimentos usando de
uma nova visão de mundo.
O que defendemos aqui é que, com a busca do conhecimento
filosófico utilizando o raciocínio crítico e sistemático, típicas ferramentas do filósofo; do engajamento e aprofundamento na relação com o complexo (sim, os temas filosóficos são eventualmente
complexos), onde a superação e o entendimento de questões fundamentais da filosofia e da existência passam a ter um teor prazeroso
para aqueles que aceitam tal desafio e o superam (para o prazer na
relação com o complexo, consultar CSIKSZENTMIHALYI, 1992);
e com o tipo certo de disposição mencionada por Raabe (1999), o
que ocorre é um crescimento da capacidade cognitiva do sujeito,
habilidades que o fazem compreender sua própria situação no mundo e a entender-se como um agente responsável pela sua própria
vida, dando a ele condições de administrar as pressões externas (do
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mundo) e internas (da alma) e, assim, permitir uma vida mais serena e autônoma.
O AF é uma empreitada que dá resultado para aquele que o
procura, quando este, na busca por se tornar um filósofo, atinge um
nível de desenvolvimento cognitivo que o permite entender o todo,
avaliar de forma objetiva sua situação como vivente e de relação
com o mundo. Essa potência racional adquirida na busca inicial da
solução para um determinado problema evolui para o fortalecimento do sujeito como um todo, permitindo uma gestão autônoma para
qualquer problema pessoal que possa vir a enfrentar, pois passa a
ser filósofo praticante e atinge seu ápice na percepção de que o
resultado do seu esforço foi o desenvolvimento cognitivo e intelectual pessoal.
Assim, nosso entendimento das diversas metodologias disponíveis para o AF ou até mesmo o não método como método é que
devem buscar o desenvolvimento cognitivo do cliente, utilizando
do saber e do método filosófico, pois são abordagens que tratam do
que é fundamental para a nossa existência e, principalmente, possuem características subjetivas e simultaneamente complexas que
permitem esse desenvolvimento cognitivo, que pode parecer como
uma espécie de subproduto da empreitada, mas que aqui identificamos como sendo o principal objetivo.
Com isso acreditamos ter respondido de forma afirmativa à
indagação sobre se seria a capacidade cognitiva um suporte necessário e suficiente para justificar o Aconselhamento Filosófico.
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