Ah! A genética

Propaganda
Ah! A genética...
Numa pequena e pacata aldeia, longe do bulício citadino, vivia uma família
feliz: a senhora Genoveva e o seu marido, o senhor António.
O seu filho mais velho, Carlos, saira da aldeia muito novo. Agorera professor
universitário e trabalhava no âmbito da pesquisa, orientando o trabalho de
investigação dos seus alunos. Era um homem muito conhecido entre a comunidade
científica portuguesa e tinha já participado em grandes eventos científicos de índole
nacional e internacional. Contudo, ultimamente sentia-se inquieto, descontente,
parecia não estar bem com o seu próprio corpo ...
Surpreendera-se várias vezes a divagar como se de repente procurasse
objectivos, como se lhe faltasse descobrir a essência, o propósito da sua vida.
Olhou para João, o filho ainda pequeno, que brincava despreocupadamente e
recordou os seus momentos de criança.
Quando era pequeno, sonhava em mudar o Mundo de alguma forma, mas
não sabia bem qual.
Muitas vezes, sofreu a ver como, cada vez mais, o Mundo se ia degradando,
como a água potável ia diminuindo consideravelmente, como muitas pessoas
morriam à fome.
Assaltou-o a ideia de como seria aparentemente fácil resolver todas aquelas
questões através da manipulação genética. Ah! a genética um Mundo ainda a
desbravar ...
Ao acordar dos seus devaneios, imagens de fome, seca e corpos
esqueléticos de crianças entraram sem convite pelos seus olhos e foram martelar
no seu cérebro. Como seria bom que todas as crianças pudessem brincar,
despreocupadamente, como o seu pequeno João...
Tinha de fazer qualquer coisa! Podia não conseguir mas tinha de tentar.
Certamente que lhe iriam chamar louco, parecia uma ideia impossível, implicava
algum investimento financeiro e era arriscado, mas tinha de tentar...
Com as ideias a atropelarem-se, começou a elaborar o seu plano de trabalho.
Era necessário definir bem o problema, orientar o início das pesquisas, listar o
material necessário, fazer orçamentos, apresentar a proposta à Faculdade, procurar
patrocínios, arranjar colaboradores, alguém que quisesse partilhar da sua loucura.
Como não se lembrara ou não ousara antes...?
Iria tentar fazer uma espécie de projecto Biosfera. Bem, na verdade, era
muito mais modesto, dado que os ecossistemas a manter seriam apenas os
desérticos. Iria estudar a aridez dos solos, bem como a fauna e a flora dos desertos.
Interessava-lhe, particularmente, a flora xerófila.
Visitou os pais por ocasião do aniversário da senhora Genoveva, que não
conteve as lágrimas ao ver o filho. Como era duro suportar as saudades...
- Por que motivo andas tão distante e passas tanto tempo sem nos visitar? –
questionou a pobre senhora, deixando rolar as lágrimas livremente pelas faces
rosadas.
- Não é por mal, minha mãe... Falta-me o tempo. Estou a braços com um
projecto, ao qual me tenho dedicado a tempo inteiro. – explicou Carlos, ciente do
prejuízo humano que essa dedicação provocava nos que lhe eram mais próximos. E
depois continuou:
- Talvez consiga criar uma planta transgénica comestível, que salvaria muitas
vidas...
- Uma planta transgénica? – indagou Genoveva, um pouco incrédula.
- Sim... Actualmente já se produzem e comercializam alimentos transgénicos,
sendo um transgénico um produto que se obtém devido à manipulação genética
entre organismos diferentes por forma a que um deles passe a desenvolver
características que pertenciam ao outro. Então, por que não tentar obter uma planta
que seja comestível, altamente nutritiva, acumule água e seja muito resistente às
secas e se possa desenvolver em solos pobres...? Isolando os genes que conferem
algumas dessas características às
plantas do deserto, talvez se consiga, por
manipulação genética, introduzir esses genes numa outra planta ainda a
seleccionar. Desta forma talvez a fome no Mundo possa vir a ser minimizada.
Carlos notou que a sua mãe seguia atentamente a sua entusiástica
explicação. Sentiu, porém, uma certa apreensão no rosto da mãe. Apesar de sempre
prestar ao filho um incondicional apoio, expressava não poucas vezes alguma
apreensão face aos avanços da ciência. Perigos da modernidade, como tantas
vezes dizia...
E, de facto, o risco estava presente. Carlos sabia que esses transgénicos
poderiam destruir a biodiversidade, eliminar insectos e microorganismos benéficos
ao equilíbrio ecológico, aumentar a contaminação dos solos e lençóis freáticos
devido ao uso intensificado de agrotóxicos. Sabia igualmente que essas plantas
poderiam apresentar riscos para a saúde dos seus consumidores, nomeadamente,
provocar-lhes alergias.
Esses eram alguns problemas que poderiam surgir, mas Carlos tinha de
arriscar. Quantas descobertas não teriam sido feitas se o Homem se deixasse
dominar pelo medo que o risco impõe...
Durante vários anos, Carlos trabalhou no seu projecto. Até que decidiu
colocar o seu plano em acção. Se tudo corresse bem, Carlos conseguiria criar uma
planta comestível, nutritiva, que conseguisse resistir às secas e acabar assim com a
fome de muitas pessoas.
Apesar de Carlos não saber se essa planta era totalmente segura, decidiu
experimentar a sua descoberta, usando um pequeno mamífero como cobaia. Carlos
deu-lhe uma papa preparada com essa planta e este não teve nenhuma reacção
aparente.
Sentiu-se feliz mas não totalmente seguro. Apesar disso, arriscou. Durante
vários anos, viveu angustiado pelo facto de não saber se o organismo humano iria
aceitar aquele novo alimento. Sabia que se surgisse alguma reacção àquele
alimento, sentir-se-ia altamente culpado.
Apesar do risco que estava a correr, Carlos não estava muito preocupado de
ver o seu nome na “lama”. Preocupava-o sim a saúde das pessoas. E por isso, todas
as noites orava para que a sua descoberta tivesse sucesso.
E depois adormecia. Por vezes, acontecia-lhe não dormir, mesmo assim,
sonhava... As imagens de rostos de crianças famintas cediam lugar a um mundo
onde as crianças eram felizes pois não tinham fome. Brincavam então
despreocupadamente, como o seu filho.
Certa noite, pegou num livro que a esposa andava a ler havia alguns dias. No
início da página em que abrira, ocasionalmente, lia-se:
Etiópia, sem data
Kala observava as crianças a entrarem na cabana. Uma por uma, recebem
com os olhos brilhantes, um pequeno papel e um pedacinho de lápis. Como é
grande a sede que têm de aprender... Quase tão grande como a fome que as
acompanha todos os seus passos.
Kala sofre. O seu olhar perde-se num espaço infinito, tão cheio de espaço e
de tempo... Viaja sem querer até ao passado, do qual nunca sente saudades.
Saudades de quê? Saudades da guerra? Do tempo em que acabaram as colheitas?
Dos solos áridos e do sol abrasador?
Lembrava o dia em que o marido a deixara só com os seus dois filhos, entregandose àquela dama que conduz as almas no fim da vida. Morte cruel, sofrida por tanto
sofrer.
Olhava em redor. As moscas apoderavam-se do seu cadáver ainda vivo.
Kala sentia que os ossos quase lhe perfuravam a carne. O seu olhar meigo e tão
distante fixara-se nas crianças que lhe lembravam os seus filhos que perdera havia
poucos meses, embarcando naquela viagem sem regresso...
A Ajuda Internacional Alimentar de Emergência chegara com sacos de
comida, a qual era distribuída pelos missionários. Kala tirou duas mãozinhas de
comida e sentiu que ia morrer enfartada.
Subitamente, sentiu as ideias enevoarem-se. Durante um tempo que ninguém
contou, teve a sensação de que o mundo se lhe escapava... Mas depois, o
renascer...
Voltou a olhar as crianças. Como admirava aquele entusiasmo pueril. Sentia
que nelas havia uma força e uma esperança maiores que o mundo. Kala deixou-se
contagiar por aquela esperança. Esperança de que, algures debaixo do mesmo céu
que a abrigava, existiria alguém... a razão de ser daquela esperança.
Carlos adormeceu e mergulhou num lindo sonho em que encontrou tantos
outros seres humanos como Kala. Sofriam pela falta de iniciativa dos que tinham
forças para lutar. Quando acordou, continuou este sonho que não quis interromper.
Na linha do horizonte, sempre a utopia, sempre o desejo de transformar o
mundo. Estaria a resposta na genética? Ah! a genética... esse mundo ainda a
desbravar...
Download