Elementos para uma crítica sobre a história do pensamento

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Elementos para uma crítica sobre
a história do pensamento geográfico
Paulo Roberto Teixeira de Godoy
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
Departamento de Geografia
[email protected]
Resumo
As relações que a história da ciência e a espistemologia estabelecem entre passado
e presente revelam, além das concepções de ciência e de tempo histórico, uma posição
política e de autoridade frente aos fatos que são selecionados e trazidos para o presente.
O objetivo que perseguimos neste artigo interroga acerca dos critérios e das formas que
norteiam o trabalho do geógrafo na reconstrução histórica de sua disciplina.
Palavras-chave: história da ciência, pensamento geográfico, epistemologia.
Resumen
Las relaciones que la historia de la ciencia y la epistemologia establecido entre el
pasado y el presente nos mostrar allá de las nociones de la ciencia y tiempo histórico, una
posición política y la autoridad frente a los hechos que se seleccionan y traído a presente.
El objetivo que perseguimos en este artículo es preguntar sobre los criterios y las formas
que guían el trabajo del geógrafo la reconstrucción histórica de su disciplina.
Palabras clave: historia de la ciencia, pensamiento geográfico, epistemología.
Realizado de 25 a 31 de julho de 2010. Porto Alegre - RS, 2010. ISBN 978-85-99907-02-3
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Introdução
Muito já se escreveu sobre a construção da Geografia como ciência, desde a
indefinição polêmica de seu objeto de estudo, as incertezas metodológicas, ambigüidades
e tautologias conceituais até a discussão se o espaço constitui ou não uma instancia
social, uma Totalidade. O resultado destas análises revela traços comuns na aparente
uniformidade que constituiu a história do pensamento geográfico. Um desses traços é a
busca pelo precursor.
O geógrafo, muitas vezes, na tarefa de reconstrução histórica de sua disciplina,
parte geralmente em direção ao passado como que buscando as origens de um
conhecimento que possa ser conciliado com as concepções de ciência do presente ou,
sob outro aspecto, parte do passado em direção ao presente, com a certeza de encontrar
uma sucessão de acontecimentos correlacionados no tempo e no espaço de modo que
culmine na confirmação do paradigma presente.
Em ambos os casos a definição de ciência já está dada no ponto de partida, não se
tratando necessariamente de um analise histórica ou da historicidade do pensamento
geográfico – uma ontologia da episteme, ou uma hermenêutica do saber – mas uma
confirmação do que está a priori definido como ciência.
A conciliação, neste caso, desempenha importante papel para a idéia de unidade da
ciência, aqui se encontra o segundo traço comum das abordagens freqüentemente
encontradas na historia do pensamento geográfico: os vencedores da historia (Humboldt,
Ratzel, la Blache e outros poucos pertencentes ao circulo institucional da época). A
preocupação não se limita apenas em encontrar o precursor, mas dar-lhe cientificidade,
originalidade, inteligibilidade, apontar suas virtudes e contribuições à ciência geográfica e
legitimar a vitória do autor como meio de justificar o discurso de reconstrução do passado
e, ao mesmo tempo, produzir as referencias necessárias para tornar suficientes os
fundamentos da concepção de ciência e de historia.
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A busca pelo precursor e a historia dos vencedores
O esforço de redefinição da trajetória dos fatos e idéias em direção ao presente,
recortando o tempo em períodos e determinando referenciais teóricos e fundamentos
filosóficos, pode ser concebido como uma tomada de decisão frente a historia da ciência
e, portanto, uma posição política e ideológica em relação ao conhecimento, isto é, uma
relação de poder com o passado.
A ausência do conteúdo político-ideológico na historia da ciência geográfica deve
sua explicação, em parte, ao predomínio quase exclusivo, da descrição sobre a
explicação/compreensão e a critica, tornando-a refrataria de uma periodização que
remete, inevitavelmente, a autores e obras e não ao fluxo de conhecimento circunscrito ao
contexto social e histórico.
Se Humboldt tivesse morrido aos seis anos de idade, Ritter e Ratzel seriam os
únicos responsáveis pela invenção da Geografia Moderna? A revolução galeiliana só
tornou-se possível graças à física aristotélica? Por que Francis Bacon ficou com todas as
glórias do seu antecessor Roger Bacon? Se Carnot tivesse morrido aos dois anos a
termodinâmica não seria o que é? Essa impressão de a-historicidade é uma singularidade
da historia da ciência que explica, em certo sentido, por que esse terreno é tão pouco
freqüentado pelos historiadores da ciência.
No entanto, a existência de dois campos de investigação na historia da ciência –
internalista e externalista –, mostra a singularidade desse gênero entre a história das
produções cientificas propriamente dita e aquela das instituições, das relações dos
cientistas com o seu meio, das restrições ou das oportunidades sociais, econômicas,
institucionais, afetando o campo cientifico em tal ou qual época.
Mas, para quem a historia da ciência torna-se um problema? Para o cientista, a
história da ciência não é suficiente em suas elucidações para reorientar procedimentos
metodológicos que questione a relação sujeito-objeto. Para o historiador da ciência, a
relação sujeito-objeto consiste em um aspecto interno da produção cientifica, portanto,
uma parte constitutiva do seu objeto. O objeto do historiador da ciência não se confunde
com o do cientista. Neste sentido, investigar a produção de conhecimento não se faz
mediante a redução do autor a sua obra ou as pré-determinações de um período histórico
específico. A historicidade da analise sobre o pensamento cientifico implica, em certo
sentido, explicar a conexão interna entre diferentes elementos, históricos e científicos, que
revele a essência e o devir do pensamento, isto é, o index teoria e pratica. Ainda aqui, a
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historicidade é prisioneira da contingência que singulariza a natureza do conhecimento
cientifico.
A Geografia Moderna nasceu na Alemanha. Seria possível conferir a singularidade
histórica alemã o poder de explicar este fato? Caberia, ao contrario, remeter essa
singularidade as condições gerais que permitiriam a sua emergência? A idéia de
contingência, entretanto, pode excluir a explicação e transformar a mera descrição em
dedução, dando ao fato – acontecimento – a sua própria explicação e existência – eis aí a
explicitação metafísica do realismo.
A história da geografia como ciência moderna não está, assim, contida em si
mesma e, tampouco, em seus precursores que, como é sabido, não hesitaram em
estabelecer os contornos de um saber que lhes conferissem legitimidade e autoridade
frente a outros saberes. Para evitar uma ratificação daquilo que é Geografia, caberia
recomeçar com outros dados que não a torne objeto de definição, mas uma questão de
historia.
Se a epistemologia normativa construiu a identificação de um critério de
demarcação entre ciência e não-ciência, é necessário reconhecer que a busca objetiva de
tal critério poderia tornar-se suficiente e justificada. A partir do momento em que o autor –
precursor – constitui a referencia para o que definimos desde então como Geografia
Moderna, surge a questão acerca da falsidade ou validade de suas proposições, isto é, se
elas são ou não científicas. A ironia, neste caso, poderia inculcar uma tautologia: é
cientifico o que os cientistas, num dado momento, definem que seja. Se, entretanto, a
ciência é uma construção dos próprios cientistas, embora não resulte de um acordo
declarado entre eles, a definição e a justificativa daquilo que é científico provoca
necessariamente uma diferença entre os saberes e, também, uma relação de poder entre
aqueles que produzem e controlam as normas que separam a ciência e a não-ciência.
Aliás, a narrativa de cunho memorialista da história da geografia, repetidas vezes
apresentadas nos chamados manuais para-didáticos, insistem em criar critérios que
evidenciem a demarcação entre a geografia científica e a geografia não cientifica.
Enquanto ciência social, a geografia constitui uma especialidade no conjunto das
ciências, voltada ao seu objeto específico e munida de conceitos e temáticas que a torna,
mesmo com possíveis oposições, mais uma celebração polêmica do tônus racional do
pensamento cientifico. A história das ciências é também a história da sua própria
invenção. Mas, para quem ela se torna um problema? Essa interrogativa explicita a
relação entre a história das ciências e a filosofia.
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A epistemologia, geralmente, constitui o lugar em que os filósofos se colocam
perante a história das ciências, ou melhor, frente aos problemas do conhecimento e da
historicidade do pensamento científico. À medida que esta consciência crítica coloca-se
enquanto um saber sobre os métodos e alcança a maturidade de consenso, a ciência se
vê obrigada a solenizar o seu poder, enfatizando as lacunas e os bloqueios que
impediram e que impedem a marcha em direção ao objeto.
Entre as razões apresentadas para se fazer história das ciências deve-se considerar
que há uma separação, como já apontado, entre uma história interna e outra externa à
ciência. Há uma separação entre a produção e as diferentes formas de difusão do
conhecimento científico. O que nos interessa, neste momento, é a sua história interna, a
dialética da produção do conhecimento científico a partir de relações intrínsecas de poder
entre a celebração dos “vencedores” e a desqualificação dos “vencidos”.
É preciso considerar, nesta tarefa, tanto a filosofia da ciência, porque sem essa
referência a epistemologia torna-se puro diletantismo, como a história das ciências, pois
sem esta a epistemologia se tornaria uma refutação desnecessária da ciência que a faz
somente objeto de seu discurso. O problema que as ciências colocam para a
epistemologia diz respeito mais aos seus interesses que propriamente o do seu objeto.
Esta posição estabelece que o objeto da epistemologia diferencia-se do objeto da ciência.
A relação que a ciência estabelece com o seu objeto não se identifica com aquela entre a
epistemologia e a ciência que, por sua vez é, também, distinta daquela entre a ciência e a
história das ciências. A relação da história das ciências com o seu objeto não é a mesma
que as ciências mantêm com seus objetos; no entanto, a história das ciências mantém
com as ciências uma relação ao mesmo tempo essencial e paradoxal.
A história das ciências desempenha, sem dúvida, um papel primordial na filosofia
das ciências. Não somente a epistemologia é solidária a essa disciplina, mas alimenta-se
amplamente de seus princípios. Na perspectiva positivista, a ciência só é tomada como
objeto de estudo na medida em que existe a título de fato, isto é, como ciência presente.
Contrariamente a esta posição, a epistemologia constitui a base da linguagem da história
das ciências e fornece, ao mesmo tempo, o valor de sua inteligibilidade. Não se deve
esquecer também que ao discernir a história do conhecimento científico dos que já se
encontram superados e a dos que continuam atuais, a epistemologia coloca-se como
possibilidade de interpretação do passado e das condições necessárias entre a história e
a ciência.
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A distinção básica, entretanto, é que a história das ciências transforma as idéias em
fatos, parte das origens em direção ao presente de modo que a ciência do presente já
está anunciada no passado. Ela seleciona os fatos, dando-lhes coerência associativa
mediante conexões de lugar e tempo e reconstitui o passado condicionando-o às
determinações do presente. O encadeamento dos fatos corresponde à ordem explicativa
que torna inteligível as condições do presente. A história da ciência encerra, muitas
vezes, julgamentos implícitos a respeito da validade dos pensamentos e da produção
científica.
A epistemologia, ao contrário, procede do presente em direção ao passado,
consciente de que nem tudo que foi considerado ciência pode ser, hoje, considerado
científico. Ela pode escamotear pela identificação explícita do conhecimento com o título
de científico como pela identificação implícita do conhecimento com o poder. Aparece o
problema essencial para a epistemologia e para a história do pensamento geográfico: a
relação entre poder e ciência. O discurso vazio da neutralidade científica, já desfeito pelas
posições teóricas mais críticas, é revelador da necessidade de posicionamento político
perante a natureza dos interesses que unem ciência e poder.
Para julgar o passado, a história das ciências deve pôr em relevo a capacidade de
julgamento e a consciência de sua própria singularidade enquanto conhecimento dos
fatos científicos. Por um lado, a história das ciências se vincula à atualidade da ciência
através da relação de poder que estabelece com ela. Quanto mais ela se envolve com a
ciência como produto da modernidade maior a percepção de sua historicidade. Por outro
lado, para a epistemologia, a historicidade é reconhecida no curso da produção do
conhecimento, daí o seu interesse não somente pelo passado, mas também pelo futuro.
A normatividade do conhecimento, a sua sistematização, as suas fontes primárias e
suas influências científicas e filosóficas, e, por fim, os seus precursores constituem as
etapas básicas trilhadas pelo historiador do pensamento científico. Entretanto, como dito
anteriormente, devemos abandonar o vírus do precursor. Cada ciência tem seu ritmo
próprio e sua temporalidade específica. Sua história procede por reorganizações, rupturas
e mutações, passando por pontos críticos, jamais podendo ser isolada de seu
enquadramento cultural, isto é, do conjunto das relações sociais e dos valores ideológicos
da formação social em que ela se inscreve. A rigor, se existisse precursores, a história
das ciências perderia todo seu sentido, e a própria ciência só teria dimensão histórica na
aparência. Um precursor seria um pensador, um pesquisador que teria feito, outrora, um
pedaço do caminho concluído mais recentemente por outro.
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Essa argumentação pode evidenciar ainda outro problema bem mais intrigante
vinculado à convicção dos participantes da aventura científica: a crença de que a ciência
não é uma prática social como as outras. Certamente, o historiador do pensamento
científico poderá contestar que ele utiliza o recuo no tempo como um instrumento de
poder, capaz de julgar situações passadas, e trazer à cena uma coleção de fatos, como
diria Popper, que permite estabelecer um quadro de vencedores. Todos eles se tornam
objetos de reduções múltiplas do historiador e abre a possibilidade de construir a sua
posição diante da trajetória recomposta de cada autor.
Na medida em que a obra do autor consegue efetivamente fazer história, essa
mesma história, longe de facilitar o trabalho do historiador, produzirá uma diferenciação
cada vez mais difícil de questionar. O historiador tem plena liberdade no que concerne
aos vencidos e pode até tentar tornar inteligíveis suas convicções; pode ressaltar a
maneira pela qual os vencedores eram os filhos de sua época, mostrando o contraste
entre aquilo que acreditavam e o que a ciência presente diz sobre essa crença. Com
efeito, esse contraste revela e traduz o poder da verdade, porque o historiador do
pensamento cientifico se define, neste caso como aquele capaz de recuar no tempo e
questionar aquilo que foi considerado incontestável.
A assimetria estabelecida na historia entre vencedores e vencidos não consiste
apenas um aspecto que o historiador da ciência deve examinar, mas um problema
herdado da concepção de acontecimentos históricos. Contudo, a história das ciências não
constitui obstáculo ao trabalho do historiador do pensamento cientifico, mas contribui ao
colocar a questão acerca da recusa de reduzir uma situação àquilo que o recuo no tempo
nos permite dizer hoje a seu respeito. Vale dizer de passagem, que a crítica ao
reducionismo não é uma decisão metodológica, mas uma decisão política.
A complacência em procurar, em encontrar, em celebrar precursores é o sintoma
mais claro da inépcia à crítica epistemológica. Um precursor seria um pensador de vários
tempos e daqueles que designamos como seus continuadores. É este pensador-objeto
que o historiador do pensamento científico acredita poder remover de seu contexto
cultural para inseri-lo num outro enquadramento.
A busca pelo precursor revela também os princípios metodológicos propostos e que
é definido de tal forma que os problemas teóricos e conceituais relevantes são excluídos a
priori por serem considerados metafísicos, ideológicos, etc. A aceitação de uma única
abordagem tem por efeito desqualificar, em nome da metodologia científica, todas as
outras abordagens que não se ajustam àquela estrutura discursiva. Os procedimentos de
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analise que norteiam a pesquisa terminam por caracterizar uma sucessão de desvios de
todas as dificuldades que acompanham a construção de um conhecimento crítico.
De acordo com Mészáros (2004, p. 302),
esta prática consiste em afiar a faca metodológica recomendada
até que nada reste a não ser o cabo, quando então uma nova faca é
adotada com o mesmo propósito, pois a faca metodológica ideal não se
destina a cortar, mas apenas ser afiada, interpondo-se assim entre a
intenção critica e os objetos reais da crítica, que acaba por eliminar
enquanto prossegue a atividade pseudocrítica de afiar por afiar a faca. E
exatamente este seu propósito ideológico inerente.
A discussão sobre o caráter reducionista das concepções que julgam o passado
para fortalecer a sua autoridade no presente, constitui outro aspecto que não deve
escapar aos que compreende a historia da ciência não como uma questão puramente
técnica ou cientifica, mas como uma questão de historia e de projeto político.
Bibliografia
ARANTES, Paulo E. Ressentimento da Dialética – dialética e experiência intelectual em
Hegel. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
MÉSZÁROS, I. O Poder da Ideologia. Tradução: Paulo César Castanheira. Sáo Paulo:
Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, I. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. Tradução: Laboratório de Tradução
do CENEX/FALE/UFMG. São Paulo: Editora ensaio, 1993.
MORAES, Antonio C. R. Ideologias Geograficas: espaço, cultura e política no Brasil. Sáo
Paulo: Annablume, 2005.
SANTOS, M. Da Totalidade ao Lugar. Sáo Paulo: Edusp, 2008.
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