Há 80 anos - Instituto de Física / UFRJ

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MEMÓRIA
HÁ 100 ANOS ERA CARACTERIZADO O ISÓTOPO RÁDIO-226
Os primórdios da radioquímica
Mais conhecida por seus estudos sobre a radioatividade, que lhe deram em 1903 o prêmio Nobel de
física, Marie Curie (1867-1934) também teve atuação relevante na área da química. Ela descobriu os
elementos radioativos polônio e rádio em 1898 e isolou e caracterizou o isótopo 226 do rádio em 1902,
o que lhe garantiu outro Nobel, este de química (em 1911). O isolamento do rádio foi a base para o
desenvolvimento da radioquímica, campo de larga aplicação na atualidade, inclusive na medicina.
Há 80 anos
H
á 100 anos, a polonesa (naturalizada francesa)
Marie Curie (figura 1) revelava à comunidade
científica que o elemento rádio tinha massa atômi-ca
de 225(±1) – hoje, o valor determinado para o isótopo
mais estável do rádio é 226,0254. O achado permitiu
determinar a posição do novo elemento na tabela periódica. O isolamento e a caracterização do rádio resultaram de grande esforço da pesquisadora e do
importante auxílio de seu marido, o francês Pierre
Curie (1859-1906), também cientista.
Essa história, no entanto, começou anos antes, em
1898, quando Marie Curie estudava, para sua tese de
doutorado, a origem dos raios emitidos pelo urânio,
que Antoine H. Becquerel (1852-1908), também francês, havia descoberto em 1896. Os raios tinham a capacidade de velar filmes fotográficos, o que permitia
descobrir que substâncias os emitiam, mas ainda não
era possível quantificar o fenômeno. Podiam também
ionizar (carregar eletricamente) o ar em torno das
substâncias que os emitiam.
Foi esse poder ionizante que inspirou Pierre a criar
um instrumento para medir a taxa de raios que emanavam de uma amostra através da corrente que eles
geravam entre dois eletrodos acoplados a um cristal
de quartzo piezoelétrico – esse tipo de cristal gera
corrente elétrica quando submetido a uma deformação (e vice-versa). Usando esse instrumento, Marie
percebeu que amostras de minerais que continham
urânio, como a calcolita (fosfato
hidratado natural de urânio e cobre) e a pechblenda (variedade de
uranita maciça), mostravam atividade duas a quatro vezes maior
que a do urânio metálico. Assim,
pareceu-lhe evidente a existência
Figura 1. Em seu laboratório
(em torno de 1898, na imagem),
Marie e Pierre Curie lançaram as
bases da radioquímica
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de outro elemento radioativo na amostra, que precisava ser separado e identificado.
Com a ajuda do químico Gustave Bémont (18671932), o casal Curie aplicou à pechblenda métodos
clássicos de separação e análise química, usando o
efeito da ionização para medir a radioatividade das
diferentes frações obtidas, criando o primeiro processo radioanalítico da história.
Esse processo permitiu que os Curie identificassem dois novos ‘materiais’, um 400 vezes e outro 900
vezes mais ativo que o urânio, presentes em diferentes frações do processo de separação. Eles deram ao
primeiro o nome de polônio (Po) e ao segundo o nome
de rádio (Ra). Mas só anos depois o rádio (em 1902)
e o polônio (em 1910) foram isolados em quantidade suficiente para realizar testes físico-químicos,
que determinaram várias de suas propriedades.
Após a descoberta de Becquerel e do casal Curie,
ainda restava desvendar o mistério dos raios de urânio. As primeiras explicações sobre o fenômeno couberam ao inglês (nascido na Nova Zelândia) Ernest
Rutherford (1871-1937) e colaboradores. Entre 1898
e 1900, eles constataram dois tipos de radiação: uma
altamente ionizante, mas facilmente bloqueada por
folhas de papel, batizada de partícula alfa (a), e outra menos ionizante, mas com maior poder de penetração, que chamaram de partícula beta (b). Anos
mais tarde, as partículas a foram caracterizadas como átomos de hélio ionizado (He2+) e as partículas b
como elétrons. Ainda em 1900, o físico francês Paul
Villard (1860-1934) descobriu outro tipo de radiação proveniente do urânio, com um poder de penetração maior que o das outras emanações, e deu-lhe o
nome de radiação gama (g).
Com base em experimentos seus e de outros cientistas, com essas radiações, Rutherford propôs um
modelo de estrutura atômica em que os átomos teriam um núcleo formado por prótons (partículas com
carga positiva) e por partículas neutras (compostas
por uma mistura de prótons e elétrons), em torno do
MEMÓRIA
qual existiriam elétrons. Embora esse modelo não fosse totalmente correto, serviu de base para o entendimento de alguns processos de decaimento radioativo e permitiu a descoberta das três séries de famílias radioativas naturais, como a do urânio-238 (figura 2) – nas séries, o decaimento radioativo de átomos
de um elemento de maior massa atômica gera, sucessivamente, átomos de novos elementos ou isótopos de
algum antecessor de menor massa, o que justifica a
presença do rádio e do polônio no minério de urânio.
Rutherford já havia demonstrado que alguns elementos químicos, quando bombardeados por partículas alfa, originavam outros elementos. No entanto,
o primeiro isótopo radioativo artificial, o fósforo-30
(30P), só seria produzido em 1934 por Fréderic Joliot
(1900-1958) e Irene Joliot-Curie (1897-1956), filha
de Marie, ao bombardearem uma folha de alumínio
com partículas alfa. Após essa e outras experiências,
o número de isótopos radioativos conhecidos passou
de cerca de 30 para cerca de 300.
Na mesma época, em 1932, o físico inglês James
Chadwich (1891-1974) provou a existência de partículas neutras no núcleo atômico, corrigindo a teoria de Rutherford, que dizia existir no núcleo uma
mistura de prótons e elétrons. Esse fato, importante,
permitiu a Otto Hahn (1879-1960) a descoberta do
processo de fissão (quebra) do núcleo atômico do
urânio, quando bombardeado por nêutrons. Essa
descoberta levou à construção dos reatores nucleares
e das bombas atômicas, dando início à era nuclear.
Radiações nucleares na medicina
Embora os efeitos maléficos das radiações nucleares
sejam bastante conhecidos, a compreensão do fenômeno nos últimos 100 anos também trouxe benefícios para a humanidade: na geração de energia elétrica, em processos industriais, na agricultura etc.
Mas é na medicina que as radiações têm sido usadas
na nobre tarefa de diminuir o sofrimento humano.
Para que as radiações nucleares sejam utilizadas
na medicina, as características dos radioisótopos
(meia-vida física, forma de decaimento, energia de
radiação e forma química) devem ser adequadas à
aplicação desejada (diagnóstico ou terapia). Eles também devem ser produzidos e manipulados de modo
que sejam aplicados de forma segura em seres humanos – nesse caso, são chamados de radiofármacos.
Para o uso em diagnóstico, através da formação de
imagens, o composto deve emitir radiação gama,
como o tecnécio-99m (99mTc). Nos exames desse tipo,
o radioisótopo é ligado a diferentes moléculas orgânicas, que o levam a variados órgãos do corpo humano. A radiação emitida pelo composto em um órgão
é captada por câmeras de cintilação, o que permite
sua quantificação, além da formação de imagens.
Os radiofármacos baseados no 99mTc são muito
usados em estudos da atividade cerebral,
possibilitando diagnosticar casos de demência, mal de Alzheimer, mal de Parkinson, focos epiléticos etc. Também na
área de cardiologia, esses radiofármacos
têm ajudado a diagnosticar casos de infarto
do miocárdio e – o que é muito importante
– a determinar a extensão da obstrução de
artérias (isquemia), que leva ao infarto, facilitando a prevenção. Outro importante
uso dos radiofármacos de 99mTc é a detecção
de tumores de mama e pulmão ou, com o uso
de anticorpos marcados (com esse radioisótopo), de tumores intestinais e outros. O
radioisótopo mais empregado para diagnóstico (abrange cerca de 90% dos exames
desse tipo) é o 99mTc.
Para uso em terapia, os radionuclídeos
devem emitir radiação na forma de partículas alfa ou partículas beta. Tais partículas
devem ter alta energia, para destruir as
células tumorais ao interagirem com estas,
mas também devem mostrar alto grau de
especificidade para a região que se quer atingir, evitando que células sadias sejam atingidas. Alguns importantes radioisótopos nessa categoria são o iodo131 (131I), usado no tratamento do câncer de tireóide
e em casos de hipertireoidismo, e o samário-153 (153Sm),
que, associado a um composto químico, é indicado
para o tratamento da dor óssea provocada por metástases de alguns tipos de tumores primários. Ambos os
produtos, além da radiação beta, também emitem
radiação gama, permitindo a obtenção de imagens
dos órgãos onde estão atuando.
Recentemente, tem sido estudado o uso de radioisótopos emissores de radiação alfa para tratamento do câncer, já que sua energia é superior à dos
emissores de partículas beta – o alfa-emissor bismuto-212 (212Bi), por exemplo, apresenta radiação de
6,05 milhões de elétrons-volt (eV), enquanto no betaemissor iodo-131 (131I) a radiação só chega a 806 mil
eV. Mas a ciência ainda precisa avançar muito nessa
área, já que a aplicação de radiofármacos nos tumores deve ser rápida e seletiva, para que células sadias não sejam destruídas.
As radiações estudadas por Marie Curie a levaram
à morte por leucemia, já que seus efeitos danosos às
células só foram descobertos décadas depois das primeiras pesquisas. Assim, o mesmo fenômeno que
provocou sua doença, e também matou milhares de
pessoas com a explosão das bombas atômicas, no final de Segunda Guerra Mundial, hoje ajuda a salvar
milhares de vidas todos os anos.
Urânio-238
a
4,5 bilhões de anos
Tório-234
b
24,6 dias
Protactínio-234
b
1,4 minuto
Urânio-234
a
270.000 anos
Tório-230
a
83.000 anos
Rádio-226
a
1.600 anos
a
Radônio-222
a
Polônio-210
3,8 dias
140 dias
Chumbo-206
Estável
Figura 2.
Em decaimentos
sucessivos,
o urânio-235
dá origem
a uma série de
outros elementos
radioativos,
até terminar
no elemento
estável
chumbo-206.
Os tempos
indicados
representam
a meia-vida
(período necessário
para que metade
dos átomos
radioativos
decaiam)
de cada isótopo
Fábio Luiz N. Marques
Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo
julho de 2002 • CIÊNCIA HOJE • 87
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