RELIGIÃO E LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO RELIGIOSO: A

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RELIGIÃO E LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO RELIGIOSO: A
INVISIBILIDADE DA RELIGIOSIDADE DE MATRIZ AFRICANA
Sergio Luis do Nascimento
[email protected]
Eixo temático: Ensino Religioso
Não contou com Financiamento
Resumo
O artigo apresenta uma revisão sobre a história do Ensino Religioso nas escolas brasileiras e
sobre os modelos temáticos nesse campo do conhecimento que vieram se construindo ao longo
do período recente e estabeleceram nuances de identidade pedagógica, no que se refere aos
modelos: confessional, interconfessional e fenomenológico. Traçaremos um panorama das
religiões no Brasil que culminaram com a consolidação dos discursos da cosmogonia1 de matriz
judaico-cristã e a dissimulação, ocultação e negação da existência social da cosmogonia das
religiões de matriz africana. A discussão dos resultados será feita via análise de documentos
originados num determinado contexto histórico em que o Ensino Religioso, integrado ao
currículo escolar brasileiro, constitui-se como uma disciplina ou área do conhecimento trabalhada
de forma contextualizada e articulada com as demais áreas, tanto pelos sistemas formais de
ensino como pelas práticas de organizações sociais, em instrumentos de promoção da cidadania
Ao assumir o Ensino Religioso pela via do conhecimento, os conteúdos têm como proposta
proporcionar o diálogo e a participação dos educandos, por meio de um procedimento que gera a
atitude de alteridade em relação ao conhecimento religioso pessoal e o entendimento do outro,
contribuindo para que o educando possa desenvolver-se sem preconceitos e tornar-se um cidadão
crítico e participativo e que promova a paz e a fraternidade.
Palavras chave: Relações Raciais. Religião. Diretrizes. Livro Didático.
Introdução
A nova Resolução do Ensino Religioso nº 2 de 7 de abril de 1998, da Câmara de
Educação Básica do Conselho Nacional de Educação estabeleceu que a disciplina escolar Ensino
1
Para Ziégler cosmogonia é o termo que abrange as diversas lendas e teorias sobre as origens do universo de acordo
com as religiões, mitologias e ciências através da história (1972 p.110).
775
Religioso deixasse de ser somente aula de valores humanos e passasse a ser uma área do
conhecimento, e que seu objeto de estudo fosse o fenômeno religioso. As diretrizes curriculares
que orientam atualmente o Ensino Religioso, a ser ensinado nas escolas, visam garantir o respeito
à diversidade cultural e religiosa do Brasil.
Nessa conjuntura, a proibição de qualquer tipo de proselitismo e a matrícula facultativa
para a disciplina são componentes centrais dessa lei que estabeleceu um modelo para
compreender o atual cenário do Ensino Religioso, como um componente curricular que deve
contribuir para a formação do cidadão. No presente estudo, a perspectiva histórica, via análise de
documentos, visa evidenciar no discurso das religiões de matriz judaico-cristã, o anúncio
apologético, detentor da única e irrecusável verdade, com isso dificultando o diálogo com as
outras expressões religiosas, nesse caso, as religiões de matriz africana.
A pretensão de problematizar essa situação, a partir dos estudos da cosmogonia, decorre
do fato de considerarmos que as religiões de matriz africana apresentam princípios de ordem
organizacional, comunitária e estrutural que dinamizam o conjunto das teorias científicas que
tratam das leis ou das propriedades da matéria em geral ou do universo. Também pelo fato de,
entendermos que toda cosmogonia supõe a possibilidade de um conhecimento do mundo como
sistema e de sua expressão num discurso. Assim, as cosmogonias das religiões de matrizafricana apresentam mitos de origem, rituais e sacerdócio, elementos constitutivos do que
chamamos de religião, e da mesma forma que as religiões de matriz judaico-cristã, consideramos
que as religiões de matriz africana apresentam concepções epistemológicas que ajudam a
interpretar e reinterpretar os contextos socialmente estruturados.
Contexto sócio-histórico
A construção deste artigo baseou-se numa revisão sobre a história do Ensino Religioso
nas escolas brasileiras e os modelos temáticos nesse campo do conhecimento que vieram se
construindo ao longo do período recente e estabeleceram nuances de identidade pedagógica, no
que se refere aos modelos: confessional, interconfessional e fenomenológico.
A respeito desse assunto foram consultados dois trabalhos: Triumpho (1987) e Roza
(2006).
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O primeiro2, pesquisa considerada pioneira ao trazer uma análise de livros paradidáticos
de Ensino Religioso e manuais de catequese que circulavam somente nas paróquias de todo país,
embora não detalhe o número de manuais analisados ou suas datas de publicação. Nele é
destacado que os manuais de Ensino Religioso que circularam em todo o país, não fugiram à
regra de outros livros didáticos de diferentes matérias como, por exemplo, Matemática e História,
nos quais o negro é sempre descrito de forma estereotipada, inclusive por meio de metáforas
representando o mal, a negatividade, o pecado, o preguiçoso, o ladrão. A pesquisadora identifica
nesses manuais que, quando uma pessoa está em estado de pecado é porque está com a “alma
negra”, com o coração negro. (TRIUMPHO, 1987, p. 93). Na análise dos manuais de catequese,
também são identificadas expressões estereotipadas associando a imagem negra a seres humanos
“menores” e elevando os brancos a uma posição de superioridade e inclusive cenas que colocam
a criança negra em situação degradante, quando crianças brancas perguntam se o “negrinho” é
também filho de Deus (RODRIGUES et al, 1988, apud TRIUMPHO, 1987).
O outro trabalho consultado, Roza (2006), primeira pesquisa acadêmica sobre um livro
didático de Ensino Religioso, embora não focalize explicitamente nenhuma questão específica
das relações raciais, contribui nesta direção ao trazer à tona imagens contidas nos livros de
Ensino Religioso dirigidos ao Ensino Fundamental. A “ideologia“ do catolicismo transmitida
pelas publicações de Ensino Religioso é destacada por meio de duzentas e trinta e quatro
fotografias de uma coleção para o Ensino Fundamental denominada “Descobrindo Caminhos” de
Therezinha M. L. da Cruz. Nessa análise iconográfica duas situações intrigantes são apontadas:
uma associada ao conceito de família divina Cristã e outra, na qual a figura feminina aparece
simplesmente como elemento auxiliar na manutenção da estrutura familiar, destacando no posto
central a figura do homem (ROZA, 2006, p.92). A “ideologia” está presente na maioria das
fotografias do livro, uma vez que a imagem da mulher centra-se no papel de avó, de mãe, de filha
e ou em situação de prestação de serviço, quase sempre doméstico. Em nenhum momento
aparece em cargo de comando, mas sempre subordinada, tanto no mercado de trabalho como na
família. Essa figura feminina que mantém uma imagem de mulher fora da realidade construída ao
longo dos séculos pelos movimentos de mulheres não condiz com o cenário nacional no qual
2
A pesquisadora da Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul e dos agentes de Pastoral
Negros analisou manuais de catequese da Igreja Católica.
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dados estatísticos fornecidos pelos diversos institutos de pesquisa3, atestam que a mulher vem
exercendo um papel central no cenário educacional e familiar. O mesmo autor salienta ainda que,
apesar da existência de inúmeras editoras que trabalham com literatura religiosa, as que
trabalham com o ensino fundamental são em número relativamente pequeno, sendo que uma
parte delas trabalha ligada às escolas confessionais (ROZA, 2006, p.25).
Este dois estudos, pioneiros no Brasil, apresentam objeto de investigação diferente do que
pretendemos desenvolver neste artigo, porém, ao ilustrarem o cenário de invisibilidade de
sujeitos sociais como o negro e a mulher, são por nós vistos como importantes pilares para um
estudo que toma a invisibilidade das religiões de matriz africana, como objeto de análise.
Principalmente pelo fato da cultura ocidental caracterizar as cosmogonias de matriz africana
como seita, animismo, primitivismo, etc, fazendo com que ao longo do tempo se forme uma
barreira epistemológica à compreensão das religiões africanas como detentoras de um papel
primordial na organização na vida comunitária e na estruturação das sociedades africanas, ou
oriundas delas.
Em nossa investigação temos como hipótese de que nos conteúdos dos livros didáticos de
Ensino Religioso, as temáticas de matriz judaico-cristã permanecem como referencial implícito
de condutas, hábitos e costumes, e de que acontecimentos históricos bíblicos, como por exemplo
a “parábola do Bom Samaritano” e do “Filho Pródigo”, são fontes únicas dos hábitos e valores
que devemos adotar para pensarmos um mundo com mais alteridade e solidariedade. Uma
mudança das mentalidades e uma reflexão sobre o catolicismo e o cristianismo no Brasil nos
parecem necessários; visando uma crítica à hegemonia da hermenêutica católica e buscando abrir
espaço a currículos que contemplem temas que destaquem a pluralidade religiosa.
Ensino religioso no Brasil
Segundo Escanfella (2006, p.78), Marx reconheceu que as formas simbólicas tradicionais
poderiam persistir no imaginário popular e atrapalhar as mudanças revolucionárias, sendo que as
emergências das forças capitalistas desintegraram tradições e formas culturais, dentre elas, as
tradições religiosas que eram características das sociedades pré-capitalistas. Já Weber, ao
contrário de Marx, considerou que as alterações nas tradições religiosas foram uma das pré3
O referido autor não fornece na sua dissertação os dados e nem as fontes dessa pesquisa.
778
condições culturais para o desenvolvimento do capitalismo industrial, e que simultaneamente
com o surgimento do Estado burocrático teriam sido responsáveis pela racionalização da ação e
pela adaptação do comportamento humano a critérios de eficiência técnica.
A desmistificação dessas formas simbólicas e todo seu processo possibilitaram aos seres
humanos, pela primeira vez na história, ver suas relações sociais como realmente são, isto é,
relações de exploração. Os elementos puramente pessoais, espontâneos e emocionais da ação
tradicional foram limitados pelas exigências de um cálculo racional interesseiro e pela eficiência
técnica. Esse argumento pode ser verificado em Thompson na seguinte citação:
Enquanto Marx falou da desmistificação das relações sociais e colocou isso como uma
precondição para emancipação última das relações de exploração de classe, Weber falou,
ao invés disso, do desencantamento do mundo moderno, em que alguns dos valores
tradicionais e distintivos da civilização ocidental foram submersos por uma
racionalização sempre crescente e por uma burocratização da vida social, e ele viu isso
com certa pena, como o “destino dos tempos modernos” (THOMPSON, 1995, p.108).
No final do século XVIII, e começo do século XIX, o processo de secularização começou
a se firmar nos centros industriais da Europa. Os antigos laços de servidão, construídos no tecido
da lealdade e da reciprocidade, foram sendo cada vez mais questionados, na medida em que os
indivíduos estavam sendo forçados a entrar num novo conjunto de relações sociais. A
propriedade privada dos meios de produção, a troca de mercadorias e a força de trabalho no
mercado, desvincularam o antigo do estado moderno. O poder tornar-se mais concentrado nas
mãos do Estado, em que a “noção de soberania é de império formal da lei”. Ou seja, o poder que
outrora fora legitimado pela vontade divina, ou por um apelo religioso e místico passa a ser
justificado com base em regras e direitos universais (THOMPSON, 1995, p.109).
Analisando o contexto específico da relação entre Igreja e Estado, as duas instituições
foram as que dirigiram a colonização da América espanhola e portuguesa a partir do século XVI.
Para o Estado, a conquista material era vista como instrumento de acumulação de riqueza e
poder. Para a Igreja Católica, a conquista espiritual era instrumento de recomposição e ampliação
do “rebanho” católico, diminuído e ameaçado na Europa pela ação da Reforma Protestante. Por
meio de serviços religiosos, a Igreja católica no Brasil implantou para os colonos o atendimento
nas primeiras igrejas e capelas, colégios, irmandades, seminários e dioceses, geralmente a cargo
779
dos bispos e sacerdotes do clero regular4. Exerciam o controle sobre a vida religiosa, intelectual e
moral de toda sociedade colonial. O trabalho da Igreja católica no Brasil, tanto em relação aos
colonos quanto aos índios, negros e mestiços, foi fundamental para formação da sociedade
brasileira, detentora do monopólio dos serviços religiosos oficiais–missas, batizados, casamentos,
enterros, festas, peregrinações, irmandades. Todos esses serviços religiosos fizeram com a Igreja
Católica no Brasil estruturasse o cotidiano social de uma população heterogênea, pequena e
dispersa. A igreja exerceu um domínio “absoluto das consciências, moldou hábitos, valores e
normas, combateu o que considerava ‘desvios’ de crença e de comportamento, reforçou o
sentimento de lealdade e obediência ao soberano, fortalecendo com isso os vínculos entre colônia
e metrópole” (TEIXEIRA, 2000, p.52).
O regime do Padroado5 atuou como mediador de direitos e atribuições que subordinava a
Igreja ao Estado português. A Coroa assumia encargos importantes em relação à manutenção da
Igreja, pagando despesas de manutenção dos vigários e dos seminários e com isso mantinha o
controle da vida eclesiástica, interferindo na nomeação dos párocos, bispos, na criação de
irmandades, na abertura e fechamento de conventos e seminários (p.53). Ao longo de toda a
colonização e até depois dela, todas essas interferências geraram disputas e conflitos constantes
entre essas duas Instituições. Ao longo da nossa história irão marcar a nossa cultura e cimentar de
forma explícita os modelos de aprendizagem e comportamento, principalmente nas instituições
escolares de confissão Católica.
Os modelos de aprendizagem presentes tanto nas instituições escolares de confissão
católica e nos livros didáticos se incorporam e se estruturam ao longo da nossa história, entre
esses modelos: Confessional de Ensino Religioso foi, no Brasil, a concepção de aprendizagem
mais antiga e duradoura. Seu modelo consiste em formar fieis, não importando a tradição
religiosa na qual esse modelo está inserido, seja nas religiões tradicionais ou nas novas religiões.
O modelo interconfessional articulou, a partir dos anos 70, diferentes confissões cristãs e, com o
4
Segundo Teixeira (2000, p.52) o clero regular é formado pelos membros das ordens e congregações religiosas
católicas, geralmente chamados de frades. Além de subordinados ao Papa, eles estão vinculados às regras e
hierarquias de suas próprias comunidades no interior da Igreja.
5
Segundo Teixeira (2000, p.52) a aliança entre o Estado e a Igreja católica, baseada na concessão mútua de direitos e
privilégios. O regime começou a ser estabelecido no século XI, entre as monarquias européias e o papado, visando ao
fortalecimento da cristandade medieval; sobreviveu nos tempos modernos, proporcionando ao estado grande margem
de intervenção na administração interna da Igreja.
780
passar do tempo, diversas tradições religiosas. A leitura teológica e o referencial teórico comum
destas confissões religiosas eram as ciências humanas, o eixo, a teologia. O Ensino Religioso
interconfessional parte do pressuposto que o aluno tenha uma identidade confessional sendo essa
assumida e conhecida, até mesmo porque a perspectiva que estabelecia este diálogo era a
manutenção de uma sociedade homogeneamente cristã tendo em vista que as experiências que
estabeleciam esse modelo interconfessional baseavam-se em uma proposta de “Teologia
Comparada”. Por último o modelo fenomenológico nos remete à compreensão do pluralismo
religioso. Compreensão relativamente recente em nossa história. Como já analisamos
anteriormente, a sociedade brasileira era “uni-religiosa”, tendo o catolicismo como religião
oficial. Ser católico não era uma opção e sim uma condição para ser considerado cidadão. Toda
diferença religiosa era considerada como uma forma desviante da religião oficial, por isso, muitas
práticas foram perseguidas por não seguirem a religião oficial.
Segundo Junqueira (2008, p.74) foi a partir de julho de 1997 (Lei n.º 9. 745), que o
Ensino Religioso no legislativo foi considerado parte integrante da formação básica do cidadão,
assumido pelo Sistema Educacional no campo da organização dos conteúdos do componente
curricular. Houve a definição das normas para habilitação e admissão dos professores da
disciplina com nova significação na estruturação desta área do conhecimento. O respeito à
diversidade cultural e religiosa do Brasil e a proibição de qualquer tipo de proselitismo e a
matrícula facultativa para a disciplina são os componentes centrais dessa lei que estabeleceu um
modelo para compreender o atual cenário do Ensino Religioso como um componente curricular
que contribui na formação do cidadão.
Além da invibilidade histórica: A Superação da realidade concreta.
Perpassa historicamente no discurso das religiões de matriz judaico-cristã, ao longo desses
três modelos mencionados, mudanças ao longo da historia, mas infelizmente não foi possível
superar o anúncio apologético, detentor da única e irrecusável verdade. Nesse horizonte a relação
assimétrica entre as matrizes estabelece-se entre o branco europeu, cristão e colonizador e o
negro africano “pagão” e escravizado. Em que a ocultação e negação tornavam-se um OUTRO
que não era mais ele mesmo (GÓIS, 2008, p.86).
781
A estigmatização do africano e dos africanos da diáspora consistia na desapropriação do
indivíduo (s) ou grupo (s) do exercício de algumas condições físicas, morais ou sociais e o
africano da diáspora escravizado, em sua estranheza e diferença era tanto mais aceito quanto
negava e se distanciava de seus ritos, seu deus, de sua cultura (GÓIS, 2008, p.86).
Sendo a cultura um baluarte que protege um povo, uma coletividade. A cultura deve,
acima de tudo, desempenhar uma função protetora, garantir a coesão do grupo (MOORE, 2007,
p.308). O que Cheikh Anta Diop ressalta é a dimensão vital para o restabelecimento da
consciência do africano e do africano da diáspora, o sentimento comum de pertencimento ao
mesmo passado histórico e cultural. De certa forma o que os colonizadores fizeram por meio das
religiões judaico-cristãs foi negar aos africanos e aos africanos da diáspora a essência/existência
da cosmogonia das religiões africanas e também a noção de coletividade; tendo em vista que a
cosmogonia judaico-cristã estabelece que o destino perpasse pelo individual e pela graça
personalizada e pelo mistério imprevisível (ZIEGLER, 1979, p.93). A ordem moral e o “bem
estar” da comunidade é fortemente coletivo (OLIVEIRA, 2006, p.71).
Ao evidenciar a noção de coletividade como um elemento vital dos africanos e dos
africanos da diáspora Cheikh Anta Diop tenciona a sua análise teórica ao papel que a antiga
cultura egípcia desfruta no que concerne às culturas africanas atuais, pois análoga ao papel que a
cultura grego-latina desempenha em relação à cultura ocidental contemporânea. Pois a
cosmogonia do antigo Egito está para os africanos como a cosmogonia grego-latina está para os
europeus “poderia imaginar um erudito ocidental pesquisando sobre a história ocidental sem
fazer referências à cultura grega - latina?” (MOORE, 2007, p.307).
Siqueira (2008) afirma que a cosmogonia das religiões de matriz africana, conta a
participação de famílias tradicionais de ascendência africana tradicionalmente iniciadas,
participantes/simpatizantes, amigos do terreiro, da casa; pessoas vinculadas a Irmandades,
Afoxés, Blocos -Afro, Núcleos de estudos, pesquisas, cultura, arte africana; artistas
músicos/atores/compositores que explicam a dimensão cultural da religião e das tradições étnicas;
educadores que buscam compreender as especificidades de valores, princípios, mitologia,
ritualidade, saberes de origem africana; pessoas que se sentem chamadas a viver uma dimensão
religiosa mais profunda e harmoniosa com o mundo mais humano do ponto de vista de uma visão
de mundo africano( p. 107).
782
Como ressalta Sodré (1988) a solidariedade nascida entre os escravizados durante a
travessia do Atlântico, possibilitou entre os “antigos” cultos baianos um intercâmbio profundo
entre os terreiros, capaz de passar por cima de velhas divisões étnicas. Essa solidariedade esteve
presente, por exemplo, na revolta do malês em 1835 que reuniu negros de várias etnias, entre elas
nagôs, haussás. O autor evidencia que esses fatos são importantes porque ajudam na compreensão
da cultura negro – brasileira e demonstram que os orixás ou voduns os inquices (bantos) não são
entidades apenas religiosas, “mas principalmente suportes simbólicos – isto é, condutores de
regras de trocas sociais – para a continuidade de um grupo determinado” (p.55). O espaço do
terreiro como um espaço constituinte dessa coletividade e da solidariedade em zelo aos orixás,
como podemos verificar na citação:
Zelar’ por um orixá, ou seja,cultuá-lo nos termos da tradição,implica aderir a um sistema
de pensamento, uma “filosofia”, capaz de responder a questões essenciais sobre o
sentido da existência do grupo. No Brasil, esse “grupo zelador de orixá” não é já-dado
ou natural, mas construído. Não se trata, no entanto, de fenômeno único.São numerosos
em todo o mundo os casos de grupos étnicos que,diante da ameaça de desintegração,
combinam-se institucionalmente com outros, gerando formações sincréticas e originais
(SODRÉ, 1988,p.56).
Preocupação semelhante esteve presente nos trabalhos de Du Bois (1999) que reclamou
junto à população negra norte-americana o engajamento na educação e no trabalho, balizado pela
solidariedade e pelo orgulho racial e pela conscientização histórica do negro na sociedade, o que
de certa maneira refletiu e reflete em todas as populações negras da diáspora. Du Bois, um
influente líder negro, reconhecia as lamentáveis condições de vida da comunidade negra e o
latente preconceito racial que os negros sofriam e sofrem da sociedade dominante, ele insistiu
para que o negro lutasse incessantemente por seus direitos e assumisse igualmente seus deveres,
visando com isso à ascensão social da coletividade (p.13). Tanto em Cabral (1980) como em
Dubois (1999) a dimensão política tinha uma importância salutar como meio de transformação da
realidade sendo que DU BOIS, de forma didática, sublinhou a importância “de lutar pela
proteção, ampliação e fortalecimento do voto e pela proteção, ampliação e educação ampla do
povo negro, das escolas primárias ao ensino universitário” (p.17).
783
Em 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei nº 10.639 que estabelece
a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira no Ensino Fundamental e Médio e
criou a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial/Seppir. O projeto lei
destaca que não se trata de mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz européia por um
africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social
e econômica brasileira. Nesta perspectiva, cabe às escolas incluir no contexto dos estudos e
atividades, que proporciona diariamente, também as contribuições histórico-culturais dos povos
indígenas e dos descendentes de asiáticos, além das de raiz africana e européia. Na história do
Brasil ao ocultarem aos africanos da diáspora o direito de afirmar e vivenciar suas religiões.
Segundo Santos (2008, p.78) os colonizadores construíram entre eles e incutiram nos colonizados
uma mentalidade que negava os valores civilizatórios das religiões africanas. Os ritmos, a
percussão, os sons, os cânticos, as danças e o transe místico foram desqualificados como
expressões de valor religioso. Os rituais, envolvendo oferendas, sacralização de animais e intensa
relação com a natureza, foram qualificados como feitiçaria.
Ao ocultarem nos conteúdos, os sentidos da cosmogonia de matriz africana, os currículos
exercem um papel estruturador na permanência de desigualdades entre brancos e negros.
Cabendo a prática curricular reparações que reconheçam a valorização e respeito às pessoas
negras, à sua descendência africana, sua cultura e história. Isso significa segundo as diretrizes
curriculares da lei 10639/03 compreender seus valores e lutas, ser sensível ao sofrimento causado
por tantas formas de desqualificação: apelidos depreciativos, brincadeiras, piadas de mau gosto
sugerindo incapacidade, ridicularizando seus traços físicos, a textura de seus traços físicos, a
textura de seus cabelos, fazendo pouco das religiões de matriz africana. Implica criar condições
para que os estudantes negros não sejam rejeitados em virtude da cor da sua pele, menosprezados
em virtude de seus antepassados terem explorado como escravos, não sejam desencorajados de
prosseguir estudos, de estudar questões que dizem respeito à comunidade negra.
Considerações finais
O direito a divulgação da religiosidade afro-brasileira, resultante da perspectiva histórica
evidenciada em documentos e pesquisas consultadas e apresentadas neste artigo, tem como
objetivo, ampliar o conhecimento sobre a cultura afro-brasileira, especificamente da matriz-
784
africana com vistas à inserção desses fundamentos na disciplina Ensino Religioso ensinada na
escola brasileira. As características assinaladas ao longo dos períodos descritos nesse artigo
alertam para a necessidade de uma mudança de mentalidade em torno do horizonte e do modelo
de sociedade que queremos construir.
Entendemos que essa religiosidade de matriz africana vem a se contrapor ao desejo de
invisibilidade dos negros da diáspora, fato muito significativo para os anseios e desejos dos
movimentos negros e de pesquisadores que há muito tempo refletem sobre as desigualdades
raciais no Brasil e denunciam a ausência de personagens negros nos livros didáticos. Neste
contexto, o Candomblé, assim como o catolicismo, representa a preservação da herança religiosa
e cultural do ocidente, representa a preservação da herança religiosa e cultural africana,
evidenciado nas lutas do povo negro de resistência à opressão, exclusão, e fortalecendo os negros
na busca de espaço e valorização de suas tradições na constituição da cultura brasileira.
Mudanças importantes e significativas do conhecimento que é divulgado no interior das escolas
em direção ao fortalecimento das lutas e reivindicações de outrora e atuais.
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