125 Seria a capacidade cognitiva um suporte necessário e suficiente para justificar o Aconselhamento Filosófico? Edson Siquara de SOUZA1 Edson Renato NARDI2 Resumo: Este trabalho pretende argumentar que a prática de Aconselhamento Filosófico como uma abordagem que vise a ajudar a pessoa com problemas e sofrimentos diversos precisa se basear em fundamentos que a tornem completamente distinguível de qualquer outra empresa do ramo da ajuda, tais como a psicologia e as diversas psicoterapias, quais sejam, o método filosófico e o uso da razão. É com o uso desses fundamentos na análise e discussões sobre o problema a ser resolvido, utilizando-se do conhecimento filosófico sobre o homem e suas relações com o mundo e a vida e de métodos comuns a outras terapias, como empatia, que o Aconselhamento Filosófico pode se tornar uma prática efetiva para ajudar as pessoas de forma consistente e duradoura, pois desenvolve nelas uma competência cognitiva especial que outras áreas do conhecimento e das ciências não têm como desenvolver. Palavras-chave: Aconselhamento Filosófico. Razão. Cognição. Empatia. Edson Siquara de Souza. Engenheiro eletrônico, analista de sistemas, licenciado em Filosofia e pós-graduado em Aconselhamento Filosófico pelo Claretiano – Centro Universitário, mestrando em Estética e Filosofia da Arte, Certificate of Higher Education in Philosophy – Oxford University (em encerramento), psicanalista pelo CPMG (em formação), MBAs pelo COPPEAD/UFRJ, IBMEC/RJ e FDC/MG. E-mail: <[email protected]>. 2 Edson Renato Nardi. Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), campus de Araraquara (SP). Mestre em Educação pela mesma instituição. Coordenador dos cursos de Pós-graduação e Graduação em Filosofia, pelo Claretiano – Centro Universitário. Atua profissionalmente também na rede pública de ensino, há cerca de 23 anos, como docente efetivo nas disciplinas de Educação Física e Filosofia. Atualmente, promove investigação a respeito dos rituais de passagem no espaço escolar, os fundamentos filosóficos e sociológicos da cultura corporal do movimento e a implantação do aconselhamento filosófico no Brasil. E-mail: <[email protected]>. 1 Educação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 125-138, jan./jun. 2017 126 Would the cognitive capacity be a necessary and sufficient support to justify the Philosophical Counseling? Edson Siquara de SOUZA Edson Renato NARDI Abstract: This essay will argue that the practice of the Philosophical Counseling as an approach that tries to help a person with problems and a variety of suffering needs to be built upon basis that makes it completely different from any other enterprise that is in the business of helping, such as psychology and a variety of psychotherapies, which are: the philosophical method and the use of reasoning. It is with the use of those basis in the analyses and discussions about the problem to be solved, using the philosophical knowledge about mankind and its relations with the world and life and with common approaches from other therapies like empathy, that the Philosophical Counseling can become a consistent and enduring practice to help, since it develops a especial kind of cognitive competency that others areas of knowledge and sciences has no way of developing. Keywords: Philosophical Counseling. Reason. Cognition. Empathy. Educação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 125-138, jan./jun. 2017 127 1. INTRODUÇÃO O Aconselhamento Filosófico (AF) é uma prática no ramo da filosofia surgida no início dos anos 1980, em que o filósofo, com seu conhecimento sobre filosofia e com o uso do método filosófico, busca ajudar uma pessoa que esteja sofrendo com algum tipo de angústia, problemas com relacionamentos, insegurança, falta de sentido na vida, questões profissionais, perda de entes queridos, medo da morte, entre outros. De uma maneira geral, essa prática pode ser vista como próxima de outras terapias psicanalíticas, tais como a terapia cognitiva-comportamental, mas com diferenças importantes que a distinguem dessas outras disciplinas. O presente trabalho visa posicionar o AF não como uma terapia, mas como um conjunto de exercícios de cunho intelectual que busca desenvolver o aparelho cognitivo da pessoa com o uso da razão crítica, ou seja, a pessoa que está sofrendo deve, idealmente, se reconhecer como intelectualmente ou cognitivamente competente ou capaz de desenvolver o potencial nela presente para lidar com os problemas inevitáveis que afligem a todos indiscriminadamente. É esperado, portanto, que a pessoa não esteja necessitando de medicamentos ou internações em hospitais especializados em problemas mentais ou com qualquer problema de ordem biológica, nem com traumas onde as técnicas desenvolvidas por Sigmund Freud seriam melhor indicadas. Para essa demonstração faremos uma rápida exposição histórica sobre a evolução do Aconselhamento Filosófico desde seu surgimento. Indicaremos a proposta de AF que julgamos mais consistente com o sentido filosófico do termo e caracterizaremos a verdadeira contribuição e, portanto, sua principal diferenciação, quando comparada às outras terapias que dela se aproximam. 2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA É importante inicialmente indicarmos como e por que surgiu essa iniciativa de usar conhecimentos e técnicas filosóficas para ajudar pessoas que sofrem. O AF pode ser visto como parte de um Educação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 125-138, jan./jun. 2017 128 leque de ações para levar a filosofia para as ruas, visando estimular as pessoas a pensarem sobre suas vidas individuais, sobre as sociedades em que vivem, sobre política, religião etc., de forma crítica e racional. Para aqueles que tiveram contato com a filosofia e com sua história, a filosofia é como uma empresa que possui um método próprio, moldado pela razão, para entender a fundo qualquer aspecto de um problema, principalmente aqueles que possuem caráter subjetivo, como os relacionados à natureza humana. Esse movimento, na verdade, teve inspiração naquele que é conhecido como o Pai da Filosofia, Sócrates (469 a.C. – 399 a.C.), que saia pelas ruas de Atenas indagando as pessoas sobre o que elas sabiam ou pensavam saber, estimulando-as ao raciocínio para encontrar a verdade. Sócrates pode ser assim entendido, pois levava a filosofia para o povo e a praticava, ou seja, sua filosofia era um modo de vida que possui dois aspectos fundamentais para o AF: o filósofo como praticante e como divulgador do método. Segundo Hadot (2014, p. 102), com Sócrates e seu método dialético: O interlocutor se dá conta então de que ele não sabe verdadeiramente por que age. Todo o seu sistema de valores lhe parece bruscamente sem fundamento. Até então ele se identificava de algum modo com o sistema de valores que comandava sua maneira de falar (e sua vida). Agora se opõe a ele. O interlocutor está então cortado em dois: há o interlocutor que, no constante acordo mútuo, se identificou com Sócrates e, doravante, não é mais o que ele era antes. Sócrates afirmava que seu único saber era de que nada sabia e, costumeiramente, levava seu interlocutor a aporia3, mas no AF este é um estado que podemos considerar como inicial e necessário, pois o espanto de sermos confrontados em nossas crenças abre o caminho para o saber, para o novo, para uma descoberta empreendida por aquele que sofre. Na era moderna a filosofia pode ser vista como sendo uma atividade puramente acadêmica, e aqueles que nela se envolvem profissionalmente desenvolvem teorias filosóficas ou comentam Segundo Abbagnano (2012), aporia é um termo usado no sentido de dúvida racional, de dificuldade inerente a um raciocínio, e não no estado subjetivo de incerteza. É, portanto, a dúvida objetiva, a dificuldade efetiva de um raciocínio ou da conclusão a que leva um raciocínio. 3 Educação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 125-138, jan./jun. 2017 129 sobre as teorias filosóficas dos outro. Assim, com o tempo, acabam distanciando a filosofia da vida na sociedade. O AF faz parte de um conjunto de iniciativas que buscam então devolver a filosofia às suas origens, sem, no entanto, retirá-la do meio acadêmico, local propício para sua evolução. Esse movimento faz da filosofia um empreendimento social, já que ele permite dar à sociedade ferramentas para que seus indivíduos busquem uma vida melhor para si e para todos na comunidade. Aqui não queremos dizer que passa a haver duas filosofias, uma praticada na academia e outra na rua; na verdade, elas interagem entre si, como uma espécie de sistema que se retroalimenta, pois a prática se fundamenta na teoria, que, por sua vez, evolui com a prática. Nesse contexto surge então movimentos como o Café Filosófico, criado por Marc Sautet (1947-1998), na França, onde pessoas se reúnem especificamente para tratar de assuntos de cunho filosófico em bares, cafés, livrarias e restaurantes; programas de TV e rádio falando sobre filosofia e discutindo questões da sociedade com filósofos, como, por exemplo, sobre o tema do aborto; cursos livres para leigos e participação de filósofos em debates e palestras de todo gênero. Também encontramos filósofos atuando como consultores de empresas para ajudar executivos a organizar o pensamento e torná-los mais críticos ou apoiá-los em decisões de natureza ética. Com esses movimentos, surge um interesse renovado pela filosofia, em que se pode notar um aumento na procura de cursos de filosofia para formação em nível superior e em pós-graduação. Foi dentro desse contexto de retorno da filosofia à Ágora4 que surgiu, então, a ideia do AF como uma “terapia para o são” (MARINOFF, 1999). Mas nesse ponto a filosofia entra em um campo onde já atuam outras disciplinas, apesar de não ser possível negar que, desde a Grécia antiga, a filosofia como um modo de vida é praticada e muitos dos filósofos antigos poderiam ser vistos como aconselhadores filosóficos, o que a tornaria a mais antiga de todas essas outras disciplinas. Das áreas de conhecimento no campo da saúde mental talvez a mais conhecida seja a psicologia, cujas raízes podem ser traçadas até Sócrates, Platão e Aristóteles (ATKINSON, 2009), que investigavam perguntas como “o que é consciência? As 4 Ágora: praça principal das antigas cidades gregas. Educação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 125-138, jan./jun. 2017 130 pessoas são naturalmente racionais ou irracionais? Existe realmente livre escolha?” entre outras de natureza similar que já eram feitas desde então. A psicologia moderna teve início em 1879, com Wilhelm Wundt (1832-1920), filósofo Alemão que desenvolveu uma pesquisa sobre introspecção para estudar processos mentais. Desde então novos ramos e propostas surgem, como o Estruturalismo, Funcionalismo, Comportamentalismo, Gestalt, Psicanálise com Freud e, mais recentemente, uma vasta gama de possibilidades de tratamento, cada uma aderente a uma determinada perspectiva, como psicologia biológica, cognitiva, desenvolvimentista, de personalidade e social, clínica e de aconselhamento, educacional e escolar, organizacional e de engenharia; além das que mais se aproximam do AF, como cognitivo-comportamental e terapia racional, emotiva e comportamental. Dada essa multiplicidade de opções terapêuticas e sendo a filosofia crítica por natureza, é de se esperar que ela possua justificativas importantes para retornar a essa área de atuação. Então, por que, mesmo com surgimento de diversas ciências que tratam da saúde mental, a filosofia acredita poder contribuir de forma diferenciada delas? 3. DESENVOLVIMENTO DA PROPOSTA DO AF A filosofia como esclarecedora e, talvez por isso, consoladora é uma perspectiva antiga. Hadot (2014, p. 22) nos diz sobre aprender a viver que, para os estoicos, [...] a filosofia é um exercício. A seus olhos, a filosofia não consiste no ensino de uma teoria abstrata, ainda menos na exegese de textos, mas numa arte de viver, numa atitude concreta, num estilo de vida determinado, que engloba toda a existência. Essa mesma perspectiva perpassa todas as escolas helenísticas e romanas. Para essas escolas filosóficas, [...] a principal causa de sofrimento, desordem, inconsciência para o homem são as paixões: desejos desordenados, Educação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 125-138, jan./jun. 2017 131 medos exagerados. A supremacia da preocupação o impede de viver verdadeiramente. A filosofia aparecerá, em primeiro lugar, como uma terapêutica das paixões (HADOT, p. 22-23). Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), filósofo romano, escreveu 124 cartas a seu discípulo Lucílio, cujo conjunto forma uma das principais obras do pensador. Em praticamente todas, Sêneca procura estimular seu discípulo a exercitar a filosofia todos os dias e impedir que qualquer outra atividade o afaste desse objetivo, pois, para Sêneca, por exemplo, na carta de número 16, O objetivo da filosofia consiste em dar forma e estrutura à nossa alma, em ensinar-nos um rumo na vida, em orientar os nossos atos, em apontar-nos o que devemos fazer ou pôr de lado, em sentar-se ao leme e fixar a rota de quem flutua à deriva entre escolhos. Sem ela ninguém pode viver sem temor, ninguém pode viver em segurança. (SÊNECA, 2014, p. 55). Na interpretação de Campos5 (2014, p. XXX), [...] a filosofia cumpre o papel de uma pedagogia e também o de uma terapia, implicando a este termo um maior empenhamento do sábio no desempenho da sua missão do que uma tarefa meramente pedagógica exigiria. A filosofia deve curar os males da alma, e não somente definir em que eles consistem [...] Se tal suceder, a filosofia terá falhado o seu objetivo. É importante notar, nessa posição de Campos, que a filosofia e, como consequência o AF, não deve se limitar apenas ao seu aspecto didático-educativo, comum ou esperado na interação professor-aluno, mas estimular o exercício “espiritual” que possa “curar os males da alma”. Assim, parece-nos, o AF também se diferencia das outras terapias, pois nele o filósofo deve ser praticante daquilo que defende e acredita. O exercício espiritual requerido ao cliente para que ele possa se ajudar deve, idealmente, ser também feito pelo aconselhador, o que nesse aspecto coloca a relação potencialmente entre iguais, mas sem sê-lo, pois o aconselhador precisa ser aquele que deve “iluminar” o caminho para que o cliente dê, ele mesmo, os passos. Esse “iluminar” não significa iluminar determinado cami5 J. A. Segurado e Campos, tradutor, autor do prefácio e das notas de Cartas a Lucílio. Educação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 125-138, jan./jun. 2017 132 nho, mas o todo, de forma a permitir ao aconselhado o exercício da melhor opção de forma racional. Mas uma relação entre iguais cria mecanismos no campo da empatia que potencializa a assimilação do cliente das orientações e métodos que a filosofia oferece. Neste ponto já é possível perceber que ests relação que inicialmente pode ser vista como a existente entre mestre e discípulo evolui para tornar o discípulo também mestre, ou seja, um filósofo como o mestre. Para a filósofa americana Nussbaum (2009, p. 3, tradução nossa), A ideia de uma filosofia prática e benevolente – uma filosofia que exista para o bem dos seres humanos, de forma a endereçar suas mais profundas necessidades, de enfrentar suas mais urgentes perplexidades, e tirá-los da miséria existencial e colocá-los em alguma medida em um estado de crescimento – traz a ideia do estudo da ética Helenística revigorante para o filósofo que se pergunta o que a filosofia tem a ver com o mundo. Seria esperado então uma uniformidade metodológica no exercício do AF, já que este se baseia no método dialético entre o filósofo e seu interlocutor (aquele que está em busca de ajuda) e o pensamento filosófico de séculos. No entanto, não é o que tem acontecido com essa nova empreitada. Diversas metodologias vêm sendo tentadas, não havendo ainda uma que seja reconhecida como fundamental, o que Raabe (1999, p. 1) coloca como uma “falta de identidade”. Para esse filósofo, É geralmente aceito que os três principais objetivos e propósitos básicos do aconselhamento filosófico sejam a resolução de problemas, o aumento da autonomia do cliente e de sua força interna para evitar ou resolver por ele mesmo problemas futuros de certos tipos. Para que isto ocorra o cliente deve ser ajudado a desenvolver conhecimentos de ordem prática e teórica assim como um tipo particular de disposição. O Aconselhamento Filosófico deve consequentemente ajudar o cliente a desenvolver um tipo de consciência que aprofunda o autoconhecimento e uma vigilância moral (RAABE, 1999, p. 160, tradução nossa). Aqui é indicada uma outra característica do AF que pode também ser usada para diferenciá-lo das outras terapias e da psiEducação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 125-138, jan./jun. 2017 133 quiatria, pois em ambos se percebe a notória busca da solução de um determinado problema, como um trauma de infância ou uma deficiência específica de algum neurotransmissor. No AF a ideia é de fortalecimento do sujeito de forma que ele possa enfrentar qualquer problema que não seja de ordem química ou traumática, o que acaba sendo verdadeiramente um tipo de ajuda que potencialmente é perene. Boécio (480 d.C. – 525 d.C.), sendo ele mesmo um filósofo, estadista e teólogo, se vê injustamente acusado, condenado à morte e impiedosamente torturado. Entre as torturas físicas e o sofrimento pela perda do poder, das posses, da vida que levava, usa figurativamente uma conselheira na própria prisão, a Filosofia em pessoa para curá-lo. As sessões com sua aconselhadora resultam no livro A Consolação da Filosofia6, o mais lido na idade média depois da Bíblia e que poderia ser aqui citado em sua totalidade de tão alinhado ao método do AF. Mas destacamos apenas um pequeno trecho onde Boécio pergunta à Filosofia se há a possibilidade de livre arbítrio ou se “o encadeamento do destino abrange também os movimentos da alma humana” (BOÉCIO, 2012, p. 134), em que a Filosofia responde: Sim, o livre arbítrio existe, e nenhum ser dotado de razão poderia existir se não possuísse a liberdade e a faculdade de julgar. Com efeito, todo ser naturalmente capaz de usar a razão possui a faculdade do juízo, que lhe permite distinguir cada coisa. Portanto, é ele que julga o que deve ser evitado e o que deve ser procurado. Pode-se depreender que, mesmo com problemas extremos onde a morte se apresenta como um fim injusto, como no caso de Boécio, a Filosofia e o uso da razão podem ser as únicas ferramentas que permitem algum tipo de consolação e enfrentamento dos momentos mais difíceis de nossas vidas. Raabe (1999, p. 171) estudou para a sua tese as diversas formas de AF disponíveis na literatura, inclusive comparando essa prática com a da psicanálise freudiana e outras terapias derivadas dessa e da psicologia. Ele chega à conclusão de que o método ideal, Boécio, é possível entender, faz um autoaconselhamento usando de seu conhecimento de filosofia, pois estava preso e ninguém podia ajudá-lo; Freud, a seu termo, faz uma autoanálise, pois sendo por ele a psicanálise criada, ninguém a conhecia para ajudá-lo. 6 Educação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 125-138, jan./jun. 2017 134 aquele que responde a todas as expectativas expostas nos outros métodos, é o que ele desenvolveu e se apresenta em quatro estágios: 1) “free floating” (mover-se livremente); 2) resolução imediata do problema; 3) ensinar e aprender; e 4) transcendência. De forma bastante resumida, esses estágios apresentam as seguintes características: 1o estágio – o aconselhador passa a conhecer o cliente, e este, o método do AF. É neste estágio que o aconselhador vai saber se deve partir para “cuidar” do problema imediato trazido ou se seria o caso de informar que o AF não é indicado para o problema em questão. Talvez o cliente não saiba exatamente o que o perturba, o que deverá ser identificado paulatinamente nas entrevistas; 2o estágio – neste estágio Raabe (1999) indica que o problema identificado, ou caracterizado, no estágio anterior deve seguir, então, o “tratamento”. O aconselhador deve ajudar o cliente a entender o problema, colocá-lo em uma perspectiva que possa ser analisado, discutido, debatido, pensado, ajudando o cliente a resolvê-lo, sem, no entanto, dar uma solução. 3o estágio – aqui o autor coloca o problema da falta de estudo de cunho filosófico da maioria das pessoas, isto é, a falta de preparo das pessoas de serem analistas críticos de seus próprios sentimentos e de suas vidas como um todo. A experiência no estágio anterior, aquele que endereça, especificamente, o problema trazido pelo cliente, deve estimulá-lo a não apenas acreditar no método filosófico para uma “cura”, mas confiar no seu próprio desenvolvimento cognitivo e no crescimento ocorrido e que deve, assim, ser perpetuado. Nesse caso, diferentemente de outras terapias, como indicado por Raabe (1999), o aconselhador filosófico deve buscar tornar seu cliente um filósofo, para que, a partir desses encontros, ele possa se autoanalisar e se tornar autônomo na solução de seus próprios problemas. Para tal, o aconselhador precisa, verdadeiramente, ensinar seu cliente no processo complexo de pensamento crítico. Nossa interpretação é que esse estágio é onde o AF se faz realmente importante e se diferencia, fundamentalmente, das outras disciplinas que cuidam do bem-estar mental. O que se deseja neste estágio é que o aconselhador possa simultaneamente desenEducação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 125-138, jan./jun. 2017 135 volver em seu cliente a capacidade de raciocínio e entendimento de questões de cunho filosófico, o que pode ser interpretado como um desenvolvimento cognitivo com o trato de questões filosóficas. O sucesso da empreitada do aconselhamento filosófico é então incutir no cliente a capacidade para que ele possa “desenvolver suas (próprias) habilidades filosóficas” (RAABE, 1999, p. 187), melhorando sua competência em pensar de forma crítica, criativa, construtiva e produtiva. 4o estágio – neste estágio o cliente é levado a pensar fora de suas questões individuais e transcender ao mais abrangente, a um contexto onde sua relação se expande para aquela onde a família, a comunidade e o mundo passam a ter uma perspectiva diferente. Segundo Hadot (1995, p. 103, tradução e grifo nosso), Então, todos os exercícios espirituais são, fundamentalmente, um retorno ao eu, no qual o eu é liberado de um estado de alienação no qual foi colocado por preocupações, paixões e desejos. O “eu” libertado desta maneira não é mais meramente um egoísta apaixonado por sua individualidade: é a nossa moral pessoal, aberta a universalidade e objetividade, e participando do pensamento e natureza universal.7 Raabe (1999, p. 198-200) identifica algumas perguntas que ilustram essa fase, lembrando que filosofia é muito mais fazer perguntas do que respondê-las: ao invés da pergunta mais natural ligada a ética na qual se quer saber o que é a coisa certa a fazer, pergunta-se “Como alguém encaminha a questão sobre o que é certo e errado?” ou “Como devemos viver? Ou por que razões?”. Raabe (1999) oferece uma outra analogia que parece descrever esse estágio de forma mais clara, a da caverna de Platão, onde o escravo que vivia na caverna acorrentado vendo sombras passa a viver livre fora da caverna. Com relação aos métodos aplicados ao AF, existem diversos, como já apontado, inclusive defensores de que o uso de um determinado método é limitador para o AF, como o do próprio iniciador desse movimento, o filósofo Achenbach. Mas, mesmo que não haja um método único que seja aceito por todos os aconselhadores filo7 Raabe (1999) menciona uma parte reduzida deste trecho na p. 197. Educação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 125-138, jan./jun. 2017 136 sóficos e estudiosos dessa empresa, parece-nos que ter a meta de tornar o aconselhado um filósofo é um ponto em que todos concordariam. Isso significa dizer que é esperado que o aconselhador filosófico seja uma pessoa que usa a filosofia como forma de vida, pois em algum momento o aconselhador e o cliente terão uma relação entre iguais. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Pelo exposto, podemos entender que o AF poderia ser visto e interpretado de forma muito resumida como aulas particulares de filosofia orientada ao cliente, buscando torná-lo um filósofo e tratando de temas de interesse dele. No entanto, é importante ressaltar que o cliente busca o AF, normalmente, porque está sofrendo e precisando de um tipo de ajuda que provavelmente não encontrou em outras terapias, incluindo remédios. Então, o AF deve ser mais do que simplesmente dar conhecimento às pessoas que não tiveram acesso as ferramentas e conhecimentos filosóficos tornando-as filósofas, mas deve fundamentalmente fortalecer o sujeito para que este, com o uso de sua razão desenvolvida com o exercício intelectual de entender o pensamento filosófico de séculos e colocá-los em perspectiva, possa enfrentar a vida e seus sofrimentos usando de uma nova visão de mundo. O que defendemos aqui é que, com a busca do conhecimento filosófico utilizando o raciocínio crítico e sistemático, típicas ferramentas do filósofo; do engajamento e aprofundamento na relação com o complexo (sim, os temas filosóficos são eventualmente complexos), onde a superação e o entendimento de questões fundamentais da filosofia e da existência passam a ter um teor prazeroso para aqueles que aceitam tal desafio e o superam (para o prazer na relação com o complexo, consultar CSIKSZENTMIHALYI, 1992); e com o tipo certo de disposição mencionada por Raabe (1999), o que ocorre é um crescimento da capacidade cognitiva do sujeito, habilidades que o fazem compreender sua própria situação no mundo e a entender-se como um agente responsável pela sua própria vida, dando a ele condições de administrar as pressões externas (do Educação, Batatais, v. 7, n. 1, p. 125-138, jan./jun. 2017 137 mundo) e internas (da alma) e, assim, permitir uma vida mais serena e autônoma. O AF é uma empreitada que dá resultado para aquele que o procura, quando este, na busca por se tornar um filósofo, atinge um nível de desenvolvimento cognitivo que o permite entender o todo, avaliar de forma objetiva sua situação como vivente e de relação com o mundo. Essa potência racional adquirida na busca inicial da solução para um determinado problema evolui para o fortalecimento do sujeito como um todo, permitindo uma gestão autônoma para qualquer problema pessoal que possa vir a enfrentar, pois passa a ser filósofo praticante e atinge seu ápice na percepção de que o resultado do seu esforço foi o desenvolvimento cognitivo e intelectual pessoal. Assim, nosso entendimento das diversas metodologias disponíveis para o AF ou até mesmo o não método como método é que devem buscar o desenvolvimento cognitivo do cliente, utilizando do saber e do método filosófico, pois são abordagens que tratam do que é fundamental para a nossa existência e, principalmente, possuem características subjetivas e simultaneamente complexas que permitem esse desenvolvimento cognitivo, que pode parecer como uma espécie de subproduto da empreitada, mas que aqui identificamos como sendo o principal objetivo. Com isso acreditamos ter respondido de forma afirmativa à indagação sobre se seria a capacidade cognitiva um suporte necessário e suficiente para justificar o Aconselhamento Filosófico. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. BOÉCIO, A. A consolação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012. CSIKSZENTMIHALYI, M. Flow: the psychology of happiness. London: Rider, 1992. ELLIS, A.; ELLIS, D. J. 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