A transição de Têmis para Dike no pré

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A transição de Têmis para Dike no pré-direito grego1
J.C. Avelino da Silva2
A passagem de Têmis para Dike reflete
a substituição do cosmo feminino pelo
masculino como dominante naquela sociedade
de
cidadãos-guerreiros.
Não
houve
propriamente uma evolução de uma para
outra, mas uma substituição gradativa que
estava em curso desde a síntese cretomicênica. Têmis e Dike ainda estavam
presentes na Grécia Clássica, haja vista que o
simbolismo jurídico é muito forte e que o
princípio feminino, na sociedade patriarcal,
deve ser submisso e não eliminado.
O direito divino, costumeiro, agrário e
feminino é representado por Têmis, a antiga
deusa da justiça. Quando não se conhece o
autor de uma lei, mas ela é usada por força da
tradição, essa lei é atribuída aos deuses,
porque “existe desde sempre” (sua origem
perde-se no tempo). A punição divina é
coletiva, todo o grupo (o clã) sofre as
consequências. O erro é ir contra a vontade
dos deuses, causando um horror religioso.
Com o processo de afirmação da pólis e
em sintonia com outras descobertas que os
gregos fizeram – o conhecimento é humano, o
poder é humano –, apareceram a justiça e a
sanção humanas, processo que levou Têmis a
ser substituída por Dike.
À medida que os gregos foram
percebendo que podiam definir o que é
benéfico e o que é prejudicial, as leis e o
direito tornaram-se humanos, mesmo que
inspirados nos deuses. O homem enfrentava
determinado problema na relação com o outro
ou com a sociedade e, em consequência,
codificava uma maneira de enfrentar a
pendência, dizendo o que era errado, o que não
se podia fazer. O direito nasceu com uma
máxima universal, presente até hoje: o que não
é proibido é permitido.
No longo período de transição, quando
coexistiam normas consideradas divinas e
1
normas humanas, quando ainda havia quem
acreditasse que certas normas eram divinas, já
que elas eram confirmadas pelo costume e
garantidas por Têmis, havia choque entre as
duas concepções. Mas a tendência dominante
passou a aceitar que os homens se reúnem e
definem as regras, que todos deverão
obedecer, de acordo com a vontade dos
deuses.
Têmis é fruto da prevalência do cosmo
feminino, quando os valores femininos
predominavam. Um fator que contribuiu para
a longa sobrevivência de Têmis, quando o
cosmo masculino já era dominante na
sociedade, foi não haver leis escritas,
prevalecendo o costume. Esses costumes
agrários e femininos entraram em choque com
os
valores
masculinos
e
urbanos,
referenciados a Zeus e Apolo. Já em uma
realidade dominada juridicamente (ainda o
direito costumeiro) pelo cosmo masculino, o
Código de Leis de Drácon (século VII aC) não
propôs uma ruptura com o ordenamento
jurídico natural existente, pois é o registro do
direito costumeiro dominante, baseado na
religião e nos privilégios dos eupátridas, a
elite masculina proprietária de grandes
extensões de terra.
Registrando o direito costumeiro, o
feito extraordinário de Drácon foi ter dado
garantia jurídica ao que antes era costume, por
vezes contestado pelos adeptos de Têmis. O
Código de Leis de Drácon, início da
codificação do pré-direito grego, aceitou e
reforçou a concepção de que a justiça é
humana.
Basicamente, o termo pré-direito
refere-se ao fato de os julgamentos serem
feitos em função dos valores definidos pelos
deuses, ao fato de os testemunhos serem
solidários em defesa de uma das partes (só
mais tarde o testemunho servirá para buscar o
Este texto é o desdobramento de ideias apresentadas originalmente em Zeus e a filosofia, do mesmo autor.
Arquivo: TransiçãoTêmisDikeDID.docx. Última edição: 04/set/2016.
2
Doutor pela Universidade de Paris (1980). Professor na Escola de Formação de Professores e Humanidades
da PUC Goiás. Membro da International Association for Greek Philosophy.
fato em si) e à inexistência de um código de
processo. O código de processo regula o
recurso, que também era inexistente, já que
seria impensável um recurso a uma decisão
vinda dos deuses.
Não
menos
extraordinário
foi
conceituar que assassinato (matar alguém)
fosse considerado crime (violação da lei,
sujeitando o autor a uma punição). Antes
disso, o clã considerava o assassinato de um
de seus membros como um atentado a seu
deus originário. O sentimento presente era
então o de horror religioso. Esse sentimento
dava ao clã o direito e a obrigação da
vingança, que era dirigida a qualquer dos
membros do clã que cometera o assassinato.
A família ampliada, o clã, era
descendente de uma divindade e o assassinato
de qualquer pessoa do clã era considerado um
atentado à divindade originária do clã.
Quando assassino e vítima pertenciam ao
mesmo clã (sendo parentes e descendentes
portanto do mesmo deus), havia um crime
religioso e o culpado devia ser punido por
impiedade. Quando quem matava era alguém
de fora do clã, passava-se à vingança, que é
um direito e mesmo obrigação do clã da vítima
para limpar a desonra feita ao seu deus. A
reforma constitucional de Sólon (594 aC)
baniu a vingança e foi clara ao definir que era
crime matar alguém tanto do mesmo clã
quanto de fora dele.
A importância estratégica de afirmação
da pólis (cidade-estado) baseava-se no fato de
que cada clã (e o clã de Atenas era o mais
importante da península Ática) seria mais
forte se conseguisse reunir todos os clãs da
península. Isso implicava na necessidade de
cada cidadão sentir mais confiança nas
instituições da cidade-estado do que nos
costumes do clã. A centralização dos valores
no clã (e não na cidade-estado) acabava
jogando um clã contra o outro. Para tanto, era
indispensável que o crime deixasse de ser
religioso, coletivo, relativo a um clã (que se
sentia ofendido e revidava) e passasse a ter
uma conotação individual. Quando é o autor
do crime que vai a julgamento, inaugura-se a
tendência à individualização do crime e o clã
fica preservado. Nessa situação, diminuem os
conflitos entre os clãs, e aumenta o sentido de
união de toda Ática.
Anteriormente, a impureza não era
individual, mas coletiva, todo o clã sentia-se
envolvido diante de um atentado individual. A
individualização de quem comete a ação
impura implica na transformação do
assassinato em crime. Para substituir a
vingança pelo ato jurídico, para conseguir que
o clã aceitasse abrir mão da vingança e que o
cidadão em geral tivesse confiança no
exercício da justiça, Drácon teve de ser severo
quando fez o registro das leis costumeiras. Só
assim ele conseguiu consolidar a unificação da
Ática, tendo Atenas como eixo centralizador.
O sinecismo da Ática ocorreu nos tempos
míticos, e o nome que vem associado a essa
iniciativa é o de Teseu, rei de Atenas e filho
de Egeu. Entretanto, a garantia da unificação
foi resultado do desenvolvimento das
instituições, das quais a jurídica teve papel
fundamental.
A reforma democrática de Sólon
introduziu claramente o conceito de que o
dano causado a uma pessoa particular é dano
causado a toda coletividade, e por isso o autor
do dano deve ser levado a julgamento. A
constituição de Sólon estabeleceu um novo
marco na construção do direito grego,
afirmando definitivamente a justiça como
ação humana em um contexto patriarcal. A
Grécia Antiga viveu, sem retorno possível,
esse período de transição para a
personificação do crime, que foi um
importante passo social no processo de
desenvolvimento da individualidade.
Codificados, os valores simbolizados
por Têmis e Dike (mais por esta do que pela
deusa antiga) dão origem ao direito positivo,
mesmo que ainda um pré-direito. O direito
positivo nasceu urbano e masculino e retirou
dos deuses a prerrogativa da justiça e o
privilégio da definição do destino de cada um
(é o juiz que vai decidir, por exemplo, sobre o
dia da morte de um condenado). A punição
torna-se humana e individualizada. A
individualização do crime surge com a
codificação do que não se pode fazer, do que
é errado. O erro torna-se crime, porque vai
contra a lei, contra a decisão que os homens
tomaram em um determinado momento.
Refletindo a tendência de os homens
decidirem o que fazer, os deuses perdem
poder.
O reinado de Têmis – direito divino,
rural e feminino – foi pouco a pouco sendo
substituído pelo domínio de Dike, a deusa do
direito urbano e masculino. Com a nova
ordenação jurídica, Têmis foi aposentada. E,
por intermináveis gerações, Dike se impõe
como força inelutável.
Fazendo parte de um movimento de
renovação, a pólis criou a democracia, em que
se elegia o governante. Criou também a figura
do tirano, que não era aristocrata, e tomava o
poder no bojo de uma agitação política e
social.
No seu sentido original, tirano era
aquele que, não tendo descendência divina
(não sendo aristocrata), chegava ao poder pela
insurreição popular. Como consequência da
fragilidade de um governo que não tinha apoio
dos deuses, o tirano usava métodos duros de
governar, daí seu significado mais conhecido
de ser cruel. Já naquela época, havia a
associação entre tirania e opressão.
O poder profano se opõe ao poder
divino. Os reis ganhavam sua legitimação das
divindades das quais eram descendentes,
como se acreditava na época, e a aristocracia
presente na cidade-estado herdou essa
característica. A dificuldade do tirano para
governar era maior, porque ele não tirava sua
legitimidade de nenhum deus. Ao colocar um
tirano no poder, os gregos assumiram que o
poder é humano, seja ele truculento ou
democrático, eficiente ou incompetente. Esse
é um importante traço que favorece a
racionalização do convívio social e estimula a
individualidade: o grego escolhe um
governante – pelo voto ou pela insurreição – e
rejeita outro, indicando que sabe fazer a
diferença entre um e outro indivíduo. Além da
escolha, ele se dispõe a agir em defesa de sua
opção.
De um modo geral, nas sociedades
antigas, o poder emanava dos deuses. A
república democrática ou tirânica abalou a
concepção de que a aristocracia – a classe
dominante e governante, descendente de uma
importante divindade – estava preparada para
governar. A democracia, a insurreição popular
e a tirania mostraram que o poder é humano e
não a realização de uma vontade divina, por
meio do rei ou dos aristocratas. Mas, de
qualquer forma, ficava difícil exercer o poder
sem o apoio dos deuses.
Foi pensando na legitimação de seu
governo que Psístrato, tirano ateniense do
século VI aC, organizou os cultos a Dioniso
em Atenas. Dioniso chegou a Atenas por uma
necessidade política. Deus rural de longa
época, Dioniso foi muito bem aceito na
cidade, diminuindo o prestígio dos deuses
tradicionais e, em consequência, da
aristocracia, que se apoiava em Apolo. A
democracia e a tirania fortaleciam o direito de
opção, a individualidade e a política. Ao
garantir a imortalidade da alma, a
possibilidade de salvação e regras de conduta
moral, o dionisismo foi importante fator que
contribuiu para os gregos resolverem os
conflitos entre personalidades e vontades.
Ter descendência divina, como se
atribuía à aristocracia grega, é mais modesto
do que ser a encarnação da própria divindade.
Essa concepção era muito diferente, por
exemplo, do que se passava no Egito em que
o faraó era o deus. A presença do Nilo e do
faraó levava naturalmente à união de esforços
da população, a uma atividade centralizada em
que milhares de seres combinavam suas
energias em uma ação coordenada, visando a
produção de alimentos e a construção de
grandes obras arquitetônicas. Isso levava à
formação de uma massa mais ou menos
diluída na impessoalidade da multidão. É
natural que a força organizadora dos esforços
coletivos
fosse
percebida
como
extraordinariamente superior a cada um. A
população supervalorizava o poder a ponto de
divinizá-lo. A relação entre o faraó e os
membros
da
sociedade
abafava
a
individualidade, mesmo que ela tenha existido
aqui e ali entre os egípcios antigos da
burocracia dominante. Além disso, as
margens do Nilo forneciam tudo que a
população necessitava, favorecendo a
consolidação de uma sociedade autárquica, de
tendência conservadora, ao contrário das
sociedades que se empenharam para garantir
seu sustento e procuraram o comércio
exterior, o que propiciava contato com outras
culturas.
A civilização grega se diferencia
também do que se passou na Mesopotâmia,
tanto em relação às cidades esparsas quanto
aos períodos em que essa parte do mundo
antigo esteve centralizada pelos assírios ou
pela Babilônia. Se bem que na Mesopotâmia
havia muito mais espaço para a
individualidade do que no Egito, essa
individualidade nunca assumiu uma dimensão
política (como vai acontecer na pólis grega)
talvez pela facilidade de sobrevivência,
favorecida pelo rico solo da Mesopotâmia,
talvez pelos antecedentes históricos e
culturais.
Por outro lado, enquanto no Egito e na
Mesopotâmia vivia-se o poder autocrático,
legitimado pela religião e pela força (seja a
força armada, no caso do império assírio, seja
a força jurídica, como é o caso do império de
Hamurábi com seu código), na Grécia Antiga
firmou-se uma relação de cidadania guerreira
em que os iguais debatiam e resolviam.
Pode-se
argumentar
que,
na
Mesopotâmia, o império de Hamurábi,
colocando o direito acima das vontades
particulares dos chefes locais e das pessoas,
organizava e disciplinava a vida em
sociedade. E isso num período muito mais
recuado do que o início da legislação grega. O
Código de Hamurábi, além de muito mais bem
elaborado, é do século XXI aC, enquanto o
Código de Leis de Drácon foi redigido no
século VII aC. No entanto, o direito faz
justamente estabelecer os limites dentro dos
quais a individualidade pode se manifestar, a
política deve funcionar e a hierarquia social
tem condições de prevalecer. Generalizando
sua aplicação para todos, a norma, no entanto,
regula e limita a convivência, restringindo o
espaço das iniciativas individuais. A norma
diminui o impacto da ética que é ditada por
uma convicção interior, enquanto o direito e a
norma são exteriores ao indivíduo. As leis
restringem as atividades políticas e a
expressão da individualidade. Por outro lado,
a energia social da Grécia Antiga era
canalizada para a solução dos conflitos por
meio do diálogo e da negociação, o que
diminuía a necessidade da norma reguladora.
Ao longo dos milhões de anos de
evolução do homem, o constrangimento
natural deu lugar ao constrangimento social. A
ética e o direito dão forma ao constrangimento
social, em sintonia com o grau de
desenvolvimento histórico que a sociedade
está vivendo. A ética protege o outro de mim
(porque ela me leva a agir corretamente) e a
justiça me protege do outro (porque com a
justiça eu posso fazer valer o que é certo em
meu benefício). A construção da ética e da
justiça caminha junto com a construção da
individualidade, porque a individualidade dá
liberdade (liberdade que a norma disciplina).
Ao não estabelecer, desde o início,
regras estritas de relacionamento com o outro
e com o coletivo, ao adotar ideais éticos e de
justiça inspirados pelos deuses olímpicos, o
cidadão grego foi criando um modo de
convívio social não regulado legalmente, foi
aceitando regras de convivência não
codificadas por escrito, o que seguramente
fortaleceu uma consciência coletiva e
valorizou o estabelecimento de relações que se
resolviam politicamente, pelo enfrentamento e
pelo diálogo, aumentando o potencial de
liberdade desse povo. O enfrentamento,
politizando as relações, fortalece a
individualidade. Quando, inspirados por
Apolo, durante uma discussão, cada um
procura entender as razões do outro, a
discussão avança e pode-se chegar a uma
conclusão comum. Olhando a questão pelo
seu lado oposto, é forçoso reconhecer que o
desenvolvimento da individualidade, em um
contexto de diálogo (Apolo), fortalece a
atividade política e dispensa ou diminui a
importância da norma que regula o
comportamento.
REFERÊNCIAS
DA SILVA, J.C. Avelino. Dialectics and
education.
In:
BOUDOURIS,
K.;
KALIMTZIS (Ed.), Paideia: Education in the
Global Era. Atenas: Ionia Publications, 2008c.
DA SILVA, J.C. Avelino. Zeus e a filosofia:
religião e individualidade na Grécia Antiga.
Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2014.
VERNANT, Jean-Pierre. Les origines de la
pensée grecque. 8e ed. Paris: Quadrige/puf,
2000.
Questões
 Como associar destino (que era
definido pelos deuses na mentalidade de
então) e processo jurídico?
 A diminuição dos poderes dos deuses
(Zeus e Apolo) caminha junto com a
autoconfiança na ação humana, especialmente
a participação política e a atividade jurídica.
Explique.
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