II Encontro Internacional do Português Novos Desafios no Ensino do Português Instituto Politécnico de Santarém Escola Superior de Educação A construção passiva: usos e desvios Antónia Estrela Escola Superior de Educação de Lisboa Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa [email protected] 4 de Dezembro de 2010 Plano • Tipologia das construções passivas • Funções da passiva • Desvios em produções escritas de alunos do Ensino Superior • A passiva: uma construção em reanálise? • A construção passiva: abordagem metodológica • A (não) utilização da passiva Tipologia • Passiva sintáctica • Passiva adjectival/ resultativa/ de estado • Passiva pronominal • Passiva infinitiva Passiva Sintáctica • Promoção do argumento interno directo em posição de sujeito; sujeito realiza-se como agente da passiva. 1) O João leu o livro. 2) O livro foi lido pelo João. A passiva ocorre com verbos transitivos. Restrições sobre a passiva sintáctica: • verbos inergativos (trabalhar, espirrar, dormir, sorrir) 3) *O João foi trabalhado. • verbos inacusativos (desmaiar, florir, morrer, adormecer) 4) *O João foi desmaiado. • verbos que seleccionam argumentos internos preposicionais 5) *O jogo foi interferido. Passiva Adjectival • Construída com verbos auxiliares como estar (Cunha e Cintra, 1987) e ficar. • O constituinte com a função gramatical de sujeito corresponde ao argumento interno directo do verbo (tal como acontece na passiva sintáctica e na passiva pronominal). 6) Os ficheiros estão corrompidos. 7) Os ficheiros ficaram corrompidos. 8) Os ficheiros foram corrompidos. 9) Corromperam-se os ficheiros. • A forma participial que ocorre na passiva adjectival é um adjectivo – Alguns argumentos: (Mateus et al. 2003) • Formas participiais com prefixos negativos 10) A obra de requalificação continua inacabada. 11) *A obra de requalificação foi inacabada. • Ocorrência com sufixos diminutivos 12) A casa está limpinha. 13) *A casa foi limpinha. • Formas participiais derivadas de verbos inacusativos 14) A rapariga ficou desmaiada no chão. 15) *A rapariga foi desmaiada no chão. • Valor aspectual: principal característica distintiva de passivas verbais e passivas adjectivais – Passiva de ser – evento – Passiva com ficar e estar - estado • Semelhanças com passiva sintáctica: • a afixação do morfema passivo • a supressão do papel temático externo do verbo Passiva Pronominal 16) Resolveram-se todas as questões problemáticas. 17) Todas as questões problemáticas foram resolvidas. Concordância entre o predicador verbal e o seu argumento interno. 18)Resolveu-se a questão problemática. Ambiguidade: 19) A questão problemática foi resolvida. 20) Alguém resolveu a questão problemática Passiva Pronominal O sujeito ocorre preferencialmente em posição pósverbal. O argumento Agente não pode ocorrer lexicalmente: 19) *Resolveram-se todas as questões problemáticas pelos professores. Passiva Infinitiva 19) Esta situação é difícil de prever. • Construção em que o argumento interno do verbo está associado à posição de sujeito (Peres e Móia, 1995). • O sujeito da frase matriz está associado à função sintáctica de sujeito da frase encaixada (infinitiva). Passiva Infinitiva • Argumentos a favor de análise passiva (Peres & Móia 1995) – A oração em questão apenas é possível com verbos verdadeiramente transitivos. 20) *Esta situação é difícil de escapar. – A oração não é possível com um Agente realizado na posição de sujeito. 21) *Esta situação é difícil de o João prever. Passiva Infinitiva – É possível, em alguns contextos, a ocorrência de um agente da passiva. 22) Esta situação é difícil de prever por quem quer que seja. – Estrutura encaixada está em variação livre com outras estruturas passivas: 23) Esta situação é difícil de prever. 24) Esta situação é difícil de ser prevista. 25) Esta situação é difícil de se prever. • Passividade do verbos – Traços sintácticos (selecção argumental) – Traços semânticos (agentividade/estatividade do verbo) – Traços sintácticos e semânticos – Restrições lexicais Funções da passiva • • • • Supressão do primeiro argumento Orientação sobre o segundo argumento Focalização sobre o processo Cadência do discurso • (Lazard 1994:237 apud Correia 2006) Desvios em produções escritas de alunos do Ensino Superior Argumentos preposicionados como sujeitos de passivas Este tema é reflectido por um grupo de intelectuais. ...quem queira ter um papel activo e preponderante na educação dos seus filhos é esbarrado com horários extenuantes logo no 1º ciclo. O acesso à internet não é prescindido tão facilmente. Tendo em conta a estrutura [que foi] optada pelo grupo, podemos concluir que a organização foi bem conseguida ... Argumentos preposicionados como sujeitos de passivas Este tema é reflectido por um grupo de intelectuais. Este tema é discutido por um grupo de intelectuais. Este tema é alvo de reflexão por parte de um grupo de intelectuais. (...) quem queira ter um papel activo e preponderante na educação dos seus filhos é esbarrado com horários extenuantes logo no 1º ciclo. (...) é condicionado por horários extenuantes (...) (...) esbarra com/contra horários extenuantes (...) O acesso à internet não é prescindido tão facilmente. Do acesso à internet não se prescinde tão facilmente. Não se prescinde do acesso à internet tão facilmente. Tendo em conta a estrutura optada pelo grupo, podemos concluir que a organização foi bem conseguida (...). Tendo em conta a estrutura por que o grupo optou (...) Tendo em conta a estrutura [que foi] escolhida pelo grupo (...) • Problema: subcategorização verbal ocorre igualmente na voz activa Uma vez que o mesmo problema ocorre quer na activa (Sousa e Estrela 2009) quer na passiva, não dependendo da estrutura mas do verbo, uma hipótese a levantar é a de que os verbos apresentados nos exemplos possam estar a ser reanalisados como transitivos. Mais estudos são necessários. • Estarão alguns verbos a ser reanalisados como passivizáveis? • Abusar de 26) As crianças foram abusadas. Passiva sintáctica por construção impessoal Esta rotina é manifestada em diversas áreas... No excerto é falado das lixeiras a céu aberto. Muitos são os países que em tempos absorveram a nossa cultura e vice-versa, como é o caso do Oriente e isso ainda é reflectido hoje em dia. Com este portefólio é esperado que seja de grande utilidade para consulta futura e esclarecimento de eventuais dúvidas. Passiva sintáctica por construção impessoal Esta rotina é manifestada em diversas áreas... manifesta-se No excerto é falado das lixeiras a céu aberto. fala-se Muitos são os países que em tempos absorveram a nossa cultura e vice-versa, como é o caso do Oriente e isso ainda é reflectido hoje em dia. se reflecte Com este portefólio é esperado que seja de grande utilidade para consulta futura e esclarecimento de eventuais dúvidas. Espera-se que este portefólio seja de grande utilidade (...). Outros exemplos Coordenação de dois verbos que não partilham a mesma estrutura de subcategorização: Através da primeira visita de estudo realizada, ou seja, a visita à Expolíngua, foinos divulgada e promovida a importância do estudo de línguas e do conhecimento de novas culturas. Passivização dos dois verbos da frase, quando um deles é um verbo de controlo: Tenho pena é que nem sempre seja conseguida ser aplicada a cem por cento no dia-a-dia de todos nós. Esta medida consegue ser aplicada por todos nós. Ele confirmou ter aplicado a medida. Foi confirmado ter sido aplicada a medida. Outros exemplos Pronominalização indevida do agente da passiva (...) sinto que realmente tirei proveito da formação pretendida e adquiri conhecimentos que vão certamente prevalecer no tempo e ser-me-ão bastante aplicados futuramente sem dúvida. (...) sinto que realmente tirei proveito da formação pretendida e adquiri conhecimentos que vão certamente prevalecer no tempo e que serão aplicados por mim futuramente, sem dúvida. A construção passiva: abordagem metodológica • Observar • Manipular • Ensinar (Tisset 2005) • Trabalho sobre os exemplos que evidenciam regularidades e sobre os que evidenciam irregularidades • Conhecimento implícito dos alunos • Elaboração de uma regra comum • Conceptualização • Reflexão a partir das produções escritas dos alunos. A (não) utilização da passiva Antes A passiva tinha uma longa tradição no discurso académico. Actualmente • Várias correntes nos Estados Unidos impõem que se evite a passiva no discurso académico. • Os manuais de estilo recomendam a utilização da activa em vez da passiva. • Muitos editores têm como regra a não utilização desta construção, bem como do tempo verbal futuro. • “Sometimes I’ll write something like ‘the patient was comatose and was given thyroid hormone,’ and they’ll change that to ‘the patient was comatose and took thyroid hormone’. (…) “I have to tell them these are extremely sick patients, they can’t take care of themselves, they have to be passive whether Wiley [one of the editors] likes it or not.” (Donadio 2006, apud Wanner 2009) • Às vezes, escrevo algo como “o paciente estava em coma e foram-lhe dadas hormonas da tiróide”, e eles vão mudar isso para "o paciente estava em coma e tomou hormonas da tiróide“. (...) "Eu tenho de lhes dizer que estes são pacientes extremamente doentes; eles não podem cuidar de si mesmos; têm de ser passivos quer Wiley [um dos editores] goste ou não. (tradução minha) Notas finais • Não se justifica o abandono de certas estruturas apenas pelo desconhecimento das regras gramaticais que estão na base do seu uso. • Há necessidade de estimular a utilização da construção passiva. • A estrutura passiva cumpre funções várias que não são cumpridas pela estrutura activa. • Mais estudos são necessários para aprofundar os desvios que estão a afectar as produções em que ocorrem estas construções. Referências Bibliográficas • • • • • • • • • • Correia, D. (2003). Passivas e Pseudo-Passivas em Português Europeu – Produção Provocada e Compreensão. Tese de Mestrado. Escola Superior de Educação de Leiria. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Cunha, C & Cintra, L. (1987) Nova Gramática do Português Contemporâneo. (4ª edição). Lisboa: João Sá da Costa. Levin, B. & Rappaport, M. (1986). The Formation of Adjectival Passives. In Linguistic Inquiry. 17:4, 623-661. Mateus, M. H. M. et al. (2003). Gramática da Língua Portuguesa. (5ª edição). Lisboa: Editorial Caminho. Peres, J. & Móia, T. (1995). Áreas Críticas da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho. Raposo, E. & Uriagereka, J. (1996). Indefinite SE. In Natural Language and Linguistic Theory. 14, 749-810. Sim-Sim, I. (1998). Desenvolvimento da Linguagem. Lisboa: Universidade Aberta. Tisset, C. (2005). Observer, Manipuler, Enseigner la Langue au Cycle3, Hachette Éducation. Wanner, A. (2009). Deconstructing the English Passive. De Gruyter Mouton http://www.dgidc.min-edu.pt/linguaportuguesa/Paginas/NovoProgramaPEB.aspx (consultado a 31 de Outubro de 2010)