O Trabalho de Campo e a Construção de uma Etnografia Tabajara Amanda Christinne Nascimento Marques Profª. Msc. Substituta do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia – IFPB e da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Integrante dos Grupos de Pesquisa – Gestar: território, trabalho e cidadania e do Cidadania e Direitos Humanos da UFPB E-mail: [email protected] “A visão é o sentido mais apto para a investigação, e é por isso que é o sentido que mais prazer nos causa. Sentimos prazer em conhecer e estudar as coisas. É enxergando que percebemos o discernimento das coisas, e nos permite ver as diferenças. A visão também é o mais rápido dos sentidos, projetando imagens no subconsciente que ficarão na memória para um fácil e rápido entendimento, com a maior fidelidade”. Marilena Chauí. Introdução Chauí (1998), quando diz que o “olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si”, afirma que a visão não é aquilo que se presencia no primeiro golpe de vista, mas buscar ver o interior do próprio visível. Estamos numa incessante procura pelas visões de mundo que nos circunda! Culturas, arquétipos, fronteiras, paisagens, imaginários sociais, lugares, povos, ritos, conflitos. As mudanças são tão intensas, que muitas vezes as ocultamos porque não sabemos revela-las. Na ciência geografia, uma das ferramentas metodológicas que nos convida a penetrar nos olhares sobre essas visões mundo, é o trabalho de campo. De acordo com Moura (1992), o campo tem vários sentidos, desde o ponto de vista clássico ao sentido cultural. Para a autora: Campo sim e em vários sentidos. Campo num sentido clássico nesta minha disciplina de eleição, o que é geograficamente distante, diferente, exige deslocamento físico considerável, com mochilas, bolsas, papéis e lápis; que exige algumas noites de viagem, que aumentam o gosto pelo que se espera emocionada. Campo no sentido cultural e histórico e que, estando em oposição à cidade, revela situações que parecem próximas sendo distantes e o contrário; e pessoas que, falando a mesma língua, não a falam igual a mim e, vivendo vida diversa, vivem-na, sentem-na, criam-na do mesmo modo que outros seres humanos (MOURA, 1992, p.1). Considerando essas reflexões preliminares, buscamos neste artigo discutir a importância do trabalho de campo na Geografia, a partir de uma experiência de caracterização do grupo indígena Tabajara, localizados no Estado da Paraíba. Esse estudo se estabeleceu a partir da instrução técnica Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 1 executiva n. 134 da diretoria de assuntos fundiários da FUNAI. O trabalho foi realizado a partir de três etapas, onde buscamos reconstruir os marcos históricos e de parentesco do grupo, por meio da oralidade e da documentação oficial encontrada. Apresento neste artigo, parte de uma das etapas de campo, realizada no dia 17 de dezembro de 2009, que teve como propósito a identificação de uma área considerada como sendo imprescindível para a reprodução social e cultural do grupo. Além das descrições que se seguem, buscamos estabelecer um diálogo entre autores que discutem o trabalho de campo e os estudos etnográficos na Geografia, a exemplo de Rodrigues (2008), Lacoste (2006), Kaiser (2006), Serpa (2006) e Marques (2008, 2009), e na ciência antropológica, a partir de autores como Moura (1992) e Geertz (1989). O campo na Geografia: descrições x reflexões Diante do espaço, nós geógrafos fazemos leituras, observamos, pensamos, interpretamos, mudamos, construímos uma estrutura de teias que se interligam e se transformam em redes de territórios interpoladas multiescalarmente. O trabalho de campo nesse arranjo propicia o pesquisador a pensar sobre essas dinâmicas do espaço. Ao longo do pensamento geográfico, essa metodologia foi em alguns momentos evidenciada, e em outros negligenciada. São práticas que ultrapassam as fronteiras do tempo-espaço, podendo ser descrições de longas ou curtas viagens como àquelas realizadas por Humboldt (2009 [1805]) quando passa cinco anos, de 1799 a 1804, visitando países da América Latina e coletando dados sobre a fauna, flora, clima e povos. Em suas descrições, Humboldt aproxima o leitor de suas expedições, nos fazendo “entrar” no cenário textual. Um dos exemplos dessa aproximação entre o escrito e o vivido, é um trecho onde o autor vai tratar sobre as características dos povos e regiões próximas ao pacífico: Llevábamos 18 meses recorriendo sin cesar todas las vueltas y rincones de estas montañas, y la impaciencia de alimentar nuestros ojos de nuevo con el libre aspecto del mar, se aumentaba com las decepiones tantas veces sufridas. Cuando desde la cumbre de los espesos bosques de la província de las Esmeraldas, no permite la distancia a qué em lo horizonte del mar. La vista se pierde em el vacio como desde lo alto de um globo; redúcese uno a sospechar vagamente lo que no puede discernir. Más tarde, cuando llegamos, entre Loja e Guancabamba, al Páramo de Guamaní, donde se encuentran las ruínas de muchas construcciones levantadas por los incas, los hombres que conduciar nuestros mulos nos aseguraron formalmente que poderíamos Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 2 abarcar con la mirada las tierras bajas regadas por el Piura y el Lambajeque, y contemplar encima de la llanura, nos oculto la remota playa [...] nuestros guias poco seguros del camino, nos prometiam de hora en hora la próxima satisfaccion de nuestros deseos. (HUMBOLDT, 2009 [1805] p.125). Muito antes dessas viagens descritas pelo denominado “pai da Geografia moderna”, podemos citar o conhecimento geográfico não sistematizado como a da descrição dos viajantes do século XVI. Hans Staden (1974 [séc. XVI]) quando descreve seu convívio forçado com os tupinambás e Américo Vespúcio (2003 [1451 – 1512]) em seus escritos sobre o novo mundo, são exemplos da riqueza de uma descrição que hoje se encontra um pouco perdida na Geografia. Atualmente, nos deparamos com monografias, dissertações e artigos científicos que tratam o trabalho de campo como um caminho metodológico sem “vida”. São descrições procedimentais, que revelam uma escrita tolhida com passos que não desvendam relatos densos e interpretativos, tal como aqueles desenvolvidos por Geertz (1989). É como se o fazer acadêmico, se resumisse à coleta de dados, cujos informantes fossem objetos passivos, e os caminhos percorridos, banais. Lapidar a escrita, reconciliando a literatura e a Geografia, é um desafio de reconstrução, tal como indica Pierre Mombeig em seu texto “Geografia e Literatura”. Para esse autor, depois da denominada Geografia moderna, a ciência: Se tornou cada vez menos literária ao passo que a literatura se tornava dia a dia mais geográfica. É que, efetivamente, elas têm um campo comum: a descrição da paisagem. Descrever a paisagem da região estudada é a primeira fase do trabalho geográfico. Pode-se afirmar, sem exagero, que a geografia é o estudo das paisagens. Começa por descrevê-las e tem por missão, em seguida, explica-las (MONBEIG, 1957, p. 225). Talvez esse distanciamento tenha se dado, em virtude do próprio processo de ruptura da ciência geográfica, onde os adeptos a “nova geografia” atentaram para o caráter empirista da “geografia tradicional”, onde o trabalho de campo se transformava em teoria e método, tornando o mesmo como o critério da verdade científica. Mas será que a busca dessa verdade, tão discutida pelos filósofos pré-socráticos ao criarem suas “cosmologias” e pelos epistemólogos como Bachelard (1996 [1884-1962]), Kuhn (2007 [1962]) e Feyerabend (2007 [1924-1994]) ao referenciarem os mitos da verdade e da neutralidade da ciência, já não ofereceriam argumentos para nós como geógrafos repensarmos sobre o uso dessa ferramenta tão importante para a ciência? Será que a discussão dos obstáculos da ciência não Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 3 aparece no discurso geográfico por pura miopia? Ou por “ingênua” ideologia como assinala Lacoste (1988[1977])? Conforme Moreira (2008) existe um processo de descontinuidade-continuidade do pensamento clássico geográfico. E no caso especifico do trabalho de campo, podemos dizer que a continuidade dessa metodologia ficou comprometida em virtude do movimento de renovação que buscou desconsidera-la, mesmo que tenha sido impossível, dando ênfase na Geografia Teorética aos trabalhos de gabinete, e na Geografia Critica a construção de um legado teórico marxista para a Geografia. Mas como compreender os processos sociais, a observação e as ambigüidades dos lugares se nós não estamos atentos às mudanças, e pior, não as vivenciamos. Será que nesse jogo do local-global, glocal, espaço e tempo, espaço-tempo-movimento, também estamos passando por um movimento - o da ruptura, e um contramovimento - o da ressignificação das continuidades do pensamento clássico da Geografia? Indagamos essas questões porque embora tenhamos percebido essa indiferença ou “sonolência descritiva” sobre os trabalhos de campo em alguns estudos, temos pesquisadores que caminham na contramão desse processo, a exemplo de Rodrigues (2008), Lacoste (2006), Kaiser (2006), Serpa (2006) e Marques (2008, 2009), quando afirmam que o campo não é só uma indicação procedimental de trabalhos acadêmicos, mas um instrumento que leva o geógrafo a desvendar as “máscaras sociais” impressas no espaço. Esse desvendamento se inicia a partir do momento em que nos propomos a contar sobre nossas experiências de campo, que vão desde o levantamento prévio de informações acerca dos lugares onde se realizará a pesquisa de campo, a escolha do roteiro, descrição das paradas e a sistematização das informações. Nesse sentido, Geertz (1989) afirma que a prática etnográfica não se resume apenas em estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, mapear e escrever diários, mas a preocupação se envolve a partir de uma descrição densa. Essa descrição densa requer uma sensibilidade do pesquisador, no sentido de observar as diferentes situações enfrentadas, interpretando-as. Para esse autor: (...) o homem é dotado de uma cultura composta de teias de significados, tecidas por ele próprio, daí que ele assume a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa à procura do significado (GEERTZ, 1989, p.15). Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 4 Ao exemplificar escritos etnográficos, o autor diz que para toda situação existe um significado diferenciado. Nesse caso, cabe entender que os estudos sobre cultura são dotados de: (...) uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar (GEERTZ, 1989, p. 20). Dessa forma, ao tentarmos interpretar as dinâmicas territoriais dos Tabajara, não buscamos caminhos prontos, nem verdades inquestionáveis, consideramos que toda pesquisa tem seus limites e permite que o pesquisador consiga penetrar e descobrir caminhos que o leve a “uma” compreensão da realidade. De acordo com Streck (2006, p. 262): (...) todas as pesquisas contribuem de alguma forma para um acúmulo de conhecimentos que, em certo momento, pode permitir passos maiores ou a descoberta de caminhos alternativos na compreensão da realidade. “um” olhar sobre o campo Como assinala Streck (2006), nos permitimos neste artigo descobrir caminhos para a pesquisa, conhecendo o território tradicional dos índios Tabajara, localizados na microrregião do litoral sul paraibano. Do ponto de vista socioambiental, o território da microrregião do litoral sul paraibano apresenta uma paisagem diversificada, chegando a ser desabitado em alguns pontos. Destacam-se ao longo da costa as falésias, estuários, dunas, planícies e tabuleiros. Fazem parte da porção denominada Litoral Sul, o municípios de João Pessoa, Gramame, Conde e Pitimbu. A especulação imobiliária, a territorialização de assentamentos rurais, a construção civil e a atividade turística são, em geral, as forças responsáveis pela sua ocupação. A intensificação desses elementos, sobretudo, a especulação imobiliária e a atividade turística, se deram após a construção de rodovia PB – 008. Cabe considerar que até 2006, momento que o grupo passa a se organizar para reivindicar sua condição de grupo etnicamente diferenciado, o único grupo indígena reconhecido na Paraíba era os Potiguara, localizados no litoral norte paraibano. A presença dos Tabajara na Paraíba é referenciada em documentos e referencias desde o século XVI. Durante o século XVII, os indígenas foram aldeados em missões religiosas. Foram Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 5 instalados quatro aldeamentos na Paraíba, sendo eles: Jacoca e Alhandra, localizados na microrregião do Litoral Sul; e Monte-Mór e São Miguel, localizados na microrregião do Litoral Norte. Com a expulsão das missões no fim do século XVIII, os aldeamentos foram transformados em vilas indígenas. Nesse período os aldeamentos indígenas são extintos pelo Estado, que passa a promover a emancipação de municípios, bem como fazendeiros se utilizam dessas terras para incorporar parcelas dos territórios tradicionais dos indígenas, os quais passam da condição de dono das terras, para a de empregados. Na Paraíba durante esse período, foram contabilizadas nove vilas de índios, as quais somavam um total de 1.454 indígenas, tal como podemos observar no quadro abaixo: MAPA DOS INDIOS EXISTENTES NA PROVINCIA DA PARAHIBA NO NORTE EM 1829 Nome das Villas Na cidade da Parahiba Villa Nossa da Painha Freguesia do Coité Villa de S. Miguel Villa Real do Brejo de Área Villa de Monte Mor Villa do Pilar Villa do Conde Villa de Alhandra Somma Quantidade de Índios 92 50 12 235 146 271 56 281 309 1.454 Quadro 1 – Mapa dos Índios Existe nte s na província da Parahiba do Norte e m 1829. Fonte: Arquivo Nacional. Caixa 1219. Seção: Terras Públicas e Colonização. Manuscrito endereçado ao diretor geral de terras públicas e colonização. Org. Amanda Marques. Após esse período, as únicas informações que encontramos foram sobre as vilas de São Miguel, Monte-Mór, Jacoca e Aratagui, o que nos faz pensar que o restante desses territórios tradicionais foi sendo gradativamente ocupado e esses grupos foram sendo incorporados à sociedade. É no sentido da incorporação à sociedade brasileira que o índio passa a ser percebido, pois muitos dos grupos étnicos nesse período haviam sido dizimados ou silenciados. Durante esse período, reaparecem temáticas como a miscigenação ou mistura como fator de formação da identidade étnica e cultural brasileira a partir do negro, índio e branco. Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 6 O Brasil passa por um período de diversificação das políticas territoriais. Viveu-se, nesses períodos, a implementação de legislações que desconsideraram os direitos dos índios, mantendo-os sob a tutela do Estado. Nessas legislações observaram-se centralizações do poder do Estado, frentes de expansão territorial para a região norte do país (a marcha para oeste) e imigrações, fatos que demonstram que: (...) a política indigenista do período leva a marca de todas essas disparidades. Mas para caracterizar o século como um todo, pode-se dizer que a questão indígena deixou de ser essencialmente uma questão de mão-de-obra para se tornar uma questão de terras (CUNHA, 1992, p.133). Como instrumento jurídico do período, a lei de terras de 1850 se coloca como marco para entendermos a construção do território indígena Tabajara. Para Rodrigues (2007, p. 3), “É possível perceber através da legislação aprovada em 1850 que a população alvo atingida por esses instrumentos jurídicos era os índios, os negros libertos ou escravos e os imigrantes estrangeiros”. Em se tratando dos Tabajara, após a promulgação da Lei de Terras, o descaso das autoridades associado à precária condição dos índios, fizeram com que houvesse constantes usurpações e compras das terras indígenas. Atos esses que se justificavam a partir da alegação de que naquelas terras não havia mais indígenas. Em se tratando do contexto histórico da questão agrária no Brasil, o primeiro divisor de águas, como aponta Rodrigues (2007), foi a promulgação da Lei de Terras. Nos períodos de 1864 a 1871, essas terras foram demarcadas pela comissão de demarcação de terras publicas. Essa comissão foi criada com o propósito de tratar das demandas e colonização das terras publicas. O engenheiro responsável pela demarcação, avaliação e regularização dos arrendamentos das terras indígenas na Paraíba foi Antonio Gonçalves da Justa Araújo. Lima (2008), ao estudar o processo de formação territorial e a formação de novas territorialidades camponesas no litoral sul, afirma que o processo histórico dessa região foi: (...) de grande disputa territorial de uma nação ainda em formação, desde nativos, muitas vezes lutando em lados opostos, como os potiguaras, os tabajaras e os caetés, passando pelos portugueses, franceses e holandeses, até escravos africanos e homens pobres livres [...] A luta pela terra no Litoral Sul Paraibano ocorreu de diversas formas, transformando-se em uma luta de classes. De um lado, grandes Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 7 proprietários, que respaldados pelo poder político e econômico, consideravam-se os donos da terra, do outro, a população pobre, formada por uma numerosa massa de excluídos, distintas entre si, mas que, para obter o acesso a terra de sobrevivência, subordinavam-se a relações precárias de trabalho (LIMA, 2008, p.49; 54). Durante o século XX, como podemos perceber a partir da afirmativa de Lima (2008), os Tabajara passaram por uma condição de donos para subordinados, muitos tendo que migrar para grandes centros como João Pessoa, residindo na periferia da cidade. Outros ficaram confinados a pequenas propriedades e subordinados aos proprietários de terra, a exemplo da família Lundgren que ocupou grandes glebas de terra, expulsando dos seus territórios tradicionais tanto o povo Potiguara no litoral norte, como os Tabajara no litoral sul. O litoral sul, também passa por uma outra forma de fração territorial, sobretudo a partir do processo de luta pela terra, de desapropriação das mesmas pelo INCRA para fins de reforma agrária e de reivindicação étnica quilombola. Cabe destacar, que no território Tabajara da Jacoca demarcado por Justa Araújo, temos uma sobreposição de identidades étnicas e interesses territoriais. Nesse arranjo, como relatado anteriormente, uma família que se autoidentifica Tabajara, passa a reivindicar sua ancestralidade indígena, no sentido de re-territorializar a antiga Jacoca por meio da reativação da memória como elemento chave de mobilização indígena e identidade territorial. A partir dessa demanda e da configuração territorial observada ao longo do tempo e lida preliminarmente, seguimos para o território Tabajara numa manhã de domingo ensolarado do dia 17 de dezembro de 2009. Fomos recebidos pelo cacique e seus familiares, os quais já havíamos conhecido em virtude de algumas reuniões preliminares ao estudo, bem como durante alguns eventos e reivindicações feitas pelo grupo. No roteiro inicial alguns pontos que consideramos como imprescindíveis e necessárias a reprodução social do grupo foram considerados, mas um deles daremos ênfase: a relação dos Tabajara com o rio Gramame. Esse rio é a divisa natural entre os municípios de João Pessoa e Conde (Ver mapa a seguir) é considerado estratégico, pois cerca de 70% do abastecimento de água da grande João Pessoa é proveniente de suas águas. É uma bacia que tem um histórico de conflitos pelo acesso e uso dessa águas, sobretudo em virtude das extensas áreas de plantio de cana-de-açúcar e atividades industriais que causam seu assoreamento. Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 8 Durante o dia 17 nos preocupamos com a historia do lugar, tentando compreender o sistema de parentesco do grupo, nesse dia, fizemos esse exercício indo até as localidades de antiga residência do grupo. Percebemos que a memória do grupo é reproduzida de pai para filhos e são guardadas como herança de um espaço-tempo em movimento: (...) envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas. Ela evolui segundo suas leis, e se algumas lembranças individuais penetram algumas vezes nela, mudam de figura assim que sejam recolocadas num conjunto que não é mais uma consciência pessoal [...] Quando um período deixa de interessar ao período seguinte, não é um mesmo grupo que esquece uma parte do seu passado: há na realidade, dois grupos que se sucedem (HALBWACHS, 1990, p.53-54; 81-82). Dormimos em uma caiçara de um dos Tabajara, onde durante a noite conversamos sobre alguns problemas vivenciados pelo grupo, a exemplo da presença de barraqueiros instalados na Barra do Gramame que vivem do comercio informal e que degradam o manguezal e o rio por meio da instalação de banheiros dentro do mangue e o lixo que é jogado nas proximidades dos bares. No dia seguinte, bem cedo, utilizamos documentos cartográficos a partir de cartas da Sudene e mapa municipal estatístico do IBGE, para que o grupo indicasse nossos possíveis pontos de parada. Com o auxilio do GPS, percorremos de barco, juntamente com os Tabajara, todo o baixo curso do rio, considerado por eles, como área de intensa utilização para pesca e coleta de marisco e crustáceos. Podemos observar esses pontos e nomenclaturas dos lugares no mapa a seguir. Durante os momentos que entravamos rio acima, percebíamos que a relação dos Tabajara com o rio Gramame é singular. Todas as curvas, pequenos portos e camboas tem uma nomenclatura que faz alusão a algum fato ocorrido historicamente, nome de peixes ou faz referencia ao imaginário popular regional. Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 9 A curva do Muriongo (no mapa n.82) é a primeira curva indicada pelo grupo. Fica localizada na porção norte do rio. Nessa área, localizam-se barracas com instalação de banheiros ao ar livre que resulta na visível poluição do ambiente e possível contaminação das águas do rio. A nomenclatura Muriongo, se deu a partir da junção dos nomes de dois peixes que são caracterizados como sendo “peixes de camboa”, que são: o muriongo e o amoré. De acordo com um dos índios que nos acompanhavam: “meu pai matou um mero aqui com mais de 30 Kg e de linha”. Por se tratar de uma área próxima a barra, essa área de fato Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 10 recebe varias espécies de peixes que vem do alto mar e entram na barra para se alimentar, como é o caso do Mero, peixe que entra na barra durante a maré de sizígia, ou seja, nas marés de lua cheia ou lua nova. À medida que adentramos no rio, mais espécies são referenciadas pelos Tabajara, como Tainha, Camurim, Bagre, Caranha e Carapeba, considerados como “peixe de costa”, pois entram no estuário o ano todo. Ao nos aproximamos das camboas, que são canais naturais formados por grandes máres, passamos pela camboa de Mané Francisco, nome dado em homenagem a um pescador que só pescava nesse ambiente. Após essa camboa, se seguem a do Angilin, Arregato, Jiqui, Siri Roxo, Ostra e da lama. Passamos pela Croa da Marreca, bancos de lama que aparecem na maré baixa, onde os peixes e crustáceos se utilizam desses lugares para habitar e se alimentar. Conforme informação verbal dos Tabajara: “eu dei um lance de tainha aqui que quase não levantava a tarrafa, vêi 28 tainha de uma vez só...essa área todinha tem caranguejo, amoré, aratu.Amoré é peixe de lama”. Para o grupo, esse é um lugar bom de pegar tainha, porque é um peixe que procura a croa para se alimentar. Após a croa da Marreca, encontramos alguns currais de pesca que são armadilhas feitas com varas, toras de madeira ou cipó, bem como a utilização de covos, que são outro tipo de armadilha utilizada para a pesca. Tapagem de camboa é uma das técnicas utilizadas para captura de peixes: “Ta vendo esses pau aí? Que tem na boca? O pessoal fecha ela na maré de enchente, a maré seca ai quando a maré enche os peixe fica preso, ai quando seca agente despesca”. Nas imediações da volta do forno (n.81 no mapa), nos foi informado que essa porção é considerada o habitat natural do Peixe Boi, bem como é uma área que da muito Camurupim: “ele é um peixe que nem um bacalhau, sendo que ele tem muitas espinha, ele é mago e cresce pra 400, 500 kg, as escama dele pra tirar é na foice”... “aqui tem uns camurupim tão velho que chega a ser escuro, você pensa que é outro peixe, ele é um peixe que agüenta poluição, na como os outro não, ele come tudo”. (entrevista concedida em dezembro de 2009). Uma outra nomenclatura para referenciar o habitat natural das espécies é “peixe de fora” e “peixe de dentro”. Os “peixes de fora” são aqueles que entram no estuário quando a maré esta cheia para comer e desovar, a exemplo da “tainha do lombo esverdeado” e o bagre; Já os “peixes Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 11 de dentro” são aqueles que tem seu habitat natural o rio Gramame e o seu conjunto de tributários como cambôas e croas, a exemplo do carapeba e o muriongo. O mero é um outro tipo de peixe de grande porte pescado pelos Tabajara no Gramame: “ele come gente, é muito grande, ele tem a boca grande e é gostoso, ele tem de duas cor, tem do preto e tem do amarelo. Ele é brabo, quando ele bota o fato pra fora, que ele tem uma historia de botar o fato pra fora aí o caba sente a catinga de longe. Aí diz assim: olha o Mero lavou o fato, olha a catinga de alojo. Quando ele lava o fato, até os coco verde ele engole pra encher a barriga...” (Entrevista concedida em dezembro de 2009). Ao longo do percurso, podemos perceber que o grupo Tabajara, constrói historicamente uma territorialidade com esse ambiente natural, reconhecido como um lugar de produção e re-produção cultural e econômico da base familiar. Nesse sentido, devemos chamar atenção sobre a urgência de se pensar em uma política ambiental de revitalização do rio Gramame, bem como, chamar atenção sobre a posse desses territórios costeiros como o estuário do gramame, que esta sendo utilizado pelos Tabajara secularmente de maneira tradicional e coletiva Considerações Finais Considerando as discussões realizadas e os resultados preliminares apresentados por hora, constatamos que o trabalho de campo para o geógrafo é o momento onde conseguimos unir os elementos teóricos, práticos, fazer recortes espaciais, analisar e conceituar o espaço-tempo de acordo com os objetivos definidos. Assim, o campo se coloca como base de conhecimento. Os olhares acerca do universo Tabajara nos deixa com mais questões do que conclusões, visto que é uma demanda levantada recentemente, pois se trata de um grupo que reivindica atualmente sua condição de grupo etnicamente diferenciado. O litoral sul paraibano é sem duvida uma área de ocupação antiga e que sofreu ao longo do tempo deferentes formas de fração do território. Na atualidade esse fracionamento recebe mais uma demanda que é a étnica. Observamos a partir dos arcabouços teóricos e de campo que estão sendo realizados, que existe uma sobreposição de áreas a partir do interesse de grandes proprietários de terras, imobiliários, grupos étnicos e camponeses. O uso e ocupação da Barra do Rio Gramame é um exemplo que trazemos para afirmar que o povo Tabajara, embora silenciado pela população regional, permaneceu Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3 12 estabelecendo uma com o ambiente costeiro, caracterizando assim o que chamamos de ocupação tradicional do território. Referencias Bibliográficas BACHELARD, Gaston. A Formação do Espírito Cientifico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996[1884-1962]. CHAUÍ, Marilena. Janelas da Alma, Espelhos do Mundo. 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