GÊNERO E MATEMÁTICA NA MESMA EQUAÇÃO

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GÊNERO E MATEMÁTICA NA MESMA EQUAÇÃO: possíveis
implicações nas escolhas profissionais.
Márcia Barbosa de Menezes*
Ângela Maria Freire de Lima e Souza**
RESUMO
Um momento especialmente suscetível às influências dos estereótipos de gênero
é aquele em que jovens mulheres realizam suas escolhas profissionais; nesse momento
toda a força das construções sociais e culturais que foram impostas e assimiladas pela
sociedade patriarcal se faz presente. As meninas, desde muito cedo, são “trabalhadas”
para não se sentirem aptas para o estudo das abstrações e para as tarefas com sentido
espacial; assimilam o gosto pelas tarefas do cuidar, do servir, da leitura.
Já os
meninos, tidos como racionais, objetivos, abstratos, são incentivados para os jogos
racionais que envolvem pensamento lógico, abstrato. A maioria dos homens continua
seguindo carreiras em campos diferenciados economicamente e de poder - as carreiras
associadas às ciências “duras” - exatas- enquanto as mulheres são atraídas para
carreiras que supostamente exigiriam delas menos técnica e objetividade, voltadas
principalmente para as funções do cuidar, relacionadas às ciências “moles” - humanas
e sociais. Buscando elementos da nossa realidade que confirmassem ou não essas
reflexões, analisamos os 10 últimos processos seletivos para o ingresso na
Universidade Federal da Bahia, registrando os percentuais de aprovação de mulheres e
homens e destacando as áreas das Ciências Exatas e das Ciências Biológicas,
respectivamente áreas I e II, no contexto da UFBA. Os dados reafirmam as assimetrias
de gênero entre os cursos das áreas das Exatas e Biomédicas, sugerindo que os antigos
estereótipos sobre as habilidades cognitivas das mulheres permanecem, de maneira
sutil, encaminhando as jovens para aqueles cursos mais voltados para o cuidado,
afastando-as das áreas associadas à racionalidade e à objetividade.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero. Matemática. Escolhas Profissionais.
*Professora do Instituto de Matemática da Universidade Federal da Bahia. Doutoranda do Programa de
Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo NEIM/UFBA.
[email protected]
* * Bióloga, doutora em Educação, professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos
Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo NEIM/UFBA. [email protected]
1
INTRODUÇÃO
Reflexões sobre Gênero e Matemática abordam a questão de modos variados,
como, aliás, acontece em relação à articulação de gênero a outros campos do
conhecimento; assim, é possível dizer que, de maneira simplificada, os estudos que
trazem esta associação se situam em três perspectivas: (1) analisam a presença (ou a
ausência) das mulheres nas atividades científicas e acadêmicas numa perspectiva
histórica; (2) discutem questões epistemológicas segundo os estudos feministas e (3)
focalizam os contextos sociais e as metáforas de gênero presentes no conteúdo do
conhecimento produzido pelas diversas disciplinas (YANNOULAS e LIMA E SOUZA,
2010, p. 2). Este artigo busca agregar as três abordagens, ao discutir, a partir da análise
de uma situação específica, a sempre desafiante relação entre as mulheres e a
Matemática.
Vários fatores contribuíram para a manutenção da subordinação das mulheres,
como o fato de desconhecerem sua própria história, serem convencidas de sua
inferioridade e incapacidade para muitas habilidades, terem cerceadas a liberdade e a
autonomia, viverem sua sexualidade de acordo com o desejo do outro e, principalmente,
lhes ter sido negado o direito à educação. Essa negação lhes reservou, durante muito
tempo, o afastamento dos espaços acadêmicos, com repercussões importantes sobre
seus destinos e sua própria condição de seres autônomos e produtivos socialmente. De
modo nem sempre muito sutil, as redes do patriarcado deixam suas marcas sobre as
mulheres.
Lerner pontua as relações de gênero, os simbolismos de gênero e principalmente
sinaliza a presença forte do patriarcado no universo do saber. De acordo com a autora
“o patriarcado é uma criação histórica elaborada por homens e mulheres, e que
inicialmente esteve baseado nas concepções da família patriarcal, através de suas
normas e valores” (LERNER, 1990, p.310). A autora afirma, ainda, que as diferenças
construídas em relação ao sexo, foram marcadas pelos valores, pelas leis, pelos
costumes, pelos papéis sociais impostos a cada ser e que são afetados pelas metáforas
criadas em torno do simbolismo de gênero. Estas metáforas estão tão impregnadas nas
concepções do ser homem e do ser mulher que acabam sendo absorvidas como naturais
e deixam muitas vezes de serem questionadas.
Neste contexto, as metáforas de gênero foram e continuam sendo impregnadas
na Matemática, que é vista como um campo de predominância masculina, em que as
2
realizações das mulheres são invisibilizadas e são a elas negadas as atividades
científicas de maior poder e prestígio. Desde o surgimento da Ciência Moderna, que se
fundamenta na busca das “verdades absolutas”, na qual o conhecimento científico é
pautado nos pressupostos da objetividade, neutralidade e razão, a matemática constitui a
principal ferramenta para a execução do novo modo de pensar o mundo.
Ora, os filósofos, conhecidos como os pais dessa nova forma de abordar e
compreender o mundo, que falavam do seu tempo, do seu lugar, do seu momento
político, econômico, histórico e social, tomaram os conceitos biológicos de homem e
mulher para fundamentar seu projeto. Desta forma, os homens eram considerados
biologicamente agressivos, racionais, objetivos, completos; já as mulheres eram
consideradas fracas, doces, amáveis, subjetivas, emotivas - construções históricas
tomadas como verdades universais e absolutas, nas quais se apoiou o próprio
conhecimento científico. Como nos diz Perrot (1988,p.177):
Aos homens, o cérebro (muito mais importante do que o falo), a
inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão. Às mulheres, o
coração, a sensibilidade, os sentimentos.
Como sinaliza Saffioti (2009), as pessoas são socializadas para manter o
pensamento machista, classista e sexista estabelecido pelo patriarcado como poder
político organizado e legitimado pelo aparato estatal por meio da naturalização das
diferenças sexuais. Esse pensamento predomina nas instituições acadêmicas e à medida
que o “nível de prestígio” na produção científica matemática cresce, a inserção das
mulheres nesta produção ainda se dá de forma “acanhada”. Segundo Melo (2006), essa
menor inserção das mulheres nestes espaços precisa ser estudada de uma forma mais
abrangente, observando os diversos mecanismos1 que estão interligados e influenciando
todo esse contexto. Ainda segundo Melo (2006, p.326):
Nas ciências chamadas “duras” os homens têm maioria na produção
cientifica com autoria única e com co-autoria. [...] Já as produções das
mulheres como autoria exclusiva não chega a 2% em nenhuma área
desta ciência. [...] os homens têm no mínimo o dobro de autorias. As
mulheres aparecem como produtoras de ciências nessas áreas do
conhecimento sem na forma de co-autoria; é a consagração da rede e
da colaboração. Talvez as enormes dificuldades que as mulheres tem
de conciliar a vida familiar e a dedicação exigida pela carreira
científica impõe essa forma de trabalho.
1
Fatores de ordem social, cultural, econômico, histórico, político, dentre outros.
3
Neste trabalho a autora não deixa claro se essas publicações com co-autoria são
realizadas em conjunto com colegas homens ou com outras colegas mulheres.
Diante deste contexto, podemos pensar os campos das pesquisas científicas
matemáticas como um lugar também de dominação masculina, no qual os homens
reificam a razão para desenvolver o pensamento racional, abstrato e lógico, mantendo o
poder de dominação sutil e invisível que coloca as mulheres em patamares inferiores
hierarquicamente. A ordem patriarcal de gênero produz e reproduz violências contra as
mulheres que podem ser físicas, psíquicas ou silenciosas. No espaço em questão,
aparentemente se manifesta uma violência silenciosa, muitas vezes até imperceptível
para as mulheres que não estão conscientes das relações de poder e de gênero.
Como bem argumenta a matemática Claudia Henrion, as mulheres estariam fora
do nível das pesquisas devido ao pensamento construído e estereotipado que mantêm
vivas determinadas diferenças:
Primeiro, a matemática é um campo habitado por indivíduos
tempestuosos que, trabalhando sozinhos, criam grande matemática
pela pura força de seu gênio imaginativo. Segundo, ser matemático e
ser mulher é incompatível: a matemática, com sua ênfase na mente,
não é profissão para as fêmeas da espécie, com seus corpos incômodos
que as vezes ficam grávidos e dão à luz. Terceiro, a matemática
fornece conhecimento certo, eterno e universal ao qual se chega pelo
raciocínio dedutivo e por provas formais.
(citado por
SCHIENBINGER, 2001, p.312)
Assim, as mulheres tendem a ser vistas como despossuídas de razão, com uma
carga de sentimentos e emoções que são impróprias para o bom desenvolvimento do
pensamento matemático. Estas concepções, aceitas e assumidas como naturais, isto é,
como biologicamente determinadas, são na verdade formas sutis de excluir e
invisibilizar as mulheres dos campos científicos e manter a predominância do poder
patriarcal. Lembrando Rosaldo (1979, p.26):
[...] a facilidade de associação entre a natureza não humana e
feminina propicia um fundamento cultural lógico para a subordinação
feminina; a biologia, o papel social e a personalidade feminina
estimulam as culturas a defini-la como mais próxima da “natureza” do
que o homem e por isso subordinada, controlada e manipulada em prol
dos objetivos “culturais”.
4
Apesar destas construções históricas e culturais, desde a antiguidade algumas2
mulheres
romperam
os
limites
dessas
estruturas,
ingressando
em
espaços
tradicionalmente masculinos, mostrando sua capacidade de produzir conhecimento,
apesar de todas as barreiras construídas em torno dos estereótipos de gênero.
Assim, apesar dos discursos culturalmente construídos sobre as mulheres, está
cada vez mais claro que o biológico nada tem a ver com a capacidade do ser humano em
desenvolver o cérebro para pensar, formar conceitos, pensar o abstrato, desenvolver
raciocínios lógicos.
Ainda assim, de acordo com estudos contemporâneos feitos por Cordelia Fine
(2010), alguns pesquisadores continuam trabalhando com tentativas de atribuir os
comportamentos associados aos gêneros às estruturas e fisiologia cerebrais. Esses
cientistas buscam explicações em padrões estruturais do cérebro para “explicar” as
diferenças entre homens e mulheres. Fine apresenta uma crítica muito bem construída a
esses autores, argumentando que não existe um “macho” ou uma “fêmea” pré-definidos
no cérebro humano. As supostas diferenças no uso da linguagem masculina e feminina,
em particular sobre as habilidades em matemática, muitas vezes inexistentes, são
influenciados por nossas ideias e concepções culturais e históricas sobre o que as
mulheres e os homens devem “ser”, “fazer” e “pensar”. Segundo Fine, os testes de
inteligência e habilidades cognitivas, aplicados “cientificamente”, também são
articulações já generificadas, decodificadas a partir de compreensões múltiplas de
gênero e de suas significações no mundo em que os/as pesquisados/as e
pesquisadores/as estão envolvidos/as.
Segundo Lerner (1990, p. 323):
...criar um pensamento abstrato, obviamente, isto não depende do
sexo; a capacidade de pensar é inerente a humanidade: pode-se
alimentá-la ou desanimá-la, mas não se pode reprimi-la.3
Nesta mesma linha de pensamento Harding (1996, p. 96) argumenta: “os
indivíduos não se consideram homens ou mulheres por uma fatalidade biológica,
constituem-se
como
indivíduos
generalizados
através
de
processos
sociais
2
Na matemática podemos citar Theano, Hipátia(ou Hipácia) de Alexandria, Emilie du Chatelet, Maria
Gaetana Agnesi, Sophie Germain, Sofia (ou Sonia) Kovalevskaia, Elza Gomide, Maria Laura Mousinho,
dentre outras.
3
...un pensamiento abstrato, obviamente, esto no depende del sexo; la capacidad de pensar es inherente a
la humanidad: puede alimentársela o desanimarla, pero no se la puede reprimir.
5
identificados”4; Keller (1991, p.12) enfatiza: “o masculino e o feminino são categorias
definidas por uma cultura, e não por uma necessidade biológica.”5
Portanto é cada vez mais claro que as características pretensamente definidoras
do sexo feminino são na verdade construções interligadas com fatores diversos, que
precisam ser analisados. Não podemos deixar de salientar que as próprias mulheres, ao
acessarem os meios de maior prestígio cientifico, podem acabar reproduzindo os modos
pelos quais este poder é exercido. As mulheres, muitas vezes, se comportam assumindo
os estereótipos associados ao “cientista”, cujo modelo é masculino, ou seja, há uma
adequação feminina ao “fazer ciência hegemônico”. Como nos diz Lima e Souza
(2002, p.80), em muitas situações, marcadamente em laboratórios no campo das
ciências naturais:
...para o trabalho científico aprendem e incorporam o modelo
dominante de produção do conhecimento e o reproduzem sem
contestação, para que sejam aceitos por seus pares e se sentirem
adequados ao trabalho que executam.
Um momento especialmente suscetível às influências dos estereótipos de gênero
é aquele em que jovens mulheres realizam suas escolhas profissionais; claro que nesse
momento toda a força das construções sócias e culturais que foram impostas e
assimiladas pela sociedade patriarcal se faz presente. O processo de socialização que é
imposto às nossas crianças estabelece uma hierarquia de papéis que vai sendo
construída desde muito cedo. As meninas, desde muito cedo, são “trabalhadas” para não
se sentirem aptas para os jogos competitivos, para o estudo das abstrações e para as
tarefas com sentido espacial; assimilam o gosto pelas tarefas do cuidar, do servir, da
leitura. Já os meninos, tidos como racionais, objetivos, abstratos, são incentivados para
os jogos racionais que envolvem pensamentos lógicos, abstrato, de poder, de
competição. Assim, simbolicamente, os meninos e as meninas assumem as
representações sociais que lhe foram impostas. A maioria dos homens continua
seguindo carreiras em campos diferenciados economicamente e de poder - as carreiras
tidas como “duras” (ciências exatas- imparciais, abstratas e quantitativas) - enquanto as
mulheres são atraídas para carreiras que supostamente exigiriam delas menos técnica,
voltadas principalmente para as funções do cuidar, carreiras tidas como “moles”
4
Los indivíduos no se constituyen en mujeres ni em hombres por uma fatalidad biológica; se constituyen
como indivíduos generizados a través de procesos sociales identificables.
5
...lo masculino y lo femenino son categorias definidas por uma cultura, que no por uma necesidad
biológica.
6
(ciências humanas e sociais- compassivas, qualitativas) (SCHIENBINGER, 2001,
p.296).
Buscando elementos da nossa realidade que confirmassem ou não as reflexões
brevemente expostas até aqui, analisamos os 10 últimos processos seletivos para o
ingresso na Universidade Federal da Bahia6 registrando os percentuais de aprovação de
mulheres e homens e destacando as mulheres ingressas nas áreas das Ciências Exatas e
das Ciências Biológicas, respectivamente áreas I e II, no contexto da UFBA7.
Nossa análise se inicia na área das engenharias, que, segundo Melo (2006,
p.324), se caracteriza pelo fato de que as mulheres egressas estão escolhendo
“especializações mais próximas do estereótipo feminino e submetidas a “segregação
horizontal” dentro da carreira”. Seria possível pensar que as mulheres estão mais
envolvidas com projetos nos escritórios e os homens estão nas atividades de campo,
como no caso da Engenharia Civil, em obras? Questões como essas apontam para
investigações futuras já no campo profissional onde se inserem os egressos desses
cursos.
TABELA I – MULHERES INGRESSAS NO VESTIBULAR UFBA ÁREA I –10 ANOS
(percentuais em relação ao total de ingressos)
Arquit.
Eng. Civil
Eng. Min.
Eng. Elet.
Eng. Mec.
Eng. Quim.
Eng. Sanit.
Física
Geologia
Matemática
Ci. Comp.
Química
Estatística
Geofísica
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
61,67
21,78
26,67
15,00
3,75
32,50
40,00
12,00
32,00
25,00
14,29
47,50
27,50
13,33
60,00
11,88
16,67
11,25
1,25
33,75
25,00
18,00
28,00
23,33
8,57
40,00
47,50
26,67
68,33
16,88
16,00
12,50
10,00
42,50
50,00
8,00
24,00
25,00
15,49
43,75
37,50
26,67
64,17
20,62
14,00
12,50
6,25
35,00
50,00
12,00
28,00
23,33
10,00
47,50
40,00
6,67
65,83
20,00
10,00
6,25
5,00
37,50
42,50
20,00
26,00
23,33
10,00
36,25
47,50
20,00
63,33
16,25
18,00
9,88
11,25
42,50
52,50
8,00
34,00
20,00
11,25
51,25
42,50
20,00
70,00
22,78
20,00
17,78
10,00
36,67
57,78
10,00
30,00
33,33
15,56
52,50
54,35
3,33
68,33
25,56
24,00
12,22
5,56
34,44
42,22
22,00
28,00
26,67
14,44
47,50
47,62
20,00
68,33
28,33
30,00
15,56
10,00
40,00
51,11
30,00
30,00
41,67
10,00
61,25
57,89
20,00
2012
68,75
26,38
27,50
20,83
19,44
29,17
61,11
25,00
60,00
47,50
18,06
50,00
57,14
29,17
Fonte – Serviço de Seleção, Orientação e Avaliação – SSOA/UFBA, 2012
6
Vestibulares do ano de 2003 até o ano de 2012.
Agradecemos ao Serviço de Seleção, Orientação e Avaliação (SSOA) da UFBA, por gentilmente nos
ceder dados oficiais sobre os processos seletivos desta universidade entre os anos de 2003 até 2012.
7
7
Analisando a tabela I8 (acima), observamos que, de um modo geral, em todos os
cursos da área I houve um aumento no número de mulheres ingressas, embora tenham
ocorrido algumas oscilações em anos intermediários. Apesar deste aumento, há uma
relação de desigualdade visível e marcante que se traduz na predominância maior dos
homens em quase todos os cursos de engenharia, exceção na Engenharia Sanitária e
Ambiental. Um percentual mais marcante de desigualdade é observado no caso da
Engenharia Mecânica, que durante os 10 anos mantém a marca de domínio
majoritariamente dos homens, tendo em 2003, 96,25% de homens e em 2012, 80,56%.
No caso da Engenharia Sanitária e Ambiental, o percentual de homens e mulheres em
geral se manteve mais ou menos equilibrado, mas nos dois últimos anos (2011/2012) o
ingresso de mulheres superou o número de homens, criando uma expectativa de que
essa área passa a ter maiores “atrativos” para as mulheres. Uma suposição a ser
investigada: este curso pretende responder à urgência do “cuidar”, “manter” e
“proteger” o meio ambiente e as condições sanitárias básicas para a sobrevivência dos
indivíduos e do planeta. É curioso o fato de que estas características são historicamente
condições impostas e normatizadas como próprias das mulheres. Não necessariamente
de modo consciente, as mulheres estariam condicionadas ao cuidado, somando-se ao
fato concreto de que a engenharia sanitária guarda uma grande proximidade com as
Ciências Biológicas, campo já dominado pelas mulheres, pelo menos numericamente.
Um dado interessante emerge da tabela I: o único curso que durante os 10 anos
pesquisados manteve o número de mulheres maior que o de homens entre os ingressos
foi o curso de Arquitetura, que tem sido considerado um curso de preferência feminina.
Pode-se fazer algumas conjecturas: o curso de arquitetura abrange conteúdos na área de
Ciências Exatas e Ciências Humanas. A(o) profissional desta área deve conciliar
aspectos técnicos, históricos, culturais, estéticos e ambientais, de forma a proporcionar
uma melhor qualidade de vida as pessoas que irão viver nos espaços projetados.
Humanizar, tornar belos e úteis os ambientes é tarefa fundamental nesta área. Esses
aspectos subjetivos (beleza, estética, emoção), por serem considerados formadores
“naturais” das características femininas, talvez estejam direcionando as mulheres para
essa carreira.
8
Na tabela I estão os percentuais de mulheres ingressas nos vestibulares de 2003 até 2012 da UFBA para
os cursos da área I, que abrange os cursos de Arquitetura, Física, Geologia, Matemática, Ciência da
Computação, Química, Estatística, Geofísica e as Engenharias: Civil, Minas, Elétrica, Mecânica,
Química, Sanitária e Ambiental.
8
Alguns pesquisadores9 estudam as relações de gênero no ambiente de trabalho
de arquitetas e arquitetos / arquitetas e engenheiros. Segundo Lombardi (2011, p.21):
o “trabalho chato”, miúdo, picado e contínuo, invisível,
de organização, de contatos, de registros é
preferencialmente desenvolvido por elas porque a
maioria dos homens não o assumia de imediato e elas se
antecipavam em aceitá-los.
Ainda segundo Lombardi (2011), a mulher precisa sempre está provando sua
competência (isto ocorre em todas as áreas) porque sofre com uma vigilância
“silenciosa”, e muitas vezes quando demonstra autoridade são vistas como mulher
“braba” (uma característica dita masculina).
A vigilância masculina sobre o desempenho
profissional feminino se traduziu na necessidade de
provar constantemente o conhecimento técnico e na
adoção de uma maior firmeza para transmitir ordens,
formas de agir e falar interpretadas pejorativamente
como “brabeza” das mulheres. (LOMBARDI, 2011,
p.21)
O curso de arquitetura por ser considerado um curso feminino, provoca no
imaginário de algumas pessoas uma “desqualificação” para os homens que buscam esta
formação acadêmica. Em um estudo em que se analisou as relações de gênero entre
alunos e alunas em uma instituição de educação tecnológica brasileira (CARVALHO,
FEITOSA E SILVA, 2009), as autoras afirmaram:
Faz parte do padrão tradicional de masculinidade que os
homens devem estudar em cursos do universo
tecnológico que não sejam relacionados a atividades
artísticas. As opiniões dos entrevistados sobre os
rapazes que estão no curso de Artes Gráficas e Desenho
de Móveis revelaram que há um certo preconceito na
sociedade em geral a este respeito. Para alguns esta
maneira de pensar criou problemas até para ingressarem
nos cursos. Vimos que um deles chegou a mentir para a
mãe que estava fazendo vestibular para o curso de
Engenharia Civil e quando foi descoberto o seu
9
Maria Rosa Lombardi; Rosa Cristina Ferreira de Souza e Brigido Vizeu Camargo;
Marília Gomes de Carvalho, Samara Feitosa, Valter Cardoso da Silva.
9
verdadeiro curso teve que enfrentar a resistência dos
familiares. Outro, disse que o pai sentia-se constrangido
perante os amigos pelo fato do filho estar cursando
Artes Gráficas e não um curso “de homem”.
(CARVALHO, FEITOSA E SILVA, 2009, p.131)
Como se pode ver, as escolhas profissionais são profundamente marcadas pelas
representações sobre ser mulher ou ser homem, havendo claramente uma associação
entre determinadas profissões e o gênero. O caso de Arquitetura é especialmente
interessante, por se tratar de um curso situado na área das Ciências Exatas; pode-se
inferir que, neste caso, os aspectos “artísticos” associados à profissão superam, em
importância, os preconceitos quanto á inadequação técnica ou mesmo cognitiva,
colocando as mulheres em vantagem e os homens “sob suspeita” quanto à
masculinidade.
A Física e a Geofísica continuam, em geral, mantendo as mulheres num nível
maior de afastamento.
Segundo Schienbinger (2001), a Física é considerada uma
ciência extremamente “hard”, que trata e lida com coisas e empregam muita
matemática, não há envolvimento com emoções.
Esses fatores aliados aos
condicionamentos culturais e sociais podem estar contribuindo para afastar as mulheres
desta carreira.
O curso de Geologia que mantinha uma tradição de ingresso maior de homens
aparece em 2012 com um percentual maior de mulheres (60%), o mesmo ocorrendo
com o curso de Estatística, no qual a entrada de mulheres vem aumentando
progressivamente, inclusive atingindo percentuais relativamente próximos para os dois
sexos, sendo que as mulheres vêm superando a entrada dos homens nos dois últimos
anos. Análises quantitativas e qualitativas devem ser realizadas nos próximos anos para
a verificação desta tendência.
O curso de Ciência da Computação mantém-se com o predomínio dos homens.
Houve alguns períodos com uma baixa mais acentuada no número de mulheres no
curso, mas aparentemente, evidencia-se que o percentual continua variando em relação
às mulheres entre 15% e 18%.
O curso de Matemática, apesar de também apresentar um aumento em relação às
mulheres, continua basicamente mantendo a predominância masculina, apesar de em
2011 e 2012 a diferença percentual ter diminuído consideravelmente.
Esta mudança
10
pode significar uma feminização do curso, o que seria um retorno às origens, vez que o
Instituto de Matemática da Universidade Federal da Bahia, desde sua fundação, sempre
foi um reduto feminino, contrariando todas as representações sociais sobre a
inadequação das mulheres para o pensamento matemático. No entanto, é importante ter
em mente que o curso tem duas habilitações: Licenciatura e Bacharelado. As mulheres
podem estar interessadas no exercício da profissão docente, o que corresponde à
expectativa social de profissionalização feminina. Uma investigação futura junto aos
discentes do curso deve apontar para as escolhas de homens e mulheres para as duas
habilitações, sendo interessante ouvir depoimentos que apresentem as razões para essas
escolhas.
Não há dados que nos permitam afirmar que há uma destinação consciente dos
cursos na área das Ciências Exatas para os homens e que a exclusão das mulheres é
explícita e determinada por fatores conhecidos. Concordamos com Cabral (2005, p.5),
para quem as mulheres continuam sofrendo com as barreiras invisíveis que afetam suas
trajetórias profissionais:
Hoje, não há restrições aparentes para o seu acesso aos sistemas
educacionais, mas ergue-se uma série de outras barreiras que
restringem sua participação na produção do conhecimento
científico e tecnológico, hierárquica e territorialmente, num
universo androcêntrico de pesquisa e trabalho.
A segunda tabela apresentada a seguir sistematiza os dados coletados quanto ao
ingresso de homens e mulheres para os cursos da área II. Analisando-se a tabela II10
(abaixo), observa-se que há uma maior concentração das mulheres em quase todos os
cursos, exceto para os cursos de Medicina e Oceanografia, durante os 10 anos
analisados. Sendo a área II voltada para as Ciências Biológicas e Ciências da Saúde,
pode-se inferir que se mantém a demarcação sobre as mulheres para o “processo
naturalizado do cuidar”, ou seja, as mulheres continuam sendo vistas como detentoras
das habilidades do cuidado em relação à saúde do corpo, da mente, das plantas, dos
animais, enfim o cuidado e dedicação para com o outro.
10
Na tabela II estão os percentuais de mulheres ingressas nos vestibulares de 2003 até 2012 da UFBA
para os cursos de: Biologia, Enfermagem, Farmácia, Fonoaudiologia, Licenciatura em Ciências,
Medicina, Veterinária, Nutrição, Oceanografia, Odontologia, Zootecnia.
11
TABELA II – MULHERES INGRESSAS NO VESTIBULAR UFBA ÁREA II –10 ANOS
(percentuais em relação ao total de ingressos)
2003
50
83,75
64,17
90
85
45
68,18
92,5
2004
57,18
87,5
58,33
83,33
78,33
38,75
58,18
90
20
60,83
2005
57,78
81,25
60
80
78,33
46,25
60,91
93,75
24
57,5
16,67
2006
56,04
79,01
65,83
93,33
66,67
39,13
53,64
93,75
32
55
70
2007
57,78
77,5
68,33
90
61,67
36,25
55,45
92,5
24
55
30
2008
52,22
81,25
60,83
96,67
68,33
35,8
59,09
88,75
44
66,67
40
2009
63,74
81
71,63
88,33
75
40,74
64,67
95
40
61,67
46,94
2010
60
86
67,14
91,67
62,96
40,12
63,58
83
53,33
67,5
56,67
2011
56,67
87
70,71
86,67
75,44
45,06
69,33
91
40
75
66,67
2012
65,28
88,75
65,18
87,5
64,29
46,15
75
90
70,83
67,35
75
Biologia
Enferm.
Farmacia
Fonoaud.
Lic. Ciên.
Medicina
Veter.
Nutrição
Oceonog.11
63,33
Odonto
12
Zootec.
Fonte – Serviço de Seleção, Orientação e Avaliação – SSOA/UFBA, 2012
Esses dados corroboram a afirmação de Melo (2006, p.318):
[...] mulheres e homens não fazem a mesma trajetória do ponto de vista
das carreiras científicas. O sexo feminino ainda permanece marcado
pelo estereótipo do papel dos “cuidados”, escolhem as áreas vinculadas
à educação, saúde e a assistência social.
Os cursos de Enfermagem, Fonoaudiologia e Nutrição chamam a atenção pelo
fato de manterem nestes 10 anos uma concentração de mulheres superior a 80% em
relação aos homens. O que tem atraído tanto as mulheres para esses cursos? Como já
observamos anteriormente, a pretensa relação da mulher com o cuidar, indica o quanto
as representações sociais dominantes na sociedade patriarcal estão sendo cristalizadas e
aceitas de forma “natural” e condicionando socialmente e culturalmente as mulheres a
seguirem áreas de estudo e posturas consideradas socialmente mais adequadas para o
seu sexo.
O curso de Enfermagem tradicionalmente mantém a característica de ser “um
curso feminino” e essa concepção ganha força devido à representação social já
naturalizada na sociedade que determina as funções do médico e da enfermeira como
sendo: o médico “trata” e a enfermeira “cuida” do paciente. Associa-se então nesta
área, a ideia de Mulher-Mãe- Cuidadora.
11
12
O curso de Oceanografia foi criado em 2004.
O curso de Zootecnia foi criado em 2005.
12
Naturalização maior ainda ocorre com o curso de Nutrição, por se tratar de um
curso que lida com alimentação.
Esse curso é tradicionalmente visto como uma
extensão da atividade doméstica, portanto, “um curso próprio para as mulheres”.
A evolução dos números observada no curso de Licenciatura em Ciências
acompanha uma tendência já observada em outros estudos (SILVA, 2005; FERREIRA,
2008; EUGÊNIO, 2010; PIZZI, SILVA e OLIVEIRA, 2010), o aumento da presença
masculina no Ensino Fundamental – espaço tradicionalmente ocupado por mulheres. A
presença masculina neste curso, em 2003, correspondia a 15% do total de ingressos,
contra 85% de mulheres; já em 2012, as mulheres correspondem a 64,29% contra
35,71% de homens.
Em termos gerais, no contexto do meio acadêmico, como entre pesquisadoras e
pesquisadores das universidades no Brasil, os dados numéricos podem dar uma falsa
ideia de que as assimetrias de gênero vêm se diluindo ao longo do tempo mas, apesar da
presença cada vez maior de mulheres nas universidades, elas ainda continuam
enfrentando os estereótipos de gênero construídos em relação às suas capacidades e ao
seu fazer cientifico. Um exemplo de que os números não revelam tudo é um fenômeno
intrigante nos cursos de Medicina; em todo o Brasil, esses cursos comportam um grande
número de mulheres (em algumas universidades elas já são maioria), mas dados ainda
em estudo e, portanto, inconclusivos, apontam para assimetrias de gênero entre as
especialidades: um expressivo número de mulheres ainda buscam as especializações
associadas ao cuidado de crianças e mulheres (Pediatria, Ginecologia), enquanto o
número de cirurgiãs, por exemplo, continua baixo em relação ao número de homens que
escolhem a Cirurgia como especialidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando as ideias apresentadas neste texto, vemos que dentro da
Matemática, como campo de construção de conhecimento, as mulheres matemáticas são
envolvidas pelo pensamento essencialista e biologizante que reafirma uma pretensa
incapacidade de abstração lógica, criando barreiras invisíveis que dificultam a entrada, a
permanência e o reconhecimento da capacidade de produção intelectual das mulheres
neste campo.
Esta percepção é reforçada a partir do reconhecimento do poder
patriarcal que está localizado dentro desta esfera, que condiciona as mulheres a papéis
secundários em relação aos homens. Os dados do estudo que apresentamos neste artigo
13
reafirmam as assimetrias de gênero entre os cursos das áreas das Exatas e Biomédicas,
sugerindo que os antigos estereótipos sobre as habilidades cognitivas das mulheres
permanecem, de maneira sutil, encaminhando as jovens para aqueles cursos mais
voltados para o cuidado, afastando-as das áreas associadas à racionalidade e à
objetividade.
O pensamento de Saffioti (2009) reforça este ponto de vista, permitindo a
identificação de uma necessidade, de uma reconciliação não essencialista entre o
orgânico e social. A articulação cultural e cientifica que socializa as mulheres como
biologicamente inaptas ao campo do pensamento lógico, utiliza-se da construção do
corpo da mulher para subordiná-la a instâncias especificas do campo do conhecimento.
Neste caso, podemos sinalizar que para as mulheres no campo da matemática reservouse a docência em detrimento de sua participação na produção de conhecimento, campo
este ocupado pelos homens.
Todo esse quadro se traduz na urgência com que a Universidade e os setores
educacionais devem investir em políticas de incentivo para que mais mulheres possam
ingressar nos cursos de predominância atual masculina, e que além de ingressar possam
manter uma carreira com o mesmo nível de desenvolvimento que os homens.
É necessária e urgente a produção de conhecimento que associe Gênero, Ciência
e Tecnologia, no sentido de discutir e analisar as assimetrias de gênero no campo
científico e contribuir, através de ampla divulgação da produção científica na área, para
a desmistificação de uma imagem estereotipada das mulheres em relação às ciências
ditas duras, em especial a Matemática, que ainda permanece como um campo
masculino, cujo acesso é sutilmente dificultado para as mulheres, com base naquilo que
Cordelia Fine chama de delusions of gender; são absolutamente ilusórias as bases
biológicas ou naturais das diferenças entre mulheres e homens no campo cognitivo,
explicáveis apenas pelos condicionamentos sociais que desde muito cedo atuam de
modo diferenciado sobre meninos e meninas em desenvolvimento, definindo, inclusive
os destinos profissionais de jovens.
Gender and mathematics in the same equation: possible implications in
career choices.
14
ABSTRACT
A moment especially susceptible to the influences of gender stereotypes is one in which
young women choose their careers; at that time all cultural constructions that have
been imposed by the patriarchal society is present. Girls, from a very early age, are
"trained" for not feeling suited to the study of abstractions and for tasks with spatial
sense; assimilate the taste for tasks of care, serve or reading. Boys, instead, are
considered as rational, objective, abstract, are encouraged to rational games involving
logical and abstract thinking. Most men still following careers in different fields
associated with careers on "hard" sciences while women are attracted to careers that
supposedly would require of them mainly the functions of care in relation to the “soft”
sciences - human and social ones. To find out elements of our reality that confirm or not
these reflections, we analyzed the 10 recent selection processes for entry into the
Federal University of Bahia, registering approval percentages of men and women and
highlighting the areas of exact sciences and biological sciences, respectively the areas I
and II, in the context of the UFBA. Data reaffirm gender asymmetries between the
courses of exact and biomedical areas, suggesting that the old stereotypes on the
cognitive skills of women remain, subtly, forwarding the youths for those courses geared
to the care, away from areas that are associated with the rationality and objectivity.
Keywords: Gender. Mathematics. Career Choices.
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