o saxofone de nivaldo ornelas e seus arredores

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CLA – CENTRO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA - DOUTORADO
O SAXOFONE DE NIVALDO ORNELAS E SEUS ARREDORES:
INVESTIGAÇÃO E ANÁLISE DE CARACTERÍSTICAS MUSICAIS
HÍBRIDAS EM SUA OBRA E INTERPRETAÇÃO
BERNARDO VESCOVI FABRIS
RIO DE JANEIRO, 2010
O SAXOFONE DE NIVALDO ORNELAS E SEUS ARREDORES:
INVESTIGAÇÃO E ANÁLISE DE CARACTERÍSTICAS MUSICAIS
HÍBRIDAS EM SUA OBRA E INTERPRETAÇÃO
por
BERNARDO VESCOVI FABRIS
Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Música do Centro de Letras e Artes da
UNIRIO, como requisito parcial para a obtenção
do grau de Doutor, sob orientação do Professor
Dr. Luiz Otávio Rendeiro Corrêa Braga.
RIO DE JANEIRO, 2010
F797
Fabris, Bernardo Vescovi.
O saxofone de Nivaldo Ornelas e seus arredores : investigação
e análise de características musicais híbridas em sua obra e interpretação / Bernardo Vescovi Fabris, 2010.
297f. + 2CD-ROM
Orientador: Luiz Otávio Rendeiro Corrêa Braga.
Tese (Doutorado em Música) – Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
1. Ornelas, Nivaldo, 1941-. 2. Música popular – Brasil – História e critica. 3. Música instrumental – Brasil. 4. Saxofone. 5. Hidridismo (Arte). 5. Música – Análise, apreciação. 6. Música - Interpretação (Fraseado, dinâmica, etc.). 7. Improvisão (Música). I. Braga,
Luiz Otávio Rendeiro Corrêa. II. Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (2003-). Centro de Letras e Artes. Curso de Doutorado
em Música. III. Título.
CDD – 780.420981
Catalogado na fonte por Isabel Grau
Autorizo a cópia da minha tese “O Saxofone de Nivaldo Ornelas e Seus Arredores:
Investigação e Análise de Características Musicais Híbridas em Sua Obra e Interpretação”,
para fins didáticos.
..............................................................................................
ii
iii
O SAXOFONE DE NIVALDO ORNELAS E SEUS ARREDORES:
INVESTIGAÇÃO E ANÁLISE DE CARACTERÍSTICAS MUSICAIS
HÍBRIDAS EM SUA OBRA E INTERPRETAÇÃO
Dedico este trabalho à minha esposa e meus filhos.
iv
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente à minha esposa, Cristiane de Almeida Peretti, por todo apoio,
paciência, companheirismo e amor devotados. A meus filhos Vicente Peretti Fabris e Manuela
Peretti Fabris, por virem ao mundo no momento em que eu mais precisei de esperança e
alegria, e por reafirmarem esses sentimentos constantemente em minha vida. A toda minha
família, meu pai Valério Antonio Fabris, minha mãe, Tânia Maria Vescovi, minha irmã, Paula
Vescovi Fabris, à Margarida de Almeida; à minha família carioca, meus tios Antonio Carlos
Campos e Sônia Isabel Fabris Campos; meus primos Lígia e seu marido Guilherme; Vítor;
Antonio e João Pedro; à Gracinha e logicamente, ao Togo, por sempre me receberem com
profundo entusiasmo e carinho em sua casa, me adotando e tendo vivido cada momento destes
últimos anos de maneira tão intensa.
A Nivaldo Ornelas, por sua imensa generosidade, disponibilidade e talento,
possibilitando que esta tese se tornasse um sonho viável. Ao meu orientador, Luiz Otávio
Braga, por sua contribuição intelectual, amizade e confiança; à Lúcia Barrenechea, a quem
recebi as primeiras orientações e a quem, sem dúvida alguma, devo boa parte dos avanços aqui
obtidos; bem como aos demais membros da banca Antonio Rafael Carvalho dos Santos;
Marcos Vinício Nogueira e Nadge Naira Álvares Breide pela imensa competência e
comentários preciosos para o melhoramento deste estudo. Agradeço também aos professores
do PPGM com os quais pude conviver, Laura Rónai; Naílson de Almeida Simões; Elizaberth
Travassos; Carole Gubernikoff; Sílvio Augusto Mehry; Luiz Paulo Sampaio, Martha Ulhôa e
Maurício Freire (UFMG). Aos funcionários da secretaria do PPGM, em nome especialmente
do sr. Aristides, bem como a Gilson pela arregimentação dos equipamentos necessários para a
realização do recital e defesa. Aos colegas doutorandos, pelas ricas conversas e os prolíficos
almoços no Círculo Militar. Aos colegas do Departamento de Música da Universidade Federal
de Ouro Preto, pela compreensão e apoio para que eu pudesse encerrar minha pesquisa.
v
Agradeço ainda aos músicos que participaram e contribuíram com extrema
generosidade e talento para a realização do recital de defesa, são eles Alexandre Souza;
Augusto Mattoso, Vítor Gonçalves e Di Stéffano. A Fábio Adour da Camara pelo auxílio nas
transcrições para violão em Ninfas e pela recomendadíssima bibliografia. A Néstor Lombida
Hunt, por seus conselhos musicais e de vida. A Afonso Cláudio de Figueiredo e Marco Túlio
de Paula Pinto pelas indicações de músicos e ao acesso a partituras do autor, fundamentais
para o encaminhamento dessa empreitada. A Dílson Florêncio, pelas sempre prestativas e
lúcidas colocações. A todos os companheiros de música com os quais nos últimos quinze anos
tenho convivido e exercido o ofício musical. A todos, meus sinceros agradecimentos.
vi
Caminho por uma rua
Que passa em muitos países
Se não me vêem, eu vejo
E saúdo velhos amigos
Trecho do poema Canção Amiga de Carlos Drummond de Andrade
vii
FABRIS, Bernardo Vescovi; O Saxofone de Nivaldo Ornelas e Seus Arredores: investigação e
análise de características musicais híbridas em sua obra e interpretação. 2010. (Doutorado
em Música) - Programa de Pós-Graduação em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
RESUMO
Este estudo é dedicado à investigação e análise de características musicais híbridas presentes
em composições e solos improvisados realizados pelo saxofonista Nivaldo Ornelas,
identificadas através do procedimento de transcrição musical. São discutidos aspectos da
formação musical do saxofonista e das referências cruzadas representadas pelos universos
rural, suburbano e urbano da cidade de Belo Horizonte e arredores, avaliando suas implicações
nos processos criativo e interpretativo do autor sob a luz da teoria da hibridação cultural
proposta por Nestor Garcia Canclini. São ainda ponderadas as estratégias utilizadas pelo
intéprete com fins para o desenvolvimento técnico-musical no saxofone, demonstrando sua
contribuição tanto para a modalidade música instrumental quanto para a consolidação do
saxofone moderno brasileiro.
Plavras-chave: Nivaldo Ornelas -Hibridação -Música Instrumental - Saxofone
viii
FABRIS, Bernardo Vescovi; The Saxophone of Nivaldo Ornelas and its Surroundings:
imvestigation and analysis of hybrid musical characteristics in his work and performance.
2010. PhD Thesis (Doutorado em Música) - Programa de Pós-Graduação em Música, Centro
de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
ABSTRACT
This study aims to investigate and analyse hybrid musical features present in compositions and
improvised solos performed by the Brazilian saxophonist Nivaldo Ornelas, identified through
the musical transcription procedure. This text discusses Nivaldo Ornelas’ musical origins and
the crossovered musical references of his work represented by the rural, suburban and urban
universes of the city of Belo Horizonte and its surroundings, evaluating its consequences
trough both creative and performing processes observed under the theory of cultural
hybridization proposed by Néstor Garcia Canclini. This study also argues the strategies used
by the interpreter for developing technical musical skills on the saxophone, demonstrating his
contribution both for the Brazilian jazz musical modality as for the consolidation of the
Brazilian modern saxophone.
Key-words: Nivaldo Ornelas – Hybridization – Brazilian Jazz - Saxophone
ix
SUMÁRIO
Página
LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS.......................................................................................xii
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................01
CAPÍTULO I – CARREIRA E DISCOGRAFIA......................................................................12
1.1Início de Carreira
1.2A Dicotomia Auctor / Lector e o Desenvolvimento da Carreira de Autor
1.3 Das Trilogias
1.3.1 Portal dos Anjos (1978)
1.3.2 À Tarde (1982)
1.3.3 Colheita do Trigo (1990)
1.3.4 Arredores (1998)
1.3.5 Fogo e Ouro (2009)
CAPÍTULO II – ANÁLISES.....................................................................................................42
2.1 Nos Arredores da Cidade: A Nova Lima Inglesa
2.2 Nova Suíssa, Sábado à Tarde: A Canção Sem Palavras
2.3 O Rock Novo de Nivaldo Ornelas
2.4 Ninfas: O Encontro dos Opostos
CAPÍTULO III - ASPECTOS TÉCNICO-INTERPRETATIVOS EM NIVALDO
ORNELAS..............................................................................................................................111
3.1 O Híbrido na Prática do Saxofone: Questões Técnicas e de Idiomatismo
3.1.1 As Escolas de Saxofone e Aspectos Estilísticos de Sonoridade
3.1.1.1 A Sonoridade do Saxofone na Música Brasileira
3.1.2 Da Articulação no Saxofone em Ornelas
3.2 Escolhas Rítmico-Melódicas em Improvisos de Nivaldo Ornelas
CONSIDERAÇÕESFINAIS....................................................................................................169
REFERÊNCIAS.......................................................................................................................172
ANEXOS.................................................................................................................................177
ANEXO 1 (Transcrições)
1. Grade de Nova Lima Inglesa
2. Grade de Rock Novo
3. Grade de Nova Suíssa, Sábado à Tarde
4. Grade de Ninfas
5. Leadsheet de Nova Lima Inglesa
6. Leadsheet de Rock Novo
x
7. Leadsheet de Nova Suíssa, Sábado à Tarde
8. Leadsheet de Ninfas
9. Solo em Nova Lima Inglesa
10. Solo em Rock Novo
11. Solo em Ninfas
12. Solo em Bons Amigos
13. Solo em Cuerpo y Alma
14. Solo em Forró em Santo André
15. Solo em From the Lonely Afternoons
16. Solo em Ponta de Areia
17. Solo em Vôo dos Urubus
ANEXO 2 – CD com transcrições de entrevistas (Arquivo PDF)
ANEXO 3-CD de exemplos musicais
Faixa 1 – Nova Lima Inglesa
Faixa 2 – Nova Suissa, Sábado à Tarde
Faixa 3 – Rock Novo
Faixa 4 – Ninfas
Faixa 5 – Bons Amigos
Faixa 6 – Cuerpo y Alma
Faixa 7 – Forró em Santo André
Faixa 8 – From the Lonely Afternoons
Faixa 9 – Ponta de Areia
Faixa 10 – Vôo dos Urubus
xi
LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS
Exemplo musical 1:. Início de Fé Cega, Faca Amolada, partes de voz e saxofone
soprano realizado por Nivaldo Ornelas.
Pg.
20
Exemplo musical 2:. c. 1- 4, Primeiro membro de frase do tema principal da seção
A
54
Exemplo musical 3:.c. 5-9, Segundo membro de frase da seção A
54
Exemplo musical 4:. Melodia de Calix Bento transcrita a partir da versão presente
no disco Geraes de Milton Nascimento, 1976.
55
Exemplo musical 5:. Melodia de Acorda Nego do Congado do Jatobá
56
Exemplo musical 6:. c. 14-17, Seção B de Nova Lima Inglesa com o uso da
técnica de marcha harmônica
56
Exemplo musical 7: Simulação de marcha harmônica seguindo o modelo
apresentado em Nova Lima Inglesa
57
Exemplo musical 8: . Mesmo trecho citado anteriormente, mas agora com a
indicação da harmonia do trecho.
57
Exemplo musical 9: c, 17-21, Seção B de Nova Lima Inglesa
58
Exemplo musical 10: Disposição dos acordes de G/B e A7/C# utilizados em Nova
Lima Inglesa
59
Exemplo musical 11: Disposição do acorde de G/B no braço do violão
60
Exemplo musical 12: Disposição do acorde de A7/C# no braço do violão
60
Exemplo musical 13: Disposição das notas nas afinações para viola de 10 cordas
Cebolão e Rio Abaixo, respectivamente.
61
Exemplo musical 14. Trecho de acompanhamento de chocalho e caixa em Folia do
Sul de Minas
63
Exemplo musical 15. c. 26-27, Figuras de colcheias pontuadas seguidas de
semicolcheias no tema de Nova Lima Inglesa
64
Exemplo musical 16. c. 28 -30, síncopes e figuras de colcheia pontuada e
semicolcheia em Nova Lima Inglesa
64
Exemplo musical 17. c. 2- 13, Seção A do tema: Exposição.
64
Exemplo musical 18. c. 24-35, Seção A' do tema: Re-exposição.
65
Exemplo musical 19: c. 66-68, Trecho da terceira Ponte realizada pela flauta e
65
xii
instrumentos harmônicos e que precede a seção de chorus em Nova Lima Inglesa.
Exemplo musical 20. Acompanhamento de viola realizado no mesmo trecho
exposto no exemplo 19 durante ponte em Nova Lima Inglesa
65
Exemplo musical 21: Trecho da Toada de Entrada da Folia do Mestre Célio de Rio
Pomba, recolhida por Marcelo de Castro Lopes, linhas de cavaquinho e viola.
66
Exemplo musical 22: Levada de bateria realizada por Robertinho Silva em ponte
de Nova Lima Inglesa, c 66-67.
66
Exemplo musical 23: Seção de caixas em Quero Agradecer Sua Mesa Santa –
Marcha Dobrada – Recolhida por Glaura Lucas.
66
Exemplo musical 24: Livre adaptação do toque de caixas em Quero Agradecer Sua
Mesa Santa para compasso ternário simples
67
Exemplo musical 25: c.21-24: Primeira ponte entre a exposição e reexposição do
tema de Nova Lima Inglesa.
67
Exemplo musical 26: c.45-50: Segunda ponte presente em Nova Lima Inglesa.
68
Exemplo musical 27: c. 45-47: Desenvolvimento da ponte.
68
Exemplo musical 28: c. 47-50: Repetição de motivo da primeira ponte.
68
Exemplo musical 29: Melodia de Amo-te Muito de João Chaves, possivelmente
composta durante os anos 1950.
73
Exemplo musical 30: A Ti Flor do Céu, de Teodomiro Pereira e Modesto Ferreira,
outra composição do cancioneiro das Serestas em Minas Gerais da primeira
metade do século XX.
74
Exemplo musical 31: O Peixe Vivo, do folclore mineiro e famosa em todo Brasil
por ter sido uma das canções favoritas de JK.
74
Exemplo musical 32. c. 1-4 de Nova Suissa Sábado à Tarde, partes de saxofone
tenor e piano, com realização o baixo na mão esquerda.
75
Exemplo Musical 33: Primeiros 4 compassos de Nova Suissa, Sábado à Tarde
apresentando cifragem do autor.
76
Exemplo musical 34: c. 26-29 Exposição do tema da Seção B realizada pelo coro
em Nova Suissa Sábado à Tarde
77
Exemplo musical 35: c.35-39 Re-Exposição do tema da Seção B de Nova Suissa
Sábado à Tarde realizado ao Saxofone Tenor.
77
Exemplo musical 36: Linhas de Piano e Baixo durante tema da Seção B de Nova
Suissa Sábado à Tarde
78
xiii
Exemplo musical 37: Exemplo de acompanhamento da modinha para o violão de 7
cordas segundo Luiz Otávio Braga.
78
Exemplo musical 38: Ostinato reduzido da modinha, resultando na polca brasileira.
79
Exemplo musical 39: Através da ligadura da semínima com a primeira colcheia do
segundo tempo obtêm-se o ostinato tipo de habanera.
79
Exemplo musical 40: Baixo arpejado utilizado na Habanera.
79
Exemplo musical 41: Trecho de Tú, Habanera composta por Eduardo Sánchez de
Fuentes.
80
Exemplo musical 42: c.27-30: linha de baixo de Nova Suissa Sábado à tarde, os
compassos 29 e 30 apresentam um desenho próximo ao do tradição das ditas
serestas.
80
Exemplo musical 43: Realização do baixo de Nova Suissa, Sábado À Tarde com
variação da linha de baixo próxima à realização sugerida por Luiz Otávio Braga no
violão de 7 cordas.
81
Exemplo musical 44: c.35-39, Tema da Seção B de Nova Suissa Sábado à Tarde.
82
Exemplo musical 45: c.39 – 43 Variação do Tema da Seção B de Nova Suíssa
Sábado à Tarde.
82
Exemplo musical 46: c. 45-53. Primeiros 9 compassos da terceira variação
estendida da Seção B, desta vez com variações melódica e harmônica.
82
Exemplo musical 47:.c.32-35, Dobra da linha de Vozes e Piano em Ponte de Nova
Suissa, Sábado À Tarde.
84
Exemplo musical 48: c. 9-16: exposição do tema de Rock Novo, a melodia é toda
baseada nas notas fá sustenido e lá, respectivamente terça e quinta do acorde de D.
91
Exemplo musical 49: c. 33 – 36: notas Si Bemol, décimas terceiras menores do
acorde de D7(b13)
91
Exemplo musical 50: c.25-28, Uso do modo Dórico em Rock Novo.
.
Exemplo musical 51: Ostinato Rítmico Simplificado realizado por Alex Acuña em
Birdland: vale ressaltar que a linha de bumbo (voz inferior) é realizada com
bastante liberdade rítmica que neste exemplo é apenas ilustrado.
92
94
Exemplo musical 52: Ostinato realizado pelo baterista Rubinho na seção A de Rock
Novo.
94
Exemplo musical 53: Ostinato realizado pelo baterista Rubinho na seção B de Rock
Novo.
94
xiv
Exemplo musical 54: Riff de saxofones alto e tenor realizados por Julian
“Cannonball” Adderley e John Coltrane no disco de Miles Davis Kimd of Blue
durante a música All Blues
.
Exemplo musical 55: Riff de Rock Novo presente no disco Colheita do Trigo na
parte de teclado realizada por Pierre Luc.
95
95
Exemplo musical 56: c.1-4 do tema da seção A1 de Ninfas.
101
Exemplo musical 57: c. 5-8: Primeira Variação do tema da seção A de Ninfas
transposto meio tom acima.
101
Exemplo musical 58: c. 9-14: Primeiros seis compassos da segunda variação do
tema da seção A de Ninfas, desta vez com variação temática a partir do compasso
10.
101
Exemplo musical 59: Uso do diminuto auxiliar em Super-Homem a Canção de
Gilberto Gil.
102
Exemplo musical 60: Exemplo dado ao diminuto auxiliar por Chediak.
103
Exemplo musical 61: Exemplo de diminuto auxiliar com sugestão de correção
103
Exemplo musical 62: Escala de Mi Bemol Menor Harmônica com o sétimo grau
aumentado, nota ré natural.
104
Exemplo musical 63: Trecho de Eu Te Amo de Antonio Carlos Jobim. Note-se o
uso melódico de sétimas maiores sobre acordes maiores com sétima menor.
105
Exemplo musical 64: c.47 – 48 de Ninfas, primeiro motivo da seção B tocado por
Nivaldo Ornelas no Saxofone Tenor.
107
Exemplo musical 65: Anacruse do tema de Harlem Nocturne de Earle Hagen.
107
Exemplo musical 66: Primeiros 5 compassos de In A Sentimental Mood de Duke
Ellington.
108
Exemplo musical 67: Trecho inicial de Uma Opinião, composição de Nivaldo
Ornelas. Note-se a forte presença de pitch bends, glissandos e vibratos no que
poderia ser uma referência a características interpretativas alusivas ao estilo de
Johnny Hodges.
118
Exemplo musical 68: c. 73 -78, Trecho de solo de Nova Lima Inglesa no qual o
intérprete utiliza articulações de língua e notas ligadas.
132
Exemplo musical 69: c. 82-86, Outro fragmento do solo de Ornelas em Nova Lima
Inglesa: Uso de articulação de língua em diferentes combinações rítmicas.
132
Exemplo musical 70: Trecho de solo de Ornelas no saxofone tenor em From The
132
xv
Lonely Afternoons presente no disco Diamond Land (1986).
Exemplo musical 71: Trecho de solo de Nivaldo Ornelas no saxofone soprano
realizado na música Bons Amigos.
134
Exemplo musical 72: Trecho de solo de Nivaldo Ornelas na música From the
Lonely Afternoons no disco Diamond Land de Toninho Horta.
134
Exemplo musical 73: Uso de ghost notes em trecho de solo de John Coltrane na
música Moment’s Notice, do disco Blue Train de 1957.
135
Exemplo musical 74: c. 85 – 86 de Ninfas, note-se uso de notas acentuadas,
tenutos e staccato.
136
Exemplo musical 75: Uso de vibratos por Ornelas na música Nova Lima Inglesa,
gravação de 1990.
137
Exemplo musical 76: Trecho de solo de Nivaldo Ornelas no saxofone tenor durante
a música Forró em Santo André, presente no disco Montreaux Jazz Festival e
Hermeto Pascoal: note-se o uso de notas longas sem a aplicação de vibtratos
.
Exemplo musical 77: Uso de subtone na gravação de Bons Amogos, de 1980.
137
138
Exemplo musical 78: Uso de subtone, notas fá do c. 47 e c.49, em Ninfas, gravação
realizada em 1978.
138
Exemplo musical 79: Outro uso de subtone na música Ninfas. Nota mi c.53.
138
Exemplo musical 80: Identificação de pitch bends na gravação de Ninfas.
139
Exemplo musical 81: Uso de apojaturas ascendentes durante solo de Nivaldo
Ornelas em Forró em Santo André
.
Exemplo musical 82: Realização de mordente ascendente e de tempo irregular em
Bons Amigos.
139
Exemplo musical 83: Ornamentos em Nova Suissa Sábado à Tarde gravada em
1982. Da esquerda para a direita; o primeiro se refere a um grupeto escrito, por
apresentar maior regularidade rítmica, o segundo se trata de um mordente
ascendente e o último uma apojatura ascendente.
140
Exemplo musical 84: Trecho da música Baião de Luiz Gonzaga e Hunberto
Teixeira.
142
Exemplo musical 85: Uso de padrão melódico arpejado no modo mixolídioem
improviso de Nivaldo Ornelas durante a música Rock Novo.
142
Exemplo musical 86: Melodia do tema de Rock Novo, seção A.
143
Exemplo musical 87: c. 115-118: trecho do solo de Ornelas sobre o acorde de F
143
xvi
140
Exemplo musical 88: c. 115 – 116: primeiro membro de frase e c. 117-118:
segundo membro de frase
143
Exemplo musical 89: c 21 – 24: trecho da melodia de Rock Novo, seção B’.
143
Exemplo musical 90.c. 119 – 122: desenvolvimento melódico do trecho sobre
acorde de Fm.
143
Exemplo musical 91: a) c.119: primeiro membro de frase.
143
__________________b) c. 120: segundo membro de frase.
144
__________________c) c. 121: terceiro membro de frase.
144
Exemplo musical 92: c. 121 – 124: desenvolvimento melódico em duas frases de
dois compassos.
144
Exemplo musical 93: a) c. 121 – 122: frase pergunta,.
144
__________________b) c. 123-124: frase resposta
144
Exemplo musical 94: a) . 115 – 116: primeira variação do tema.
144
__________________b) c. 119: variação do “novo tema” com redução rítmica da
melodia e modulação
145
__________________c) c. 123-124: desenvolvimento da variação melódica
145
Exemplo musical 95: Introdução de saxofone soprano da música Cuerpo y Alma.
145
Exermplo musical 96: c. 1-2: primeiro membro de frase da introdução de Cuerpo y
Alma.
146
Exemplo musical 97: c. 38-40: desenvolvimento melódico a partir do motivo da
introdução durante o chorus realizado no saxofone soprano.
146
Exemplo musical 98: c. 3-5: segundo membro de frase da introdução de Cuerpo y
Alma.
146
Exemplo musical 99: Desenvolvimento melódico do segundo membro de frase da
introdução durante solo de Ornelas.
146
Exemplo musical 100: Intervalos de quarta entre as notas Mi e Si no primeiro
membro de frase do solo de Cuerpo y Alma.
147
Exemplo musical 101: Intervalo de quartas entre as notas sol e ré com
desenvolvimento melódico no segundo membro de frase do solo de Cuerpo y
Alma.
147
Exemplo musical 102: Trecho arpejado no solo de Rock Novo (1990).
147
xvii
Exemplo musical 103: Trecho arpejado no solo de Cuerpo y Alma (1997).
147
Exemplo musical 104: 2º trecho com arpejos no desfecho do solo de Cuerpo y
Alma.
147
Exemplo musical 105: Uso de padrão rítmico-melódico em improviso de Nivaldo
Ornelas na música From the Lonely Afternoons.
148
Exemplo musical 106: Melodia cifrada de Ponta de Areia de Milton Nascimento
148
Exemplo musical 107: Identificação de notas repetidas da melodia de Ponta de
Areia (sistema superior) no solo de saxofone soprano (sistema inferior) durante o
1º chorus do improviso de Nivaldo Ornelas.
148
Exemplo musical 108: Nota lá natural na escala diatônica de Si bemol maior
durante solo de Nivaldo Ornelas em Ponta de Areia.
149
Exemplo musical 109: Nota lá natural sobre o acorde de Bb9, sétima maior do
acorde em passagem do solo de Nivaldo Ornelas em Ponta de Areia.
149
Exemplo musical 110: Última frase do solo de Nivaldo Ornelas em Ponta de Areia
com o uso de outras notas que não da escala pentatônica de Si bemol.
149
Exemplo musical 111: Primeira frase de Bons Amigos de Toninho Horta e Ronaldo
Bastos
150
Exemplo musical 112: c. 1-4 do improviso de Nivaldo Ornelas em Bons Amigos,
note-se o uso de notas do tema no solo além da preservação do contorno melódico.
150
Exemplo musical 113: Frase de Nivaldo Ornelas em II-V-I presente no solo de
Bons Amigos
151
Exemplo musical 114: Frase sobre movimento cadencial de II-V-I durante solo de
Ornelas em Bons Amigos.
152
Exemplo musical 115: Simulação de exercício baseado no método Imoprovisation
for Saxophone a partir de padrão melódico de Nivaldo Ornelas.
153
Exemplo musical 116: Primeiro chorus do improviso de John Coltrane para Mr.
Day, gravação de 1960: Note-se que o músico começa a improvisar antes mesmo
do fim do chorus do tema.
156
Exemplo musical 117: Primeiro chorus do improviso de Nivaldo Ornelas para Mr.
Day, gravação realizada ao vivo em 2010.
156
Exemplo musical 118: Ghost Notes em terças menores ascendentes na realização
de John Coltrane.
157
Exemplo musical 119: Uso de ghost notes em terças menores ascendentes durante
solo de Nivaldo Ornelas
157
xviii
Exemplo musical 120: Escala de fá sustenido mixolídio ascendente iniciada na
nota lá sustenido em solo de John Coltrane.
157
Exemplo musical 121: Escala de fá sustenido mixolídio descendente iniciada na
nota dó sustenido em solo de Nivaldo Ornelas.
157
Exemplo musical 122: Sextas (décimas terceiras) menores em solo de John
Coltrane.
157
Exemplo musical 123: c. 11, sexta menor, nota ré natural, sobre o acorde de F#7
durante improviso de Ornelas.
157
Exemplo musical 124: Padrão rítmico melódico utilizado por Ornelas no início de
seu solo.
158
Exemplo musical 125: Outro padrão aplicado no solo de Ornelas na realização de
Mr. Day.
158
Exemplo musical 126: Seção A da música Vôo dos Urubus de Toninho Horta
160
Exemplo musical 127: Seção inicial do improviso de Nivaldo Ornelas sobre Vôo
dos Urubus, note-se o uso de notas longas e a preocupação na construção melódica
como numa variação.
160
Exemplo musical 128: Frase inicial do improviso de Nivaldo Ornelas em Forró em
Santo André.
161
Exemplo Musical 129: Desenvolvimento melódico da primeira frase apresentada
em solo sobre a música Forró em Santo André.
162
Exemplo musical 130: Desenvolvimento rítmico-melódico em quiálteras durante
solo de Forró em Santo André.
162
Exemplo musical 131: c. 34-35: Nova organização melódica com ênfase na nota
dó e uma organização de pergunta e resposta
162
Exemplo musical 132: c. 38-46, frase com aplicação de novas estruturas
melódicas.
163
Exemplo musical 133: Uso de overtones durante solo de Ornleas em Forró em
Santo André.
165
Exemplo musical 134: c. 114 uso de recurso de aleatoriedade rítmico-melódica
através de superagudos do saxofone tenor durante solo de Forró em Santo André.
168
Exemplo musical 135: Aplicação de recurso de false fingerings por Nivaldo
Ornelas.
168
xix
INTRODUÇÃO
O universo musical brasileiro é de certa forma, marcado pela questão da identidade e
constituído por um quadro diversificado de referências musicais. Essa característica constitutiva da
música brasileira, onde existe sincronicamente, a busca por uma identidade e a fragmentação
cultural do país, paradoxalmente negligenciou durante algum tempo determinadas manifestações
musicais urbanas de características híbridas e que contemplassem referências consideradas
estrangeiras, principalmente norte-americanas, supostamente não relacionadas à tradição da música
brasileira.
No caso dos instrumentistas, alguns dos instrumentos por eles utilizados em formações com
tais características “estrangeiras”; como a bateria, a guitarra elétrica, o baixo elétrico, o piano
elétrico e sintetizadores, além do saxofone, ficaram de certo modo estigmatizados por não serem
considerados parte desta tradição.
Em relação ao saxofone, este instrumento antes de ser associado a gêneros musicais
nacionais é imediatamente referido ao universo do jazz, apesar de haver no Brasil uma tradição,
principalmente de chorões, iniciado por Viriato Figueira e Anacleto de Medeiros, passando por
Ratinho, Luiz Americano, Paschoal de Barros, Sandoval Dias, K-Ximbinho, Zé Bodega, Paulo
Moura e o próprio Pixinguinha, que imprimiram um fazer musical brasileiro ao instrumento. Isto
sem falar nas orquestras de Frevo, indissociáveis da presença dos saxofones, ou das bandas civis e
militares que no Brasil tem o saxofone incorporado às suas formações há mais de um século. Há
ainda uma tradição que se refere à música de concerto e que não pode ser negada, onde o
instrumento em questão é privilegiado por compositores como Villa-Lobos, Radamés Gnattali,
Ronaldo Miranda, Marlos Nobre, Almeida Prado, dentre outros, tanto em formações camerísticas
quanto como instrumento solista em peças orquestrais. Estes universos musicais certamente
contribuíram para a consolidação do instrumento frente a diversas faces da produção musical
nacional.
O entendimento destes processos tem sido objeto de investigação dentro da academia, como
2
exposto nos recentes trabalhos realizados; O Saxofone no Choro, de Rafael Henrique Soares
Velloso, onde o autor realiza importante trabalho de investigação sobre a história do saxofone no
Brasil, especialmente a partir de músicos de choro, como citados anteriormente, além de tratar da
difusão do instrumento em novas formações instrumentais surgidas a partir dos anos 1920; outro
trabalho é Desculpe, Foi Engano: o saxofone de Aurino Ferreira num choro de Guerra-Peixe, de
Chico Sá, onde o autor além de desenvolver uma profunda pesquisa sobre a história do saxofone e
seus usos frente a escolas do instrumento, estabelece uma relação destas com a maneira de se tocar
o instrumento no Brasil, trazendo a tona dois nomes de vulto para o desenvolvimento do
instrumento no país, sendo eles o do saxofonista Aurino Ferreira e do compositor e arranjador
Guerra-Peixe. Em Tarde de Chuva, Dissertação de Mestrado de Daniela Spielmann, a autora trata
da música do saxofonista Paulo Moura; além dos trabalhos acerca do saxofonista Victor Assis
Brasil, Improvisação em Victor Assis Brasil, de Fernando Trocado Maurity e Pro Zeca de Leonardo
Barreto Linhares, sobre características de hibridação entre o gênero baião e o estilo de jazz bebop
na música Pro Zeca do mesmo autor. Vale também ser ressaltada a Tese, Improvisação no Saxofone:
a prática da improvisação melódica na música instrumental do Rio de Janeiro a partir de meados
do século XX, de Afonso Claudio Segundo de Figueiredo, trabalho no qual o autor estabelece uma
genealogia das práticas de improvisação dentro do gênero por ele denominado música instrumental,
ou brazilian jazz, na cidade do Rio de Janeiro, trazendo importantes depoimentos de músicos,
especialmente saxofonistas, envolvidos com essa prática. O trabalho também revela importantes
aspectos técnicos e estilísticos aplicados ao saxofone. Já no campo da música de concerto podem
ser citados os trabalhos O Saxofone na Música de Radamés Gnattali de Marco Túlio de Paula Pinto
e O Saxofone na Música de Câmara de Heitor Villa-Lobos, Dissertação de Carlos Alberto Marques
Soares.
Mesmo em um cenário de suposta horizontalidade estética, ou seja, quando este fazer
musical brasileiro está relacionado aos saxofonistas do choro, por exemplo, há entre eles enormes
diferenças estilísticas, que variam conforme as referências particulares de cada fazer, mas que ao
3
mesmo tempo conservam entre si aspectos de similaridade, entendidos aqui como aspectos
idiomáticos do saxofone frente a um repertório de música brasileira. Estes aspectos idiomáticos são
identificados por Thomas Cardoso, utilizando citação do Dicionário Harvard de Música como:
Idiomático. Sobre uma peça musical, explorando as potencialidades particulares de um instrumento ou
voz para o qual é intencionado. Essas potencialidades podem incluir timbres, registros, e meios de
articulação assim como combinação de alturas que são mais facilmente produzidas em um
instrumento do que em outro.(...) O surgimento do virtuoso (...) no século XIX é associado com uma
escrita crescentemente idiomática,inclusive em músicas que não são difíceis tecnicamente.
(Cardoso, 2006, p. 12)
Ainda em citação a Cardoso em seu trabalho relativo à obra do violonista Guinga, este
afirma:
Este dicionário define idiomatismo como o uso das potencialidades próprias do instrumento,
colocando-o como sua principal característica. Podemos igualmente reparar como a idéia de
idiomatismo, segundo esta definição e em seu uso tradicional, refere-se a uma escrita idiomática para
um instrumento (como vemos nas últimas palavras da citação). Ora, sabemos que Guinga não escreve
suas músicas. Conseqüentemente, não podemos falar em uma escrita idiomática no caso deste
compositor. Estamos falando, no entanto, de uma construção idiomática de suas peças: apesar de não
se tratar de uma técnica de escrita, vemos em Guinga o uso composicional do violão no ato de criação,
quando explora ao máximo as potencialidades do instrumento. É neste sentido que usaremos este
termo ao longo deste trabalho.
(Cardoso, 2006, p.12)
Ressaltando-se o uso e a distinção entre as expressões escrita idiomática e construção
idiomática, estas duas definições identificadas pelo autor também podem ser relacionadas às
questões de composição do saxofonista Nivaldo Ornelas já que este não compõe suas músicas
diretamente no saxofone. Para tanto, Nivaldo as realiza com o auxílio de um instrumento
harmônico, normalmente o violão ou o piano, sendo que boa parte de suas composições podem ser
identificadas como melodias acompanhadas, no estilo das canções, e que tem no saxofone um
veículo para a realização dessas melodias.
Portanto, identificar o idiomatismo do saxofone analisando apenas suas composições tornase um trabalho pouco elucidativo, haja vista que não há uma escrita prévia para o instrumento
durante o processo composicional. Assim sendo, a questão idiomática do instrumento pode ser mais
bem observada analisando solos improvisados realizados pelo músico, identificados aqui com
aquilo que Cardoso chama de construção idiomática. A construção desses improvisos e as decisões
técnico-interpretativas ali presentes são sugestionadas pelas próprias características do instrumento,
inclinações e limitações provocadas por sua constituição física, morfológica, tais como digitações
4
(características de mecanismo), extensão, timbre, natureza das articulações e recursos dramáticos
(vibratos, pitch bends, glissandos e ornamentações).
Outros indícios a serem observados na realização dos solos do músico em questão estão
ligados as suas escolhas rítmico-melódicas e seus aspectos de similitude ou distinção com
características de outros saxofonistas, músicos e correntes estéticas de seu circuito de referências,
sejam do jazz, da música brasileira ou de outras práticas musicais.
Iniciamos a proposição do idiomatismo do saxofone na música brasileira creditando suas
características aos conflitos gerados por essas referências fragmentadas, entre o nacional, o regional
e o estrangeiro, ou do urbano e do rural ou ainda entre o antigo e o contemporâneo (ou moderno).
Dentro destes dialogismos1, surge o híbrido como idioma corrente. A teoria de Hibridação Cultural
que utilizamos durante o texto é extraída do livro Culturas Híbridas: estratégias para se entrar e
sair da modernidade de Néstor García Canclini, onde o autor se refere a ela da seguinte maneira:
(...) “entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que
existam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (Canclini,
2001, p. XIX): Onde o autor ainda adverte: “Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas
foram resultado de hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras”.
Essas estruturas discretas podem ser relacionadas, em música popular, a distintas práticas de
performance aplicadas durante a realização de determinado gênero ou estilo musical. A transposição
dessas práticas entre diferentes gêneros musicais pode ocorrer em diversos níveis, podendo ser
identificada quando o intérprete infere determinada realização não usual àquela prática musical.
Como exemplos, podem ser citadas as performances dos saxofonistas Stan Getz e Canonball
Adderley quando estes tocam música brasileira com músicos brasileiros de maneira jazzística; ou,
no uso de materiais musicais constitutivos das próprias composições e arranjos, como tratamentos
harmônicos, instrumentação, linhas de baixo, forma, dentre outros.
1
O uso do termo dialogismo é referenciado dentro do contexto de intertextualidade de Mikhail Bakhtin, apud
BRAGA (2002, p 07): “O dialogismo cultural de Bakhtin, traduz-se na idéia de intertextualidade, e nesse sentido,
urge atentar para todas as séries que entram num texto, seja esse texto verbal ou não verbal, erudito ou popular. As
séries: a fala cotidiana, à cultura popular, à tradição literária e artística, etc. (...). Na perspectiva bakhtiniana, de que
lançamos mão, o dialogismo opera em qualquer contexto cultural.”
5
Em meio a esses diversos gêneros e estilos musicais hibridados, ou seja, que sofrem ou
sofreram essa série diversa de interferências em suas estruturas discretas, a identificação musical de
Nivaldo Ornelas está relacionada a uma modalidade musical conhecida em seu meio de origem
como música instrumental ou jazz brasileiro, que começou a ser desenvolvido a partir do início da
década de 1960 no Brasil, gerado através da disseminação da bossa nova e do jazz instrumental,
identificado por Acácio Piedade (2003) como: “a música instrumental exibe uma configuração
estável como gênero da música popular brasileira, embora seja parte do jazz global principalmente
pelo espírito de liberdade de criação e improvisação” (apud Bastos, 2006, p.2).
Discordando do termo gênero musical utilizado pelo autor, optamos pelo uso do termo
modalidade, por acreditar que música instrumental se trata de uma maneira de se fazer música
popular e não de um gênero constituído, ou seja, por estarem contidos dentro desta modalidade
gêneros diversos de música popular, tais como o samba, o baião, o choro, o jazz ou mesmo o rock.
Destacamos como principal aspecto de distinção a não presença de cantores em suas
formações, apesar de poder haver o uso de voz em música instrumental, ou mesmo se houver letra
nas composições o foco de sua realização é voltado para as relações e jogos musicais entre os
instrumentos2. Seu surgimento está fortemente relacionado ao cenário musical urbano dos anos
1960 e influenciou toda uma geração de músicos:
Ao mesmo tempo em que a bossa nova se tornava conhecida no mundo, toda uma geração de
instrumentistas influenciados pelo jazz se envolvia com este gênero no Brasil. Estes instrumentistas
formaram grupos que tocavam um repertório de bossa nova e jazz instrumental, sendo que muitos
eram na formação clássica jazzística de trio (piano, contrabaixo e bateria), como o Tamba Trio, Zimbo
Trio, Milton Banana Trio, Jongo Trio, Bossa Três, Sambalanço, e outras formações, como o Quarteto
Novo (de Hermeto Pascoal), samba-jazz e os Copa 5.
(Bastos, Piedade, 2006, p.934-935)
Na citação acima, vale ser ressaltado o nome do Quarteto Novo, grupo que apesar de ter sido
contemporâneo à maioria dos outros ali listados parece ter sido equivocadamente incluído como
representante desta estética de música instrumental que primava por um repertório calcado tão
somente na bossa nova e no jazz. O grupo formado pelos músicos Hermeto Pascoal, flauta e piano;
2
“Portanto, mesmo na instrumentalidade da MI é possível o uso da voz, ainda que quase sempre como uma parte
instrumental, mas também ocorrendo que uma canção (com letra, evidentemente) seja entendida como uma peça
musical na concepção da MI.”(BASTOS; PIEDADE, 2006, p.932).
6
Théo de Barros, violão; Airto Moreira, percussão e Heraldo do Monte, viola caipira, teve seu único
disco lançado em 1967 e ao nosso entender lançou uma nova luz sobre esta modalidade
instrumental. Neste novo contexto, especificamente abordado pelo Quarteto, outros gêneros de
música popular, principalmente àqueles ligados à música nordestina como o baião e a toada,
passaram a fazer parte de suas realizações, além da instrumentação e dos arranjos que destoam da
referência de grupos estadunidenses baseados no piano, baixo acústico e bateria.
A fim de contextualizar o surgimento da nova modalidade instrumental, Piedade continua
sua explanação:
(..,)é neste universo instrumental da bossa nova que surge a MI [música instrumental]. O jazz
brasileiro cresce apoiando-se, portanto, menos no choro e mais na bossa nova, aí destacando o
encontro entre a bossa e o jazz norte-americano. O encontro real entre Stan Getz e João Gilberto
simboliza um diálogo entre as musicalidades da bossa nova e do jazz norte americano que é, para este
autor, uma característica fundamental da música instrumental brasileira.
(Piedade, 1997, 1999, 2003)
No desenrolar desse processo surgem figuras de músicos como Nivaldo Ornelas, objeto
deste estudo e representante de um tipo de linguagem ou idioma que imbrica práticas musicais
diversas em combinações até mesmo inusitadas em um conjunto de realizações ligadas a
composições, arranjos e a características de performance híbridas.
Mais para os anos 1970, os primeiros passos dados em direção à formação desta prática foi
se inclinando para uma produção mais cosmopolita e menos dicotômica, entre nacional e
estrangeiro, já dialogando com uma infinidade de referências musicais. O trabalho de Nivaldo
Ornelas se identifica com esta geração de músicos envolvidos nos desdobramentos desta
modalidade, nem tão inclinada às características do choro e nem às da bossa nova, como cita
Connell (2002, p. 95 apud Campos, 2006, p.12) em trabalho sobre a obra do compositor alagoano
Hermeto Pascoal.
No início dos anos 70 várias transformações resultaram no aparecimento de um novo tipo de música
instrumental no Brasil, que não derivava apenas do choro e da bossa-nova, mas também de uma ampla
gama de gêneros brasileiros e sons internacionais. Aliada aos desenvolvimentos cosmopolitas da MPB
(música popular brasileira), a mídia da música instrumental e sua presença cultural foram sendo
construídas ao longo da década, estimuladas por eventos como o ressurgimento do choro, a renovada
popularidade da gafieira, o Movimento Black Rio, festivais tanto de choro quanto de jazz, além do
crescente apoio do estado e de instituições.
No presente estudo, também buscamos fazer um levantamento da biografia de Nivaldo
7
Ornelas, abordado no Capítulo I, onde além de descrever os caminhos percorridos pelo músico
desde o seu primeiro contato com a música, seja no âmbito da instrução formal ou informal,
passando por sua consolidação profissional entre os anos 1960 e 1970 além de identificar os campos
de atuação do saxofonista. Para tanto, foram utilizados dados colhidos tanto em entrevistas
realizadas pessoalmente com ele, quanto através de matérias de jornais e revistas recolhidas
fundamentalmente da agência O Globo, informações que foram expostas a conceitos propostos por
Pierre Bourdieu no texto “O Mercado de Bens Simbólicos” in “A Economia das Trocas
Simbólicas”, onde, a partir daí, também são listados alguns dados de sua discografia e produção
como intérprete, compositor e arranjador.
No Capítulo II são apresentadas análises de gravações frente ao campo de composições
autorais de Ornelas, sendo quatro as gravações analisadas nessa seção: 1) Nova Lima Inglesa,
incluída nos discos Colheita do Trigo de 1990 e Fogo e Ouro, lançado em 2009; 2); Nova Suissa
Sábado À Tarde, do disco À Tarde lançado em 1982; 3); Rock Novo, também incluída no disco de
carreira Colheita do Trigo de 1990; e 4) Ninfas, do disco Portal dos Anjos de 1978. As análises
referentes a estas gravações autorais são pontuadas e conduzidas pela lógica urbanística de Belo
Horizonte, cidade natal do autor e recorrência de suas referências musicais, onde os mundos de sua
infância, juventude e idade adulta se sobrepõem e entrecruzam, criando um ambiente sonoro
favorável à identificação de elementos musicais híbridos. As estruturas referentes à harmonia,
forma, instrumentação, caráter, dentre outros, são identificados e justificados a partir das referências
pessoais de sua formação e atuação profissional. Como arcabouço teórico para a identificação e
argumentação das ocorrências musicais híbridas percebidas é utilizado uma variedade importante de
publicações, entre dissertações, teses e livros, dentre os quais podem ser citados: Jazz Styles: history
& analysis, de Mark C. Griley, importante trabalho sobre características musicais do jazz, seus
diversos estilos, fusões, principais intérpretes, compositores e arranjadores; outra fonte utilizada é
História Social do Jazz de Eric Hobsbawn, livro dedicado também ao jazz, mas de cunho mais
histórico do que técnico aqui utilizado complementarmente ao trabalho de Gridley.
8
The Cognition of Basic Musical Structures de David Temperley, é um trabalho no qual o
autor busca organizar modelos de apreensão musical através de programas computacionais,
estabelecendo modelos de escolha divididos em vários níveis de organização musical, tais como
estrutura métrica (Metrical structure), estrutura de frase melódica (Melodic phrase structure),
estrutura contrapontística (Contrapuntal structure), entre outros. Os dados considerados no trabalho
de Temperley e aplicados nesta tese se referem à identificação de estruturas harmônicas (Harmonic
structure) do gênero Rock, delimitadas pelo autor e utilizadas especificamente na análise da
composição Rock Novo, de Nivaldo Ornelas. Também é utilizada a tese de doutorado de Fábio
Adour da Camara intitulada Sobre Harmonia: uma proposta de perfil conceitual, utilizada neste
estudo com vistas para discussões de análise harmônica na música Ninfas de Ornelas.
Relativo às estruturas musicais angariadas na tradição da música brasileira, são utilizados
primordialmente os trabalhos Os sons do Rosário: um estudo etnomusicológico do congado mineiro
– Arturos e Jatobá, de Glaura Lucas, tese de doutorado sobre os congados Arturos e Jatobá de
Minas Gerais com vasto registro de repertório; é também utilizada a dissertação de mestrado de
Marcelo de Castro Lopes, A Folia do Mestre Célio em Rio Pomba: uma perspectiva
etinomusicológica, trabalho dedicado à investigação do auto conhecido por Folia de Reis em Minas
Gerais. Relativo às características do desenvolvimento dos paradigmas da música popular urbana no
Brasil, foram extraídos exemplos e modelos de acompanhamentos no violão do método O Violão de
7 Cordas de Luiz Otávio Braga, além de exemplos do próprio cancioneiro popular dos diversos
gêneros considerados como cruzamentos possíveis na obra de Ornelas. Os conceitos extraídos
desses estudos são entrecruzados com informações sobre a cidade de Belo Horizonte, boa parte
delas referendadas no livro Cultura e Comunicação: nas avenidas de contorno de Belo Horizonte e
La Plata, de José Márcio Barros, além de conceitos de definições das características dos autos
populares tratados nas análises transcritos advindos do Dicionário do Folclore Brasileiro de Luís da
Câmara Cascudo e das características musicais esclarecidas através da consulta a verbetes do
dicionário New Grove Dictionary of Music and Musicians.
9
Esse referencial teórico nos deu fundamentação necessária para a identificação, distinção e
análise de materiais musicais de diversas genealogias dentro do universo da música popular numa
série de identificações que têm por objetivo a observação do conjunto de ações e da validade do
fenômeno de hibridação proposto, caracterizando esta abordagem como um estudo analítico
descritivo e comparativo.
No Capítulo III são apresentados outros sete registros nos quais são analisados os solos
realizados pelo, nesse caso, intérprete, Nivaldo Ornelas, sendo eles: Ponta de Areia, composição de
Milton Nascimento que integra o disco Minas de 1975; Cuerpo y Alma do compositor uruguaio
Eduardo Mateo, incluída no disco Nascimento de Milton Nascimento de 1997; Forró em Santo
André de Hermeto Pascoal do disco Montreux Jazz Festival de 1979; Vôo dos Urubus e Bons
Amigos, ambas as composições de Toninho Horta, sendo esta em parceria com Ronaldo Bastos,
ambas extraídas do disco homônimo do compositor lançado em 1980; From The Lonely Afternoons,
música de Milton Nascimento presente no disco Diamond Land de Toninho Horta, disco de 1986 e
a gravação realizada em vídeo do blues Mr. Day do saxofonista estadunidense John Coltrane,
disponibilizado em formato digital em circulação na internet, gravado pelo quarteto de Nivaldo
Ornelas em apresentação ao vivo durante o Festival de Jazz do Rio de Janeiro, realizado na Sala
Baden Powell no dia 30 de janeiro de 2010.
A partir desses registros sonoros foram elaboradas transcrições editadas em formato de uma
partitura guia conhecida pelo termo inglês leadsheet, sendo apresentada a grafia das ocorrências
harmônicas através de cifras, além da linha do saxofone, foco principal das análises do Capítulo III.
Para as quatro composições de Ornelas presentes no Capítulo II, procurou-se elaborar uma
transcrição mais completa que abarcasse de maneira integral as realizações de todos os instrumentos
envolvidos nos registros sonoros. Esse tipo de transcrição, conhecida como transcrição nota a nota,
possibilita de forma mais contundente a identificação dos elementos harmônicos, rítmicos,
melódicos e estruturais, e de seus vínculos, de onde podem ser observados os diversos cruzamentos
das referências utilizadas, seja nas linhas de condução rítmica, na instrumentação ou nas escolhas de
10
características harmônicas. A aplicação e viabilidade desse modelo de transcrição dentro das
realizações em música popular e especificamente em relação às gravações aqui listadas, são
discutidas ao longo do Capítulo II.
Os exemplos musicais utilizados no decorrer das análises foram escolhidos em
conformidade com a relevância das ocorrências de possíveis estruturas musicais hibridizadas, não
tendo sido um fato importante, por exemplo, a freqüência com que ocorrem dentro daquela obra,
mas sim, o dado de distinção e raridade identificadas nos recortes musicais escolhidos, atribuindo
um caráter analítico qualitativo tanto aos dados coletados em suas composições quanto das
ocorrências técnicas e escolhas interpretativas utilizadas pelo músico.
Conjuntamente com a edição dessas transcrições, é também apresentada, em anexo a esta
tese, a edição exclusivamente das linhas de saxofone realizadas por Nivaldo Ornelas contendo o
maior número possível de indicações referentes aos aspectos interpretativos de suas realizações,
sejam estas de ordem de articulação e fraseado ou de recursos dramáticos3 tais como glissandos,
pitch bends (portamentos) e vibratos, características importantíssimas para a delimitação do
idiomatismo do saxofone brasileiro voltado para a prática em música instrumental. Os
procedimentos utilizados pelo intérprete são apresentados durante o derradeiro capítulo, sendo
validado através da experiência pessoal do músico revelados tanto pelas gravações já citadas quanto
por entrevistas realizadas entre os anos de 2009 e 2010 e que permeiam todo o texto. Ainda sobre as
questões técnicas, são avaliados os pontos de vista do músico sob a luz de teorias propostas pelo
tubista e educador estadunidense Arnold Jacobs, nos textos Also Sprach Arnold Jacobs: A
Developmental Guide for Brass Wind Musicians (2006), organizado por Bruce Nelson e Arnold
Jacobs: Song and Wind (2006) escrito por Brian Frederiksen. Outra fonte preponderante nas
discussões deste último capítulo é fundamentada no livro Dveloping a Personal Saxophone Sound
3
O termo recursos dramáticos é uma tradução livre para a expressão dramatic devices, encontrada em publicações que
tratam de transcrições de solos de músicos de jazz e que se refere ao uso de toda ordem de características
interpretativas empregadas na prática instgrumental, tais como vibratos, pitch bends (portamentos) e suas variantes
(scoop, fall, etc.), glissandos, tipos de articulação, digitações alternativas, harmônicos, dentre outros. Como
exemplo, pode ser consultada a série Giants of Jazz editada pela CPP/Belwin, INC., dos Estados Unidos durante os
anos 1980 e que traz, dentre alguns de seus títulos, músicos como Miles Davis, John Coltrane e Julian “Cannonball”
Adderley.
11
(1994), escrito pelo saxofonista e também educador David Liebman, além do artigo científico de
Naílson Simões (2001, p. 18-43), A Escola de Trompete de Boston e Sua Influência no Brasil,
publicada na revista Debates da UNIRIO. Os pontos citados e argumentados a partir desta
bibliografia são também discutidos levando-se em consideração o discurso do próprio Nivaldo
Ornelas e do empirismo destas realizações que constituem a práxis do estudo musical voltado para a
música popular realizada no Brasil.
Esse conjunto de ações visa abordar de maneira plural as realizações de Nivaldo Ornelas nos
campos da produção musical, seja voltada para a composição ou de sua performance como
saxofonista na modalidade musical conhecida como música instrumental de modo a revelar as
várias facetas do fenômeno de hibridação cultural dentro das atividades musicais realizadas pelo
compositor e intérprete mineiro.
12
CAPÍTULO I – CARREIRA E DISCOGRAFIA
1.1 Início da Carreira.
A tradição musical do saxofonista, flautista, arranjador e compositor Nivaldo Ornelas esta
ligada à geração de compositores e músicos mineiros que iniciaram sua carreira na década de 1960.
Nascido em Belo Horizonte em 22 de abril de 1941 na Vila Marinho, hoje bairro Nova Suissa, o
músico recebeu instrução formal em música através de aulas realizadas na Escola de Formação
Musical, que segundo Ornelas, fora fundada por Villa-Lobos durante o governo Vargas, durante a
década de 19504. A referida Escola funcionava no 1º Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais,
localizada na Praça Floriano Peixoto, no bairro de Santa Efigênia na capital mineira. A instituição,
além de assegurar uma sólida formação musical a seus alunos, também era promessa para que
muitos jovens pudessem seguir carreira dentro dela. As aulas na Escola, como Ornelas se refere,
restringiam-se, a princípio, à teoria musical e solfejo, disciplinas que possibilitaram que o garoto,
então com aproximadamente 11 anos de idade, desenvolvesse uma boa noção dos fundamentos em
música, condição que o incentivou a continuar estudando. Posteriormente, foi aluno do clarinetista
Ney Perrella ao ingressar no Conservatório Mineiro de Música, que a partir de 1962 se
transformaria na Escola de Música da UFMG, e anos mais tarde, já durante os anos 1970, teve aulas
com o compositor belga naturalizado brasileiro Arthur Bosmans (1908-1991), que viera para o
Brasil durante os anos 1940 e após passagem pelo Rio de Janeiro fixou residência em Belo
Horizonte. Com Bosmans, Nivaldo Ornelas aprendeu de tudo um pouco, suas aulas eram encontros
nos quais o professor passava horas tocando piano e contando histórias.
Paralelamente à instrução formal, sua vida cotidiana no bairro Nova Suissa lhe
proporcionava um leque variado de atividades musicais que apontavam, sobremaneira, para os
universos da música popular e folclórica. Dentro de casa podia ouvir seus pais, Alcides Ornelas e
Estela Lima de Ornelas tocando e cantando um repertório de Serestas; nas ruas, as Folias e
Congados e nas Igrejas a música sacra, tocada e ouvida principalmente em épocas de festividades
4
Cabe pntuar que as décadas são contabilizadas a partir do ano 1, ou seja, a década de 1950, indicada, é contabilizada a
partir de 1951 indo até 1960, exckuindo-se o ano de 1950, este, último ano da década anterior, 1940.
13
do calendário católico, como durante a semana santa, ou mesmo em suas atividades ordinárias
durante os fins de semana. Estas referências serviriam como pilares para a sua carreira musical,
principalmente ligada a sua produção autoral, como percebemos através de citações contidas em um
de seus discos, o Arredores, lançado em 1998:
(...)logo depois do Natal, a Folia de Reis do Vandico e do Jair da Sanfona saía pelas ruas de Nova
Suíssa. No princípio dos anos 70 participei com eles dos movimentos de folia e congada, que eram
constantes por lá. Com suas roupas coloridas, o grupo levava sua música, seu canto e sua fé até a Vila
São Domingos, um povoado situado logo depois do bairro Jardim América.
(...)lembra os saraus lá em casa – música e poesia. Minha mãe cantando, meu pai ao violão, e a gente
ouvindo e sonhando(...)
(...)a atmosfera renascentista no interior da igreja do Convento Bom Pastor, no alto da Nova Suíssa.
Muita fé e mistério.
Do período compreendido entre o final da década de 1950 ao início da de 1960, Nivaldo
Ornelas estava às voltas com várias atividades ligadas à música e vinha se preparando para iniciar
uma carreira como solista de música erudita. Nessa época já se apresentava tocando clarinete em
eventos, participando de orquestras e dos bailes, a exemplo dos que havia por toda a capital mineira
em lugares como o Automóvel Clube ou em dancings, como o Montanhês Danças. Foi nessa época
que Célio Balona, músico que liderava um dos principais grupos de baile da cidade sugeriu que
Ornelas tocasse saxofone, de modo a contemplar de maneira mais apropriada o repertório que
estava em voga naqueles anos, constituído, mormente de sambas-canção e boleros. A idéia a
princípio não agradou muito a Ornelas, mas, com o crescente interesse do músico pelo jazz, em
especial pela obra do saxofonista estadunidense John Coltrane, foi adotada.
Já lidando com o repertório de jazz, em 1964 Ornelas participa da idealização e fundação do
Bar Boate Berimbau, juntamente com Antonio Morais, o Bolão e um grupo de músicos. O bar que
funcionava aos moldes de um clube de jazz foi o primeiro lugar onde Nivaldo Ornelas pôde se
apresentar periodicamente como saxofonista dedicado a um repertório exclusivamente de música
instrumental a reboque dos conjuntos de jazz americanos bem como dos grupos brasileiros de bossa
nova instrumental e samba jazz, como os surgidos no Beco das Garrafas no Rio de Janeiro, e que
proliferavam à época em várias cidades do país. Em relação a estas referências musicais, Nivaldo
Ornelas cita alguns dos principais grupos e artistas que naquele tempo serviram de vitrine para ele e
14
seus contemporâneos (informação verbal):
Nivaldo – Tamba Trio, Os Cariocas, Sérgio Mendes... Deixa eu lembrar mais, Paulo Moura, Edison
Machado: É Samba Novo, eu tenho ele aí. E jazz era Art Blakey e Jazz Messengers, Monk &
Coltrane, começamos a ouvir Miles Davis também e um disco do Bill Evans com Sinfônica, tocando
música erudita improvisada. Isso rodava. E todos os discos, esse o Bituca era apaixonado e eu
também, do Miles com Gil Evans, ali foi o nosso
grande professor de harmonia foi aquilo ali. 5
O Berimbau Clube era certamente o ponto de encontro dos músicos instrumentistas daquele
tempo, tendo se tornado um lugar de convergência e uma referência em meio ao cenário musical
ainda acanhado da cidade, como afirma o próprio Ornelas em outro trecho da mesma entrevista
anteriormente citada (informação verbal):
Nivaldo – Bom, mas, fechando o parênteses: Berimbau. Aí a gente arrumou esse Berimbau lá, através
do Antônio Morais que era um cara ágil, realizador assim, né? Nós músicos, todo mundo de boca
aberta, né? E,
aí teve esse lugar que virou um ponto de encontro mesmo, é muito interessante,
durou um ano no máximo, mas foi fulminante o negócio.
Bernardo – Ficava numa daquelas sobrelojas ali, não é?
Nivaldo – Isso, exatamente.
Bernardo – Eu li numa matéria do Estado de Minas.
Nivaldo - O Maletta era o seguinte: Em baixo, no lado de fora tinha o Pelicano, que a turma desse
povo docinema ficava ali, pra você ver como é interessante; lá dentro, no andar de baixo tinha o Lua
Nova dosjornalistas, meus irmãos frequentavam lá. Lua Nova. Em cima tinha o Sagarana, que era o
bar dosescritores, o pessoal do cachimbo, a turma do cachimbo. No mesmo andar assim, aí tinha o
Berimbau, que era de música, e era interessante. Quando ia gente, músicos em Belo Horizonte, iam lá
no Berimbau, ficavam sabendo.6
Na citação acima Nivaldo Ornelas se refere ao Edifício Archângelo Maletta, que nos anos
1960 era o lugar de encontro, não só dos músicos, mas de toda intelectualidade e boemia belohorizontina, e sobre este período do Berimbau Clube Ornelas fala da importância do lugar, que
apesar de sua vida efêmera, tendo funcionado por pouco mais de um ano, possibilitou encontros e
experimentações dos músicos que ali puderam fazer música instrumental, como, além do próprio
Nivaldo Ornelas, Paulo Braga, Helvius Villela, Pascoal Meirelles, Wagner Tiso e Milton
Nascimento (informação verbal):
Nivaldo - (...) Muito bem, aí o Berimbau realmente foi, começou a dar frutos aquilo, muito rápido,
sabe? E o pessoal começou a criar umas coisas, aí apareceu, já no final do Berimbau apareceu o
Bituca mais o Wagner, vieram de fora e trouxeram mais um outro elemento, tal, o Bituca com aquela
onda dele meio Úú, né? A gente não deixava ele cantar, isso não podia, com letra não. No Berimbau
não podia, letra...canário não entrava(...)E aí começou a tocar baixo acústico e tudo, o irmão do
Toninho, o Paulinho, emprestou um baixo pra ele. A verdade é que o negócio floresceu, entendeu?
Floresceu mesmo, assim.7
5
Entrevista realizada em 17 de abril de 2009
Idem
7
Idem
6
15
O Berimbau Clube apesar de ter sido um lugar voltado para a música instrumental,
preferencialmente o jazz e a bossa, que apesar de privilegiar os standards desses gêneros musicais,
surgiu também como possível laboratório de experiências musicais para os músicos que por ali
passaram, tanto para Nivaldo Ornelas quanto pra Milton Nascimento e outros. Em seu livro Os
Sonhos Não Envelhecem, Márcio Borges, um dos principais parceiros de Milton Nascimento, cita o
Berimbau Clube da seguinte maneira:
Inaugurado exatamente na noite do golpe: 31 de março de 64, por Antonio Morais, o Bolão, a casa era
especializada em jazz e ficava na sobreloja do Edifício Archângelo Maletta. O Maletta era o reduto
dos notívagos e boêmios de Beagá. Ali funcionavam, espalhados pelos corredores do térreo e da
sobreloja, dezenas de bares, restaurantes e inferninhos. Durante o dia apresentava um movimento
comercial recatado, digno de suas livrarias e escritórios de representações, lojas de armarinho. Um de
seus blocos era residencial, com entrada à parte, à noite, porém, as galerias do edifício eram invadidas
por hordas e clãs de artistas, músicos, jornalistas, prostitutas e bêbados de variados escalões que
ocupavam todas as mesas disponíveis no local. Quem pisava no Maletta depois das seis tinha uma
reputação a zelar. Ou a perder, mais frequentemente.
(Borges, 1999, p. 45)
Após o fechamento do Berimbau Clube, Nivaldo Ornelas forma no ano de 1967, juntamente
com o baterista Paulo Braga, o pianista Jairo Moura e o baixista Tibério César o Quarteto
Contemporâneo. O grupo era identificado com o Free Jazz realizado por músicos como Ornette
Coleman (1930-), Eric Dolphy (1928-1964), Albert Ayler (1936-1970) e mesmo John Coltrane
(1926-1967), que se aproximou do estilo mais para o final de sua carreira, já nos anos 1960. O
Quarteto Contemporâneo era, portanto, um grupo que se afinava com uma estética voltada para a
vanguarda do jazz e da música instrumental na época, uma busca de liberdade criativa que também
marcaria a carreira do saxofonista em outros trabalhos que realizaria futuramente:
Nivaldo – É, mas quando terminou o Berimbau, no ano de 67, mais ou menos, já tinha um tempo,
tinha acabado o Berimbau há muito tempo, eu o Paulinho Braga, um pianista chamado Jairo Moura e
o Tibério César, baixista, a gente começou a tocar na rádio, essa Rádio Guarani, que era à tarde ali na
Avenida...
Bernardo – Assis Chateaubriant.
Nivaldo – Isso. E tinha um estúdio lá e a gente passava tardes e tardes, eu lembro, tocando, só
improviso. Na época a gente ouvia Eric Dolphy, ouvia meio free-jazz, é...Coltrane no Village
Vanguard, aquelas coisas mais free mesmo, Eric Dolphy, Ornette Coleman.
As marcas deixadas pelo Quarteto Contemporâneo e pelo, como diz o próprio Ornelas,
conceito de sua proposta, podem ser percebidos em parte da produção musical de Ornelas, seja em
discos de carreira ou em solos do músico em participações de outros trabalhos, como durante a
música Hoje é Dia de El Rey, de Milton Nascimento e Márcio Borges, presente no disco Milagre
16
dos Peixes de 1973, onde o saxofonista utiliza parcialmente esta estética free. Outro exemplo do uso
de recursos desse estilo pode ser encontrado no disco Montreaux Jazz Festival de Hermeto Pascoal
de 1979 e que será pormenorizado no Capítulo III desta tese, através da observação das
características técnico-interpretativas aplicadas ao saxofone, presentes na música Forró em Santo
André. As referências do free jazz citadas por Ornelas podem ser identificadas com parte de sua
produção musical também de discos do autor como Viagem Ao Oco do Toco gravado em 1988, mas,
somente lançado no ano de 2005, disco gravado em duo com o tecladista André Dequech e que faz
referência ao Quarteto Contemporâneo onde a proposta estilística do Free Jazz pode ser percebida
em uma abordagem de música brasileira e de relação íntima à sua produção. Segundo Mark Gridley
o free jazz consiste em:
Free Jazz é o nome de uma atitude para improvisação difundida por Ornette Coleman (1930) e Cecil
Taylor (1929). O termo deriva da observação que performances desse estilo são frequentemente
ausentes de progressões de acordes pré-determinadas. Um modelo para grande parte dessa música é
um disco de 1960 de Coleman intitulado Free Jazz. A música ali contida consiste em uma
improvisação simultânea e coletiva de duas bandas intentando permanecer livre de armadura de clave,
melodia, progressões de acordes e tempo previamente determinados..8
(Gridley, 1986, p.226)
Portanto, o free jazz caracteriza-se por ser não somente um estilo, mas uma maneira de
abordar as seções de improviso, uma postura tomada pelo músico improvisador, ou pelos músicos
do grupo, quando de realizações coletivas durante uma performance.
Após o Quarteto Contemporâneo Ornelas se vê numa espécie de dilema vivendo em Belo
Horizonte, já que os trabalhos como músico não lhe garantia a sobrevivência, os honorários
necessários para que pudesse se sustentar. Nesse período, final dos sessenta, o músico teve, por
exemplo, de trabalhar como bancário, já que o insipiente mercado musical mineiro não estava
preparado para a produção, circulação e consumo de música, quiçá de música instrumental, o que
impulsionava a derrocada de artistas, das mais variadas atividades, a se trasladarem para os
principais centros artísticos e econômicos da época: Rio de Janeiro e São Paulo. A convite de Paulo
8
Free jazz is the name of an approach to improvisation made common by Ornette Coleman (b.1930) and Cecil Taylor
(b.1929). The term derives from the observation that performances of this style are often free of preset chord
progressions. A model for much of this music is a 1960 Coleman album called Free Jazz. Its music consists of
simultaneous collective improvisation by two bands attempting to remain free of preset key, melody, chord progressions,
and meter.
17
Moura, Nivaldo Ornelas se muda para o Rio de Janeiro em 1971 com o propósito de fazer parte da
Banda Jovem do músico, juntamente com Márcio Montarroyos, Cláudio Roditi, Pascoal Meirelles e
Osmar Milito. Este convite é tido pelo saxofonista como o empurrão que faltava para que ele
tomasse confiança em se mudar para a capital fluminense de modo a tentar melhor sorte no centro
musical mais importante do Brasil daquele tempo. No ano seguinte, desta vez a convite de Hermeto
Pascoal, a quem conheceu em 1968, muda-se para São Paulo para participar de sua banda e com ele
passa também a tocar saxofone soprano e flauta em dó. Apesar da notoriedade suscitada pela
participação no grupo do músico alagoano, as dificuldades financeiras e a adaptação difícil à vida
no Rio e em São Paulo fizeram com que Ornelas voltasse a Belo Horizonte ainda durante o ano de
1972, mudança que o músico considerou fundamental para recarregar a bateria e aprofundar-se no
estudo do saxofone, refugiando-se na casa de sua família no bairro da Nova Suissa.
A agitação musical e artística que Belo Horizonte viveu durante os anos 1960, provocada,
por exemplo, pelo Berimbau Clube e por outras iniciativas, possibilitou novos encontros entre
instrumentistas, compositores e letristas. Como figura aglutinadora das ações destes agentes estava
Milton Nascimento, que teve como primeiros parceiros os letristas Márcio Borges, já citado, e
Fernando Brant, mas que passou, a partir de então, a mediar e servir de modelo para que outros
músicos compartilhassem suas experiências, idéias, opiniões, gostos e a fazer música juntos em
permanente relacionamento, criando um corpo de produção musical fortemente associada a um
perfil estético de identidade da música popular urbana feita em Minas Gerais. A expressão Clube da
Esquina, utilizada talvez em função da música composta por Milton Nascimento e pelos irmãos
Borges, Lô e Márcio, lançada no disco Milton de 1970, está também associada ao título de dois
discos homônimos, o primeiro lançado em 1972 por Milton Nascimento e Lô Borges, e o segundo,
Clube da Esquina 2, de Milton Nascimento lançado em 1978. Esta questão é tratada por Thais
Nunes em seu trabalho A Sonoridade Específica do Clube da Esquina:
A expressão Clube da Esquina passou a ser usada, no final dos anos 1970, para se referir a um grupo
de compositores, sobretudo cancionistas, na sua maioria mineiros, poetas e instrumentistas que
produziram um vasto repertório musical, principalmente na década de 1970 no Brasil. Tal expressão,
ampla em si, também dátítulo a duas canções (CLUBE DA ESQUINA e CLUBE DA ESQUINA N/2)
e dois discos duplos, de títulos homônimos aos das canções, lançados respectivamente nos anos 1972
18
e 1978. A expressão, podendo se referira cinco sujeitos (grupo, duas músicas e dois discos), põe em
questão qual seria o título dessa pesquisa. Qual dos cinco seria o seu objeto central? Para esclarecer
esta ambiguidade faz-se necessário refazer o caminho percorrido para a escolha.
(Nunes, 2005, p.03)
A expressão Clube da Esquina, como colocado por Nunes, é tratada no meio jornalístico, de
modo geral, como movimento musical. Este termo a nosso ver carece de problematização, já que em
um primeiro momento o Clube se revela muito mais como um ideário de uma geração talentosa de
músicos, arranjadores, letristas e instrumentistas que se afinavam do que propriamente algum tipo
de movimento que tenha uma espécie de proposta estética ligada a uma ortodoxia de realizações,
contendo estatutos, manifestos ou mesmo cartas de intenção. Movimentos como estes no Brasil são
reconhecíveis como, por exemplo, com o Música Viva, ou se transposto para o terreno da música
popular, os Centros Populares de Cultura (CPCs), criados no início dos anos 1960 e associados à
UNE e que tiveram no seu Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura as diretrizes do
movimento que teve o sociólogo Carlos Estevam Martins, filiado à época ao ISEB, como o seu
primeiro diretor. Portanto, Nivaldo Ornelas pode ser considerado um colaborador indireto do
chamado Clube da Esquina, isto pelo fato do músico ter feito parte do convívio daquela geração de
músicos que atuou a partir do início dos anos 1960 em Belo Horizonte.
Durante essa curta estada na capital mineira, em 1972, recebe convite de Milton Nascimento
para juntamente com Wagner Tiso, Toninho Horta, Luiz Alves e Robertinho Silva formar o “novo”
grupo Som Imaginário e acompanhá-lo na gravação de seu próximo disco, Milagre dos Peixes, de
1973. Milton já era conhecido no meio musical nacional, muito em função de Travessia, música que
defendera no festival da canção de 1969, mas também da já consistente carreira que empreendera no
Rio de Janeiro com repercussão nacional, sendo o Som Imaginário o grupo que o acompanhava
desde o disco Milton de 1970. O fato é relatado por Nivaldo Ornelas durante entrevista concedida
em abril de 2009 (informação verbal).
Nivaldo – (...)O Milton. Tava de bigode, falou: E aí tudo bem? – Tudo bem. Falou: Eu to fazendo
umas coisas novas aqui, vamos tocar um pouco aí e tal. Falei: Vão bora. Eu tava...
Bernardo – E ele já tinha passado pelo Festival da Canção, já tava morando no Rio...
Nivaldo – Já, já era conhecido, já era conhecido. E aí nós ficamos tocando aí ele compôs uma música
lá, aí eu lembrei que eu tinha uma música chamada: Terezinha de Jesus, em cinco por quatro, que era
música do folclore, ele adorava e a gente ficava tocando isso lá. E eu tinha um negócio de hino, eu
gostava de fazer variações em cima de hinos. Esses hinos, Hino da Bandeira.
19
Bernardo – Você tem um disco, o Reciclagem.
Nivaldo – Foi tudo em cima daquilo, isso. Tocava esses hinos e ele ficava maravilhado: Nossa, Que
Beleza! Passamos a tarde lá e ele falou pra mim. Aí nos fomos pra um boteco lá do outro lado da rua,
tomamos uma pinga eu e o Bituca, ele tomou uma pinga e eu tomei uma pinga, e eu falei: Como é que
pode? Você tomar uma pinga? Hoje eu não bebo nem cerveja. E ficamos conversando e ele falou: É,
eu quero reunir a nosso turma num ritmo novo e eu não to conseguindo colocar nosso som, e a minha
harmonia – Não sei por que ele falou isso - não é sofisticada e eu preciso de gente que entenda do
assunto, não to conseguindo, os caras tão pensando que é uma coisa e é outra, eu preciso de você do
Wagner e do Toninho, e tal, e eu quero chamar o Robertinho e o Luiz Alves, Robertinho Silva e Luiz
Alves, porque eles tem a força, eu quero fazer esse Som Imaginário aí, eu quero diferente, você topa
voltar pro Rio, né? Eu falei pra ele: Não ta nos meus planos voltar pro Rio agora não, eu to aqui, tá
bom aqui. Ele falou: Mas vai ser bom lá, vamos nessa, eu quero fazer um show com orquestra e tal.
Falei: Com orquestra? Como é que é isso? Tudo o que eu ganhar. Ele investiu nele mesmo, isso foi
foda, isso é demais. – Tudo que eu, eu assinei um contrato com a Odeon, tudo que eu fosse ganhar vai
ser investido na orquestra, eu vou pagar a orquestra. Falei: Mas nós vamos pagar também? Ele disse:
Vocês não, vocês fazem o seu acerto com eles lá, o Wagner faz que ele já ta lá mesmo, e, mas o meu
eu vou investir. - Demais, né?
Neste trabalho, fazemos questão de esclarecer e limitar a contribuição de Nivaldo Ornelas à
paisagem sonora do Clube como ligada tão somente ao grupo de músicos que, inicialmente,
formaram o Som Imaginário e não aos discos duplos de 1972 e 1978, pois Ornelas não participou
da gravação destes. Cabe, pois, pontificar que o Som Imaginário, grupo que acompanhava Milton
Nascimento, foi responsável pela “sonoridade” de alguns dos principais discos de Milton. O termo
“sonoridade” aqui empregado se refere à interferência musical inferida pelo grupo tanto na maneira
de tocar dos músicos que constituíam o Som Imaginário quanto nas ideias musicais adotadas nos
arranjos presentes nos discos de Milton Nascimento, haja vista que boa parte destes arranjos sofria
estas interferências dos músicos à medida que eram tocados, uma prática muito comum nas
realizações do repertório de jazz e que se revela fundamental no entendimento de parte das obras de
Milton Nascimento, mais particularmente de alguns dos discos da primeira metade da década de
1970, sendo eles: Milagre dos Peixes de 1973; Milagre dos Peixes Ao Vivo, 1974 – este com
referência clara ao grupo Som Imaginário - além de Minas, de 1975. Como exemplo, pode ser
citada a gravação de Fé Cega, Faca Amolada, composição de Milton Nascimento e Fernando Brant
que abre o disco Minas, onde o contracanto de saxofone soprano realizado por Ornelas torna-se
praticamente parte da composição:
20
Exemplo musical 1. Início de Fé Cega, Faca Amolada, partes de voz e saxofone soprano realizado por Nivaldo Ornelas
Nivaldo Ornelas está ligado à boa parte da produção de Milton Nascimento e a de alguns
dos compositores que participaram dos discos Clube da Esquina, citem-se: Wagner Tiso, Toninho
Horta e Tavinho Moura e não dos discos Clube da Esquina, de 1972 e 1978. De um modo geral,
fica muito difícil estabelecer uma unidade na produção destes agentes, esta planificação estética
parece funcionar mais como um recurso de mercado, uma invenção.
Figura 1. O Som Imaginário Nivaldo Ornelas, Toninho Horta, Wagner Tiso, Novelli e Paulo Braga em intervalo do
ensaio para o disco Minas de 1975. (BORGES, 1999)
A imagem da esquina como um lugar de encontro dentro do território citadino tende a uma
compreensão do Clube como uma reunião para o intercâmbio de idéias, experiências, referências
distintas e de cooperação mútua para a realização de sua música. Este espírito gregário talvez tenha
21
sido a espinha dorsal na qual o Clube se desenvolveu e a característica fundamental do trabalho de
seus integrantes e colaboradores, como Nivaldo Ornelas. Essa impressão sobre um espírito de
coletividade é reforçada pelas palavras de Lô Borges em depoimento contido no documentário
Milton Nascimento - A Sede do Peixe lançado em 1998. Diz ele (informação verbal):
Essa história de Clube da Esquina tem um pouco a ver com isso, né: o começo, os encontros da gente
né,o que ficou meio conhecido como Clube da Esquina esses encontros realmente do pessoal, de uma
geração de Belo Horizonte. Agora, esses encontros sempre aconteceram, acho que Clube da Esquina é
uma história assim, que sempre existiu, né
Concomitantemente à produção ao lado do grupo Som Imaginário e de Milton Nascimento,
Ornelas ainda tocou e gravou, durante os anos 1970, com uma série de músicos, servindo como
músico de estúdio – atuando tanto como solista quanto em naipes de sopros – tendo gravado discos
com, além de seus pares mais próximos, citem-se: Wagner Tiso, Pascoal Meirelles, Robertinho
Silva e Toninho Horta, e com outros ícones da chamada música instrumental, casos de Egberto
Gismonti, com o qual gravou, durante os setenta, os discos Academia de Danças de 1974 e
Corações Futuristas de 1976 (incluindo outros tantos durante a década seguinte), Paulo Moura no
disco Confusão Urbana, Suburbana e Rural de 1976 e já no final da década com Hermeto Pascoal,
no Montreaux Jazz Festival de 1979, já citado, e Airto Moreira em Touching You, Touching Me,
também em 1979; além dos nomes mais importantes da MPB daqueles anos como: Ivan Lins
(Quem Sou Eu?, 1972); Edu Lobo (Caminho das Águas, 1976); Luiz Gonzaga Júnior (Começaria
Tudo Outra Vez..., 1976); Fagner (Orós, 1977); Belchior (Coração Selvagem, 1977); Gilberto Gil
(Refavela, 1977), Zé Ramalho (A Peleja do Diabo Com O Dano do Céu, 1979), dentre outros. Estas
aparições puderam consagrar ainda mais o trabalho do músico como um dos mais proeminentes
dentre os saxofonistas brasileiros, mas Ornelas ainda tinha como objetivo a realização do seu
próprio trabalho, uma produção autoral que levasse seu timbre, sua assinatura.
22
2. A Dicotomia Auctor / Lector e o Desenvolvimento da Carreira de Autor:
Em entrevista concedida à jornalista Ana Maria Bahiana para O Globo em 1977, Nivaldo
Ornelas descreve os processos que antecedem a gravação de seu primeiro disco solo, Portal dos
Anjos, lançado em 1978 pela Polygram, numa série com o nome de Música Popular Brasileira
Contemporânea (MPBC).
Seu reconhecimento no meio musical, tanto para produtores quanto para a crítica estava
ligado aos trabalhos que já havia realizado com importantes nomes da chamada MPB dos anos 70:
Fagner, Belchior, Ivan Lins e Milton Nascimento, que com este último, havia participado, até então,
de três registros fonográficos. Outros trabalhos, realizados, por exemplo, com Hermeto Pascoal no
ano de 1973 e com Egberto Gismonti, referiam-se também a trabalhos como músico acompanhante,
apesar de serem dedicados a um público consumidor específico, no caso, consumidores de música
instrumental.
Nessa mesma reportagem do jornal O Globo de fevereiro de 1977, Nivaldo Ornelas se
posiciona em relação ao seu trabalho realizado como músico contratado de nomes de fama da MPB
com a seguinte declaração: “Eu não acho ruim trabalhar com cantores. É uma certeza, uma
segurança”. Fica claro, nesta afirmação de Ornelas, que o fato de trabalhar como músico de estúdio
de “estrelas” da MPB é uma questão de sobrevivência, o fato deste tipo de trabalho ser uma
segurança demonstra o caráter de ofício que a função de músico de estúdio representava para o
saxofonista. Mais a frente, na mesma reportagem, em oposição à função de músico de estúdio,
Nivaldo continua sua declaração revelando o desejo de desenvolver uma carreira como solista, um
trabalho que mostrasse um lado mais íntimo de sua ligação com a música: “Agora, esse ano, eu
estou reservando mais pra mim, sabe? Vou fazer mais o que eu quero, o meu trabalho que eu estou
há um tempão pra fazer”.
Estas duas faces da produção musical de Nivaldo Ornelas dão indícios de que o
desenvolvimento do compositor não caminha necessariamente lado a lado com o do instrumentista,
sendo as duas funções encaradas de maneiras distintas pelo músico: ”(...) as duas coisas, compor e
23
tocar, sempre foram distintas para mim, bem separadas. Não sei, mas tenho a impressão que isso de
tocar saxofone foi uma coisa que eu aprendi, foi uma habilidade, um treino”.
O ato de tocar pode tornar-se por vezes um ato mecânico, um treino, esta declaração revela o
alto grau de especificidade que o instrumentista deve desenvolver para ser inserido neste mercado,
no caso, o de músico de estúdio. O fato pode ser relacionado com a seguinte citação de Pierre
Bourdieu:
(...)A história recente de um modo de expressão, como por exemplo a música, extrai o princípio de sua
evolução da busca de soluções técnicas para problemas fundamentalmente técnicos, estritamente
reservados a profissionais dotados de uma formação altamente especializada, e aparece como
realização do processo de refinamento que tem início desde o momento em que a música popular é
submetida à manipulação erudita de um corpo de profissionais
(Bourdieu, 1998, p. 114)
A citação acima se refere ao campo de produção erudita, mas pode ser comparada ao caso do
universo musical de Nivaldo Ornelas devido ao alto grau de refinamento atingido pela música
instrumental brasileira através da manipulação de elementos de práticas musicais originais da
música popular, realizada por instrumentistas, compositores ou arranjadores com formações
diversas, mas que passaram por algum grau de instrução formal, seja ela advinda da música de
concerto, do jazz ou de outras práticas.
Diferentemente da atuação do músico como instrumentista de apoio, o processo de
composição e o surgimento do compositor são descritos da seguinte maneira pelo próprio Nivaldo
Ornelas:
Aí por, 72, 73, as coisas que eu compunha começaram a sair inteiramente diferentes do que eu tocava.
Eu nem tinha controle sobre isso. Eu compunha uma coisa muito mais emocional, muito mais ligada
ao meu passado, às lembranças de garoto, àquela minha formação toda.
Fica claro então, que se por um lado, o ofício de saxofonista é uma prática mecânica,
racional e adquirida por intermédio da repetição, o lado de compositor é a expressão intuitiva do
depositário musical que o artista apreendera durante toda a sua vida, e com isto, evidenciam a busca
pela individualidade, originalidade e distinção. Características estas relacionadas a um campo de
produção autônoma. Esta distinção entre as duas práticas pode ser relacionada com os termos de
oposição lector, referente ao intérprete, àquele que empresta a sua musicalidade para iluminar a
24
obra de um outro autor; e auctor, no caso o compositor, o mestre criador, onde estas práticas
representam respectivamente a atuação do músico junto à produção da indústria cultural9 e a sua
produção, como criador, está ligado à organização de um campo autônomo, ou em autonomização,
como o campo de produção erudita10.
Apesar do aparente antagonismo das duas práticas, estas não se anulam, mas se auxiliam
mutuamente, conforme podemos perceber através de trecho da mesma matéria citada anteriormente,
publicada pelo jornal O Globo em 14 de setembro de 1977, quando esta se refere ao disco Milagre
dos Peixes de Milton Nascimento:
(...)uma virada e tanto em sua carreira e do músico, que praticamente estreava de verdade no Rio e
em São Paulo. E seu trabalho constante como instrumentista – embora cada vez mais dissociado do de
compositor – acabaria por lhe dar as primeiras chances de uma carreira mais desimpedida, autônoma.
O fato de Nivaldo Ornelas ser cada vez mais reconhecido por seus pares como um músico
importante, o credenciava para que pudesse passar do estágio de simples acompanhante, por mais
extraordinário que fosse, para mestre criador, um aval concedido por dois meios distintos de
legitimação e consagração, o meio musical e o da crítica, estabelecendo, portanto, um vínculo
através de cooptação11, corroborada pelas premiações que recebera no caso de disco Portal dos
Anjos através do prêmio Villa-Lobos no ano de 1979.
Estes traços de constituição de um campo de produção autônoma são encontrados na
produção de Nivaldo Ornelas de maneira restrita, já que a modalidade música instrumental, mesmo
apresentando características de autonomização, como, por exemplo, a busca por traços de
originalidade e formação de mercado consumidor, está subordinada ao campo da música popular de
um modo geral, já que para que os agentes produtores de música instrumental possam realizar sua
9
“Especificamente organizado com vistas à produção de bens culturais destinado a não-produtores de bens culturais (o
grande público)” (Bourdieu, 1998 p.105)
10
“Sistema que produz bens culturais (e os instrumentos de apropriação destes bens), objetivamente destinados (ao
menos a curto prazo) a um grupo de produtores de bens culturais que também produzem para produtores de bens
culturais”. (Bourdieu, 1998 p. 105)
11
“Todas as formas de reconhecimento – prêmio, recompensas e honras, eleições para uma academia, uma
universidade, um comitê científico, convite para um congresso ou para uma universidade, publicação em uma revista
científica ou através de uma editora consagrada, presença em antologias de trechos escolhidos, menções nos trabalhos
dos contemporâneos, nas obras de História da arte ou da ciência, citações nas enciclopédias e nos dicionários, etc. não
passam de formas diversas de cooptação cujo valor depende da posição dos cooptantes na hierarquia da
consagração.” (Bourdieu, 1998 p. 119)
25
produção, eles necessitam dos meios de legitimação e consagração disponibilizados pelo campo
autônomo constituído pela música popular, no caso a música popular brasileira. Esse ponto de vista
é tratado por Néstor Garcia Canclini, onde o autor revela uma série de números de vendagens de
livros na América Latina, comprovando que os autores de arte precisam realizar outras atividades
para se sustentarem, criando com isso um cruzamento não só entre práticas do mesmo campo, mas
de campos distintos, hibridando inclusive um mercado aparentemente estável: “Por isso, conclui, no
Brasil não se produz uma distinção clara, como nas sociedades européias, entre a cultura artística e
o mercado massivo, nem suas contradições adotam uma forma tão antagônica” (Canclini, 2003, p.
68).
Em 1982, Nivaldo lança seu segundo disco de carreira À Tarde. Lançamento que jornal
Folha de São Paulo cobriu da seguinte maneira: “A seguir, com o máster na mão, Nivaldo
percorreu as gravadoras oferecendo seu trabalho, um itinerário bastante conhecido dos músicos
instrumentistas independentes”. Sem conseguir sucesso com selos independentes no Brasil, Nivaldo
Ornelas ofereceu o máster da gravação do seu segundo disco À Tarde, realizado entre novembro e
maio de 1981 no Rio de Janeiro, para uma gravadora francesa, aproveitando uma excursão àquele
país: “O pessoal da Syracuse assistiu aos shows, gostou, dei-lhes a fita, e há pouco tempo fiquei
sabendo que o LP estava prestes a sair”. Dentro da mesma matéria, há uma citação ao encarte do
disco À Tarde: “Mais do que o instrumentista, impõe-se aqui o compositor, saxofonista e flautista,
Nivaldo Ornelas tem um fraseado e uma sonoridade pessoais, e improvisa como um jazzman”. E o
jornalista João Marcos Coelho complementa:
Como é impossível não evocar , ao escutar o toque de Nivaldo no tenor, as gravações de baladas
lentas de Coltrane no final dos anos 50 (com Garland e Chambers, para a Prestige). O vocabulário da
música improvisada sem dúvida remete, de um ou de outro modo, inevitavelmente, ao jazz.
Esta referência ao jazz nunca foi negada por Ornelas, pelo contrário, o músico sempre fez
questão de reverenciar os cânones do gênero, mas o músico também reivindica a originalidade e
autenticidade da produção musical aqui realizada: “Temos uma música instrumental única, rica,
fruto de nossa cultura musical forte, que não pode nem deve ser rotulada como jazz”.
26
O relato anterior evoca pelo menos uma das características de legitimação por parte do
corpo de produtores/consumidores de música instrumental no Brasil, como a “influência” do jazz,
mas que ao mesmo tempo procura se diferenciar da produção de seu país de origem, os EUA, ao
identificar traços de originalidade, “gerador de um tipo de raridade”, como exposto por Pierre
Bourdieu:
(... )embora o campo de produção erudita possa nunca estar dominado por uma ortodoxia, está sempre
às voltas com a questão da ortodoxia, ou seja, com a questão dos critérios que definem o exercício
legítimo de um tipo determinado de prática intelectual ou artística.
(Bourdieu, 1998, p. 109)
O terceiro disco de carreira de Ornelas, Viagem Através de Um Sonho, é lançado no ano de
1983 e recebe críticas rasas dos veículos de comunicação, sendo encontradas matérias no jornal O
Globo e na revista Veja, que ressalta as características de originalidade de Nivaldo quando diz que
ele não imita os padrões musicais de músicos americanos, além de dar a seguinte declaração: “(...)O
resultado é um disco vibrante, acessível a qualquer ouvinte e não apenas a outros músicos capazes
de decifrar sutilezas técnicas”.
Os adjetivos vibrante e acessível demonstram certo grau de intolerância por parte da crítica
brasileira em repúdio à linguagem altamente especializada que as vanguardas musicais, sejam elas
do campo da música erudita ou do jazz, desenvolveram durante o século XX. Esta necessidade de
“facilidade” de assimilação, exposto na crítica da revista Veja, tende a ser encarada como uma
maneira de romper com a pretensa ortodoxia da produção de música instrumental no Brasil,
incentivando o público não cultivado a se inserir como consumidores deste tipo de produção.
A preocupação em se democratizar a produção de música instrumental também é
compartilhada pelo próprio Nivaldo Ornelas, como registra a matéria do Jornal do Brasil de 15 de
julho de 1993, em referência à apresentação do músico durante o projeto Menu Musical, no prédio
do MEC, centro do Rio de Janeiro:
Em plena agitação do Centro, uma platéia de advogados, aposentados, executivos, secretárias e boys
aproveitava pra relaxar. “Vim de uma audiência, parei para me abastecer de coisas boas”, explicou o
advogado Cláudio Oliveira de 46 anos. “A gente também se alimenta de música”, disse o contínuo
Evandro de Moura, 23. “Esse é o verdadeiro público”, resumiu Ornellas.
27
O verdadeiro público então, não se restringe aos seus pares músicos, mas se refere ao
grande público. Uma idéia que se aproxima de outra declaração do músico, desta vez para o jornal
O Estado de São Paulo, publicado em 1990, quando diz: Não se pode separar a música
instrumental do resto da música brasileira, esta demanda pela aceitação do trabalho desenvolvido
com fins para música instrumental não se limita a ser uma reivindicação de gênero, da tradição da
música popular brasileira, mas também uma reivindicação de público consumidor, buscando
expandir sua popularidade.
Apesar da crítica pouco efusiva em relação ao lançamento de Viagem Através de Um Sonho,
o disco foi premiado. Segundo Bourdieu, premiações de críticos são uma maneira de legitimação e
consagração da produção de determinado artista, como aconteceu no caso de Ornelas, descrito por
José Domingos Rafaelli para o jornal O Globo em 27 de julho de 1988:
Ganhador dos troféus Villa-Lobos (melhor disco instrumental de 79), (prêmio da associação brasileira
de produtores de discos), Chiquinha Gonzaga (com o disco “Viagem Através de um Sonho”),
premiado pela Associação Paulista de Críticos de Artes (como melhor instrumentista de 1983), entre
muitos outros...
Entre os anos de 1984 e 1989, Nivaldo Ornelas lança dois outros discos, Som e Fantasia, ao
lado do pianista Marcos Resende; e Concerto Planeta Terra, projeto conjunto do músico ao lado de
Nelson Ayres, Márcio Montarroyos e Toninho Horta. Em comemoração aos 10 anos de lançamento
de seu primeiro disco, e consequentemente de sua carreira autônoma, o jornal O Globo noticia o
disco Portal dos Anjos como um pilar em sua carreira, conforme a citação:
A Séria MPBC e os shows da Funarte foram o marco inicial de um movimento de valorização e
reconhecimento da música instrumental no Brasil. Ao longo dos últimos dez anos, o gênero
consolidou seu público, como provam os vários festivais de música instrumental e os novos espaços
criados para shows.
Apesar da lacuna a respeito dos lançamentos anteriores, o sexto disco de carreira do músico,
Colheita do Trigo, foi bem recebido pela imprensa, como na crítica assinada pelo jornalista Carlos
Calado para o jornal Folha de São Paulo de 04 de abril de 1990, onde este reforça as características
de autonomia e maturidade musical atingidos por Nivaldo: “Ornelas chegou àquele estado ideal, em
que pode exibir ao máximo toda sua técnica e sensibilidade nos próprios temas e arranjos que
28
escreve”; o crítico também reafirma a “influência” do jazz americano na música do saxofonista:
Mesmo que o jazz tenha desempenhado um papel importante em sua formação (o sax furioso de John
Coltrane o influenciou diretamente). Ornelas já definiu sua personalidade há muito tempo. Desde a
faixa-título, que abre o disco, suas composições revelam melodias originais com arranjos que optam
pelo lirismo.
A importância do saxofonista John Coltrane, sempre declarada por Ornelas, é exposta de maneira
flagrante quando o músico presta homenagem ao saxofonista americano em show no Rio de
Janeiro, conforme expõe a matéria do Jornal do Brasil de 20 de setembro de 1990:
JB – Por que homenagem especial a John Coltrane?
Nivaldo – Ele tocava sax tenor, o mesmo instrumento que eu toco. Foi o meu inspirador, eu tocava
clarineta e troquei de instrumento por causa dele e da música dele. No próximo dia 23, se não me
engano, ele completaria 63 anos se fosse vivo. Coltrane gravou seu primeiro disco solo em 59 e eu li
em uma revista especializada que estão comemorando nos EUA 30 anos da sua carreira solo. Pensei
em fazer uma homenagem tocando quatro clássicos dele: Giant Steps, Mister PC, Central Park West e
Naima. Vou mostrar o Coltrane compositor, mas vou tocar a música dele como eu acho que ela é, a
atmosfera dele através de mim, que sou um músico brasileiro.
A referência do jazz americano transita no discurso de Nivaldo Ornelas como um tipo de
escola pela qual os músicos brasileiros tiveram de passar, e no caso específico dele, funcionou como
uma forma de desenvolver a técnica no instrumento:
Foi uma coisa que eu aprendi ouvindo muito jazz, né, que todo instrumentista tem uma marca muito
forte de jazz, e eu quando comecei a frequentar o meio musical de Belo Horizonte era só o que se
ouvia, e eu me liguei logo, fiquei ligado nisso muito tempo.
Esse processo de aprendizagem, mesmo que não tenha sido realizado dentro de uma
academia ou conservatório, tem a sua tradição na prática da oralidade, e funciona, assim como nos
métodos mais ortodoxos, como uma maneira de inculcação dos processos e características de
legitimação de um campo de produção autônoma, o que o distancia da inteligibilidade imediata do
grande público, como demonstra Pierre Bourdieu:
(...)enquanto que a recepção dos produtos do sistema da indústria cultural é mais ou menos
independente do nível de instrução dos receptores (uma vez que tal sistema tende a ajustar-se à
demanda), as obras de arte erudita derivam sua raridade propriamente cultural e, por esta via, sua
função de distinção social, da raridade dos instrumentos destinados a seu deciframento, vale dizer, da
distribuição desigual das condições de aquisição da disposição propriamente estética que exigem e do
código necessário à decodificação (por, exemplo, através do acesso às instituições escolares
especialmente organizadas com o fim de inculcá-la), e também das disposições para adquirir tal
código (por exemplo, fazer parte de uma família cultivada).
(Bourdieu, 1998, p.117)
Ao mesmo tempo em que a música realizada por Nivaldo Ornelas não é necessariamente
29
produzida para a grande massa de consumidores, também não o é restrita a um círculo de paresprodutores. Isto se torna claro quando tomamos os números de vendagens de alguns dos seus
discos, como os segundo e terceiro, À Tarde e Viagem Através de Um Sonho, respectivamente, como
apresentada em matéria do jornal O Estado de São Paulo, publicada no dia 29 de março de 1990 e
assinada por João Luiz Albuquerque:
O segundo foi A Tarde (1982)(...)Vendeu umas dez mil cópias e ainda hoje é encontrado nos lojas
francesas. Depois, foi o independente Viagem Através de um Sonho, em 84. Vendi mais de 15 mil
exemplares nos meus shows, e ele se pagou admiravelmente bem.
Ou ainda como revela outra reportagem, também do jornal no O Estado de São Paulo
publicada no mesmo ano de 1990, onde Nivaldo dá os números de vendagem do seu disco mais
recente à época, Colheita do Trigo:
Para Nivaldo Ornelas, o disco Colheita do Trigo – que vendeu 2000 exemplares em um mês –
representa uma virada em sua carreira, já que encontrou uma gravadora disposta a “vender” e não a
sucumbir ao preconceito de que música instrumental é feita apenas para “músicos”. Para comprovar
sua tese, ele lembra que, no tempo de Pixinguinha e Jacob do Bandolim, a proporção entre música
instrumental e a cantada era de 60 a 40%.
Como solução para a autonomia e sustentabilidade da produção longe das grandes editoras e
gravadoras, Ornelas é categórico:
Meu conselho: gravem seus discos independentes para vender nos shows. Em 85, na Ariola, gravei
Sonho e Fantasia, lançado no mundo inteiro e uma das faixas acabou na novela Transas e Caretas.
Participei ainda do disco Planeta Terra, patrocinado pela IBM, onde, num lado inteiro, regi uma
orquestra sinfônica tocando uma composição minha.
Para Nivaldo Ornelas, portanto, a produção autônoma não só da música, mas de sua
divulgação foi fundamental para que o músico pudesse desenvolver uma carreira sólida como líder
de seu próprio trabalho, o que não impediu que o músico continuasse como profissional de estúdios,
emprestando o seu som para diversas gravações tanto de compositores da música instrumental,
como nomes já conhecidos da música popular brasileira como Edu Lobo e Dorival Caymmi, e
continuando a ser Milton Nascimento o artista com o qual mais gravou, totalizando 10 discos.
Outros cinco discos solo de Nivaldo Ornelas foram lançados a partir de 1997: As Canções de
Milton Nascimento, ao lado do pianista, tecladista e produtor musical Ricardo Leão; Arredores de
30
1998, vencedor do Prêmio Sharp de melhor disco instrumental daquele ano; Aquarelas, A Música de
Ary Barroso, disco de Nivaldo Ornelas ao lado do guitarrista Juarez Moreira (1996); Viagem em
Direção ao Oco do Toco de 2007 e Fogo e Ouro, lançado em 2009.
3. Das Trilogias:
Erigida sua carreira autônoma, Nivaldo Ornelas tem se dedicado, desde então, a uma grande
variedade de realizações em música, seja como músico contratado – como exposto anteriormente –
seja como autor e intérprete de música instrumental, de trilhas sonoras, além de produzir, arranjar e
compor para formações de música de câmara, um trabalho ao qual vem se dedicando desde o início
dos oitenta e que, principalmente durante os últimos anos, tem se intensificado e tomando boa parte
da atenção do músico, como ele mesmo afirma (informação verbal):
Nivaldo – É, com certeza, com certeza, agora, eu tenho minha parte de composição um pouco
descolada desse efeito mineiro aí, que talvez você não conheça. Um deles é a parte de música de
câmera, câmara.
Bernardo – De música escrita.
Nivaldo – Esse é o material maior que eu tenho na vida, esses discos que eu tenho é um sexto, um
décimo, comecei em 82, então 26 anos, 27 anos, que são peças pra... falando peças parece que é
alguma coisa do outro mundo, não é não, mas, é verdadeiro. De repente você vai olhar aqui e falar:
Isso aqui é uma porcaria, né? Os outros vão embrulhar pão com isso aí. Mas tudo bem, está aí. Ou
então, o cara vai embrulhar pão e aí o cara solfeja e diz: Poxa, mas isso aqui é bom, hem? Caramba!
Mas aí já foi, né?
Nesta tese escolhemos um recorte das tantas atividades realizadas por Ornelas, sendo que,
fundamentalmente, nos dedicamos à identificação dos aspectos híbridos musicais presentes em suas
realizações como saxofonista e como autor inserido no contexto da música instrumental através de
sua produção fonográfica. Da totalidade de seus 11 discos, foram escolhidos como objeto desta tese
cinco em especial, que segundo o autor, integram duas trilogias, sendo que a segunda delas, até o
momento, está inacabada (informação verbal):
Nivaldo – Essa trilogia é “Portal dos Anjos”, “À Tarde” e “Colheita do Trigo”, é a primeira trilogia.
Bernardo – É a primeira trilogia, portanto, tem mais uma outra,
Nivaldo – É, tem a outra que começou com “Arredores”,
Bernardo – Ah, ela ta em curso,
Nivaldo – “Fogo e Ouro” e falta mais um. Eu tenho que fazer.
E sobre o mote da trilogia, o músico afirma (Ornelas, 2007):
A trilogia é um painel sonoro da minha infância e adolescência em Belo Horizonte, Minas Gerais.
31
Impressões que ficaram gravadas definitivamente e viraram músicas. Coincidentemente, alguns
artistas que participaram do trabalho – como Helvius Vilela, Wagner Tiso, Paulo Braga e Jamil Joanes
– são desse tempo e, como eu, vivenciaram aquela época tão rica de um outro Brasil.
Vale ressaltar o uso do termo trilogia pelo autor, que etimologicamente pode se referir a uma
peça científica ou literária dividida em três partes, ou a um conjunto de três obras ligadas entre si
por um tema comum, como nos romances indianistas de José de Alencar, Iracema, Ubirajara e O
Guarani, que se ligam pelo tema, assim como as trilogias de Ornelas, que apesar de pensados neste
conjunto de obras, os discos também podem ser compreendidos como obras fechadas, autônomas,
referindo-se umas às outras por aquilo que o autor chama de painel sonoro de Minas Gerais. Dentre
os cinco discos já lançados, talvez seja o disco Arredores de 1998 que traz de maneira mais
declarada estas referências já nos títulos das músicas, como Folia do Jatobá, alusão ao Congado
que passava pelo bairro da Nova Suissa ou Bonde Amarelo, em referência aos bondes que
circularam em Belo Horizonte até o início dos anos 1960, e ainda Bom Pastor (a mais bela canção),
que durante a juventude do músico tratava-se de um asilo situado no alto do bairro natal de Ornelas,
hoje transformado em escola (informação verbal).
Nivaldo – Ali, a Nova Suissa era o seguinte. Em cima tem o Asilo Bom Pastor, você chegou a ver,
não?
Bernardo – Que é uma escola hoje.
Nivaldo – Onde é um colégio. Ali tinha uma missão alemã, que o...[sic] Sabe o que os padres faziam?
Trazia todo aquele material de música de Bach e pá, pá, pá. Ensinavam as irmãs ali, as freiras, com
órgão e tudo então era original, então era uma maravilha. Aquela missa cantada deles com aquele coro
feminino, a missa de Fauré12.Aquilo matava, e eu criança, meu Deus do Céu, dava uma tristeza,
vontade de chorar, mas era bonito pra caramba, então, ouvi isso.
Essas referências a símbolos de sua juventude em Minas Gerais não ocorrem somente neste
disco, mas em todos os discos de ambas as trilogias, outros temas como As Minas de Morro Velho,
Nova Suissa, Sábado à Tarde, Rua Genebra e Nova Lima Inglesa, por exemplo, também se referem
aos lugares de ligação afetiva do músico, referências de sua história.
Nesta seção, apresentaremos características de cada um destes cinco discos de carreira do
autor, e no Capítulo II são apresentadas análises de quatro composições presentes na primeira das
trilogias conceituais, sendo elas Nova Lima Inglesa do disco Colheita do Trigo de 1990; Nova
12
É possível que Ornelas estivesse se referindo ao Réquiem de Fauré.
32
Suíssa, Sábado à Tarde do disco À Tarde lançado em 1982; Rock Novo outra composição presente
no disco Colheita do Trigo e por fim, Ninfas, música presente no disco de estréia do músico, Portal
dos Anjos de 1978 e inédito, até o momento, em CD.
3.1
Portal dos Anjos (1978):
Figura 2. Capa do LP Portal dos Anjos de 1978
Entre o final dos anos 1970 e o início da década seguinte foi lançada pela gravadora Philips
no Brasil uma série de discos intitulada MPBC (Música Popular Brasileira Contemporânea). Essa
coleção pôde lançar nomes ainda pouco conhecidos na produção de música instrumental daquelas
décadas. Músicos como Djalma Corrêa, Robertinho Silva, Nelson Ayres, Aécio Flávio, ou ainda
Túlio Mourão, puderam ser mais bem divulgados ao público consumidor de discos como
compositores dessa modalidade musical.
Nivaldo Ornelas se lançou na, hoje ainda, insipiente indústria de música instrumental no
Brasil através dessa série da Philips. Em seu disco de estréia, o músico contou com a participação
de uma infinidade de “parceiros”, colegas de profissão, sendo que boa parte deles o acompanhava
desde os tempos do Edifício Archângelo Maletta. Dentre os músicos que participaram da gravação
do disco estão: os pianistas Hélvius Villela e Wagner Tiso; o violonista e guitarrista Toninho Horta;
os bateristas e percussionistas Pascoal Meirelles, Paulinho Braga, Robertinho Silva, Chacal, Chico
33
Batera e Ubiratan; Jamil Joanes, no baixo elétrico; Luís Alves no baixo acústico; Márcio
Montarroyos no trompete e flugellhorn, além de um naipe de flautas que contava com: Mauro
Senise, Zé Carlos, Cacau, Raul Mascarenhas, Ricardo Pontes e Jairo Lara, este último, saxofonista e
flautista residente em Belo Horizonte e parceiro de Ornelas na música Cidadela, incluída no
referido disco. Incluem-se também participações de quarteto de cordas composto por José Alves e
Aizik nos violinos; Frederick na viola e Watson Clis, seu antigo colega da Escola de Formação
Musical de Belo Horizonte, no violoncelo, além de coros infantil e adulto misto sob regência de
Jacques Morelenbaum.
Portal dos Anjos foi vencedor do prêmio Villa-Lobos do ano de 1978, dado pela Associação
Brasileira dos Produtores de Disco. O álbum apresenta oito músicas inéditas e todas, composições
do músico, sendo que três delas em parcerias: As Minas de Morro Velho, composta juntamente com
Cid Ornellas, seu irmão; Portal dos Anjos, com Roberto Fabel e Cidadela, já citada, juntamente
com Jairo Lara. O disco inicia com As Minas de Morro Velho, uma referência à mina de ouro
localizada na cidade de Nova Lima, cidade da região metropolitana de Belo Horizonte e local onde
Ornelas passava férias durante a infância; seguem-se Portal dos Anjos; Arqueiro do Rei e Ninfas,
que encerra o lado A. No lado B consta a seguinte ordem: Querubins e Serafins; Sorrisos de Uma
Criança; Cidadela e O Que Há de Mais Sagrado.
Nesse disco de estréia podemos perceber, tanto pelo título do disco, Portal dos Anjos, quanto
por boa parte dos títulos das composições, uma recorrência a uma temática religiosa, mística,
sobrenatural, onde figuras de anjos, querubins, serafins, ninfas e o sagrado compõem um cenário
onírico indicando uma produção possivelmente voltada para a sua intimidade, seu lado intuitivo e
contemplativo. Esta estética, aliás, pode ter surpreendido boa parte dos ouvintes que
acompanhavam anteriormente o trabalho de Ornelas, já que como característica fundamental desse
trabalho - e veremos uma recorrência dessa postura na descrição dos próximos quatro discos - o
músico não propõe um disco do virtuose saxofonista, mas sim, do compositor e arranjador no qual a
sua participação como instrumentista é colocar-se como um músico a mais o lado dos demais. Essa
34
postura diferencia enormemente aquilo que o músico até então vinha fazendo como participante no
trabalho de outros artistas, bem como do automatismo e mecanicismo dos arranjos e composições
de encomenda. Quanto à opinião pessoal do autor em relação ao seu disco de estréia, ele comenta:
Bernardo – o “Portal dos Anjos”.
Nivaldo – É. Eu gosto muito. Eu gosto do conceito dele. Que é meio um painel de Minas Gerais pra
mim, do que eu vivi, né? Um painel mesmo, vai de A a Z aquilo ali, né? Sabe? Aqueles sons de
criança, de música religiosa, de congado, de ã...Aquilo tudo eu vivi, eu não pesquisei aquilo, porque
tem o sujeito que pesquisa, né?
Ornelas nos revela, na citação, sua relação com as práticas musicais de seu bairro, os laços
vicinais que constituíram o dito painel sonoro do lugar em que foi criado, tendo tido uma
experienciado essas práticas como um nativo dessas realizações, fosse integrando o cortejo do
Congado do Jatobá, que passava pelo seu bairro natal, ou nas Folias tocando sanfona, bem como ao
presenciar seus pais tocando e cantando um repertório identificado com o das serestas, ou ainda
como ouvinte dos coros do Covento Bom Pastor. Portal dos Anjos, como idealizado pelo autor, trata
dessas referências e do olhar pessoal do músico sobre essas impressões.
3.2
À Tarde (1982):
Figura 3. Capa do LP e CD À Tarde, de 1982.
Lançado em 1982 pelo selo independente francês Syracouse, À tarde foi gravado no Rio de
Janeiro entre novembro de 1980 e maio de 1981 e inédito no Brasil até seu recente lançamento em
CD, em 2007, em uma compilação dupla juntamente com outro disco de carreira de Ornelas,
35
Viagem Através de Um Sonho de 1983, mas que segundo o autor, não faz parte das Trilogias citadas.
À Tarde é o segundo disco de carreira de Ornelas e o segundo disco da primeira das trilogias
temáticas do autor, sendo que o CD conta com 10 faixas, sendo uma delas, João Rosa, uma faixa
extra, presente somente nessa nova edição. A referida música é uma canção com letra de Murilo
Antunes e foi trilha sonora do filme homônimo de Helvécio Ratton, ganhador do Festival de
Brasília de 1984. As outras músicas do disco são: Nova Suissa, Sábado à Tarde; composição de
Ornelas que é um dos objetos de investigação desta tese, que tem em seu título a referência ao seu
bairro natal, a Nova Suissa; Cactus vem em seguida. Nessa composição, Ornelas explica no encarte
do disco que desenvolveu o tema sobre ao compasso de 7/4 como uma referência ao trabalho do
pianista Dave Brubeck (1920 -); um dos principais ícones do jazz nos tempos do Berimbau Clube,
reconhecido principalmente através do disco Time Out, de 1959, no qual eram utilizados compassos
não usuais ao jazz até então, como 5/4, 12/8 e o 7/4 já mencionado. A terceira faixa é Viagem
Através de Um Sonho I; e também conforme explicação presente no encarte do CD À Tarde, foi
composta dentro do estúdio, demonstrando um espírito colaborativo presente no trabalho do músico
e representante, talvez, de uma práxis comum aos músicos de música instrumental principalmente
daquela geração, onde as figuras de compositor, arranjador e instrumentista se misturam e a relação
entre produto e processo, ou seja, entre o resultado da obra musical e de sua performance estão
intimamente ligados. O título dessa música veio a ser utilizado como o nome de outro disco de
Ornelas, lançado em 1983. Amanhecendo é a quarta faixa, composta em parceria com o pianista
Marcos Resende; completam o disco as faixas Lascívia; Los Angeles; Viagem Através de Um Sonho
II; Entardecer, composição de Joseph Engel e Variações Sobre Sorrisos de Uma Criança, uma
releitura do tema Sorrisos de Uma Criança composta por Ornelas e presente em seu disco de
estréia: Portal dos Anjos.
Uma série de músicos participou das gravações de À Tarde, alguns deles já havia participado
das gravações de seu disco de estréia, como os pianistas Wagner Tiso e Hélvius Vilela, bem como o
baterista Paulo Braga, o baixista Jamil Joanes e os flautistas e saxofonistas Ricardo Pontes e Mauro
36
Senise, mas em sua maioria, Ornelas convidou outros músicos para fazerem parte do álbum, casos
de: Alex Malheiros, contrabaixo; Grupo Viva Voz, os pianistas e tecladistas: Marcos Resende,
André Dequech, Edu Mello e Souza e Reynaldo Arias; Paulo Guimarães na flauta, os guitarristas
Luizinho Maia e Ricardo Silveira, os percussionistas Cidinho, Bolão e Márcio; além do
violoncelista Cid Ornellas, irmão de Nivaldo.
3.3
Colheita do Trigo (1990):
Figura 4. Capa do LP Colheita do Trigo de 1990.
Plantado o gérmen da música instrumental nos idos dos anos 1960 no Berimbau Clube,
Nivaldo Ornelas colhe os frutos de um trabalho autoral iniciado em 1978 com o lançamento de
Portal dos Anjos. De características multifacetadas, o disco Colheita do Trigo, lançado em 1990,
encerra a primeira de duas trilogias, esta iniciada com o disco Portal dos Anjos (1978), seguido de
À Tarde (1982); e a segunda, ainda não concluída, foi iniciada em 1998 com o disco Arredores,
seguido de Fogo e Ouro de 2009.
O título do disco e da música Colheita do Trigo gravado em 1990, remete a um símbolo
profundamente ligado à história da humanidade, que é o de se plantar e colher o trigo, símbolo de
alimento, do corpo e da alma, no mundo judaico-cristão. Esta referência imagética da colheita pode
ser relacionada ao processo de amadurecimento do músico, Nivaldo Ornelas, onde a ideia criada em
37
torno deste ciclo se refere a algo que foi plantado, regado, adubado, cuidado, até que é chegado o
momento de sua colheita, que também traz em si uma imagem da comunidade do espírito gregário e
colaborativo do fazer musical, principalmente em práticas ligadas à música instrumental e ao jazz.
Como metáfora ao tema proposto, podemos aludir o título do disco de Ornelas ao jargão
nesta terra em se plantando tudo dá numa referência ao processo de hibridação e o terreno fértil
para o plantio no Brasil, afinal de contas, mesmo o trigo não sendo um grão natural do país, plantase e produz-se trigo no Brasil, bem como um sem número de árvores frutíferas que podem parecer
tão brasileiras, como as bananeiras, as mangueiras ou os coqueiros, mas que são plantas exóticas à
flora nacional. Assim também ocorre com estes gêneros musicais que há séculos tem suas sementes
jogadas em meio à efervescência cultural nacional e germinam de maneira muito própria o híbrido
em nossa música, desde a polca às marchas militares, passando pelo jazz e gêneros musicais
contemporâneos, como afirma o próprio Canclini, ao se referir às primeiras investidas de Mendel na
botânica:
Desde que, em 1870, Mendel mostrou o enriquecimento produzido por cruzamentos genéticos em
botânica, abundam as hibridações férteis para aproveitar características de células de plantas
diferentes e melhorar seu crescimento, resistência, qualidade, assim como o valor econômico e
nutritivo de alimentos derivados delas.
(Canclini, 1997, p. XXI)
Neste LP, Nivaldo Ornelas apresenta oito composições de sua autoria, sendo o disco iniciado
com a música título, Colheita do Trigo, de composição do autor em parceria com André Dequech,
seguindo no lado A do fonograma, encontram-se as músicas Sentimentos Não Revelados, com
participação de Milton Nascimento; Nova Lima Inglesa e Sorriso de Criança, música anteriormente
presente no seu disco de estreia Portal dos Anjos e aqui regravada. O lado B do LP inicia com Rock
Novo, seguida de Adeus à Infância, composição do tecladista Pierre Luc Vallet, seguida de Cello
Romanceado e 12 de Outubro, ambas as composições de Ornelas.
38
3.4
Arredores (1998):
Figura 4. Capa do CD Arredores
Exatamente vinte anos após o lançamento de seu primeiro disco autoral, Nivaldo Ornelas
revisita a temática anteriormente instaurada através de uma segunda trilogia sobre o que o autor
chama de paisagem sonora de Minas Gerais. Arredores é o oitavo disco de carreira do autor e foi
vencedor do Prêmio Sharp de 1998, o disco, em seu encarte, apresenta uma boa descrição das
músicas sob o olhar de seu compositor. Nele, Ornelas volta a abordar tematicamente ícones de sua
infância e juventude em Belo Horizonte. O próprio nome das músicas evidencia esse tipo de
retórica, casos de Folia do Jatobá, Celeste Império e São Domingos do Congado, referências aos
cortejos das Folias e Congados que circundavam seu bairro, a Nova Suissa, e adjacências. As
imagens da cidade e de seus hábitos permeiam o disco que foi gravado em Belo Horizonte e contou
com músicos que fundamentalmente atuam ou atuavam na capital mineira naquela época, dentre
eles: André Dequech, piano e teclado; Belo Lopes, violão; Ivan Corrêa, baixo; Lincoln Cheib,
bateria; Odlavin Salenro, acordeão; Sérgio Silva, percussão; Wilson Lopes, viola de 10 cordas e
violão; Mário Castelo, percussão e Ricardo Cheib, percussão, excedem a esta regra Mayo Ângelo
Ornelas, seu filho, tocando cavaquinho e Nailor “Proveta” Azevedo no clarinete. Participam
também do disco como convidados: Maurício Tizumba, Paula Santoro, Sérgio Santos, Vanessa
Falabella, Vânia Bastos, Cid Ornellas, Juarez Moreira e Kiko Mitre.
39
Essa preocupação em convidar músicos mineiros para participar das gravações de Arredores,
além de ter gravado o disco em Belo Horizonte, parece ter sido intencionalmente realizada com fins
para diferenciar as chamadas trilogias do resto de sua produção, sendo esta intimamente relacionada
com a sua história pregressa em Minas, tendo na expressão “arredores” utilizada como título deste
trabalho uma citação às cercanias da cidade, dos subúrbios e das cidades da região metropolitana da
capital, locais de seu convívio. O título desse disco, também alegoriza bem a produção em música
instrumental por ele realizada, já que são percebidas diversas referências não usuais à produção
ordinária nessa modalidade, como dos congados, folias, modinhas, canções, inferências que
parecem fazer com que o autor lide com características fronteiriças das realizações nessa
modalidade, confrontando seus limites e dialogando com o que está ao redor dela, tendo como um
de seus produtos realizações híbridas dos materiais musicais utilizados.
3.5
Fogo e Ouro (2009):
Figura 5. Capa do CD Fogo e Ouro: 2009.
Dando continuidade à sua segunda trilogia temática, Ornelas lança em maio de 2009 o disco
Fogo e Ouro, lançamento independente e que teve como músicos participantes os pianistas e
tecladistas Delia Fischer, Hélvius Vilela, Mú Carvalho, Ricardo Leão e André Dequech; os
violonistas e guitarristas Juarez Moreira, Luis Brasil e Luis Meira; os baixistas Kiko Mitre e
Marcelo Camargo Mariano; os bateristas e percussionistas Esdra Ferreira (Neném), Sérgo Silva,
40
Adriano Trindade, Cláudio Infante e Sidinho Moreira; os cantores Carla Villar, Patrícia Vilches, Ana
Zingone, Paulinho Soledade, Ana Zinger e Cid Ornellas. Participaram ainda, Mayo Ângelo Ornelas,
no cavaquinho e banjo, e os saxofonistas Ricardo Serpa, saxofone soprano, Henrique Band,
saxofones soprano e barítono e Cléber Alves, saxofones soprano e tenor.
Das composições presentes no disco, todas são composições de Ornelas, exceto Rua Java e
Diminuto, de Helvius Vilela, e Invenção nº1 de J.S.Bach. Esta peça, escrita inicialmente para
instrumentos de teclado, é realizada na flauta solo e serve como introdução a outro tema de Ornelas
intitulado Barra-Ponto. O disco começa com uma regravação de Nova Lima Inglesa, música
registrada inicialmente no disco Colheita do Trigo de 1990, seguem-se Rua Java, já citada, música
de Helvius Vilela desenvolvida sobre, basicamente, os compasso de 5/4 e 6/8, com Ornelas tocando
saxofone soprano e que reveza a melodia da música com os vocais de Patrícia Vilches; na sequência
do disco estão Maracajú e D’Areia, ambas as composições de Ornelas. Outras referências a Belo
Horizonte e especificamente ao bairro da Nova Suissa aparecem em outros títulos, como em Rua
Genebra e Rua Zurique, que juntamente com a Rua Java, cita ruas do bairro natal de Ornelas. Em
seguida é apresentada Fogo e Ouro, composição dividida em três movimentos intitulados O Clarão,
O Brilho e A Força. O primeiro movimento, O Clarão, é apresentado como uma introdução à
música, mas já revelando o tema a ser desenvolvido, realizado pelo saxofonista Ricardo Serpa no
soprano. O Brilho começa com o desenvolvimento do tema anteriormente apresentado, onde é
entoado por Cid Ornellas, que é logo seguido por A Força, último desenvolvimento temático, desta
vez sobre um compasso de 7/4.
Constam ainda Preludir, Diminuto, um samba de Helvius Vilela, e encerrando o disco, a
Invenção nº1 de Bach seguida de Barra-Ponto. Quanto à peça de Bach, no contexto da performance
de Ornelas esta parece se revelar muito mais como um estudo voltado para o desenvolvimento
técnico da flauta transversal. Ornelas diz ter entrado em contato com o repertório do compositor do
barroco alemão ainda no período que tocava com Hermeto Pascoal no início dos ’70 em São Paulo
(informação verbal):
41
Nivaldo – Toco tudo de cor porque estudei. Mesmo. Lá atrás quando eu tocava com o Hermeto, eu
estudei isso. E eu tenho uma gravação hoje e tem 40 dias que eu não pego na minha flauta. É muito.
Eu tenho gravina hoje.
Bernardo – É, né? Isso seria ... parte do seu estudo contínuo? Tocar Bach, por exemplo?
Nivaldo – É, passei a vida fazendo isso. Depois passava pro sax.
Na versão aqui apresentada, a Invenção bachiana aparece acompanhada de uma levada de
folia, que segundo consta no encarte do CD, foi desenvolvida por Sérgio Silva e Esdra Ferreira,
provavelmente dentro do estúdio, e que serviu de ponto de partida para que Ornelas aplicasse e
desenvolvesse suas idéias.
42
CAPÍTULO II – ANÁLISES
O capítulo que aqui iniciamos busca expor uma série de análises referentes a quatro
composições de Nivaldo Ornelas distribuídas em três de seus discos de carreira, a primeira de duas
trilogias temáticas desenvolvidas pelo autor que tratam do painel sonoro de Minas Gerais. Os
apontamentos aqui realizados trancendem a lógica retilínea e planificada dos grandes modelos
analíticos e buscam trazer à tona analogias, justificações e comparações dos fenômenos musicais
selecionados a partir de uma série de referências para a sua observação, evitando-se, nesse percurso
analítico, apresentar de maneira meramente descritiva, determinados recortes musicais dispostos
através de fórmulas analíticas pré-determinadas, mesmo estando a grande maioria dessas
observações atreladas a procedimentos e ao léxico utilizado na análise com vistas para a música
popular, mais propriamente do jazz e da música brasileira. Essas discussões também foram cruzadas
com a própria literatura musical dos universos que permeiam as referências de Ornelas,
estabelecendo um elo entre os estudos em música com a teoria de hibridação cultural apontada por
Canclini, como sugere o autor:
É necessário demolir esta divisão em três pavimentos, essa concepção em camadas do mundo da
cultura, e averiguar se sua hibridação pode ser lida com as ferramentas das disciplinas que os estudam
separadamente: a história da arte e a literatura que se ocupam do “culto”; o folclore e a antropologia,
consagrados ao popular; os trabalhos sobre comunicação, especializados na cultura massiva.
Precisamos de ciências sociais nômades, capazes de circular pelas escadas que ligam estes
pavimentos. Ou melhor: que redesenhem esses planos e comuniquem os níveis horizontalmente.
(Canclini, 2001, p.19):
As análises aqui dispostas buscam, de maneira específica, tratar do fenômeno de hibridação
em seu viés musical através da identificação das estruturas discretas que o constituem, onde são
identificadas questões de estruturação e organização dessas realizações, sejam referentes à forma,
uso de materiais harmônicos, instrumentação, seções rítmicas, além das próprias questões
interpretativas, propondo estabelecer uma abordagem metodológica intermodal, como contido na
citação, das ciências sociais nômades, sendo utilizadas fontes teóricas de diferentes linhas
investigativas dentro da musicologia para abordar o tema e as composições analisadas de maneira
não hierarquizada, mas horizontalmente e obliquamente.
Haja vista que boa parte da música realizada pela modalidade musical conhecida por música
43
instrumental carece sobremaneira de registros escritos de suas realizações, é imprescindível que
para a apreensão dos elementos musicais que as constituem, lancemos mão do procedimento
conhecido por transcrição musical, extraídos, nesse caso, a partir de seus registros sonoros contidos
em discos. A primeira distinção importante a ser feita sobre o termo transcrição musical decorre de
atribuições distintas da expressão. Segundo o New Grove Dictionary os Music and Musicians em
seu verbete sobre o termo, este é tido como uma subcategoria de notação sendo utilizada como um
recurso de escrita para a adaptação de peças para outras formações instrumentais que não às de
origem, como por exemplo, a redução da grade de orquestra para uma parte de piano ou ainda a
notação de uma peça escrita no formato de tablatura para o pentagrama. Diferentemente da
aplicação do termo transcrição musical citada neste parágrafo, utilizamos nesta tese a aplicação do
referido termo mais próxima de sua herança etnomusicológica: Na transcrição etnomusicológica, a
música é escrita a partir de uma performance ao vivo ou de um registro gravado, ou é transferida
do som para uma tipo de registro gráfico a partir de meios elétricos ou mecânicos.
Segundo Ribeiro (apud Maranesi, 2007, p.02) este tipo de prática se instaurou em
conformidade tanto junto dos etnomusicólogos quanto dos praticantes de música popular:
(...) a transcrição, que tem a ver com a escrita de sons musicais, há muito tem sido considerada um
requisito universalmente aplicado na metodologia etnomusicológica. Este método provê informações
objetivamente quantificáveis e analisáveis, que forneceram uma base sólida para a etnomusicologia
validar-se como disciplina científica.
Uma partitura de música popular, seja ela da música instrumental brasileira ou de jazz,
consta normalmente de um pentagrama único onde se encontram grafadas a melodia da música
juntamente da cifragem de seus acordes, e, quando houver, a letra da canção. Esta partitura é
conhecida genericamente pelo termo inglês leadsheet13 (partitura guia), onde tanto a melodia da
música quanto a sua harmonização podem sofrer importantes alterações a cada nova realização.
Para que tenhamos um retrato mais fiel das realizações musicais contidas nas gravações aqui
consideradas, a maneira mais coerente e ampla de realizar a grafia do gênero é através da chamada
13
Leadsheet, o tipo de partitura mais comum na música popular, geralmente inclui apenas a melodia e os acordes
simplificados na forma de cifras e, algumas vezes, detalhes rítmicos (“convenções”) ou de instrumentação (Fabris,
Borém, p.05, 2005)
44
transcrição nota a nota do registro gravado, como afirma Elenice Maranesi:
Situação semelhante pode ser vista também no campo da música popular, onde as transcrições são
tradicionalmente utilizadas, em particular nos campos do ensino e da prática performática. Neste
terreno, o conceito de transcrição é entendido como o registro, em notação musical tradicional, de
performances executadas em gravações ou em apresentações ao vivo. Na maioria das vezes, o formato
adotado para essa finalidade, é o da transcrição literal, conhecida no meio editorial popular como
transcrição "nota a nota”, aquela que registra minuciosamente, através da escrita musical clássica,
todos os parâmetros musicais básicos nas peças transcritas.
(Maranesi, 2005, p.02)
As edições de transcrições de solos de músicos de jazz nos Estados Unidos é algo que pode
ser considerado corriqueiro, já que iniciativas dessa ordem são praticadas desde pelo menos os anos
1960, e se tornaram importantes ferramentas para a consolidação e difusão dos estudos em jazz,
como cita Gimenes:
Também de 1962 é a associação com a editora The Richmond Organization, que controla a maioria de
suas composições originais. Judy Bell, o editor da TRO envolvido com as publicações de Evans,
comenta que ele era cuidadoso sobre como as transcrições deveriam ser feitas e que eram publicadas
unicamente com a sua
aprovação. Muitos dos arranjos para piano foram escritos pelo próprio
Evans.
(Gimenes, p. 19, 2003)
No Brasil, mesmo ainda não sendo habitual a publicação de transcrições de improvisos, ou
de realizações em música popular, a prática da transcrição é algo que está intimamente ligada ao
estudo do jazz, e da música popular de um modo geral pelos músicos brasileiros, como na
experiência do próprio Nivaldo Ornelas, que sempre lançou mão dessa técnica para o seu
desenvolvimento musical, como podemos observar na declaração do músico no trecho de entrevista
realizada em abril de 2009 e transcrito a seguir (informação verbal):
Bernardo – E ensaio? Então rolava muita música, os ensaios deviam ser longos. Eram encontros
musicais?
Nivaldo – Eram encontros. Não tinha ensaio.
Bernardo – Ficavam tocando? E improvisava?
Nivaldo – Tirando do disco, né? Ia pra casa de não sei quem tirar o disco.
Bernardo – Tirar o disco.
Estudos recentes sobre a música popular e suas características de ensino e aprendizagem têm
buscado demonstrar a validade da prática de se tirar de ouvido como um procedimento analítico e
de desenvolvimento do conhecimento musical, prática esta já consagrada e legitimada pelos
músicos de música popular, tanto do jazz, quanto da MPB, rock e do pop, como observado, por
exemplo, na declaração de Ornelas, supracitada, bem como em trecho da tese de doutorado Sobre
45
Harmonia: Uma Proposta de Perfil Conceitual de Fábio Adour da Camara:
Nos últimos anos, essa forma de aprendizado vem recebendo especial destaque em diversos trabalhos
que se dedicam à Música Popular e às diversas maneiras de aprendê-la. O “tirar de ouvido” foi muito
enfatizado, por exemplo, por Heloísa Feichas em sua tese de doutorado, “Formal and Informal Music
Learning in Brazilian Higher Education” (2006), trabalho que anteriormente citamos e que, por sua
vez, se fundamenta no importante “How Popular Musicians Learn: A Way Ahead For Music
Education” (2002) de Lucy Green.
(Camara, 2009, p.55)
Mesmo podendo ser considerado o meio mais coerente para se grafar o fenômeno musical
em música popular, a escrita é tão somente uma ferramenta na qual nos apoiamos para que
lancemos mão de métodos de análise tradicionais, baseados na observação das representações
gráficas de sua realização, ainda sendo a fonte sonora – gravações ou realizações ao vivo – o
material insubstituível para um entendimento global deste tipo de prática, já que, diferentemente das
composições em música erudita, boa parte das decisões realizadas pelos intérpretes em música
popular não é prevista na partitura, que, grosso modo, são de melodias cifradas e certamente, suas
performances não são feitas com o intuito de serem notadas em partitura, e mesmo quando escritas,
o grau de simbiose entre composição e a interpretação é tamanha que a escrita tradicional - em
pentagrama - limita sobremaneira tanto o registro de dados rítmicos, principalmente quando os
intérpretes lidam com um alto grau de liberdade interpretativa, características inerentes à realização
em música popular e que estão intimamente ligadas, por exemplo, a rallentandos, cedendos,
accellerando, características estas relativas à agógica14, bem como nos usos dos artifícios
dramáticos tais como vibratos, glissandos e portamentos, ou quando adentramos as questões das
variáveis que delimitam a chamada sonoridade, ainda sem falar nas minúcias e meneios das
infinitas formas de articulação. Antevendo essas limitações, é recomendável que o leitor acompanhe
as transcrições e suas análises apresentadas nesta tese concomitantemente à audição das gravações
aqui citadas (que se encontram anexadas em formato de CD de áudio).
Outro agravante em relação à transcrição musical em música popular - relativo
fundamentalmente às gravações realizadas em estúdio a partir dos anos 1960 - se refere às
14
Segundo o Grove Dictionary of Music and Musicians, o termo agógica se refere a: Uma qualificação de expressão e
particularmente acentuação e acento. A qualificação concerne em variações de duração além de intensidade e de
dinâmica. A qualification of Expression and particularly Accentuation and Accent. The qualification is concerned with
variations of duration rather than of dynamic level..
46
características da gravação em overdub. Esta técnica de gravação foi possível a partir de
incrementos técnicos advindos principalmente do desenvolvimento da gravação multipistas, em
canais separados. Nela, diferentemente das gravações ao vivo, realizadas em tempo real, pode-se
gravar instrumento a instrumento separadamente, de modo a fazer uma montagem de várias
performances simultaneamente, sobrepondo uma série de realizações. Depois de gravadas, as várias
linhas instrumentais são submetidas a uma mixagem, onde estes sons são misturados e como
produto tem-se a realização de uma música que, bem da verdade, nunca foi de fato tocada. As
gravações presentes neste estudo são, em sua maioria, realizações dessa natureza, onde há uma
sobreposição de performances, por vezes do mesmo músico, e que principalmente no caso dos
instrumentos harmônicos, são dificilmente distinguíveis separadamente, e em alguns momentos
soam simplesmente como uma grande massa sonora. Essa característica dificulta, e em alguns
momentos até inviabiliza, o sucesso do transcritor que se vê obrigado a simplificar a grafia de
determinados voicings15 indicando apenas a cifra dos acordes e, se tanto, os ritmos ali presentes. As
gravações em estúdio são também argumentadas pelo musicólogo Nicholas Cook, que em seu texto
Entre o processo e o produto: música e/enquanto performance declara:
Mas é no caso das gravações que produto e processo se entrelaçam mais extremadamente. A gravação
(um produto comercial) afigura-se como traço de uma performance (um processo), mas, na realidade,
consiste geralmente de um produto composto de vários takes, e do processamento do som, em
diferentes graus de elaboração - em outras palavras, não é propriamente um traço, mas sim a
representação de uma performance que, na realidade, nunca existiu. E, à medida que as gravações
cada vez mais substituem as performances ao vivo como paradigma para a existência da música,
chegamos mais perto da “nova realidade sonora” de Chion, que citei acima como sendo a mais pura
forma de música enquanto processo. Todavia, o ponto de vista de Chion é que não há mais uma
distinção entre apresentação e representação, o que significa que faria igual sentido descrever a
gravação como sendo a forma mais pura de música enquanto produto. Levado a este limite, o conceito
de performance, na personificação da tradição da MEO, perde sua substância. Processo e produto,
assim, não se configuram tanto como opções alternativas, mas como fossem complementares do
trançado que chamamos de performance.
(Cook, 2006, p.14)
A discussão do autor gira em torno do entendimento da relação entre texto musical,
identificado por Cook como script, justificando o fato de que há uma negociação entre a notação da
obra e sua realização com um grupo de músicos; e a interpretação – performance – da mesma,
sugerindo que a realização musical se dá em uma instância entre os dois preceitos. A discussão
15
O termo voicing se refere à maneira como as notas constituintes de um acorde são dispostas em um instrumento
harmônico, incluindo inversões de baixo e suas conduções.
47
instaurada por Cook não será aqui objeto de especulação, mas a citação anterior é utilizada no
sentido simplesmente de justificar a análise de gravações em estúdio, compreendendo-as como um
outro tipo de fenômeno, mas igualmente válido. No caso de Nivaldo Ornelas, o fato das gravações
de suas músicas terem sido realizadas por ele, exercendo assim as funções de compositor e
intérprete, além de ter sido mediador da realização dos outros músicos do grupo, haja vista que a
tradição da música instrumental prevê grande liberdade para todos os músicos envolvidos durante
sua performance, podendo o entendimento da prática de improvisar ser estendida para diferentes
níveis além dos solos. Nesse sentido, a realização em música popular de um modo geral é
conseqüência de um processo altamente colaborativo, mesmo quando realizado em estúdio nos
moldes de uma gravação multipistas, como discutido anteriormente. Néstor Garcia Canclini
também trata do assunto ao falar sobre o espírito de coletividade presente nas realizações musicais:
Desde que as tecnologias mais avançadas intervêm criativamente no registro e reprodução da arte, a
fronteira entre produtores e colaboradores se torna mais incerta: o engenheiro de som efetua as
montagens de instrumentos gravados em lugares separados, manipula e hierarquiza eletronicamente
sons produzidos por músicos de diversas qualidades. Ainda que Becker sustente que o artista pode ser
definido como “a pessoa que desempenha a atividade central sem a qual o trabalho não seria arte”,
dedica o maior espaço de sua obra a examinar como o sentido dos fenômenos artísticos são
construídos num “mundo de arte” relativamente autônomo, não pela singularidade de criadores
excepcionais, mas sim pelos acordos gerados entre muitos participantes.
(Canclini, 2001, p. 38-39)
De todo modo o que se busca com estas análises é a validação do fenômeno de hibridação
anteriormente proposto, sendo assim, estas são realizadas de modo a apontar recortes dos usos de
elementos a princípio conflitantes em uma estética musical relacionada à modalidade de música
instrumental sem seguir necessariamente uma cartilha analítica, onde o mesmo modelo analítico
seria supostamente replicado para cada uma das quatro composições. Muito mais do que apontar
estas reiterações, mesmo que ocasionalmente isto ocorra, estas análises se prestam a identificar o
que há de exceção nestes usos, apresentando recortes pertinentes do fenômeno proposto frente a
uma multiplicidade de referências musicais em um repertório que visa ser abrangente em distintos
estilos e períodos e representativo da produção do autor em questão.
Especificamente em relação à Ornelas, as referências musicais por ele assumidas ou
percebidas apontam para maneiras e tipos de cruzamentos tais como os experimentados no Clube da
48
Esquina. No caso dele, o lugar de onde veio, o bairro da Nova Suissa em Belo Horizonte, é um
retrato deste tipo de imbricação16. Meio urbano, meio rural, nem tanto ao centro da cidade e nem tão
distante dela, o subúrbio pode ser considerado uma esquina redimensionada, onde as referências do
mundo urbano, como seus modismos, a valorização dos bens de consumo, e até os estrangeirismos
do mundo globalizado, convivem com a presença inequívoca das referências do interior, do Brasil
rural, onde a religiosidade e a família (ou comunidade) constituem os pilares das relações sociais
representadas, por exemplo, pela Igreja ou por ritos e festividades populares como as Folias ou
Ternos de Reis17 e o Congado18, bem como práticas de música popular ligadas às Serestas19 e às
cantigas de roda, mas que se contrapõem e complementam com as informações estrangeiras,
globalizadas, da cultura de massa, no caso de Ornelas, do jazz e do rock.
Relativo aos autos das Folias e Congados, estes não se restringem à música ali presente, mas
a um rito que envolve um cortejo rigorosamente organizado, baseado em uma tradição que não será
16
17
18
19
Nova Suissa, escrito assim mesmo, com dois esses, diferentemente de Suiça, grafia também aceita para o bairro,
mas que tem na referência de seu nome a Baleira Suissa, tradicional loja de doces, já extinta, e que se localizava na
Rua da Bahia, centro da cidade e polo da boemia belo-horizontina de até meados do século XX. O terreno do atual
bairro pertencia ao dono da doceria, que loteou a área, nos arredores do plano urbanístico original de Belo
Horizonte.A partir dos anos 1920 surgiram as primeiras casas, e antes mesmo de sua urbanização o bairro já se
punha de pé. O período de forte desenvolvimento do local ocorreu durante o governo de Juscelino Kubitschek, nos
anos 1940, quando JK foi prefeito da capital mineira, período da construção da Pampulha e da implantação da
Escola Técnica Federal de Minas Gerais na Nova Suissa, impulso decisivo na constituição do novo bairro. Nessa
época, entre os anos 1940 e 1950, infância de Ornelas, o bairro de subúrbio ainda era um esboço do que é hoje.
O auto conhecido por Folia, pode ser identificado basicamente como Folia do Divino (em referência ao Divino
Espírito Santo) ou à Folia de Reis (Santos Reis Magos), sendo esta segunda também identificada por Terno de Reis,
o qual é referido por Luis da Câmara Cascudo (2008, p. 675) como: Folguedo pertencente ao ciclo natalino,
introduzido pelos portugueses e encontrado em todo o Brasil, com suas variantes regionais. É constituído por
grupos exclusivamente masculinos de músicos e cantadores que percorrem as ruas das cidades, os sítios e fazendas,
geralmente entre 20 de dezembro e 6 de janeiro, comemorando o nascimento de Cristo e cantando em louvor do
Deus Menino. Faz parte desse roteiro a visita às casas, de acordo com um andamento previamente determinado,
que consta de chegada, pedido de licença (para entrar), agradecimento (pela esmola ou comida recebida) e
despedida.
Para uma melhor compreensão e delimitação do termo Congado, utilizo aqui o termo tal qual LUCAS (1999, p.7):
As particularidades e as transformações ao longo do tempo acabaram levando a diferenças de uso e sentido
envolvendo os termos Congos, Congados e Reinados. Mário de Andrade lembrou que Congos, Congada ou
Congado, Cucumbi e Maracatu eram originalmente uma mesma coisa, todos nascidos dos cortejos de coroação de
reis. Na década de trinta, Andrade apresentou vários argumentos para demonstrar que Congos e Congadas
representavam a mesma manifestação, embora comente que Câmara Cascudo, em 1929, já alertava para que os
Congos não fossem confundidos com a Congada sulista. Conforme observam Gomes & Pereira, no Norte e no
Nordeste, Congos designa a totalidade do auto. Em Minas Gerais hoje, Congo refere-se a um dos grupos, ou
guardas, de devoção a Nossa Senhora do Rosário e outros santos. Candombe, Moçambique, Vilão, Catopês e
Caboclos são outras guardas que festejam o rosário de Maria nesse estado. Em Belo Horizonte, Congado tornou-se
o termo coletivo mais abrangente que designa a festa religiosa em que participam as guardas acima, estejam elas
reunidas ou não em Irmandades.
Segundo a Enciclopédia da Música Brasileira: erudita, folclórica e popular (p. 724); seresta se refere a: nome
surgido no séc. XX, no Rio de Janeiro, para rebatizar a mais antiga tradição de cantoria popular das cidades: a
serenata.
49
aqui objeto de discussão, mas de constatação, e que será mais bem problematizado ao longo da
pesquisa. As músicas realizadas nas Folias e Congadas estão inscritas no universo das
manifestações musicais do interior do Brasil, e que tem relações com o homem do campo,
encarnado na figura do caipira, definida assim por José Roberto Zan:
Esse tipo humano, conhecido como caipira, estava ligado a um modo de vida baseado na pequena
produção de subsistência que Antonio Cândido definiu como sociedade de “mínimos vitais” (Candido,
1964). Os sítios formavam unidades sociais caracterizadas por relações de parentesco e de
solidariedade vicinal, um tipo de “habitat” disperso denominado de “bairro rural” (Queiroz, 1973).
Uma complexa ritualística associada a práticas festivas e religiosas, em geral vinculadas ao universo
do chamado “catolicismo rústico”, garantia a reprodução da sociabilidade dos bairros. A música era
um dos elementos fundamentais desse universo.
(Zan, 2004, p.02)
Ainda segundo o autor, os processos de industrialização e modernização que o Brasil sofreu
durante o século XX praticamente acabaram com este tipo de relação que proliferou desde o século
XVII nas “regiões de população rarefeita do centro-sul do Brasil, mais precisamente no Estado de
São Paulo, sul de Minas Gerais, sul de Goiás e sudeste do Mato Grosso do Sul”. Musicalmente, o
autor se refere às suas características da seguinte maneira:
As matrizes musicais do repertório acima referido eram partes integrantes da cultura desse segmento
social. A toada, o toque de viola que acompanha as danças catira e cururu, a música das Folias de Reis
e do Divino e a moda-de-viola eram estilos musicais que não se dissociavam das práticas lúdicoreligiosas da cultura desses pequenos sitiantes (Martins, 1974:25).
(Zan, 2004, p.02)
Num primeiro momento, o autor aponta que estas referências musicais estavam ligadas ao
mundo ibérico e ameríndio e seria a partir do século XVIII, com a disseminação das monoculturas
de cana-de-açúcar e posteriormente, as de café, que elementos da cultura afro-brasileira se
somariam a esta construção “A partir de então, elementos da cultura afro-brasileira mesclaram-se às
manifestações do mundo caipira e se expressam nas configurações do congado, da dança de
moçambique e do samba-rural” (Zan, 2004, p.02).
A presença da cultura do interior na história de Nivaldo Ornelas se dá principalmente pela
sua relação com os Congados e Folias, como revelado neste trecho de entrevista cedida em março
de 2009 (informação verbal):
Nivaldo - Tinha, perto da minha casa tinha o Vila São Domingos que tinha Congado, e do outro lado
onde tem um aeroporto, não sei se tem ainda, tinha um aeroporto, no Carlos Prates.
Bernardo – Tem no Carlos Prates, é.
Nivaldo – Isso, ali chamava Vila Celeste Império ali, eu tenho até uma música.
Bernardo – Tem, no “Arredores”, não é?
50
Nivaldo – É tirado dali. Dali vinham as Congadas.
Bernardo – E tem o São Domingos do Congado também.
Nivaldo – Pois é, tudo em cima, o “Arredores” é o “Portal do Anjos” mais contemporâneo. E, na
verdade eu vivi nessa atmosfera, e ali na Nova Suissa ao lado da minha casa tinha a Folia de Reis do
seu João Máximo e
eu tocava acordeom com eles. Tocava no meio, entrei no meio dos caras. Eu
ia com gravador, é muito bom, e as fitas são todas cassete. Eu queria ver o som dos caras falando,
aquele som mineiro, bem,
Bernardo – Umhum.
Nivaldo - Né? Então vivi muito isso, vivi intensamente isso.
A presença do subúrbio, da periferia, ou seja, desta idéia de um lugar de passagem e
cruzamento entre o moderno e o tradicional, do futuro e do passado, está presente na obra do
saxofonista apontando para o que Néstor García Canclini chama de hibridação cultural sendo aqui
observada a partir das quatro composições de Ornelas citadas anteriormente e que estão contidas em
parte de suas trilogias. São discorridas impressões das análises das partituras constituídas a partir do
processo de transcrição musical a que foram submetidas, sendo ponderados aspectos harmônicos,
formais, melódicos e de performance no sentido de se identificar ocorrências que justifiquem e que
apontem para os usos análogos à teoria de Canclini. Para cada uma dessas análises, buscamos
confrontar usos distintos das várias referências do autor, tendo como pano de fundo a cidade de
Belo Horizonte e sua lógica urbanística, caminhando do interior para a capital, do rural ao urbano,
passando pelo subúrbio, o cinturão dos bairros operários que circunda o centro da cidade, sendo
sugestionadas as utilizações de características musicais híbridas na obra de Ornelas dentro do
recorte de sua produção na modalidade música instrumental, identificando usos entre as realizações
musicais dos auto das Folias de Reis, dos Congados, bem como da construção musical ligada ao
universo da canção e das Serestas, da música sacra, além de características do rock e do jazz, já
citados.
51
2.1. Nos Arredores da Cidade: A Nova Lima Inglesa:
Através do procedimento de transcrição musical, buscamos identificar características
musicais tanto do Congado Mineiro quanto da Folia de Reis ou de outras manifestações musicais
ligadas à cultura do interior do país conjugadas à música instrumental a partir do registro sonoro de
Nova Lima Inglesa presente no disco Colheita do Trigo, de 1990. Nesta gravação os músicos
participantes foram: Nivaldo Ornelas no saxofone soprano, tenor e flautas; Túlio Mourão nos
teclados; João Batista no baixo; Robertinho Silva na bateria e percussão; Tavito na viola de 12
cordas; Nélson Faria na guitarra; Ubiratan Silva na percussão e Eveline Hecker e Patrícia Regadas
nos vocais.
Nova Lima é hoje uma das cidades que compõem a região metropolitana de Belo Horizonte.
Foi batizada em homenagem ao, talvez, seu filho mais ilustre, Augusto de Lima, que nascera na
ainda Congonhas de Sabará, distrito da atual cidade de Sabará. Mais tarde, ao emancipar-se, tornouse Vila Nova de Lima e por fim, em 1923, ao se tornar município recebeu o atual nome. Já o
adjetivo inglesa agregado ao nome da composição de Nivaldo Ornelas não é parte do nome da
cidade, trata-se de uma referência à presença de ingleses naquela região desde meados do século
XIX devido à implementação da mineradora Saint John Del Rey, empresa que explorava ouro
naquelas terras, principalmente na mina de Morro Velho, outro local desta paisagem que dá nome a
uma das músicas do saxofonista. Em lugares como este os rituais conhecidos por Folias e Congados
“constituem uma das mais importantes expressões da religiosidade e da cultura afro-brasileira em
Minas Gerais”, como afirma Glaura Lucas (1999), havendo alguns traços marcantes da música
realizada nestes autos:
. de função religiosa, sendo parte orgânica da condução dos rituais;
. que se formou dentro de um contexto religioso estabelecido a partir de condições específicas de
contatos culturais entre africanos e europeus no Brasil – os europeus reafirmando a imposição do
catolicismo aos negros e estes o reinterpretando à luz de seu sistema de crenças e cosmovisão, que
inclui o culto aos ancestrais – e que, em Minas Gerais, desenvolveu-se sob a influência das
Irmandades religiosas durante o período escravista;
. que ainda hoje se vincula amplamente a populações negras, não sendo, no entanto, exclusiva a elas;
. que reconta, através de seus sons, textos e gestos, a história dos antepassados escravizados;
. que se mantém por transmissão oral; e
. que se realiza com a participação de todos os integrantes da comunidade, cada qual dentro de sua
especialidade possível, e conforme sua habilidade.
(Lucas, 1999, p.16)
52
Apesar do estudo de Lucas ter sido direcionado às questões rítmicas da realização musical
do ritual, principalmente ao toques de caixa e outros instrumentos de percussão, o mesmo trabalho
pode nos dar indícios também de outras características de sua construção musical. Dentro deste
cenário, várias manifestações populares, como as vistas anteriormente, são frequentes no município,
principalmente na Festa do Rosário onde grupos de Congado saem às ruas durante todo o mês de
outubro, além das Folias de Reis que tomam a cidade em janeiro. A música Nova Lima Inglesa
preserva ares deste tipo de música hibridados a características da modalidade musical identificada
anteriormente por música instrumental.
Relativo à forma da música pode se dizer que Nova Lima Inglesa está no entendimento da
melodia acompanhada, sua estrutura baseia-se em uma seção A de 12 compassos, uma seção B de 4
compassos e uma seção C de outros 4 compassos, somando-se 20 compassos. No arranjo presente
no disco Colheita do Trigo a música começa com uma introdução de teclado em tempo livre e logo
depois é apresentado o tema da música durante as seções A e B, realizadas pelo saxofone soprano,
teclado, baixo e intervenções de guitarra. Na seção C da exposição do tema entra a bateria e
consequentemente a pulsação adquire regularidade métrica em oposição ao tempo rubatado da
introdução e da primeira parte do tema. Entre a exposição e a re-exposição do tema surge uma ponte
de 3 compassos e após a re-exposição é inserida uma nova seção, uma outra ponte, agora com 6
compassos, como um desenvolvimento daquela que havia aparecido anteriormente. Esta nova ponte
precede o desenvolvimento do tema com 16 compassos e uma terceira ponte, desta vez com 8
compassos conduz para o solo de saxofone soprano.
Durante os solos, Nivaldo Ornelas toca sobre um encadeamento harmônico composto pelos
acordes de Bm e F#m (i e v graus do campo harmônico de Si Menor Natural) durante 4 compassos,
depois repete este mesmo padrão um tom acima, com os acordes de C#m e G#m (i e v graus do
campo harmônico de Dó Sustenido Menor Natural) por mais 4 compassos, e em seguida volta para
o campo harmônico de Si Menor Natural em outros 4 compassos. A seção de improviso termina
53
com 4 compassos de bateria solo realizando uma levada20 próxima a um dos toques do Maracatu21
só que em compasso ternário simples (ao invés do quaternário comum à música do referido auto
pernambucano). A última apresentação do tema é incompleta, sendo apresentadas as seções B e C,
como se fossem refrões, e por fim uma Coda de 4 compassos22.
Tabela 1. Tabela com estrutura formal de Nova Lima Inglesa
Seções
Introdução de Teclado
Seção A
Seção B
Seção C
Ponte
Seção A'
Seção B'
Seção C'
Ponte
Variação do tema
Ponte
Solo de saxofone soprano
Solo de bateria e percussão
Seção B''
Seção C''
Coda
Número de Compassos
12 (c. 2-13)
4 (c. 14-17)
4 (c. 18-21)
3 (c. 22-24)
12 (c. 24-35)
4 (c. 36 - 39)
6 (c. 40 - 45)
6 (c. 45 - 50)
16 (c. 51-66)
8 (c. 66-73)
15 (c. 74-88)
5 (c. 89-93)
4 (c. 94-97)
6 (c. 98-103)
4 (c. 103 - 106)
Em primeiro lugar chamam a atenção o tratamento harmônico da composição e sua
instrumentação. Quanto ao primeiro aspecto, são utilizados basicamente três acordes em seu tema,
além de algumas inversões destes, sendo os acordes os de D (tônica), A (dominante) e G
(subdominante). No exemplo a seguir, podemos perceber os usos harmônicos empregados por
Nivaldo Ornelas:
20
Levada é uma designação coloquial que se refere aos ostinatos rítmicos de diferentes gêneros ou estilos musicais, dizse levada de samba, levada de bossa nova, levada de baião, etc...
21
Segundo Luiz da Câmara Cascuro, Maracatu se refere a (2008, p.361): Grupo carnavalesco pernambucano, com
pequena orquestra de percussão, tambores, chocalhos, gonguê (agogô dos candomblés baianos e macumbas
cariocas), que percorre as ruas cantando e dançando sem coreografia especial. Respondem em coro ao tirador de
loas, solista. Sempre foi composto de negros em sua maioria. É visível vestígio dos séquitos negros que
acompanham os reis de congos, eleitos pelos escravos, para a coroação nas igrejas e posterior batuque no adro,
homenageando a padroeira ou Nossa Senhora do Rosário. Perdida a tradição sagrada, o grupo convergiu para o
Carnaval, conservando elementos distintos de qualquer outro cordão na espécie. Diz-se sempre nação, sinônimo
popular de grande grupo heterogêneo, e os títulos tem sabor primitivo: Nação de Porto Rico, Nação de Cambinda
Velha, Nação do Elefante, Nação do Leão Coroado. À frente vão rei e rainha, príncipes, damas, embaixadores,
dançadoras (vestidas de baianas) e indígenas com enduapes e cocares emplumados. Não há enredo. Trata-se de um
desfile no ritmo dos tambores reboantes.
22
Vide anexo.
54
Exemplo musical 2. c. 1- 4, Primeiro membro de frase do tema principal da seção A
Exemplo musical 3.c. 5-9, Segundo membro de frase da seção A
A primeira frase do tema de Nova Lima Inglesa pode ser dividida nestes dois membros de
frase, notadamente no tom de Ré Maior onde no segundo membro de frase a ordem do primeiro
compasso é invertida, ao invés de uma subdominante têm-se um acorde de dominante A7/C# indo
para um acorde de subdominante e esta função perdura até o terceiro compasso do segundo membro
de frase, onde o acorde de G é submetido à inversão de sétima, e caminhando em grau conjunto
chega ao acorde de Em7, o que enarmonicamente poderia ser chamado de um acorde de sol maior
com a sexta no baixo, mas que ali se torna segundo grau, e o acorde de A7 o quinto, caracterizando
assim uma cadência ii7-V7 do campo harmônico de Ré Maior.
Como marca do tratamento harmônico deste trecho, e que também pode ser aludida a toda a
composição, é que em sua grande maioria a harmonia ocorre com a utilização de acordes maiores
perfeitos, um tratamento harmônico comum às manifestações populares realizadas no interior do
Brasil e em especial em Minas Gerais, como vemos abaixo em trecho extraído da música Calix
Bento, recolhida por Tavinho Moura a partir de autos de Folias de Reis, conforme depoimento do
próprio Tavinho Moura para o documentário Milton Nascimento: A Sede do Peixe de 1997:
55
Exemplo musical 4. Melodia de Calix Bento transcrita a partir da versão presente no disco Geraes de Milton
Nascimento, 1976.
Em Calix Bento, a harmonia se mantém basicamente entre os acordes de dominante e tônica
de Ré Maior, excedendo o uso de dominante individual da subdominante D7 indo para a
subdominante G. Em gravação realizada por Milton Nascimento desta música, presente no disco
Geraes de 1976, o arranjo, além de ter sido realizado no tom de Mi Bemol Maior também apresenta
uma linha de contraponto de baixo transcrita no exemplo acima para o tom de Ré Maior (a fim de
facilitar a comparação com Nova Lima Inglesa). Se analisada do ponto de vista dos blocos de
acordes, as inversões de G para G/F# e deste para o acorde de A/E representam tão somente notas
de passagem no baixo, onde ocorrem paralelismos de três oitavas consecutivas. Esta passagem se
assemelha a um trecho harmônico de Nova Lima Inglesa, mas, que no lugar do acorde de A/E
aparece o de Em7.
A utilização de acordes maiores perfeitos como estrutura básica da harmonia de canções é
passível de ser encontrada em várias manifestações musicais rurais brasileiras, outro exemplo é
extraído de um Dobrado do Congado do Jatobá intitulado Acorda Nego, o exemplo foi extraído de
estudo realizado por Glaura Lucas, transcrito por ela e por mim harmonizado. A transcrição é de
uma das músicas tocadas no auto religioso do Congado que passa pelo bairro natal de Ornelas em
Belo Horizonte (Lucas, 1999, Volume II, p.44 ):
56
Exemplo musical 5. Melodia de Acorda Nego do Congado do Jatobá
Vale ressaltar a utilização da melodia em graus conjuntos, muito em função desse repertório
ser todo cantado, característica também utilizada em Nova Lima Inglesa e que dá ao tema contornos
de canção.
A seção B de Nova Lima Inglesa é marcada pelo aparecimento de uma alteração melódica do
quarto grau aumentado que a princípio tende para um entendimento de oscilação ao modo Lídio,
mas que acaba por não se confirmar. Bem da verdade, o tratamento dado ao trecho supõe o uso de
uma espécie de marcha harmônica, com movimentos cadenciais do I para o V graus:
Exemplo musical 6. c. 13-16, Seção B de Nova Lima Inglesa com o aparecimento da nota sol sustenido no c. 13.
Marchas harmônicas são modelos melódicos e/ou harmônicos que geram reproduções
sugerindo modulações passageiras, como no caso deste trecho de Nova Lima Inglesa, onde o
primeiro e segundo compassos são transpostos um tom abaixo, mantendo-se os mesmos intervalos
melódicos além de sua organização rítmica. No caso do uso dado por Nivaldo Ornelas, ele realiza
um marcha harmônica interrompida cessando o padrão já na primeira modulação, no que seria um
acorde de Dó Maior. Proponho aqui a realização de uma simulação de caráter demonstrativo de uma
marcha harmônica desenvolvendo o motivo da seção B de Nova Lima Inglesa, preservando suas
relações melódicas e rítmicas e sugerindo uma harmonia que inclui um acorde de tônica para o
57
primeiro compasso e outro da dominante da próxima tonalidade no compasso seguinte, além de
sugerir uma condução de baixo cromática, próxima à realização da gravação de Nova Lima Inglesa.
Com a marcha completa, tem-se uma escala hexatônica, de tons inteiros, saindo do tom de D,
passando por C, Bb, Ab, F# e E, até que se volte para o tom original, como demonstrado no
exemplo a seguir:
Exemplo musical 7. Simulação de marcha harmônica seguindo o modelo apresentado em Nova Lima Inglesa
Diferentemente da marcha indicada no exemplo acima, as notas alteradas do tema original
de Nova Lima Inglesa surgem como terças maiores de dominantes secundárias realizadas na
gravação e indicadas por Ornelas em seu manuscrito, mas que nem sempre podem ser percebidas
com clareza nessa versão em estúdio da música, isso se dá pela intensa sobreposição de realizações
de instrumentos harmônicos e pela liberdade interpretativa dos músicos que a realizaram, havendo
por vezes uma mera intenção de tocar esses acordes e em outras até a supressão deles. Para uma
melhor identificação dessa ocorrência, segue o trecho tal qual cifrado pelo autor:
Exemplo musical 8. Mesmo trecho citado anteriormente, mas agora com a indicação da harmonia do trecho.
A percepção das realizações das dominantes secundárias E/D e D/C é pouco clara no
registro da música já que soam como extenções harmônicas dos acordes iniciais de cada tonalidade,
muito em função de preservarem o baixo dos acordes anteriormente dispostos, D e C (cifrado como
Am/C), respectivamente, soando como intervalos de nona; décima primeira aumentada e décima
58
terceira desses acordes. Fenômeno semelhante ocorre com o acorde de Am/C (c.14), que pela
tendência do modelo replicado referido à marcha harmônica – como exposto anteriormente – induz
o ouvinte a perceber o acorde como um C6, já que o modelo inicialmente apresentado no compasso
13 apresenta um acorde maior, de todo modo, a função de tônica aí está preservada, o que corrobora
o entendimento da marcha harmônica.
Na seção C do tema, Ornelas faz uso de uma divisão da melodia no que poderia ser
considerado como pergunta e resposta. Procurando investigar mais profundamente sobre a possível
origem dessa característica, deparamo-nos com a possibilidade do uso referencial das características
musicais do Congado, onde a pergunta da melodia é realizada por uma voz solo e a resposta em
coro, como citado por Lucas:
A música é constante em todas as etapas rituais. Compõe-se de cânticos que se desenvolvem na forma
solo/coro, acompanhados pelos instrumentos, nos quais são executados padrões rítmicos para cada
guarda. Poucos são os cantos que não se acompanham pelos instrumentos. Dentre eles, há os que os
congadeiros chamam de embaixadas, através das quais, os capitães homenageiam, por exemplo, seus
reis e rainhas.
(Lucas, 1999, p.18)
Em Nova Lima Inglesa podemos observar como se comporta a melodia do tema, distribuída
na instrumentação citada no exemplo a seguir e que nos remete alusivamente às funções de solista e
coro identificadas nos autos do Congado por Lucas numa relação de pergunta e resposta entre essas
duas instâncias.
Exemplo musical 9. c, 17-21, Seção B de Nova Lima Inglesa
É importante chamar a atenção para o fato da melodia de pergunta ser realizada pela flauta,
instrumento que mesmo não comum às tradições populares da Folia de Reis e do Congado, remete a
uma tradição de música popular brasileira, e a resposta da melodia é, em um primeiro momento
realizado pela guitarra elétrica com distorção, tocada por Nélson Faria, além de vozes, e que no
decorrer da música soma-se o saxofone tenor ao coro. É como se a tradição perguntasse e os sinais
59
híbridos da modernidade respondessem.
O traço de distinção real da harmonia utilizada por Ornelas nesta composição é o
distanciamento em relação à harmonia normalmente utilizada na modalidade música instrumental,
que tem seus laços de ligação com aqueles acordes utilizados principalmente na bossa nova e no
jazz, onde são recorrentes os usos de extensões harmônicas e substituições de acordes. Nivaldo fala
da experiência prática deste desajuste na performance de músicos do metier da música instrumental
quando se deparam com este tipo de repertório (informação verbal):
(...) Mas nem sempre eu consigo juntar as duas coisas, e muitas vezes eu evito de tocar as minhas
músicas porque os caras estão tão...quem faz harmonia ta tão no conceito de jazz e de...dessa outra
música, que não encaixa. Aquilo é...a harmonia do Nova Lima Inglesa, por exemplo, Nova Granada,
tem que saber, tem que ter paciência. - Não tem sétima aí não cara! Não tem nona aumentada aí não
meu filho! Isso é assim mesmo, pode ficar tranquilo, pode fazer, esse Ré Maior é Ré Maior mesmo,
não tenha medo. Uma vez o Túlio Mourão falou: Eu posso botar uma setimazinha aqui? Eu falei: Não. Não pode não. Então eu evito muito ir por aí pra tocar, a não ser que seja meu grupo. O cara fala:
Por quê que você não ta tocando seu trabalho? Eu falo: Pois é mas, tem motivos pra isso, porque é
quase que macular o negócio, né? Pra mim isso é sagrado pôxa, e não dá pra misturar.
Bernardo – Faz parte da sonoridade, né?
Nivaldo – É. É um outro jeito de tocar. Quando eu vou tocar com o Wagner, por exemplo, com os
pianistas com os quais eu convivi, fica fácil, porque o cara conhece a linguagem, e, é isso.
Ressalto aqui as expressões jeito de tocar e linguagem utilizadas por Ornelas, qualidades
fortemente atreladas ao entendimento de estilo, que em música popular determina, por exemplo, os
procedimentos utilizados em sua realização, como os tipos de extensões (ou tensões) harmônicas, a
disposição das vozes nos acordes (voicings), além da realização de linhas de contraponto.
Estes procedimentos também podem servir de instrumento de especulação em relação ao
processo de composição de Ornelas, onde podemos perceber indícios do entendimento idiomático
do instrumento harmônico que ele utiliza durante o seu processo criativo, neste caso, o violão, que é
revelado de maneira flagrante em passagens, por exemplo, que envolvem os acordes de G/B e
A7/C#. Neste caso, ocorre uma replicação de fôrma do acorde, como mostra o exemplo a seguir:
Exemplo musical 10. Disposição dos acordes de G/B e A7/C# utilizados em Nova Lima Inglesa
60
Na sua realização ao violão, referente à disposição do acorde G/B tem-se as notas si (quinta
corda, segunda casa); sol, (corda 3 solta); nota ré (segunda corda, terceira casa) e nota sol (primeira
corda, terceira casa). Para se obter o acorde de A7/C# basta que se repita o padrão do acorde
anterior duas casas a frente, mantendo-se a corda sol solta, o que vai ocasionar na sétima menor do
acorde. Há aí, portanto, um entendimento fortemente tendenciado ao uso idiomático do violão no
desenvolvimento das soluções harmônicas encontradas em Nova Lima Inglesa.
Exemplo musical 11. Disposição do acorde de G/B no braço do violão
Exemplo musical 12. Disposição do acorde de A7/C# no braço do violão
Somado a este aspecto, a instrumentação mescla instrumentos característicos da música
instrumental, como a bateria, contrabaixo elétrico, guitarra elétrica, teclados, saxofone e flauta; a
instrumentos de coloratura regional, como o suso de alguns tipos de percussão e a presença da
viola, aqui, gravada por Tavito na viola de 12 cordas, mas que tem a sua tipicidade na música dita
rural encarnada na viola de 10 cordas, chamada também viola caipira.
A própria tonalidade da música, Ré Maior valoriza o uso da viola na composição pelo tipo
de afinação usada. As duas afinações mais tradicionais utilizadas na música brasileira para este
instrumento são conhecidas como Cebolão e Rio Abaixo, em relação a esta última Josemar Vital Jr.
a expõe em artigo sobre o Estudo nº5 para violão de Radamés Gnattali, explicitando a relação da
peça com a música caipira (VITAL JR., 2008, p. 231): “A nova escordatura indicada é a seguinte:
ré, sol, ré, sol, si, ré (lê-se da sexta para a primeira corda). Essa relação é exatamente a de uma das
afinações tradicionais da viola caipira, chamada Rio-Abaixo”.
61
Exemplo musical 13. Disposição das notas nas afinações para viola de 10 cordas Cebolão e Rio Abaixo,
respectivamente.
Relacionando a afinação com a viola, que apresenta cinco pares de cordas ao invés de seis
simples - e seis pares de cordas duplas no caso da viola de 12 cordas - a afinação acima referida
deve-se iniciar na 5ª corda da viola na nota Sol; enquanto que para a afinação chamada Cebolão,
usada normalmente em Mi ou Ré Maior, a disposição é a seguinte: lá, ré, fá sustenido, lá, ré. Para
qualquer uma das afinações, as sequências de acordes maiores perfeitos são um traço do
idiomatismo da viola e, por conseguinte, do repertório realizado por ela.
Outro aspecto que chama a atenção é o compasso da música, não o binário simples, das
marchas dos Congados e das Toadas das Folias, ou ainda dos binários compostos, dos toques
conhecidos por Moçambique, mas o uso do ternário simples, o que, a princípio, vai contra o
entendimento das características tanto do auto afro-brasileiro – ao menos dos registros transcritos
por Glaura Lucas referente aos Congados dos Arturos e Jatobás - quanto das folias, mas que nos dá
outros indícios de possíveis referências, por exemplo, a danças européias.
Confrontando este problema, ocorreu a possibilidade de que a referida música possa ter
características musicais para além das dos Congados e Folias, já que durante os autos os compassos
mais encontrados são os binários simples ou compostos, cabendo, portanto, referências da música
do meio rural “não sacralizadas”, ou seja, que não necessariamente integrem autos religiosos, ou
ritos de fé onde, neste caso, ritmos ternários são bastante comuns, como afirma Marcelo Lopes em
dissertação sobre a Folia de Mestre Célio em Rio Pomba, Minas Gerais, quando ao descrever o
perfil de Seu Joaquim, folião que integra a Folia de Mestre Célio, revela sua relação com a música
fora do período das Folias, o autor confirma: “Tocam músicas que remetem a um universo rural
bem conhecido da maior parte deles. Tocam para si mesmos. Calangos, valsas e mazurcas integram
o repertório, em sua maior parte baseado em gravações de música caipira” (Lopes, 2007, p. 01).
62
Saindo das referências estritamente rurais, há também uma identificação do compasso
ternário simples não somente na produção musical de Ornelas, mas também na de boa parte de seus
pares composiotores de música popular, seja de música instrumental ou vocal, e que se identificam
com o circuito musical de Belo Horizonte e daqueles que se reconhecem sob a insígnia do Clube da
Esquina. A referência do ¾ para esses autores tende a apresentar-se como um traço de distinção
dentro da produção da música popular brasileira como um todo, um fato extremamente intrigante e
que permeia a produção desses agentes. Para um melhor esclarecimento do fato, tomemos como
exemplo a obra de Milton Nascimento a partir de alguns dos discos lançados pelo músico durante os
anos 1970, conjunto de gravações que representa em muito a produção do autor e de alguns de seus
parceiros. Utilizemos como parâmetro os seguintes discos: Milton (1970); Clube da Esquina
(1972); Milagre dos Peixes (1973); Milagre dos Peixes Ao Vivo (1974); Minas (1975); Geraes
(1976) e Clube da Esquina 2 (1978).
Do conjunto das 98 músicas contidas nesses 7 títulos - incluindo algumas regravações foram identificadas 16 composições que se estabelecem majoritariamente dentro do compasso
ternário, ous seja, pouco mais de 16 por cento do total de composições da série de discos
selecionados. Apesar de minoritária, em comparação ao compasso quaternário, a presença do
compasso ternário é marcatne pelas obras que as representam, como Cravo e Canela, San Vicente e
Milagre dos Peixes, todas, composições proeminetes e expressivas dentro da obra do autor. Há,
além disso, uma caracetrística que une parte dessas músicas de divisão ternária com uma estática
próxima a da música sul-americana, especificamente do mundo hispanófono, lembrando, por
exemplo, que Milton Nascimento desenvolveu trabalhos de vulto juntamente com a cantora
argentina Mercedes Sosa (1935-2009), como na gravação de Volver a los 17, música da compositora
chilena Violeta Parra (1917-1967), presente no disco Geraes de 1976, além de ter lançado um disco
ao lado de Sosa e León Gieco (1951-), intitulado Corazón Anericano, lançado em 1986. Nessas
músicas ditas de referência hispano-sul-americanas, há realizações, principalmente rítmicas e de
linhas de baixo, que apontam para possíveis referências de caracteríscas de alguns dos gêneros
63
ternários que compõem essa paisagem sonora, talvez das valsas venezuelanas, ou das guarânias
paraguaias, bem como na diversidade de gêneros musicais andinos, referências que vão do Chile ao
Equador e que são, em parte, ternários.
Um traço marcante dessas realizações se refere a uma intencionalidade rítmica que privilegia
o tereceiro tempo em função dos outros dois tempos dentro do mesmo compasso, diferentemente,
por exemplo, das valsas, cujo tempo forte é o primeiro ou das mazurcas, que tem no segundo tempo
a sua marcação. A metricidade ternária com o terceiro tempo forte é compartilhada como a
composição Nova Lima Inglesa, de Ornelas, e pode ser identificada em outras composições dessa
geração de compositores mineiros, como Beto Guedes (1951-) e Toninho Horta (1948-), que intitula
esse “gênero” ternário próprio de Minas como valsa mineira.
Na gravação de Nova Lima Inglesa de Nivaldo Ornelas a levada da bateria, realizada por
Robertinho Silva, é realizada acentuando-se esse terceiro tempo do compasso ternário simples. Da
divisão rítmica da melodia podemos identificar a recorrência de células rítmicas como a colcheia
pontuada seguida de semicolcheia e a figura da síncope. Estas células são frequentes tanto nas
divisões melódicas quanto acompanhamentos de Congados e Folias:
Exemplo musical 14. Trecho de acompanhamento de chocalho e caixa em Folia do Sul de Minas
Em outro registro da mesma música, presente no disco Fogo e Ouro de 2009, a seção rítmica
conta com, dentre outros instrumentos de percussão, o patangome, instrumento muito utilizado nos
autos do Congado do Jatobá e que consiste em uma cabaça preenchida com feijões e que realiza um
ostinato rítmico baseado numa acentuação quialterada, dando um caráter polirítmico, comum à
tradição do Congado e presente a esta realização.
Na melodia de Nova Lima Inglesa pode ser percebido o uso de figuras rítmicas tais como as
descritas anteriormente, principalmente no que se refere às linhas de caixa:
64
Exemplo musical 15. c. 26-27, Figuras de colcheias pontuadas seguidas de semicolcheias no tema de Nova Lima
Inglesa
Exemplo musical 16. c. 28 -30, síncopes e figuras de colcheia pontuada e semicolcheia em Nova Lima Inglesa
Cabe aqui uma comparação entre dois momentos do tema, a exposição que chamarei aqui de
seção A e a re-exposição, seção A'. A diferença entre as duas é que da primeira vez o tema é tocado
de maneira livre, em tempo quase rubato, sem a presença da bateria e percussão, enquanto que da
segunda vez, a metricidade é alterada com o aparecimento da seção rítmica (bateria e percussão)
durante arranjo da música, a melodia então ganha novos contornos com o advento de figuras de
síncope (semicolcheia, colcheia, semicolcheia) e de figuras contendo colcheias pontuadas
acompanhadas de semicolcheias, ambas as figuras recorrentes nos autos de Congado e Folia, bem
como no entendimento da música dita rural como um todo:
Exemplo musical 17. c. 1- 12, Seção A do tema: Exposição, conforme disposto na partitura guia da composição presente
em anexo.
65
Exemplo musical 18. c. 23-34, Seção A' do tema: Re-exposição, conforme disposto na partitura guia da música.
O ritmo harmônico reforça algumas figuras rítmicas utilizadas em linhas melódicas ou em
pontes como no exemplo abaixo onde a flauta realiza a melodia junto com os instrumentos
harmônicos.
Exemplo musical 19: c. 66-68, Trecho da terceira Ponte realizada pela flauta e instrumentos harmônicos e que precede a
seção de chorus em Nova Lima Inglesa.
Exemplo musical 20. Acompanhamento de viola realizado no mesmo trecho exposto no exemplo 19 durante ponte em
Nova Lima Inglesa
Comparativamente a realização rítmica demonstrada nos exemplos 16 e 17, citamos um
exemplo musical de um toque de viola recollhida por Marcelo de Castro Lopes e presente em sua
dissertação de mestrado A Folia do Mestre Célio em Rio Pomba: uma perspectiva
etinomusicológica. Note-se a presença marcante de figuras rítmicas coincidentes com o
acompanhamento de viola em Nova Lima Inglesa (exemplo musical 20) tanto na linha de
cavaquinho (sistema superior) quanto na condução da viola (sistema inferior), conforme o exemplo
a seguir:
66
Exemplo musical 21. Trecho da Toada de Entrada da Folia do Mestre Célio de Rio Pomba, recolhida por Marcelo de
Castro Lopes, linhas de cavaquinho e viola.
Relacionando o trecho com seu uso frente aos instrumentos de percussão, principalmente a
bateria gravada por Robertinho Silva, ele aplica a seguinte levada durante o trecho anteriormente
citado:
Exemplo musical 22. Levada de bateria realizada por Robertinho Silva em ponte de Nova Lima Inglesa, c 66-67.
Em transcrição realizada por Glaura Lucas da Marcha Dobrada Quero Agradecer Sua Mesa
Santa do Congado do Jatobá,da região metropolitana de Belo Horizonte, anteriormente citado, as
caixas (de cima para baixo, caixa contraguia e caixas guia) realizam ao seguinte desenho rítmico:
Exemplo musical 23. Seção de caixas em Quero Agradecer Sua Mesa Santa – Marcha Dobrada – Recolhida por Glaura
Lucas.
Ao adaptarmos o ritmo acima do compasso binário simples para o ternário simples, os
desenhos rítmicos das caixas se comportariam da seguinte maneira:
67
Exemplo musical 24. Livre adaptação do toque de caixas em Quero Agradecer Sua Mesa Santa para compasso ternário
simples
O forte grau de semelhança entre o toque das caixas guia, principalmente, e o desenho de
chimbau realizado por Robertinho Silva revela a intencionalidade do compositor frente a aplicação
de elementos das tradições musicais apontadas anteriormente, intencionalidade esta que pode ser
relacionada ao conceito de habitus que no entendimento de Pierre Bourdieu (1983) (apud Setton,
p.62) funciona como:
(…) um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências
passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e
torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas
de esquemas.
A estilização, nesse sentido, é reveladora do processo e das semelhanças entre si, onde
Ornelas, neste caso através da interpretação de Robertinho Silva, acrescentou uma célula de duas
colcheias ao tempo excedente, terceiro tempo do compasso, preservando a natureza do toque e
citando-o sem copiá-lo literalmente.
Outro dado revelador do processo de composição e arranjo de Ornelas reside no tratamento
que o autor dá às seções chamadas de Ponte, estas pontuam as mudanças entre seções ocorridas
durante a música e apresentam um desenvolvimento temático interno, principalmente entre as duas
primeiras Pontes como podemos perceber abaixo:
Exemplo musical 25. c.21-24: Primeira ponte entre a exposição e reexposição d tema de Nova Lima Inglesa
68
Exemplo musical 26. c.45-50: Segunda ponte presente em Nova Lima Inglesa
Esta segunda ponte se comporta como o desenvolvimento da primeira, podendo ser
subdividida em dois membros de frase, onde o segundo é uma repetição da primeira ponte:
Exemplo musical 27. C. 45-47: Desenvolvimento da ponte
Exemplo musical 28. c. 47-50: Repetição de motivo da primeira ponte
Já a segunda Ponte, exemplo musical 26 (p.65) preserva características do primeiro membro
de frase da primeira Ponte, exemplo musical 25 (p.65), ou seja, os compassos 45 a 47 da segunda
Ponte são iguais à primeira Ponte apresentada na música, portanto é perceptível que o
desenvolvimento temático entre estas seções se enlaça pela repetição de características de inovação
apresentadas no desenvolvimento anterior.
Das características citadas, ficam claras as referências à música do interior do Brasil, de suas
caracterizações, não folclorizantes, em um repertório da modalidade música instrumental, sejam da
Folia de Reis ou do Congado, de qualquer modo, percebe-se em Ornelas a interferência de maneiras
distintas de se encarar a modalidade musical em questão, fundamentada não mais nas referências
apenas do jazz e da bossa nova, mas na multiplicidade de estruturas e características recortadas que
compõem um universo particular do autor, como cita Nétor Garcia Canclini:
69
As culturas já não se agrupam em grupos fixos e estáveis e portanto desaparece a possibilidade de ser
culto conhecendo o repertório das “grandes obras”, ou ser popular porque se domina o sentido dos
objetos e mensagens produzidos por objetos produzidos por uma comunidade mais ou menos fechada
(uma etnia, um bairro, uma classe). Agora essas coleções renovam sua composição e sua hierarquia
com as modas, entrecruzam-se o tempo todo, e, ainda por cima, cada usuário pode fazer a sua própria
coleção.
(Canclini, 2003, p.304)
Saindo da região metropolitana de Belo Horizonte em direção à capital, vislumbramos um
cinturão que circunda o plano urbanístico original da metrópole. Surgido praticamente em
simultaneidade com a construção da nova capital mineira, o subúrbio revela traços de sobreposições
temporais que marcam profundamente a obra de Nivaldo Ornelas, em especial o seu bairro natal a
Nova Suissa.
2. Nova Suissa, Sábado à Tarde: A Canção Sem Palavras.
Transpondo o olhar para fora dos limites originais do planejamento urbanístico da cidade de
Belo Horizonte, nos deparamos com a sua área suburbana23. Localizado na região oeste da cidade, o
bairro da Nova Suissa, diferentemente da área urbana da cidade, cresceu de maneira orgânica, quase
que espontaneamente, em contraste com a ortodoxia do plano central da cidade, como exposto por
Barros:
O planejamento retilíneo, a monumentalidade dos espaços, os equipamentos públicos e os
investimentos limitam-se, contudo, à área urbana da nova capital. As áreas suburbana e rural se
desenvolveriam através de um geometrismo menos evidente, por meio de vias tortuosas e irregulares
adaptadas à topografia acidentada, e coerentes com a perspectiva excludente do projeto conservador
de modernização. Belo Horizonte nasce dividida em duas: a cidade do poder e seus funcionários, e a
cidade de trabalhadores, que, bem ao contrário, sedesenvolverá espontaneamente.
(Barros, 2006, p.125)
Foram essas condições de tortuosidade e sua localização urbanística que, em parte,
possibilitaram os encontros e as mediações necessárias para que distintas realidades sociais se
confrontassem, dialogassem e compartilhassem valores e modos de vida diversos num mesmo
território, onde todos os tipos de gente, postos lado a lado, geraram (e geram) conflitos e
23
Fundada em 1897, Belo Horizonte foi uma das primeiras cidades latino-americanas a ser concebida com um
plano urbanístico planejado baseado em um perfil higienizador e segregacionista, atribuído ao ideal da então recente
república. O engenheiro responsável pela obra, Aarão Reis, projetou uma cidade capaz de abrigar cerca de 200 mil
habitantes e que separava, através de uma avenida de contorno, a área urbana - planejada, racional, cartesiana - do
mundo suburbano e rural, posto para fora dos limites citadinos, estes, representantes do mundo pré-moderno e colonial,
indesejados para o perfil modernizador da nova capital.
70
possibilidades para a realização do híbrido. De um lado, a meticulosidade e pretensa assepsia social
através da modernização e organização do espaço público tendo como estratégia a implantação de
um plano diretor para a nova capital idealizado a partir de modelos urbanísticos europeus. De outro,
as referências pregressas do Brasil Império, de sua herança colonial, oligárquica, rural e prémoderna. É nesse espaço, constituído por uma morfologia urbana - ou suburbana - típica, divisória
de duas temporalidades, que cresce Nivaldo Ornelas. De família de músicos amadores, o autor e
instrumentista revela em sua obra os diversos elementos deste caleidoscópio cultural, aqui
representado em sua vertente musical.
Gravada em 1982, a música que faz referência a seu bairro, Nova Suissa, Sábado à Tarde,
está presente no disco À Tarde, lançado pela gravadora francesa Syracouse e inédito no Brasil até
seu lançamento em CD no ano de 2007. A música, que abre o disco, foi gravada com Nivaldo
Ornelas no saxofone tenor, Wagner Tiso no piano e órgão, Alex Malheiros no baixo elétrico, além
do grupo vocal Viva Voz. Antes de adentrarmos em suas características especificamente musicais,
cabe aqui uma reflexão sobre o caráter da composição que foi assim definida pelo seu autor em
entrevista concedida em abril de 2009 (informação verbal):
Bernardo – Então quando eu perguntei a respeito da música que se fazia na sua casa, etc. e da coisa
da Seresta, eu vejo muito esse universo da canção na sua música,
Nivaldo – Tem muito é. Melodia.
Bernardo – A coisa, “Nova Suissa, Sábado à Tarde”, aquele tema, por exemplo, tem algo de religioso,
mas tem muita coisa de seresteiro naquilo.
Nivaldo – Bucólico, e outra coisa, “Nova Suissa Sábado à Tarde” i cara, a Nova Suissa era muito
triste, quer dizer, bucólico mesmo, alegria nunca. Uma vez a minha mãe falou pra mim: Meu filho isso
ta muito bonito, mas ta muito triste. Ai meu Deus! Dá vontade de chorar. Eu falei: Pois é, mas eu vivi
isso, eu tenho que por isso pra fora primeiro, depois eu vou fazer alegre, eu falei pra ela. Eu tenho que
fazer isso agora, isso ta aqui dentro, como é que eu faço? Eu preciso me livrar disso, e eu ainda não
me livrei ainda não, ainda falta, falta mais um.
Ao ser indagado sobre a referida composição, Ornelas a identifica como bucólica, referindose não somente a respeito da composição, mas ao bairro, como ele mesmo diz: “a Nova Suissa era
muito triste, quer dizer, bucólico mesmo, alegria nunca”. Se lançarmos mão ao entendimento do
significado deste adjetivo, encontramos em seu verbete características como: “pertencente ou
relativo à vida e aos costumes do campo e dos pastores; campestre, pastoril”, ou ainda “simples,
singelo, puro, ingênuo”. Apesar de haver, em uma impressão generalizada, características musicais
71
que se refiram a estes adjetivos, talvez o termo bucólico tenha sido utilizado numa acepção distinta
de seu significado já que o termo não é sinonímico de tristeza, como evidencia o grifo. Cabe a nós,
portanto, buscar relacionar o termo usado pelo autor com a intenção a ele dada em sua composição,
que traz a marca implícita de um caráter solene e indicativo realmente de tristeza, mas de uma
tristeza macambúzia, envolta por um sentimento velado, recolhido, podendo ser atribuídos os
adjetivos quaresmal ou mesmo melancólico ao invés do referido bucólico.
Há a indicação, também na citação anterior, daquilo que Ornelas entende como a busca da
melodia. A maneira com que o músico constrói essa melodia é reveladora de, possivelmente,
referências ancestrais, apoiadas em práticas musicais comuns de seu bairro identificadas com a
canção, como a Seresta ou Serenata e as canções litúrgicas das Igrejas. Em Minas Gerais e
especificamente nos subúrbios de Belo Horizonte, principalmente até meados do século XX, eram
comuns os grupos de seresta, talvez a primeira grande manifestação de identificação da música
popular urbana feita no estado, isto antes do chamado Clube da Esquina, assim como a referência
da música sacra, ambas as práticas comuns ao mundo urbano, mas que pouco a pouco foram se
tornando praticamente exclusivas das populações urbanas do interior do Brasil. As serestas e
serenatas eram presenças constantes na casa e no cotidiano de Nivaldo Ornelas, como revelado pelo
autor em entrevista em abril de 2009 (informação verbal):
Nivaldo – Os meus pais tinham um grupo de seresta, chamava Revivendo o Passado, que era muito
bom. Eles eram os artistas da minha família, eram eles.
Bernardo – O Revivendo o Passado já existia quando você era menino?
Nivaldo – Já.
Bernardo – Era um grupo permanente?
Nivaldo – É, e eles, inclusive atraiam multidões, nunca vi, uma coisa muito popular demais assim,
bem, fácil, e era bem feito, entendeu? Eu dava umas canjas com eles de vez em quando e eu me sentia
um peixe fora
d'água.
Bernardo – Você se lembra o quê de repertório que constava?
Nivaldo – Música cantada, aquele repertório de Roberto Carlos, meio seresta, meio aquelas músicas
dor de cotovelo, é esse repertório aí.
Bernardo – Anos 30, 40, por aí?
Nivaldo – 50. E um chorinho de vez em quando, aí eu tocava, eu toco uns chorinhos com o meu pai
lá, mas eu me sentia um peixe fora d'água porque não era minha onda, não sou do choro, não sou
disso, engraçado né?
Nasci nisso e não sou disso. Demais, né? Não sou mesmo. Outro dia até fui
no Clube do Choro, toquei alguns choros lá e tal que eu aprendi nessa época. Espinha de Bacalhau,
não sei o que. Eu toco porque ficou, né?
Mas
eu não desenvolvi isso.
72
A referência a Roberto Carlos citada por Ornelas é, certamente, posterior ao período da
infância do autor, já que estamos falando das décadas de 1940 a 1950. Por especulação podemos
supor que como o próprio nome do grupo sugere o Revivendo o Passado interpretasse um repertório
de musicas antigas, baseado na tradição da modinha e do samba-canção, repertório este identificado
com o universo da já citada seresta e que é assim definido no Dicionário Cravo Albin da Música
Popular Brasileira em sua versão online:
O mesmo que serenata. Segundo Luciano Gallet, a seresta é o choro, com a mesma formação
instrumental, ou diversa - acompanhando um cantor solista popular. As serestas, hoje em dia em
decadência nos grandes centros, foram o regalo da geração passada; e realizavam-se nas ruas, nas
praias, especialmente em noite de luar.
Na ancestralidade do repertório constituinte das serestas e serenatas, temos necessariamente
de nos remeter à modinha, gênero musical luso-brasileiro que em sua vertente popular teve como
primeiro nome de vulto no Brasil o mulato Domingos Caldas Barbosa que há mais de 250 anos fora
responsável pela difusão desse repertório tanto no Brasil quanto em Portugal. Mário de Andrade
expõe suas impressões sobre a modinha em sua vertente seresteira da seguinte maneira:
Modinha – À medida que esta desaparece ou vive mais desatendida dos seresteiros, vais sendo porém
substituída pelo samba canção, que é realmente uma modinha nova, de caráter novo, mas canção lírica
solista, apenas com uma rítmica fixa de samba, em que porém a agógica já não é mais realmente
coreográfica, mas de canção lírica. Ora isso é uma evolução lógica, por assim dizer, fatal. A modinha de-salão passada pra sempre ritmos importados, não da criação imediata nacional. O samba canção é a
nacionalização definitiva da modinha.
(Andrade, 2004, p. 234)
A citação nos revela que a modinha antecedeu o samba-canção no repertório das serestas, e
que na verdade, o samba-canção é uma extensão dessa estética de canções sentimentais, entendidas
como de dor de cotovelo por Nivaldo Ornelas, idéia também compartilhada por José Ramos
Tinhorão:
No plano da nascente música popular urbana dirigida a camadas sociais mais amplas, que começavam
a formar-se, esse movimento de interesse romântico dos eruditos pelas manifestações consideradas
“do povo” iria resultar no aparecimento da modinha seresteira, o que se daria através do casamento da
linguagem rebuscada dos grandes poetas, nas letras, com a sonoridade mestiça dos choros que
traduziam para as camadas médias os novos ritmos dançantes importados da Europa, na música.
(Tinhorão, 1998, p.129)
Portanto, a adoção da modinha tanto pelas camadas médias da população quanto pelos
eruditos novecentistas foram os fatores responsáveis pela efetiva difusão dessa prática que
73
contribuiu para delimitar e consolidar as características da canção popular sentimental brasileira,
que teve seu apogeu nas primeiras décadas do século XX
Resta acrescentar que a modinha, hoje denominada popularmente seresta, nos botequins e nas
churrascarias de subúrbio, onde se refugiou, reveste também o ritmo do fox-canção brasileiro, tão
divulgado nas décadas de 1930 e 1940. Nessas serestas, quase nunca deixam de ser cantados, ao lado
de "Chão de estrelas" (Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, 1937), "Lábios que beijei" (J. Cascata e
Leonel Azevedo, 1937) ou de sambas de Ary Barroso, Noel Rosa e Lupicínio Rodrigues, os foxcanção "Nada além" (Custódio Mesquita e Mário Lago, 1938), "Renúncia" (Roberto Martins e Mário
Rossi, 1942) ou "Mulher" (Custódio Mesquita e Sadi Cabral, 1940).
(Albin, Dicionário on-line)
Ao repertório contido na citação, podemos acrescentar músicas que fazem parte de um
vocabulário mais regional e que certamente faziam parte do cotidiano musical dos Ornelas, como
Amo-te Muito, do compositor montes-clarense João Chaves, A Ti Flor do Céu, de Teodomiro Alves
Pereira e Modesto A. Ferreira; sem falar nas cantigas de roda herdadas do folclore mineiro como o
Peixe Vivo (exemplificadas na próxima página), ou ainda o hino não oficial do Estado, Oh! Minas
Gerais, esta, uma adaptação da valsa italiana Vieni Sul Mar e gravada por Nivaldo Ornelas em
versão instrumental no disco Arredores de 1998. Também é comum a esses grupos a interpretação
de choros, como exposto por Nivaldo Ornelas, especialmente os do tipo choro-canção, citem-se:
Carinhoso de Pixinguinha e Flor Amorosa de Joaquim Callado.
Exemplo musical 29. Melodia de Amo-te Muito de João Chaves, possivelmente composta durante os anos 1950.
74
Exemplo musical 30. A Ti Flor do Céu, de Teodomiro Pereira e Modesto Ferreira, outra composição do cancioneiro das
Serestas em Minas Gerais da primeira metade do século XX.
Exemplo musical 31. O Peixe Vivo, do folclore mineiro e famosa em todo Brasil por ter sido uma das canções favoritas
de JK.
O aspecto de canção que está sendo creditado ao caráter de Nova Suíssa Sábado à Tarde
pode ser estendido a um outro tipo de produção musical realizada por Ornelas, que além de se
inscrever no universo da música instrumental também tem realizações ligadas à produção das
canções letradas, como na música João Rosa, do autor em parceria com Murilo Antunes, música
constituinte da trilha do filme homônimo de Helvécio Ratton, premiado no festival de cinema de
Brasília em 1984 e incluída como faixa bônus no relançamento em CD do álbum À Tarde lançado
em 2007. Parte dessa produção de canções também pode ser vista em CD produzido por Nivaldo
Ornelas e lançado em 2007 pela cantora Margareth Reali intitulado Um Trem Para o Sonho, onde a
cantora gravou apenas canções de Ornelas letradas por Murilo Antunes, Tavinho Moura, Ana
Buarque de Hollanda além de letra do próprio Ornelas.
Em dados gerais, Nova Suissa, Sábado à Tarde é dividida basicamente em duas grandes
75
seções que funcionam de maneira praticamente independentes, podendo a primeira seção ser
compreendida do compasso 1 ao 26; e a segunda, do compasso 27 ao 61, incluída uma Coda do
compasso 62 ao 69. A música pode ser percebida e grafada em compasso quaternário simples (4/4)
ou binário simples (2/2), com exceção da Coda onde se optou por sua grafia em 2/4 devido a
questões de sua constituição fraseológica. A tonalidade da primeira seção da música tende ao Sol
Maior, enquanto que a segunda ao seu relativo, Mi Menor, sendo que no início da peça a harmonia
realizada pelo piano não deixa bem claro os acordes em questão, acontecimento flagrado já no
primeiro compasso da peça onde o contrabaixo realiza uma linha descendente com passagens
cromáticas e o piano esboça alguns acordes arpejados, sem efetivamente completá-los:
Exemplo musical 32. c. 1-4 de Nova Suissa Sábado à Tarde, partes de saxofone tenor e piano, com realização o baixo
na mão esquerda..
A impressão que se tem é que aos poucos a harmonia da música vai tomando forma, como
que tateando notas deste campo harmônico que inicialmente parece ser o de Sol Maior, já que as
inclinações anteriores são mais bem definidas em sua tônica relativa e especificamente nesse trecho
a resolução se dá sobre a região de subdominante, Dó Maior. No primeiro compasso é muito difícil
identificar o acorde inicial, já que temos as notas mi natural no baixo, com as notas fá sustenido, si
natural e mi natural, reforçado pela nota fá sustenido da melodia, numa distribuição harmônica de
organização quartal. Já no acorde seguinte, ainda no mesmo compasso, o deslocamento do baixo
para a nota ré sustenido pode indicar um acorde de B/D#, seguindo nos compassos seguintes para
no que poderia ser cifrado como os acordes de G7M/D, C#m7(11), C7M(#11), Am11/C e C7M.
Dessa primeira sequencia de acordes nota-se os seus usos muito mais ligados aos coloridos
harmônicos e condução das três “linhas melódicas”, considerando que o piano realiza durante boa
76
parte da música acordes arpejados, tendendo a um tratamento melódico desses acordes. Essa relação
pode ser notada, por exemplo, entre a melodia realizada pelo saxofone tenor e o baixo durante a
realização de Nova Suissa, Sábado à Tarde. Relativo a esse tipo de pensamento que privilegia a
escrita horizontal das linhas instrumentais, Nivaldo Ornelas relata seu ponto de vista em entrevista
por ele concedida em abril de 2009 (informação verbal):
Nivaldo – A harmonia de jazz ou da música erudita contemporânea ela começa aí, passa por Bach,
pela...
Bernardo – Umhum.
Nivaldo – Essa harmonia é vertical, depois passa por Bach que é horizontal. É assim ó.
Bernardo – Umhum.
Nivaldo - A harmonia vertical são acordes parados, tum, tum, tum. A harmonia vertical, é... horizontal
não tem acordes ela tem melodias que se, né?
Bernardo – O punctus contra punctus.
Nivaldo – É, isso aí eu estudei bastante comigo mesmo, me ajudou muito a escrever então eu falei:
Caramba! O grande segredo da escrita é horizontal, esse é o segredo, são melodias, eu toco
instrumento de melodia, então eu já tenho um dado, nós temos né?
Bernardo – Umhum.
Nivaldo – Eu tenho um dado a meu favor.
Apesar de parecer uma harmonia pouco usual, a performance de Wagner Tiso para a parte de
piano, na verdade, se dá de
modo a “mascarar” alguns desses acordes, ao mesmo tempo
escondendo notas de suas tríades de origem e valorizando as extensões harmônicas. Ao nos
depararmos como a cifra escrita pelo próprio autor para o trecho notamos que, bem da verdade, a
harmonia implícita na performance e explicitada na cifragem original da peça é muito mais simples
e usual do que a análise de sua transcrição, principalmente do que a linha de piano nos revela. A
seqüência harmônica escrita por Ornelas para os quatro primeiros compassos da música é a
seguinte: Em9, Em9/D#, Em/D, Em/C#, C7M, D/G (apesar de na gravação haver um baixo pedal na
nota dó natural) e C7M, como demonstra o exemplo musical 33, disposto a seguir.
Exemplo Musical 33: Primeiros 4 compassos de Nova Suissa, Sábado à Tarde apresentando cifragem do autor.
77
A partir da cifragem é perceptível a intenção do autor em relizar um baixo cromático
partindo da nota mi natural, fundamnetal da tonalidade da música (Mi Menor), até a nota dó natural.
Esse caminho cromático da linha de baixo tendencía a audição a ouvir outros acordes,
principalmente nos casos do Em9/D#, onde se omitida a fundamental, nota mi natural, o resultado é
o de um acorde de B/D# e outro de Em/C#, resultando em um acorde de C#m(b5)7, de modo que,
acrescidas essas características, Wagner Tiso ao mesmo tempo em que acrescenta outras notas
comuns as escalas dos acordes anteriormente citados , omite outras notas chave para a identificação
dos acordes tal qual previstos.
A segunda seção da música é iniciada pelo coro misto que apresenta este segundo tema, logo
em seguida há a repetição deste, mas agora entoado pelo saxofone que infere pequenas mudanças
interpretativas, nuances de divisão da melodia. Por sua vez, o coro realiza uma condução harmônica
como fundo, tendo em ambas as realizações o acompanhamento do piano e do contrabaixo elétrico
como demonstram os exemplos a seguir:
Exemplo musical 34. c. 26-29 Exposição do tema da Seção B realizada pelo coro em Nova Suissa Sábado à Tarde.
Exemplo musical 35. c. 35-39 Re-Exposição do tema da Seção B de Nova Suissa Sábado à Tarde realizado ao Saxofone
Tenor.
78
Outro fato que não deve ser omitido é a linha de piano realizada por Wagner Tiso, que entre
blocos de acordes e passagens fraseadas dialoga com a linha de baixo caracterizada por figuras de
semínimas pontuadas seguidas de colcheias, ostinato preponderante nesta peça e que aparece tanto
na linha de baixo quanto na linha melódica da seção B:
Exemplo musical 36. Linhas de Piano e Baixo durante tema da Seção B de Nova Suissa Sábado à Tarde
Ritmicamente, a condução dita de seresta é realizada, mormente, pelos violões, onde por
tradição desenvolveram essas linhas de condução de baixaria a partir de referências da polca e da
habanera. A polca no século XIX, segundo Bruno Kieffer (apud Braga, p.15, 2002), diferentemente
do seu entendimento atual, era tocada em andamento lento e como ostinato apresenta, em um
compasso binário simples (2/4), uma figura com colcheia seguida de duas semicolcheias e outra
com duas colcheias. Com o desenvolvimento da prática, o baixo de habanera passou a influir na
realização deste formante transformando-o, como sugere Luiz Otávio Braga em seu método O
Violão de 7 Cordas – teoria e prática como acompanhamento para a modinha:
A fórmula seguinte se presta ao acompanhamento de grande variedade de modinhas, bem como se
aplica às serestas. Cabe bem lembrar que essas formas de acompanhamento da modinha ligam-se à
polca e ao schottish, se bem observado.
(BRAGA, 2002, p.18)
Exemplo musical 37. Exemplo de acompanhamento da modinha para o violão de 7 cordas segundo Luiz Otávio Braga.
79
O exemplo anterior, se reduzido a um único ostinato rítmico poderia ser escrito da seguinte
maneira (escrito no compasso quaternário simples de Nova Suissa, Sábado à Tarde):
Exemplo musical 38. Ostinato reduzido da modinha, resultando na polca brasileira.
Exemplo musical 39. Através da ligadura da semínima com a primeira colcheia do segundo tempo obtêm-se o ostinato
tipo de habanera
Vê-se, portanto, uma genealogia da polca ligada diretamente à realização da modinha e
consequentemente das chamadas serestas. Da realização do ostinato indicado de habanera,
devemos ponderar para a seguinte característica: Quando realizado dentro do gênero cubano, o
ostinato acima representado - que pode ser tocado tanto pelo baixo quanto pela mão esquerda do
piano - vem frequentemente acompanhado pelo arpejo do acorde ao qual se refere, ocorre com certa
rotina que o intervalo entre a última semínima do ostinato e a semínima pontuada de sua repetição
apresente um salto de quarta justa ascendente, ou seja, num movimento de V – I:
Exemplo musical 40. Baixo arpejado utilizado na Habanera
Podemos comprovar o uso do ostinato também em acompanhamentos de piano, como na
partitura de Tú, composição de Eduardo Sánchez de Fuentes. Vale notar os saltos de terça maior
ascendente do baixo entre os acordes de F e C7/E, e o salto de quinta justa descendente entre os
acordes de C7 e F, corriqueiros na prática do gênero cubano:
80
Exemplo musical 41. Trecho de Tú, Habanera composta por Eduardo Sánchez de Fuentes.
Distintamente, na música brasileira quando da realização do referido ostinato, este não
necessariamente aparece com esta disposição arpejada, além de poder ser apresentado com uma
série de modificações Deve-se a esta hibridação, entre as linhas da polca e da habanera, e seus
desdobramentos, a formação e consolidação de praticamente toda a música popular urbana do
século XX no Brasil. Na música de Nivaldo Ornelas, o uso dado às linhas de baixo, já que congrega
as características de baixo harmônico e rítmico, não chega explicitamente a utilizar o formante que
seria característico das Serestas, mas há um desenvolvimento deste, uma variação onde é repetida a
célula de semínima pontuada seguida de colcheia, mais próxima à realização do samba-canção, já
citado, mas em outros momentos, aparece com usos compartilhados como os citados por Braga:
Exemplo musical 42. c. 27-30: linha de baixo de Nova Suissa Sábado à tarde, os compassos 29 e 30 apresentam um
desenho próximo ao do tradição das ditas serestas.
Em outras passagens, há a uso de outras conduções de baixo que também se assemelham ao
exemplo dado por Braga (exemplo musical 37, p. 75), como as variações apresentadas no exemplo
musical 43, a seguir, onde a última semínima é substituída por uma pausa de semicolcheia e outras
três colcheias são tocadas em movimento tanto ascendente quanto descendente:
81
Exemplo musical 43. Realização do baixo de Nova Suissa, Sábado À Tarde com variação da linha de baixo próxima à
realização sugerida por Luiz Otávio Braga no violão de 7 cordas.
Quanto ao desenho melódico do tema da Seção B (exemplo musical 34, p. 74), é notório o
extremo grau de simplicidade com que Nivaldo Ornelas o constrói, onde melodia, harmonia e
tempo harmônico são estruturas praticamente indissociáveis para seu entendimento. Sobre uma
harmonia no campo harmônico de Mi menor natural, constituída dos acordes de Em, D, C, G/B, C,
A/C# e D, uma melodia insistente constituída em seus dois primeiros compassos por apenas uma
nota, a si, realizada em semínimas pontuadas seguidas de colcheias perpassa toda a estrutura
harmônica do trecho, já que os acordes se dão a cada 2 tempos em compasso quaternário, sendo a
nota si natural, inicialmente quinta justa de Em, sexta maior em D, sétima maior em C, terça maior
de G/B e voltando como sétima maior de C. A melodia só muda de altura nos dois últimos acordes,
caminhando em grau conjunto para a nota lá natural, fundamental de A/C# e resolvendo em D com
ambas as notas, si e lá, uma em cada tempo do compasso.
A partir daí, esta mesma estrutura harmônica servirá de base para uma variação melódica
(exemplo musical 46, p. 79) sendo utilizado como acorde para a volta ao tema B/D#, dominante de
Em, e no que seria, aparentemente, uma terceira repetição, a harmonia aponta outra direção,
podendo essa terceira repetição ser considerada uma variação melódica com um desenvolvimento
da harmonia para além daquela da seção B, conduzindo a música para a Coda, de modo que a reexposição do tema é realizada de maneira quase que imitativa somente no início dessa seção, como
exposto anteriormente, havendo assim um caráter rapsódico em sua construção. Outro fato
interessante é que as variações melódicas apresentadas não são, nesse caso, improvisadas. Estas
82
variações são percebidas como solos, mas que apresentam forte grau de simbiose com a composição
por apresentarem grande coerência em seu desenvolvimento e um sentido de complementaridade
com o restante do material melódico apresentado.
Exemplo musical 44. c. 35-39, Tema da Seção B de Nova Suissa Sábado à Tarde
Exemplo musical 45. c.39 – 43, Variação do Tema da Seção B de Nova Suíssa Sábado à Tarde
Exemplo musical 46. c. 45-53. Primeiros 9 compassos da terceira variação estendida da Seção B, desta vez com
variações melódica e harmônica.
O contínuo uso de melodias em graus conjuntos alude o seu emprego à tradição das canções,
formas musicais nas quais as melodias normalmente apresentam pouca sinuosidade devido
justamente ao fato de serem cantadas. Como definição do Dicionário Grove de Música em sua
Edição Concisa, encontramos o verbete Canção que revela (1994, p.160): “Peça musical,
habitualmente curta e independente, para voz ou vozes, acompanhada ou sem acompanhamento,
sacra ou secular. Em alguns usos modernos, o termo implica música secular para uma voz”. Note-se
a definição do termo como para voz sem denotar se há ou não a presença de texto, apesar de haver
como entendimento para muitos autores, que a inclusão de texto é fundamental para que a
composição se torne realmente canção, mas por outro lado, com a consolidação deste modo de
compor, os elementos constituintes da prática puderam denotar uma forma-canção na qual a música
pôde se desvencilhar da textualidade, como nas Canções Sem Palavras, termo utilizado
83
inicialmente por Mendelssohn, mas que posteriormente batizou conjuntos de obras de outros
autores como Schubert, Tchaikovsky e Fauré e que, segundo o mesmo Dicionário Grove de Música,
trata-se de uma “pequena peça para piano, de natureza lírica”. Outros termos também podem se
referir a esta forma composicional, tais como lied, chansong, ballad, umas tendendo mais para o
caráter camerístico, outras para um perfil popular ou mesmo folclórico, fato é que são estróficas,
podendo conter refrões e acima de tudo, um caráter lírico, como destacado no verbete anteriormente
citado.
O fato de ser sacra ou secular também nos é cara para esta análise, já que podem ser
vislumbradas duas linhas convergentes para a constituição referencial da composição Nova Suissa,
Sábado À Tarde como tal. Da possível referência sacra que Nivaldo Ornelas nos apresenta parte
tanto da escolha de alguns dos instrumentos utilizados, bem como no tratamento polifônico de
horizontalidade harmônica. Este duplo uso funcional da canção no Brasil, entre o sacro e o secular,
e em especial no uso das modinhas do século XVIII é exposto por José Ramos Tinhorão:
A pequena elite dos principais centros da colônia – Olinda, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, e, com a
explosão urbana provocada pela corrida do ouro desde a virada do século XVII para XVIII, as várias
Vilas do Recôncavo, e das minas gerais e de Cuiabá – contou sempre para seu divertimento com a
música dos mestres de capela das igrejas e das charamelas palacianas. Na igreja não era raro ouvir-se
cantigas (a ponto de em 1773 o bispo Frei Antônio do Desterro criticar em pastoral os músicos
mineiros por achar “nas músicas que se cantavão nas festividades das igrejas muita profanidade e
endecencia”) e, nas festas oficiais, incluiam-se sempre serenatas
ao governador (como as
realizadas em honra ao conde das Galveas em 1733, em Ouro Preto, ou do marquês do Lavradio em
Salvador, em 1760). É bem verdade que se tratava em ambos os casos mais de música para ouvir do
que para cantar, porque os músicos de igreja – mesmo os mulatos recrutados nas baixas camadas –
não compunham suas “profanidades” em estilo popular, mas eruditamente para várias vozes, e as tais
serenatas às autoridades não eram cantorias sob as janelas, mas saraus com “boas músicas, e bem
vestidas figuras”,(...)
(Tinhorão, 1998, p. 115)
Destas referências sacras em Nova Suissa Sábado à Tarde podem ser consideradas parte da
instrumentação utilizada, com coro e órgão, além do caráter solene da peça. Quanto ao uso desta
instrumentação específica, é fato que ela funciona mais como um recurso de timbre, já que boa
parte do coro e do órgão, que é parcimoniosamente utilizado, replica a harmonia e mesmo a
disposição dos acordes encontrados na parte de piano, quando polifônico, ou na linha melódica do
saxofone, quando em uníssono. Um exemplo desta redundância ocorre na Ponte que liga a
exposição do tema da Seção B com a reapresentação deste realizado pelo saxofone tenor.
84
Exemplo musical 47. c. 32-35, Dobra da linha de Vozes e Piano em Ponte de Nova Suissa, Sábado À Tarde.
A amostragem dessas ocorrências vem corroborar a constatação de usos de diversos
materiais musicais na obra de Nivaldo Ornelas e, por conseguinte, na modalidade música
instrumental na qual o autor se insere, principalmente através de seus discos de carreira. A Nova
Suissa e as práticas musicais ligadas principalmente aos círculos familiares do músico, expressas
aqui através das Serestas e da música sacra, exemplificam algumas das reconversões24 utilizadas
por Ornelas em suas peças, mas que não se restringem apenas às referências de suas raízes
familiares e “nacionais”, ou “regionais”, mas também às referências externas, do cosmopolitismo
dos centros urbanos, da volatilidade de modismos e estrangeirismos comuns à multiplicidade da
chamada pós-modernidade, problematizado por Néstor Garcia Canclini da seguinte maneira:
Mas, ao mesmo tempo, resisti a considerar a pós-modernidade como uma etapa que substituiria a
época moderna. Preferi concebê-la como um modo de problematizar as articulações que a
modernidade estabeleceu com as tradições que tentou excluir ou superar. A deslocação dos
patrimônios étnicos e nacionais, assim como a desterritorialização e a reconversão de saberes e
costumes foram examinados como recursos para hibridar-se.
(Canclini, 2001, p.XXX)
Nesse sentido, a obra do saxofonista e as realizações em música instrumental de um modo
geral estão atreladas a novas experiências de inclusão de características musicais provenientes de
práticas de certo modo rejeitadas e consideradas talvez menores, como no caso das serestas, que nas
últimas décadas do século XX foi sendo paulatinamente excluída do trato das elites culturais
24
Utilizamos o termo reconversão, tal qual citado por (Canclini, 2001, p.XVIII): Esclareçamos o significado cultural
de reconversão: este termo é utilizado para explicar as estratégias mediante as quais um pintor se converte em
designer, ou as burguesias nacionais adquirem os idiomas e outras competências necessárias para reinvestir seus
capitais econômicos e simbólicos em circuitos transacionais (Bourdieu). Também são encontradas estratégias de
reconversão econômica e simbólica em setores populares: os migrantes camponeses que adaptam seus saberes para
trabalhar e consumir na cidade ou que vinculam seu artesanato a usos modernos para interessar compradores
urbanos; os operários que reformulam sua cultura de trabalho ante as novas tecnologias produtivas; os movimentos
indígenas que reinserem sua demandas na política transacional ou em um discurso ecológico e aprendem a
comunicá-las por rádio, televisão e internet
85
brasileiras. Ornelas busca redimensionar o emprego de características musicais de gêneros como
esse em uma estética que rompe com hierarquias em busca de uma autonomia de escolhas.
3. O Rock Novo de Nivaldo Ornelas
Irrompendo os limites imaginários que protegem e cindem a urbes - Belo Horizonte - da
exterioridade dos subúrbios através do cinturão da Avenida do Contorno, as referências urbanas da
pretensa modernidade de sua região central se misturam e se contradizem com a presença das ditas
tradições rurais e regionais dos espaços públicos, como no Mercado Central, principal entreposto
comercial de Belo Horizonte de até meados do século passado e ainda importante referência da
cidade, localizado às margens da Praça Raul Soares e que é reservado ao comércio principalmente
de produtos do interior, da produção familiar de lavradores e pequenos fazendeiros. Não muito
longe dali, no interior ou nas cercanias do edifício Maletta, jovens estudantes, escritores, artistas e
intelectuais encontravam-se para compartilhar suas impressões de mundo, dos novos hábitos e da
contestação dos ditames comportamentais. Era o início dos anos 1960, a política, a literatura, o
cinema e a música, por exemplo, eram temas recorrentes dos jovens daqueles tempos e para aquela
geração em especial, a marca indelével deixada pelo rock se tornaria parte deles mesmos e de quase
todos que os sucederiam, com seus fenômenos de mercado, a revolução de comportamento, da
contracultura e o início da ruína das hegemonias estéticas e de seus cânones.
Sob essa nova perspectiva a música brasileira não poderia ficar impassível de suas
conseqüências, mudança observada nos Festivais de Música, na música de protesto, na produção da
Jovem Guarda e especialmente com a chamada Tropicália onde os estereótipos e as barreiras
estéticas de práticas musicais ligadas principalmente à música popular começaram a ser colocadas
em xeque. Dentro desse turbilhão de acontecimentos até mesmo Nivaldo Ornelas flertaria com um
gênero musical que em um primeiro momento parece conflitante à sua produção musical, mas que
através da manipulação de alguns de seus elementos é assimilada e transformada pelo
autor/intérprete em sua obra, mesmo que observada de longe, como afirma o próprio músico, ou
86
seja, como um outsider dessa prática.
O processo de amadurecimento de Ornelas passou pela escuta e prática de um repertório
ligado ao rock, em especial a do grupo inglês The Beatles, como afirma o músico ao explicar como
se deu o seu aprendizado em harmonia através de um instrumento harmônico, no caso, o violão,
durante entrevista concedida em 17 de abril de 2009 (informação verbal):
Nivaldo – Marílton (Borges) é bom de harmonia, mas adora, adora madrugada. Boite é com ele
mesmo, engraçado isso, mas ele é talentoso. Aí eu comecei a pegar com o Marílton. Primeiro eu
peguei as músicas do
Roberto Carlos, você acredita? As harmonias super simples, depois peguei
tudo dos Beatles, esgotei o assunto. Tinha Falado: Esse jazz aí tá difícil, deixa pra depois. Então eu fui
pelas beiradas primeiro. Falei: Que nada, essa harmonia aí não dá pra mim não. Aí peguei as coisas
dos Beatles todas, bem trabalhado aquilo.
Mesmo que Ornelas não estivesse às voltas com o repertório do rock, ou seja, o gênero em
questão não fazia parte da prática musical do seu dia a dia, mas foi através desse repertório que as
primeiras referências e o entendimento de harmonia se deram, e é de se supor que, mesmo que o
músico não estivesse “preocupado” em tocar rock, marcas dessa prática foram certamente
assimiladas por ele, haja vista o grau de profundidade com que diz ter estudado o assunto.
Sob essa perspectiva, salta aos olhos em sua produção autoral a música Rock Novo, presente
inicialmente no disco Concerto Planeta Terra, de 1989, onde aparece em arranjo de Ornelas ao lado
de outras composições sob o título de Ar, e no ano seguinte a música foi gravada em seu disco
Colheita do Trigo, terceiro disco que encerra a primeira de duas trilogias temáticas do autor. A
gravação contou com os músicos Luizão Maia no baixo, Rubinho Moreira na bateria, Pierre Luc,
nos teclados, Paulinho Trompete, flugell-horn solo e Eveline Hecker nos vocais, além de Nivaldo
Ornelas no sax tenor. Em um primeiro momento chama a atenção o uso do termo rock no título da
música, o que de certa forma tendencía a escuta de seu registro na expectativa de serem percebidas
características desse gênero na gravação, mas que segundo o autor foi um equívoco, já que Rock
Novo deveria ter sido registrada como Roque Novo, em homenagem a um amigo do músico,
morador da Nova Suissa.
De todo modo, na língua portuguesa, a grafia do gênero como roque também é aceita, aliás,
esta seria a maneira aportuguesada do termo saxônio, portanto, trataremos neste tópico da
87
observação de características do gênero rock na composição de Ornelas – tendo sido estas
deliberadas ou não - e suas prováveis hibridações com outros eventos contemplados dentro da
modalidade música instrumental.
Para delimitarmos o campo de investigação da música Rock Novo nos debruçamos sobre
referências harmônicas e rítmicas, principalmente, da música em questão, utilizando o livro Jazz
Styles: history and analysis de Mark C. Gridley, onde o autor identifica 9 aspectos característicos do
gênero rock. É importante salientar que as características abaixo relacionadas se referem a uma
identificação comparativa entre o rock e o jazz, gênero no qual o estudo de Gridley está
fundamentado, portanto, as proposições somente fazem sentido se observados sob esta ótica. As
características são as seguintes:
1) frases mais curtas,
2) mudanças de acordes menos frequente,
3)menor complexidade melódica,
4) menor complexidade harmônica,
5) menor uso de improvisação nos acompanhamentos,
6) grande número de repetições da mesma frase melódica,
7) repetições de progressões breves de acordes,
8) padrões rítmicos de base mais simples e
9) uma repetição pronunciada de figuras de linha de baixo, sendo a instrumentação baseada em
instrumentos eletrificados.
(Gridley, 1986, p. )
Genericamente, a partir de uma escuta ingênua da gravação de Rock Novo podemos
perceber alguns destes aspectos, como uma menor complexidade melódica e harmônica, além de
uma instrumentação que, mesmo parcialmente, apresenta uma disposição com instrumentos
eletrificados, no caso, teclados e baixo elétrico, além das características de menor improvisação na
linha de baixo e bateria, que realizam variações sobre levadas identificáveis com um nível de
liberdade contida, cerceada.
Em Rock Novo, a partir já desse tipo de escuta, são percebidas questões antagônicas em sua
concepção. A primeira delas diz respeito ao seu entendimento métrico, isto porque,
fraseologicamente, a melodia da música se desenvolve em uma proposição quaternária, comum ao
gênero rock, enquanto que a seção rítmica, tendo como base de sua levada o samba, e matizes de
ritmos brasileiros, infere uma cadência binária ao paradigma rítmico.
88
Dentro desta dicotomia, a solução encontrada para uma grafia musical que contemplasse
este desajuste foi a escolha do compasso de 2/2, já que este pode ser lido como compasso binário ou
quaternário simples, mesmo que neste caso, as frases do tema se realizem a cada dois compassos,
ou seja, em um compasso de 4/2. Este sentido métrico dúbio já pode nos indicar que,
fraseologicamente há uma abordagem híbrida desta concepção de estrutura melódica.
Em relação especificamente à formulação dos acordes no gênero rock, David Temperley
atesta que:
É importante notar que, primeiramente, o rock é claramente um estilo harmônico, um estilo no qual a
estrutura harmônica está presente. Uma peça de rock é composta por uma série de entidades
harmônicas identificadas por um grupo de alturas, harmonias em rock são caracterizadas
primeiramente e principalmente por acordes dispostos na fundamental, no entanto, outras informações
também são importantes, tais como modos maior e menor, além de tríades e acordes com sétima. 25
(Temperley, 2001, p.253)
Referente à tonalidade da música, a relação harmônica encontrada sugere uma interação
modal, já que parte dos acordes são baseados em acordes maiores com sétima menor, o que implica
em uma harmonia no modo mixolídio, tendendo a uma resolução no acorde de G7. Por esse motivo,
ao transcrever a peça, foi adotada a armadura de Dó maior, já que Sol Mixolídio é um modo natural
extraído do campo harmônico deste tom. Esse modalismo, ainda segundo Temperley, é prática
comum nas composições do gênero:
Vários autores tem comentado sobre o caráter modal da maior parte das músicas de rock. Ao dizer que
o rock é modal, nós queremos dizer que este utiliza a escala diatônica, mas com o centro tonal em
posições distintas do habitual “modo maior” da música da prática comum26. Por exemplo, dada a
escala de Dó Maior como a coleção de alturas, uma peça de prática comum tipicamente adotaria a
nota dó como centro tonal. Uma canção de rock usando esta escala diatônica de Dó adota a nota dó
também como tônica (usando o modo Jônico), ou La (usando o modo Eólio). Moore (1993, 49) notou
que os modos mais comumente usadas no rock são estes quatro: o Jônico, Dórico, Mixolídio e Eólio.27
(Temperley, 2001, p258.)
25
26
27
“It is important to note, first of all, that rock is clearly an harmonic style, one in which harmonic structure is
present. A rock piece is composed by a series of harmonies-entities implied by a group of pitches; harmonies in rock
are characterized first and foremost by roots, although, other information is also important, such as major/minor,
and triad/seventh.”
O termo prática comum, “common practice”, foi amplamente utilizado por Walter Piston para se referir à música
tradicional européia principalmente dos séculos XVIII e XIX.
“A number of authors have commented on the modal character of much rock music. By saying that rock is modal,
we mean that it uses the diatonic scale, but with the tonal center at different positions in the scale than in customary
“major mode” of common practice music. For example, given the C major scale as the pitch collection, a commonpractice piece would typically adopt C as the tonal center. A rock song using the C diatonic scale might adopt C as
tonic as well (thus using the Ionian mode), or A (the Aeolian mode). Moore (1993, 49) has noted that the most
commonly used modes in rock are precisely this four: the Ionian, Dorian, Mixolydion, and Aeolian”
89
Levando em consideração o enunciado anterior, vejamos como a organização harmônica da
peça se comporta em relação a possíveis modos e seus usos, sendo que o esquema
harmônico/formal da composição em questão pode ser exposto da seguinte maneira:
Tabela 2. Representação da organização formal de Rock Novo
Seção
Seqüência Harmônica
Número de Compassos
Seção A
D
8
Seção B
F
4
Seção B’
Fm
4
Seção C
Fm7 – Bb/F
8
Seção D
Gm7 – D7(b13)
8
Ponte / Coda
G7
12
No esquema acima estão expostas as seções da música (identificadas por letras maiúsculas
em itálico); os acordes utilizados nas seções (identificados por letras maiúsculas) e o número de
compassos de cada uma das seções, ressaltando que os acordes indicados ocorrem a cada compasso
de 2/2. De um modo geral, Rock Novo está dividida em cinco grandes seções de um total de 44
compassos que se repetem, (A – (B - B’) – C – D e Coda); sendo apresentada uma pequena
introdução de 2 compassos sobre o acorde da seção A seguida da própria seção A com 8 compassos
sobre o acorde de D; uma seção B, subdividida em B e B’, sendo a primeira sobre o acorde de F (4
compassos) e a segunda sobre o acorde de Fm (outros 4 compassos); seguida da seção C de 8
compassos, sendo utilizados os acordes de Fm7 e Bb/F por compasso, ou seja, tendo em vista o
compasso binário simples utilizado na transcrição (2/2) os acordes são tocados um em cada tempo;
a seção D compreendida por 8 compassos sendo utilizados os acordes de Gm7 e D7(b13) com o
tempo harmônico igual ao da seção C. Por fim, é apresentada uma ponte sobre o acorde de G7 que
também serve como Coda.
A harmonia citada anteriormente foi escrita a partir da percepção gerada através da escuta de
seu registro sonoro e aplicada com as polarizações dos acordes e inversões apresentados, sendo que
90
para Ornelas, diferentemente da cifragem aqui adotada, o seu entendimento passa pelo que ele
chama de harmonia com tríades suspensas28. Distintamente do entendimento do termo “acordes
suspensos”, que no jargão dos músicos populares se trata de um acorde com a terça maior sendo
substituída pela quarta justa, a tríade suspensa de Ornelas se refere a um baixo pedal, onde sobre ele
tríades são dispostas, podendo ou não estas tríades ter referência com o baixo ao qual se sobrepõem,
exemplifico: Um exemplo pode ser observado no trecho que compreende a seção C (vide tabela 2,
p.86), onde grafamos Fm7 e Bb/F, no entendimento do autor o primeiro acorde seria escrito como
Ab/F, ou seja, Ab com a sexta no baixo. Por ser pouco próprio para observação analítica sob este
olhar, optamos pela grafia do Fm7, mas é importante esta observação para entendermos que o autor
encara a nota fá no baixo realmente como um pedal. O entendimento dessas tríades suspensas
também pode ser estendido à seção B, onde teríamos os acordes de F e Fm com sétima, ou seja, no
entendimento de Ornelas: Am/F e Ab/F.
Da observação do esquema supracitado podemos perceber a relação do acorde de G7 com o
de D (V grau de G), na seção A, e deste com o de F (III de D) seção B. Na seção C os dois acordes
poderiam ser considerados como pertencentes ao mesmo campo harmônico, o de Mi Bemol Maior
(II e V graus), e a seção D estaria em Sol Menor. Portanto, estão aqui estabelecidas relações
reconhecíveis da prática da harmonia em rock com a peça em questão.
Enquanto que muitas canções permanecem dentro de um único modo, também é comum – talvez até
normativo que canções troquem livremente entre os quatro modos comuns. Em alguns casos, uma
mudança de modos ocorrerá entre seções.
(Temperley, 2001, p. 258 – 259)
Sendo assim, o paradigma harmônico de Rock Novo se assemelha à descrição de Temperley,
já que Nivaldo Ornelas durante a composição trata cada seção de maneira quase independente da
anterior, restando um vínculo de progressão entre acordes através de fundamentais relacionadas
com notas da tétrade de G7 (acordes de G, D e F). Portanto, segundo o autor, as características
harmônicas do gênero rock são características de distinção deste, e que se observado em Rock Novo,
as características de tríades maiores, menores e acordes com sétima são facilmente reconhecíveis,
28
A partitura de Rock Novo que se encontra em anexo à esta tese prevê outras inversões cifradas nessa edição, mas que
podem ser entendidas como extensões harmônicas dos acordes que polarizam cada uma das seções identificadas.
91
além da construção melódica que como identificada por Gridley apresenta menor complexidade:
Uma pergunta importante a se fazer sobre qualquer estilo harmônico é referente a quais graus da
escala (relativos à fundamental) que são considerados como notas do acorde. (...) os sons primordiais
do acorde usados na música de prática comum são 1, 5, 3, b3, e b7. No entanto, isto não é verdade
para todos os estilos harmônicos. No jazz, há uma imensa variedade de notas do acorde; 2
(normalmente chamada de 9) e 6 (ou 13) são amplamente usadas, além de outras. No rock, os graus
comuns de notas do acorde parecem ser mais ou menos os mesmos daqueles usados na música de
prática comum. Ou seja, a maioria das notas tem uma relação de 1, 5, 3, b3, ou b7 com a respectiva
fundamental, a menos que estas sejam ornamentais (seguidas de perto). (...) Há casos de adição de
sextas, nonas e outras alturas usadas como notas do acorde no rock, mas tais casos ocorrem
ocasionalmente na música de prática comum também.29
(Temperley, 2001, p. 256)
Pode ser notado que na melodia de Rock Novo estas características do uso de sons do acorde,
sobre uma tríade maior, como visto anteriormente:
Exemplo musical 48. c. 9-16: exposição do tema de Rock Novo, a melodia é toda baseada nas notas fá sustenido e lá,
respectivamente terça e quinta do acorde de D.
Como exceções da relação da construção melódica com os paradigmas do rock, temos o uso de
extensões harmônicas30 também conhecidas pelo termo tensões harmônicas, notas estas
complementares à tríade do acorde na qual ele se realiza:
Exemplo musical 49. c. 33 – 36: notas Si Bemol, décimas terceiras menores do acorde de D7(b13)
Além do fato de termos as décimas - terceiras menores valorizadas na construção melódica deste
trecho da peça, um dado da progressão do rock fica exposto. Ainda segundo David Temperley
Assim como Moore (1992, 1995) demonstrou, as regras de progressão no rock são bem diferentes
daquelas da prática comum: particularmente, a cadência V-I que serve como papel central na música
29
“An important question to ask about any harmonic style is what scale degrees (relative to the root) are permitted as
chord-tones(…) the primary chord-tones in common practice music are 1, 5, 3, b3, and b7(HPR1). However, this is
not true for all harmonic styles. In jazz, there is a wider variety of chord-tones;2 (usually known as 9) and 6 (or 13)
are widely used, and others as well. In rock , the common chord-tones appearto be more or less the same as in
common-practice music. That is, most notes have a relationship of 1, 5, 3, b3 or b7 with the current root, unless they
are ornamental(closely followed stepwise). (…) There are cases of added sixths, nineths ond other tones used as
chord-tones in rock, but such cases occur occasionally in common-practice music as well.”
30
“Tensão” harmônica é uma corruptela brasileira para o termo em inglês harmonic extension. (FABRIS, BORÉM,
p. 14, 2005)
92
de prática comum é virtualmente ausente no rock.31
(Temperley, 2001, p.258)
Este uso dos acordes Gm7 e D7(b13) (I e V graus), durante a seção D, estabelece uma
intencionalidade tonal a uma peça que notadamente recebe um tratamento modal, tanto que a
resolução do trecho citado resolve sobre o acorde de G7.
Outro modo largamente utilizado no rock é o dórico. Seu uso é reconhecível na música Rock
Novo, como visto a seguir:
Exemplo musical 50. c.25-28, Uso do modo Dórico em Rock Novo.
Neste exemplo pode ser observado o uso dos acordes de Fm7 e Bb/F. Apesar da cifragem do
acorde de Bb/F representar uma inversão deste acorde com a quinta no baixo, a intencionalidade da
inversão está relacionada ao uso de um baixo pedal. A partir deste ponto de vista ambos acordes
podem ser considerados pertencentes ao mesmo modo, o Dórico, já que o acorde de Fm7 polariza o
trecho, podendo o acorde de Bb ser considerado uma extensão harmônica do anterior, com a
presença das notas si bemol (décima primeira justa) e ré natural (décima terceira maior), sendo esta
a nota de distinção do modo referido. Já a linha melódica do trecho não afirma e nem desmente este
uso, sendo que as notas utilizadas são lá bemol, dó natural, si bemol e fá e sobre o acorde de Bb/F
as notas utilizadas são sempre si bemol e fá.
Ritmicamente, a gravação de Rock Novo é tocada com uma levada próxima à realização do
31
“As Moore (1992, 1995) has shown, the rules of progression in rock are clearly quite different from those of
common-practice music: in particular, the V-I cadence which serves such a central role in common-practice music is
virtually absent in rock.”
93
samba, mas com uma linha do bumbo da bateria antecipando o primeiro tempo do compasso. Essa
realização é contestada por Ornelas, dizendo que deveria ser feita de outro modo (informação
verbal):
Nivaldo – Tava meio sambeado o Rubinho,
Bernardo – Exatamente.
Nivaldo – Contrariando o que eu queria.
Bernardo – Ah, é? Foi contrariado?
Nivaldo – Não, eu queria, mas não daquele jeito, era diferente aquilo...Eu não sei explicar bem, era
entre aquilo...
Bernardo – (Solfeja um ritmo)
Nivaldo – Que a batida do Rock Novo, a melhor que tem é essa aqui (bate um ritmo na coxa), meio
Weather Report naquilo, mas eu queria aquilo sambeado, mas ele tocou samba. Eu queria uma coisa
mais moderna.
Bernardo – É um samba com um bumbo adiantado.
Nivaldo – Eu tenho um vídeo da TV Manchete tocando Rock Novo que eu acho que é campeão
O ostinato rítmico ao qual Ornelas diz preferir em relação ao que foi realizado pelo baterista
Rubinho é referendado no grupo estadunidense Weather Report, que teve como membros
fundadores e únicos músicos a participar de todos os discos da banda o pianista e tecladista
austríaco radicado nos Estados Unidos Joe Zawinul (1932-2007) e o saxofonista estadunidense
Wayne Shorter (1933 -), músico que participou do grupo de Miles Davis durante os sessenta e que
gravou, juntamente com Milton Nascimento, o célebre Native Dancer de 1974. O Weather Report
foi um dos precursores do chamado jazz fusion da década de 1970, estilo de jazz que contempla a
fusão de elementos, principalmente do rock e do funk ao jazz, incluindo uma instrumentação que
privilegia instrumentos eletrificados, como sintetizadores, guitarras e baixos elétricos além de um
forte apelo aos ostinatos rítmicos em backbeat32, com a acentuação da caixa da bateria nos tempos 2
e 4 de compassos quaternários simples. O ostinato rítmico demonstrado por Ornelas durante a
entrevista se assemelha à linha de bateria realizada pelo percussionista e baterista peruano Alex
Acuña (1944 -) na música Birdland, composição de Joe Zawinul presente no disco Heavy Weather
de 1977. Os exemplos a seguir demonstram, de maneira sintética, os ostinatos de Acuña para
Birdland e de Rubinho em Rock Novo
32
Backbeat é um termo inglês que se refere à aplicação de acentos em tempos fracos, muito comum às realizações no
rock.
94
Exemplo musical 51. Ostinato Rítmico Simplificado realizado por Alex Acuña em Birdland: vale ressaltar que a linha
de bumbo (voz inferior) é realizada com bastante liberdade rítmica que neste exemplo é apenas ilustrado.
Exemplo musical 52. Ostinato realizado pelo baterista Rubinho na seção A de Rock Novo.
Exemplo musical 53. Ostinato realizado pelo baterista Rubinho na seção B de Rock Novo.
Cabe explicar que as vozes escritas no exemplo anterior se referem ao chimbau na voz
superior, caixa e aro na voz intermediária e bumbo na voz inferior. A comparação entre os exemplos
mostra de fato que a realização de Rock Novo difere em muito daquela de Acuña, o que demonstra
que em música popular este tipo de realização, em muito, é decidida pelo instrumentista que realiza
aquela linha, não sendo sequer escrita uma guia para o baterista, sendo as partes de percussão
precedidas de indicações do tipo, Samba ou Funk e quando muito, algumas intervenções nos moldes
de convenções ou ataques coletivos. Mais uma vez, prevalecem as referências cruzadas, ora de
estruturas musicais da música brasileira, ora de referências do jazz, como nos intermezzos do tema,
que consistem basicamente de um riff realizado pelo teclado e algumas vezes dobrados pelas vozes
ou pelos sopros sobre um acorde de G7. Um riff consiste em uma frase curta que é repetida,
normalmente por um naipe, portanto, comum às formações e Big Bands. Na música cubana,
também existem espécies de riffs, lá chamados de mambos e que foram consagrados por Perez
Prado e sua orquestra.
No caso do riff encontrado na introdução de Rock Novo, há uma similaridade estrutural que a
aproxima de All Blues, composição de Miles Davis, presente disco Kind of Blue de 1959. Em
relação a Davis, Ornelas aponta o músico norte-americano como uma de suas referências,
95
principalmente em relação aos usos harmônicos, tanto para ele quanto para Milton Nascimento,
como exposto em trecho de entrevista transcrita a seguir (informação verbal):
Nivaldo – (...) esse o Bituca era apaixonado e eu também, do Miles com Gil Evans, ali foi o nosso
grande professor de harmonia foi aquilo ali.
Bernardo – Qual? O Birth of the Cool?
Nivaldo – Não, não. Miles e Gil Evans.
Bernardo – Miles Ahead?
Nivaldo – Miles Ahead, Porgy and Bess, Quiet Nights e Sketches of Spain, esses quatro aí. O Bituca
levava lá
em casa pra ouvir, na minha casa era um pólo ferrado. O pessoal ia lá pra casa pra
ouvir, porque lá em casa tinha ambiente pra ouvir, meus pais davam força, então, o pessoal ia pra lá.
Passava tardes e tardes. Era muito interessante.
Os riffs de All Blues e de Rock Novo podem ser comparados nos exemplos a seguir:
Exemplo musical 54. Riff de saxofones alto e tenor realizados por Julian “Cannonball “Adderley e John Coltrane no
disco de Miles Davis Kind of Blue durante a música All Blues.
Exemplo musical 55. Riff de Rock Novo presente no disco Colheita do Trigo na parte de teclado realizada por Pierre
Luc.
A referência aqui suscitada demonstra a similaridade nos usos de materiais musicais entre a
composição de Davis e o arranjo de Ornelas, fortalecendo ainda mais o entendimento das
hibridações ocorridas entre práticas musicais diversas, seja referendado em gêneros musicais
estrangeiros, casos do rock e do jazz, ou na própria tradição da música popular brasileira:
Falar de fusões não nos deve fazer descuidar do que resiste ou se cinde. A teoria da hibridação tem que
levar em conta os movimentos que a rejeitam. Não provêm somente dos fundamentalismos que se
opõem aos sincretismos religiosos e à mestiçagem intercultural. Existem resistências a aceitar estas e
outras formas de hibridação porque geram insegurança nas culturas e conspiram contra a sua autoestima etnocêntrica. Também é desafiado para o pensamento moderno de tipo analítico, acostumado a
separar binariamente o civilizado do selvagem, o nacional do estrangeiro, o anglo do latino.
(Canclini, 2001, p.XXXII – XXXIII)
Levando-se em consideração que o campo das estruturas discretas passíveis de identificação
dos processos híbridos em Rock Novo é impressionantemente vasto, nos satisfazemos com os
96
exemplos anteriormente expostos como representativos desses processos de desterritorialização e
reterritorialização de referências musicais diversas dispostas em um contexto multicultural e
transacional, mas que simultaneamente, mantêm sua identificação com o local, num processo de
hibridação que não nega a tradição e tampouco o torna um fenômeno a – histórico ou pertencente a
uma pretensa e equivocada “cultura universal”, pelo contrário, composições como o Rock Novo de
certo modo demonstra que esse tipo de realização musical tem fortes laços com o tempo e o espaço
no qual foi concebido, demonstrando que o fenômeno da hibridação gera resultados amplamente
diversos se alteradas quaisquer das variáveis envolvidas no processo. O embate entre os binômios
propostos na citação anteriormente apresentada denota os conflitos gerados pelo enfrentamento
dessas polarizações, oposições que no mundo contemporâneo são redimensionadas, rompendo com
os maniqueísmos que outrora normalizaram as relações sociais e culturais.
4.
Ninfas: O Encontro dos Opostos
Esta quarta e última análise se refere à composição Ninfas lançada no primeiro disco de
Nivaldo Ornelas, Portal dos Anjos, datado de 1978. Não por acaso a referida composição foi
escolhida para encerrar esta seção de análises, já que a música apresenta de maneira contundente o
fenômeno de hibridação, já exposto e argumentado nas análises apresentadas anteriormente. O que
se pretende aqui é descrever mais um dos processos de hibridação entre práticas musicais diversas e
que constituem parte do universo sonoro do músico mineiro, um recorte representativo da produção
na chamada música instrumental.
Comecemos pelo título da música: Ninfas. Segundo Deonísio da Silva em seu dicionário
etimológico De Onde Vêm as Palavras, a palavra ninfa é radicada no latim ninpha, que por sua vez
tem origem no grego númphes e anteriormente presente no hebraico nephes, significando alma. Na
mitologia grega são seres telúricos, deusas que personificam a natureza, a terra, os rios, o oceano e
as árvores, tema recorrente na literatura musical, tal qual Syrinx, composição para flauta solo de
Claude Debussy de 1913. Nivaldo Ornelas não chega a deixar subentendida nenhuma referência à
97
mitologia helênica, segundo o autor, o nome da composição foi escolhido em concordância com a
temática de seu disco de estréia, onde ele procurou dar uma conotação de algo sobrenatural e
mágico aos títulos das composições presentes nesse disco.
Ninfas apresenta uma instrumentação recorrente nas gravações autorais do músico, como
vozes, órgão, violão, guitarra, contrabaixo, percussão, bateria e saxofone. A reiteração do uso de
vozes ou coro dá a essas composições, além do caráter de canção, como exposto na análise de Nova
Suissa, Sábado à Tarde, também um entendimento de que o uso desses vocalizes ressalta uma
característica que tende a uma perspectiva intuitiva e experimental que a produção em música
instrumental - e mais fortemente quando autoral - demanda, em oposição ao automatismo, por
exemplo, das músicas de encomenda e dos arranjos comerciais, realizados normalmente através da
aplicação de fórmulas e técnicas de orquestração e harmonização, que não tem a intenção
primordial de se distinguir da produção ordinária dos arranjos já existentes, se prestando
simplesmente a “funcionar”, sem diferenciar de maneira veemente a produção de seus autores.
Músicos compositores de música popular, em geral, objetivam a criação musical
referendada, mormente por escolhas que legitimem a individualidade dos usos de materiais
musicais envolvidos na composição, e do acaso, da imprevisibilidade, num desprendimento dos
determinismos impostos pelas regras de organização musical. Caminhos estes não determinados,
mas orientados pelo compositor, sempre pronto para que o inesperado o faça uma surpresa33, de
modo que sua produção se diferencie da produção média dos demais autores, como comenta Néstor
Canclini, ao se referir à produção das vanguardas, movimento que é parcialmente compartilhado
com a produção de Ornelas.
Essa exacerbação narcisista da descontinuidade gera um novo tipo de ritual, que na verdade é uma
conseqüência extrema do que as vanguardas vinham fazendo. Nós os chamaremos ritos de egresso.
Dado que o
máximo valor estético é a renovação incessante, para pertencer ao mundo da arte
não se pode repetir o já feito, o legítimo, o compartilhado. Devem-se iniciar formas de representação
não codificadas (do impressionismo ao surrealismo), inventar estruturas imprevisíveis (da arte
fantástica à geométrica), e relacionar imagens que, na realidade, pertencem a cadeias semânticas
diversas e que ninguém tinha associado (dos collages às performances).
(Canclini, 2001, p.49)
Para alguns compositores, o ato da criação musical está intimamente ligado à idéia de
33
Citação de trecho da letra de Eu e a Brisa de Johnny Alf (1929 – 2010)
98
inspiração, para outros pode ser um processo de construção paulatina, mas que em geral, lida com
elementos de experimentação e de busca pela novidade. Para Nivaldo Ornelas, diz o autor, o ato de
compor deve ser precedido de algo que renda música, uma idéia melódica ou harmônica que possa
ser desenvolvida (informação verbal):
Nivaldo – Muitas das coisas que eu fiz é porque eu ia gravar, falava: Vou fazer alguma coisa pra mim
[sic]
gravar. E quando eu começo vira uma coisa quase que sessão espírita. Sabe o cara que faz
psicografia? Eu faço psicossom. O sujeito, a sessão espírita não fica lá e toca tambor e pá e aí começa,
tem todo um ritual pra ele poder entrar naquele transe dele, aí ele psicografa ou fala ou sei lá o quê. Eu
sou a mesma coisa. Depois de muitos anos eu falei: - Olha só, o meu processo é o seguinte: Quando
tem uma coisa qualquer assim que rende música, aí eu sento no piano, no violão e vou fazendo, aí é
que vem. Entende como é que é? Aí que vem, sem forçar. Ta ruim? Ta ruim, para. Hoje, não mais,
amanhã eu retomo. Sabe como é que é? É bem natural. Procurando, mas é natural.
Em Ninfas, esse tipo de procedimento é percebido quando, por exemplo, Ornelas admite ter
composto e gravado a música no violão sem ao menos saber o nome dos acordes que tocava. Isso
não se deu porque o músico não soubesse música, pelo contrário, Ornelas tem conato com o estudo
formal em música desde seus 11 anos de idade, o que ocorre é que esse espírito de busca, de
experimentalismo é por ele extremamente valorizado durante o ato de compor, como um fazer
lúdico que auxilia o músico a sair da obviedade de caminhos musicais ordinários, dos clichês de sua
zona de conforto.
Por analogia, pode ser estabelecida uma relação a essa práxis com um lado intuitivo do
músico, algo que poderia ser relacionado à gênese etimológica que o nome ninfa nos sugere, em
oposição à lógica, ao automatismo das realizações baseadas em processos de inculcação gerados
através da construção e sedimentação do conhecimento musical. Esse conflito é representado nas
diferentes seções da composição, oposições que se complementam, um desdobramento dos híbridos
que se anunciam como o próprio significado de híbrido e sua raiz grega reforçam: “hýbris, do
descomedimento” (Brandão, 1998, p.212), podendo ser acrescentado, do destempero, excesso,
transgressão, ou seja, o híbrido se dá pelo conflito, pela discórdia, nesse caso, entre o
experimentalismo e o automatismo.
Relativo ao processo de transcrição da música através da audição de seu registro sonoro,
procedimento utilizado como ferramenta analítica em todas as composições citadas neste trabalho e
99
já problematizado, pudemos nos deparar com uma questão fundamental para a compreensão
principalmente do entendimento rítmico e métrico de Ninfas, isto porque a realização denota um
compasso quaternário ora simples, ora composto. Na primeira seção da música, chamada aqui de A,
parte da instrumentação, basicamente as vozes, realizam uma divisão claramente em compasso
quaternário simples, já a harmonia realizada pelo violão indica uma divisão de três notas por tempo,
o que implicaria,, no caso de escolhida a notação em 4/4, na grafia de quiálteras para cada um dos
tempos do compasso. Admitindo-se que esta escrita poderia confundir o eventual leitor da
transcrição e mesmo os exemplos musicais a serem selecionados, optou-se por grafar as linhas de
harmonia e percussão em compasso quaternário composto, 12/8, corroborado pelo uso flagrante
dessa divisão na seção seguinte, chamada de B. Já as linhas melódicas realizadas pelas vozes e
saxofone tenor foram preservadas em suas transcrições com o compasso de 4/4 para, do mesmo
modo, facilitar a leitura da partitura da música.
Essa via de mão dupla na interpretação de compassos quaternários, entre simples e
compostos, é comum em música popular a algumas realizações da música norte americana, por
exemplo, quando precedidas do termo shuffle no cabeçalho de partituras de gêneros como o rhythm
‘n blues, a soul music, o funk além de outros correlatos principalmente de música negra cantada das
décadas entre 1960 e 1980. Quando precedida do referido termo, a música, que é escrita em
compasso quaternário simples, deve ser tocada com a intencionalidade do quaternário composto,
inferindo uma divisão próxima ao do suingue do jazz e de sua síncope característica, a das colcheias
suingadas34 (swing eights), onde as colcheias escritas na partitura não são realizadas tal qual estão
grafadas. Para cada par de colcheias devem-se ler, aproximadamente, como grupos de tercinas de
colcheias, sendo as duas primeiras notas de cada quiáltera ligadas, ou seja, cada par de colcheias no
jazz deve ser tocada com a primeira das colcheias com o valor de aproximadamente 2/3 do tempo e
a segunda 1/3 do mesmo. O possível uso desse tipo de realização será mais profundamente
discutido ao longo deste tópico e no Capítulo III desta tese.
34
Colcheias Suingadas é uma tradução livre para o termo inglês Swing Eights, realização esta relacionada com a
leitura e performance de colcheias no gênero estadunidense, onde aplicam-se diferentes valores a cada par de
colcheias.
100
Quanto à forma de Ninfas, o autor, Nivaldo Ornelas, expõe que em seu entendimento a
música se divide em três partes, sendo as duas primeiras o tema da música, a melodia principal, e a
terceira uma seção de solo de saxofone onde é utilizada uma estrutura harmônica distinta da seção
anterior. Apesar do posicionamento de Ornelas nesse sentido, a percepção entre as seções A e B
denota uma continuidade temática, mesmo que entre elas exista uma diferença de textura
instrumental, o que reforça a delimitação entre essas seções. A impressão que se tem é que estas
duas primeiras seções formam um grande A, subdividido em duas seções menores.
Para uma nomenclatura mais precisa, será adotada uma estruturação onde as duas primeiras
seções são compreendidas como o A da música, sendo chamadas de A1 e A2, e a terceira seção
sugerida por Ornelas será entendida como a seção B, onde em resumo sua forma pode ser
codificada como um [A1][A2][B][A2][A1’], onde na seção A1 da composição, a instrumentação é
distribuída com vozes, violão, órgão e percussão, esta simplesmente marcando o tempo do
compasso quaternário simples em semínimas. Na parte A2, a instrumentação é acrescida de guitarra
e pratos, realizando efeitos. Estas duas partes corresponderiam, portanto, à primeira seção da
música e na seção B, saem as vozes e entra o saxofone tenor como figura e a bateria é acrescida
como acompanhamento, sendo que a distribuição dos compassos na peça se dá da seguinte maneira:
Tabela 3. Tabela de seções e distribuição de compassos em Ninfas
Seção
Número de Compassos
A1
1-22
A2
23-38
Ponte
39-42
A1’
43-46
B
47-90
A2’
91-105
A1’’
106-111
101
A harmonia da seção inicial é realizada pelo violão em arpejos de acordes onde pode ser
percebido o uso de um padrão, tanto rítmico quanto harmônico, sendo esta composição, como tantas
outras em música popular, baseada na repetição e variação. O tema da primeira seção começa com a
tríade diminuta de mi bemol, caminhando para o acorde de Ebm, permanecendo cada acorde
durante dois compassos. Este padrão é repetido por outras duas vezes, iniciando a primeira variação
com a tríade diminuta de mi conduzida para Em, e por fim, a segunda variação (terceira repetição) é
iniciada com a tríade diminuta de fá, mas ao invés de continuar com o padrão anteriormente
apresentado o autor o desenvolve, conduzindo harmonicamente a nota lá bemol para sol natural,
resultando em um G7(b13)/F, e com a condução do baixo para a nota mi, estabiliza-se em Em,
sempre utilizando o tempo harmônico de um acorde a cada dois compassos:
Exemplo musical 56. c.1-4 do tema da seção A1 de Ninfas
Exemplo musical 57. c. 5-8: Primeira Variação do tema da seção A de Ninfas transposto meio tom acima
Exemplo musical 58: c. 9-14: Primeiros seis compassos da segunda variação do tema da seção A de Ninfas, desta vez
com variação temática a partir do compasso 10
Cabe aqui comunicar que os acordes descritos no parágrafo anterior foram por mim cifrados
e para isto utilizo a cifragem mais usual na música popular brasileira atualmente e amplamente
102
difundida, por exemplo, por Almir Chediak em seus songbooks, sendo que Nivaldo Ornelas,
especificamente em relação a esta música, não guardou nenhum registro da época em que foi
gravada, nem mesmo as cifras, tablaturas ou partituras que por ventura foram utilizadas, portanto, as
cifras identificadas servem apenas de referência ao material transcrito, ou como argumenta Fábio
Adour da Camara: “funcionando como uma espécie de gatilho para a memória” (Camara, 2009,
p.119) - de modo a se ter uma leitura mais dinâmica dos acontecimentos - estes sim, escritos de
maneira tradicional no pentagrama e registro gráfico mais fiel aos trechos musicais especificados.
O trecho que envolve o acorde de Ebdim, mesmo com a supressão de sua sétima diminuta, a
nota ré dobrado bemol, pode ser compreendido como um acorde apojatura de Ebm, o fato de este
estar com a sétima maior na melodia, nota ré natural, denota o uso de sétimas livres pelo
compositor, resultando no acorde Ebdim7M. O acorde diminuto apojatura é conhecido comumente
em música popular como diminuto auxiliar, como citam os métodos de harmonia de Berklee e no
Brasil, o Harmonia e Improvisação de Almir Chediak (1996, p.103), e seu uso é largamente
utilizado na música popular moderna principalmente com a resolução deste no acorde maior, como
na composição Super-Homem a Canção de Gilberto Gil:
Exemplo musical 59. Uso do diminuto auxiliar em Super-Homem a Canção de Gilberto Gil.
O que há de contraditório na amostragem desse tipo de ocorrência em métodos como os
citados anteriormente é que além de não revelarem a origem do referido acorde - se prestando
simplesmente a apontar e catalogar a ocorrência pelo seu uso - ao tratarem a condução das vozes do
diminuto auxiliar como bordaduras, deveriam grafar as notas do acorde diminuto com graus
diferentes do acorde de referência, como aparece nos exemplos do Harmony de Walter Piston
(1942), por exemplo. Como resultado dessa falsa nomenclatura, ocorre um equívoco taxionômico
do acorde em questão, usamos aqui o exemplo tal qual aparece em Chediak (1996, p. 103):
103
Exemplo musical 60. Exemplo dado ao diminuto auxiliar por Chediak.
Ao grafar a sétima diminuta do acorde de Cdim como lá natural ao invés de si dobrado
bemol, ou autor na realidade escreve o acorde de Adim/C, sendo que nas demais notas ocorrem a
bemolização delas, sem caracterizar as bordaduras. Se o autor houvesse escrito as notas tais quais
bordaduras, a nomenclatura mais adequada seria a seguinte:
Exemplo musical 61. Exemplo de diminuto auxiliar com sugestão de correção
Desse modo, além de caracterizar as bordaduras, a cifragem revela a função e origem do
acorde, demonstrando ser sétimo grau de Mi Menor, tônica anti-relativa do tom de Dó Maior, dando
sentido à alcunha do diminuto auxiliar. O tema é profundamente explorado por Fábio Adour da
Camara que expõe esse problema de classificação da seguinte maneira:
A classificação “diminuto auxiliar” é empregada na análise dos encadeamentos em
‘
que o acorde de tônica se alterna com o diminuto construído sobre a nota da tônica, como no
encadeamento A7M - Aº - A7M de “Super Homem – a canção” (Gilberto Gil) ou no D6 – Dº - D6 de
“Aquarela do Brasil” (Ary Barroso). O termo “auxiliar” provavelmente se refere ao caráter de
bordadura que a tétrade diminuta adquire nesse contexto. Para facilitar a comparação, vamos transpor
a progressão para o mesmo tom de “Eu sei que vou ter amar”: C7M – Cº - C7M. Segundo o
paradigma expandido, o Cº está incorretamente batizado, pois remete a uma tonalidade muito distante
do tom principal: Cº é VII grau de Réb Maior ou Menor. Ora, Cº também é um dos enarmônicos do
D#º e a interpretação como VII de Mi Menor mais uma vez faz sentido, agora em outro contexto.
Apesar do acorde de Em não aparecer, sabemos que ele é uma tônica alternativa, o anti-relativo menor
da tônica maior, Ta. Assim, corrigindo a cifragem para C7M – D#º/C – C7M, podemos ver mais
facilmente que uma tônica é seguida pela dominante particular de uma tônica alternativa, que resolve
na tônica principal e isso dispensa a criação do conceito de “auxiliar” para elucidar a função do
diminuto. 35
(Camara, 2009, p. 199)
Sob esse ponto de vista, em Ninfas, o acorde Ebdim, que se encontra em um trecho
polarizado na tonalidade de Mi Bemol Menor, parece não apresentar relação com a tonalidade a
qual se sobrescreve, isto porque historicamente os acordes diminutos se originaram da alteração do
35
Grifos encontrados no texto original de Fábio Adour da Câmara.
104
sétimo grau da escala menor, inicialmente no processo conhecido por musica ficta e posteriormente,
através da inserção da dominante de seus homônimos maiores, no caso de Mi Bemol Menor, através
da inserção do acorde de Bb7, tendo por consequência a adição da nota ré natural à escala,
resultando na organização escalar conhecida por escala menor harmônica:
Exemplo musical 62. Escala de Mi Bemol Menor Harmônica com o sétimo grau aumentado, nota ré natural.
Portanto, para que seja um acorde apojatura, o acorde diminuto deve ser analisado como o
sétimo grau de uma escala menor, e pela enarmonia, o Ebdim é literalmente reconhecível como
sétimo grau de Fá Bemol Menor, e não de Mi Bemol Menor, como deseja-se. Então, qual seria a
explicação mais apropriada para relacionar este acorde à tonalidade de Mi Bemol Menor? Ora, se
necessariamente o acorde de sétima diminuta sobretônica é o sétimo grau de um campo harmônico,
algum dos tons vizinhos de Mi Bemol Menor deve originá-lo, e nesse caso, por ser um tom menor, a
tonalidade mais apropriada para este empréstimo é o seu V grau, Si Bemol, já que a outra
possibilidade, pelas possíveis inversões do diminuto, seria a tonalidade de Ré Bemol Maior, sétimo
grau de Mi Bemol Menor e que tem como seu sétimo grau o acorde Cdim, opção esta descartada
pela falta de características que apontem uma inclinação para esta tonalidade. Tem-se então como
sétimo grau de Si Bemol o acorde de Adim, que em Ninfas aparece com a nota mi bemol no baixo e
superiormente, em um primeiro momento, tem sua terça omitida, substituída pela quarta, nota ré
natural, já contextualizada como terça maior de Bb7 e sétima maior de Mi Bemol Menor
Harmônico, mas que acaba por se confirmar como terça menor no primeiro tempo do segundo
compasso da música (exemplo musical 56, p.100).
A consciência quanto a uma nomenclatura e funcionalidade mais acuradas em relação a
sequências harmônicas de um modo geral é uma ferramenta importante, por exemplo, ao músico
improvisador que lida com a escolha de materiais escalares para situações específicas, como a
abordada nesta discussão, mas mesmo estando evidenciada a nomenclatura equivocada e decerto
105
apressada do diminuto auxiliar, opta-se neste trabalho pela cifragem do citado acorde como uma
tríade diminuta de mi bemol, já que habitualmente o diminuto auxiliar faz parte do vocabulário de
músicos em música popular e é assim validado pela práxis.
Podemos ainda notar nessa primeira seção a relação das notas da melodia ao acorde
correspondente. Já no primeiro compasso, há uma forte tensão apresentada em seu primeiro tempo,
a nota ré natural forma uma segunda menor com o mi bemol do arpejo em questão e que vai ser
resolvida no acorde seguinte. Esse tipo de tratamento pode ser interpretado como o uso das sétimas
do acorde de forma livre, caso, por exemplo, da composição Eu Te Amo de Antonio Carlos Jobim
(1927-1994), onde o autor utiliza um caminho cromático melódico descendente sobre acordes
maiores com sétima menor nos quais são incluídas as sétimas maiores e menores na melodia:
Exemplo musical 63. Trecho de Eu Te Amo de Antonio Carlos Jobim. Note-se o uso melódico de sétimas maiores sobre
acordes maiores com sétima menor.
No caso de Ninfas, o que torna mais peculiar o uso desse procedimento é exatamente o
aparecimento de uma tensão de segunda menor já no primeiro tempo do primeiro compasso,
diferentemente de Jobim, que utiliza as sétimas maiores sobre tempos fracos. Essa aplicação
melódica, diga-se, pouco usual a maior parte da produção na modalidade música instrumental,
reforça a não intencionalidade de Ornelas em harmonizar o trecho através de uma lógica funcional,
por exemplo – mesmo havendo, como demonstrado – mas a de constituir uma relação levada em
primeiro lugar pela sua própria intuição (informação verbal):
Bernardo – Nivaldo, você tava falando que você fez no violão, mas não pensou na harmonia.
Nivaldo – Não.
Bernardo – Como é que é esse negócio de não pensar na harmonia?
Nivaldo – Sai tocando, não foi nada pensado, foi no instinto tudo.
Bernardo – Intuição mesmo,
Nivaldo – Foi há vinte anos atrás [sic], até mais...Saí fazendo.
A confirmação desse procedimento pode ser entendida por aquilo que Fábio Adour da
106
Câmara chama de “Zona Auditiva-Instrumental”, ou seja, quando as relações harmônicas
estabelecidas são validadas através da experiência e familiaridade adquiridas pelo músico com seu
instrumento, no caso de Ornelas, pelo forte laço idiomático de Ninfas com o instrumento harmônico
no qual a música foi composta, o violão. Características de idiomatismo dessa ordem já foram
demonstradas na análise de Nova Lima Inglesa e ainda segundo Camara, o desenvolvimento da
chamada “Zona Auditiva-Instrumental” não se dá nem bibliograficamente e nem institucionalmente,
mas:
É construída socialmente, haja vista que o tipo de músico popular que mais acima citamos certamente
adquire parte de seu métier composicional em situações sociais, como nos círculos de amizade, ou nas
rodas de Choro e de Samba, dentre muitas outras possibilidades informais. Além disso, os dois
mediadores dessa zona conceitual são ricas fontes de informações e de conhecimentos sócioculturalmente estabelecidos: a audição só pode ser um mediador na medida em que o indivíduo trava
contato com toda uma cultura sonora e assim adquire uma rede de módulos musicais de referência;
cada instrumento musical, da mesma maneira, trás consigo um sem número de dados culturais, que
vão desde as razões que orientam as ornamentações de sua construção, passando pela sua estrutura
antropomórfica, até a linguagem musical implícita ou explícita em graus variados, mas de alguma
forma guardada e registrada na afinação do instrumento, no montante de notas ou alturas disponíveis,
etc. E é por essa via que o acesso ao corpo de conhecimento dessa zona conceitual se torna possível.
As elaborações harmônicas, por exemplo, de um Guinga são claramente associáveis 1) ao seu
instrumento – o violão – e/ou 2) ao universo sonoro que o nutriu – o do Choro, do Samba, da BossaNova, do Jazz, etc...
(Camara, 2009, p.84)
Em contraposição à primeira parte da composição, a segunda seção da música, chamada
aqui de B, revela de maneira flagrante a questão rítmica do compasso quaternário composto através
da realização da linha de bateria, tocada por Pascoal Meirelles (1944-), onde ele valoriza o ostinato
rítmico nos tambores do instrumento. A linha melódica parece flertar com a realização das colcheias
do jazz, citadas anteriormente, realização esta que apesar de típica do jazz pode acontecer
concomitantemente a divisões e síncopes de outros gêneros musicais de música popular, como em
realizações de samba jazz e bossa nova instrumental, difundidas principalmente durante os anos
1960, muitas vezes com a participação de solistas de jazz norte americanos interpretando música
brasileira. Apesar da suspeita desse tipo de uso, é francamente muito difícil e até leviano
afirmarmos a presença ou não das tais síncopes do jazz na realização de Ornelas. O que se pode
perceber é que pisamos no terreno movediço de realizações musicais que dialogam com materiais
hibridizados. Ainda sobre essa segunda seção, a melodia inicialmente tocada por Nivaldo Ornelas
ao saxofone tenor denota a apresentação de um novo tema, um motivo melódico que é inclusive
107
variado, através de modulação, mas que gera dúvidas se é ou não um tema, já que parte dele
notadamente é improvisado.
O motivo melódico apresentado na segunda seção dura dois compassos e se assemelha à
melodia da música Harlem Nocturne, composição de Earle Hagen (1919-2008) de 1939 que foi
gravada por uma série de nomes de vulto da música norte americana dos anos 1940 e 1950 através,
principalmente, de Big Bands de Swing, como as de Stan Kenton (1911-1979), Johnny Otis (1921-)
e Duke Ellington (1899-1974), ou na versão do alto-saxofonista Earl Bostic (1913-1965). Talvez o
que se apresente aqui seja uma grande coincidência, mas de qualquer forma o tema pôde ter feito
parte dos repertórios que Nivaldo Ornelas tocava durante os anos 1960 em Belo Horizonte, tanto
nos bailes ao lado de Célio Balona quanto no Berimbau Clube, já que a composição, mesmo sendo
do repertório de jazz, foi um grande sucesso nos anos 1940 e 1950, servindo inclusive de trilha
sonora do cinema e da televisão nos Estados Unidos. A comparação entre os motivos melódicos é
indicada nos exemplos a seguir:
Exemplo musical 64. c. 47 – 48 de Ninfas, primeiro motivo da seção B tocado por Nivaldo Ornelas no Saxofone Tenor)
Exemplo musical 65. Anacruse do tema de Harlem Nocturne de Earle Hagen
Não estamos aqui afirmando que se trate de um plágio ou mesmo uma citação, mas um uso
similar do material melódico que, se creditado ao jazz, torna os usos das estruturas musicais em
Ninfas mais inclinados às proposições de materiais musicais híbridos. No decorrer da melodia,
Ornelas desenvolve variações sobre o motivo supracitado além de aplicar outras frases à seção,
indicando um tratamento como os dados aos improvisos, o que de certo modo faz sentido à forma
da música como um todo já que, mesmo a seção B apresentando uma nova harmonia em relação à
108
seção A, a forma (Tema – Improviso – Tema), muito comum nas realizações tanto do jazz norteamericano quanto da música instrumental é posto em prática, mesmo que de uma maneira não
ortodoxa, ou seja, sem realizar os chorus (seções de improviso) com a mesma estrutura harmônica
do tema. Relativo à harmonia deste trecho, a coincidência com Harlem Nocturne também se
restringe ao primeiro acorde já que Ornelas segue um movimento harmônico interno, realizando
uma condução cromática da sétima menor do acorde de Ebm, nota ré bemol, subindo meio tom para
a sétima maior, nota ré natural, e daí caminhando cromaticamente até a sexta maior, passando pelas
notas ré bemol (sétima menor) e dó natural (sexta maior) e daí para o acorde de Cb7M(13)/Eb,
sexto grau do campo harmônico de Mi Bemol Menor, chegando à dominante alterada
Bb(b9)(b13)/D. O restante da seção é modulada e estendida um tom acima, reapresentando, de
maneira variada, as polarizações apresentadas entre Ebm e Em no início da música. A realização
deste acorde de Ebm com um movimento interno cromático, diferentemente do primeiro padrão
harmônico apresentado no início de Ninfas, está fortemente vinculada à funcionalidade e é
referendada por usos anteriores da literatura musical do jazz, como no tema In A Sentimental Mood
do compositor, pianista e arranjador norte-americano Duke Ellington, reforçando a idéia da
contraposição entre intuição, exposta na Seção A da composição, e da lógica, idéia implícita na
seção B, embate proposto no início deste tópico:
Exemplo musical 66. Primeiros 5 compassos de In A Sentimental Mood de Duke Ellington.
O uso de um caminho harmônico pré-determinado para a seção de improviso é reforçado
através de declaração do autor que diz ter decidido sobre esta seção dentro do estúdio, e lá, escreveu
o encadeamento no qual realizaria seu solo (informação verbal):
Bernardo – É uma seção à parte?
Nivaldo – Falei: O quê que eu vou tocar nessa música? Aí lá dentro do estúdio eu falei: Ah, vou fazer
um...foi lá na hora que eu quis improvisar, e nem deu tempo de tocar direito, né?
109
Ainda na chamada seção B, quando o trecho é desenvolvido no tom de Mi Menor, há um
acréscimo de 2 compassos na forma em relação ao trecho em Mi Bemol Menor, esses 2 novos
compassos são realizados através da repetição de seus dois últimos acordes, Eb7M(9) e Ebdim(7M).
Aqui, ocorre uma citação do acorde inicial de Ninfas, onde a nota ré natural, sétima maior de
Ebdim, ao invés de ser tocada na primeira voz, no caso a melodia, passa a ser tocada na parte de
guitarra de Toninho Horta, que provavelmente, tomou essa decisão de maneira autônoma. O que
ocorre de fato é que há um jogo entre elementos de figura e fundo, de modo que as seções A e B,
apesar de antagônicas, apresentam internamente características de seu vértice.
O ora aparente, ora latente antagonismo, sugere um forte contraste entre as seções A e B.
Analogamente ao embate sugerido no início desta discussão, a parte A suscitaria o lado intuitivo do
compositor, ligado à experimentação, enquanto que a seção B, pela sua verve rítmica e
relacionamento do intérprete com o seu real instrumento de trabalho, o saxofone, instrumento que o
músico escolheu para aprofundar-se tecnicamente, mecanicamente, portanto, representante da
lógica e da racionalidade, uma dualidade já apresentada anteriormente no Capítulo I no tópico
intitulado, A Dicotomia Auctor / Lector e o Desenvolvimento da Carreira de Autor levando-se em
consideração que Nivaldo Ornelas também exerce uma função de intérprete de suas próprias
composições, vivendo inclusive conflitos para realizar o papel de instrumentista de sua própria
criação (informação verbal):
Nivaldo – (...) Tem aquela música, Portal dos Anjos, sabe? (cantarola o tema de Portal dos Anjos), são
aquelas brincadeiras, entendeu? E, é isso, eu vivi isso intensamente. Como não fazer isso? Agora,
interessante, isso não tem nada a ver com jazz, isso é terrível. Nada, nada. E o meu universo de tocar,
é isso que na verdade eu gosto de fazer, mas o outro lado me puxa muito. Às vezes eu consigo juntar.
Nessa própria música tem um solo de tenor lá, que eu achei interessante que eu passei o dia inteiro
tentando fazer um solo genial e falei: Desisto. Aí falei: Vou tocar o motivo da música (cantarola), e aí
deu certo. Sabe? Eu fiz um solo pensando na música, na melodia, aí rolou.
A citação acima se refere à composição Portal dos Anjos, música título de seu disco de
estréia, mas que em Ninfas também pode ser percebida a realização de ações distintas e
complementares entre a sua atividade de compositor, primando pela legitimação e distinção das
escolhas e ordenamento das estruturas discretas hibridadas, presentes em suas composições, e a de
solista, intencionalmente apontando para um pensamento virtuosístico de soluções técnicas
110
específicas. Dualidade evidenciada também nas melodias de ambas as seções da composição. Na
primeira, o compositor utiliza um caminho melódico cromático durante toda a seção, que é
inicialmente modulado e que posteriormente é desenvolvido durante o mesmo trecho. Na seção
seguinte Ornelas propõe saltos melódicos bem maiores, com quintas e oitavas, além de não aplicar
de maneira clara uma melodia facilmente reconhecível, apesar de haver um desenvolvimento
motívico na seção. Mas mesmo dentro desses opostos, ou seja, internamente aos movimentos
melódicos das linhas de solo, há outras conduções que contradizem os usos explicitados.
Na seção B, apesar dos movimentos sinuosos realizados pelo saxofone tenor, há um
movimento interno, harmônico, fundamentalmente realizado através do cromatismo, já exposto. Isto
nos dá indícios de usos que se contrapõem, mas que se complementam, e se entrecruzam, num
permanente jogo de forças, onde os limites dessas características se tornam fluidos, móveis, assim
como as do compositor e do intérprete ou, nas fronteiras da cidade, imageticamente delimitadas,
mas que ao serem dissipadas através do cruzamento de pessoas, hábitos e informações deixam de
segregar para se relacionarem: “A hibridação, como processo de interseção e transações, é o que
torna possível que a multiculturalidade evite o que tem de segregação e se converta em
interculturalidade” (Canclini, 2001, p. XXVI).
Para que nos aprofundemos nas discussões de outros desdobramentos a respeito dos
processos de hibridação na obra de Nivaldo Ornelas, propomos transpor a observação dos dados
apenas composicionais presentes em sua música para características interpretativas do, nesse caso,
saxofonista, através de solos por ele realizados tanto em suas criações quanto como participante do
trabalho de outros músicos. O enfoque dado no próximo capítulo pretende estender o conceito das
estruturas discretas também a essas características ligadas às suas escolhas relativas tanto aos
recursos dramáticos empregados (vibratos, portamentos, glissandos, agógica), quanto da
estruturação melódica de seus improvisos e das estratégias de estudo e desenvolvimento técnico
voltado para a prática do saxofone.
111
CAPÍTULO III – ASPECTOS TÉCNICO-INTERPRETATIVOS EM NIVALDO ORNELAS
3.1. O Híbrido na Prática do Saxofone: Questões Técnicas e de Idiomatismo
A escola do saxofone surge em meados do século XIX juntamente com a consolidação do
novo instrumento constituído pelo inventor belga Adolph Sax (1814-1894) durante a década de
1840. De antemão, apesar da nítida classificação dos saxofones como pertencentes à família das
madeiras - por uma série de características que envolvem desde produção de som a qualidades da
série harmônica - a concepção de sua construção pode ser associada a um entendimento híbrido
entre um instrumento de metal e um de madeira, como presente no Grove Dictionary of Music and
Musicians em seu verbete sobre o saxofone:
(...) de acordo com J.G. Kastner como resultado de tal inspiração, deveria ter sido uma combinação,
modificação e extensão de elementos familiares à construção de instrumentos de metais e madeiras:
um corpo de metal que se parecesse com aquele do oficleide baixo com um sistema de chaves
estendido, combinado com uma boquilha modificada, como aquela do clarinete baixo. Sax
inicialmente descreveu o novo instrumento como um “novo oficleide”ou “oficleide de boquilha”, e
escreveu que “era pretendido para substituir o oficleide.36
O entendimento do saxofone como um instrumento surgido a fim de substituir o oficleide, que
apesar de ser um instrumento de metal, com um bocal, apresentava chaves, também é tema de
discussão da tese de Rafael Velloso sobre o saxofone no choro:
Segundo Myers et Alli (2004), o oficleide, inventado em 1817, tornou-se rapidamente um instrumento
de utilização versátil, amplamente empregado em bandas para a execução de solos ou como parte do
conjunto. O instrumento, porém, foi abandonado após uma intensa reforma na formação instrumental
das bandas militares, sendo substituído por instrumentos mais modernos como o saxhorn e o
saxofone. Segundo o mesmo estudo, isto ocorreu, em parte, devido às dificuldades técnicas de
manejo, problemas de manutenção e vulnerabilidade do instrumento.
(Velloso, 2006, p.19-20)
Nessa mesma linha afirmativa, Marco Túlio de Paula Pinto, em sua dissertação intitulada O
Saxofone na Música de Radamés Gnattali, declara:
O saxofone tem uma natureza híbrida. Embora seja construído em metal, seu processo de produção do
som faz com que seja mais bem classificado na família das madeiras. O instrumento utiliza-se de uma
palheta simples, similar às utilizadas em clarinetes. Ao contrário destes, seu corpo tem um formato
cônico, que
aproxima suas características acústicas às do oboé. O seu dedilhado, bastante
simplificado, é bastante semelhante ao empregado em flautas. Esse conjunto de características lhe
permite uma grande gama de nuances sonoras. O instrumento une a força dos metais à agilidade dos
instrumentos de madeira.
(Pinto, 2005, p. 21)
36
“(...)according to J.G. Kastner as the result of sudden inspiration, should have been a combination,
modification and extension of elements familiar from the construction of brass and woodwind instruments: a metal
body resembling that of the bass ophicleide with an extended keywork mechanism, combined with a modified
mouthpiece like that of the bass clarinet. Sax first described the new instrument as a ‘new ophicleide’ or ‘ophicleide à
bec’, and wrote that it was ‘intended to replace the ophicleide”.
112
O tema é também tratado na dissertação Desculpe, Foi Engano: o saxofone de Aurino
Ferreira num choro de Guerra-Peixe, onde o saxofonista Sigurd Ràscher, citado por Sá (2005. p.
10) que dá a seguinte declaração sobre o saxofone:
O saxofone, assim denominado por seu inventor, é um instrumento de metal com dezenove chaves,
cujo formato é similar ao do oficleide. Sua boquilha, ao contrário da maioria dos instrumentos de
metal, é similar ao do clarinete baixo. Assim o saxofone inicia um grupo novo, o dos instrumentos de
metal com palheta.37
É notório, portanto, que havia uma preocupação, por parte de Sax, em construir um
instrumento com uma capacidade acústica próxima dos metais e com a fluência mecânica de um
instrumento das madeiras, o que sugere um entendimento de um instrumento de constituição e
construção híbridas, ou seja, que conjuga partes ou características de ambas as famílias de
instrumentos de sopro, mesmo que pertencendo à família das madeiras, mas que extrapola o perfil
tímbrico dos instrumentos de sua família de classificação, apresentando uma grande diversidade de
possibilidades de realizações, tanto de timbre quanto intensidade e atributos técnicos.
3.1.1 As Escolas de Saxofone e Aspectos Estilísticos de Sonoridade.
Em meio ao cenário musical europeu novecentista, o saxofone foi, a princípio, muito bem
recebido principalmente nas formações de bandas militares francesas, apesar de Sax ter
desenvolvido instrumentos tanto para o uso militar quanto para o universo sinfônico. O instrumento
recebeu grande apoio de alguns compositores de envergadura na época, sendo a mais importante
contribuição a de Hector Berlioz (1803-1869) com sua peça Chant Sacré, onde o saxofone figurava
na orquestração já no ano de 1842, antes mesmo do invento ter sido patenteado, o que só ocorreria
em 1846. Em outra passagem do verbete do New Grove Dictionary of Music amd Musicians,
podemos começar a vislumbrar qual era a estética de sonoridade esperada do instrumento tanto por
parte de seu construtor quanto de seus primeiros apoiadores:
Muitos compositores franceses e críticos de música apreciaram as oportunidades musicais oferecidas
por um novo instrumento, e neste período inicial eles estavam entusiasmados em descrever suas
impressões a respeito do som do saxofone; o instrumento foi louvado por sua capacidade tímbrica e a
qualidade ilimitável de nuances possíveis. Foi dito que a riqueza de som do saxofone (cheio, macio,
37
Grifo do autor.
113
sonoro, poderoso) o colocava fora da comparação com os outros instrumentos musicais em uso. De
acordo com Kastner (Manual Geral da Música Militar, 234-5), Adolphe Sax criou:
(...) um instrumento com um som inteiramente novo – poderoso, de grande extensão,
expressivo e bonito. Com sua qualidade única de sonoridade, oferece a melhor ligação
possível entre as vozes mais altas da orquestra e aquelas muito fracas, ou àquelas com um
timbre muito desigual (...)Unindo força e charme, ele não encobre os outros por uma das
qualidades e nem se deixa encobrir pela outra – é um instrumento perfeito.
Berlioz enfatizou o som esplêndido, quase sacerdotal do registro grave, e disse que o saxofone era “a
melhor voz que temos” para obras de natureza solene. 38
Tendo como parâmetro as declarações anteriormente citadas, é possível especular a respeito
do que o “novo” instrumento sugeria. Para estes primeiros ouvintes, o saxofone era um instrumento
de grande versatilidade de timbres e de riqueza de nuances e para Berlioz em especial, era ideal
para obras de natureza solene. Sob esta estética foi edificada, principalmente na França e na
Europa continental como um todo, o ensino do instrumento nos Conservatórios de Paris e Bruxelas.
Inicialmente, o próprio Adolphe Sax lecionou no Conservatório de Paris entre os anos de 1857 e
187039, mas de um modo geral, pelo fato do novo instrumento ainda não dispor de um corpo de
profissionais dedicados exclusivamente a ele, o caminho mais curto para a organização didática de
seu ensino se deu através dos professores de clarinete, pela proximidade da produção de som em
ambos os instrumentos, inclusive o notório professor de clarinete, o grego naturalizado francês
Hyacinthe Klosé (1808 -1880), escreveu os primeiros métodos para saxofone, ainda hoje editados.
Apesar da euforia inicial em torno do novo invento, com o passar do tempo o saxofone
acabou por ser pouco aproveitado por compositores de música erudita - ainda durante o século XIX
- fora principalmente dos circuitos francês e russo e com isto adquiriu pouca notoriedade frente a
outros instrumentos de sopro já consagrados. O preconceito que pairava sobre o invento de Sax é
38
[ ]'Many French composers and music critics appreciated the musical opportunities offered by a new
instrument, and at this early period they were enthusiastic in describing their impressions of the sound of the
saxophone; the instrument was praised for its tonal compass and the quality and boundless variety of possible
nuances. It was said that the saxophone's wealth of sound (full, soft, sonorous, powerful) placed it beyond
comparison with other musical instruments then in use. According to Kastner (Manuel général de musique
militaire, 234–5), Adolphe Sax had created
an instrument with an entirely new sound – powerful, far-reaching, expressive and
beautiful. With its unique tonal quality, it offers the best imaginable link between the
very high voices of the orchestra and the very weak ones or those with a very uneven
timbre … Uniting strength and charm, it does not drown out the one kind and cannot
be drowned out by the other – it is a perfect instrument.
Berlioz emphasized the grand, almost priestly sound of the lower register, and said that the saxophone
was ‘the finest voice we have’ for works of a solemn nature.”
39
Dado fornecido por Marco Túlio de Paula Pinto em sua dissertação (2005, p.25)
114
flagrantemente percebido ao observarmos a seguinte citação de Raschèr (apud Sá, 2005, p.10-11):
O compositor Donizetti tinha ouvido Sax demonstrando seus novos instrumentos e, neste mesmo ano
de 1843, decidiu usá-lo na sua ópera, Dom Sébastien, Roi de Portugal. Ele buscou um efeito tímbrico
inteiramente novo usando o saxofone e o clarinete baixo. Logo se espalhou entre os músicos da ópera,
a notícia de que seriam usados os instrumentos de Sax, mas ninguém se habilitou a tocá-los. Donizetti
foi forçado a retirar a maioria dos novos instrumentos, mas quis manter pelo menos o clarinete baixo,
e pediu a Adolphe Sax que ele próprio tocasse a parte. No primeiro ensaio, quando Sax apareceu na
porta, o spalla levantou-se e disse: “Se este cavalheiro veio para tocar na orquestra eu sairei, e assim o
farão todos os meus colegas!”.
Mesmo com a forte animosidade gerada por parte dos músicos da época, houve uma
produção a princípio pequena, mas importante do período que compreende o final do século XIX ao
início do século seguinte que incluiu o saxofone em suas instrumentações. Nas formações
sinfônicas pesam as orquestrações de, por exemplo, L'Arlésienne de Georges Bizet (1838-1875) que
teve sua estréia em 1872 e conta com um saxofone alto em mi bemol em sua instrumentação; o
Bolero de Maurice Ravel (1875-1937), onde são utilizados solos de saxofone soprano e tenor na
composição; Quadros de Uma Exposição de Modest Mussorgsky (1839-1881) com orquestração de
Ravel; a Sinfonia Doméstica, Op.53 de Richard Strauss (1864-1949), contendo quatro instrumentos
da família: soprano, alto, barítono e baixo; além da ópera Turandot de Giacomo Puccini (18581924), escrita em 1922 e das Danças Sinfônicas op.45 de Sergei Rachmaninoff (1873-1943) de
1940, sua última composição. Estas seis obras representam, possivelmente, parte das mais
proeminentes aparições do instrumento frente a esse tipo de repertório, muito em função da
notoriedade de seus compositores, mas dentro da música de concerto o principal papel
desempenhado pelo invento de Sax foi certamente tendenciado para peças deste como solista
acompanhado por orquestra, como na Rapsódia para Saxofone Alto e Orquestra de Claude Debussy
(1862-1918), composta em 1903, no Concerto para Saxofone e Orquestra de Cordas de Alexander
Glazunov (1865-1936) ou mesmo na Fantasia para Saxofone Soprano e Orquestra de Heitor VillaLobos (1887-1959), ou ainda, em realizações de música de câmara com piano, citem-se: o
Concertino da Câmara de Jacques Ibert (1890-1962) e Scaramouche de Darius Milhaud (18921974), além de outras formações camerísticas, caso do Sexteto Místico de Heitor Villa-Lobos.
Outras realizações em música de câmara são fortemente inclinadas para peças em formações
115
homogêneas de grupos de saxofones, especialmente quartetos. Raschèr (apud Sá, 2005, p.16), cita
ainda outras obras que ajudaram a validar o uso do saxofone na música ocidental.
Os primeiros compositores a utilizar o saxofone foram: George Kastner na sua ópera Le Dernier Roi
de Juda (1844), Halevy em sua ópera Le Juif Errant (1852), e William Henry Fry da Filadélfia na sua
Santa Claus Sinphony (1854) e em várias outras obras. George Bizet deu-lhe uma importante parte em
sua Arlésiene que estreou em Paris em 1872. Desde então ele tem sido usado na orquestra sinfônica
centenas de vezes, individualmente, em pares ou em grupos. Nós podemos ouvir em óperas, sinfonias,
aberturas, etc. Thomas, D'Indy, D'Albert, Strauss, Debussy, Kodaly, e mais recentemente Ravel,
Hindemith, Honegger, W. Walion, R.V. Williams,Villa-Lobos, B. Britten, Prokofiev, e muitos outros
deram-lhe lugar em suas obras.
Apesar da pouca notoriedade e consagração atingida nos meios de circulação da música
erudita, criou-se em torno do instrumento uma escola de especial ortodoxia para este repertório que
teve como dois dos maiores nomes do seu ensino e performance o francês Marcel Mule (19012001) e o alemão naturalizado americano Sigurd Raschèr (1907-2001), ambos músicos e
professores ativos principalmente entre as décadas de 1920 a 1960. A esta estética erudita usa-se
corriqueiramente, no Brasil, o termo Escola Francesa, onde são característicos os usos do
instrumento em uma concepção de sonoridade das madeiras. Também é própria desse estilo, a
homogeneidade de som, não só entre as diferentes regiões do mesmo instrumento, mas também
entre diferentes instrumentistas, guardando as devidas oscilações de personalidade dos intérpretes,
inerentes à prática musical.
Distintamente do repertório da “música séria”, o saxofone encontrou nos Estados Unidos, a
partir da década de 1920, terreno fértil para seu uso quantitativo frente ao repertório do jazz,
principalmente pela consolidação das formações das Big Bands. Nesse novo cenário desenvolveuse, muito em função das necessidades, um outro tipo de sonoridade para o instrumento, distinto
daquele lecionado nos quadros europeus. O novo perfil sonoro e estético do saxofone permitia uma
maior intensidade de volume combinada com uma sonoridade agressiva, mais apta a “casar” com os
naipes de metais dessas formações instrumentais. Essas modificações foram possíveis a partir da
interferência nos processos de manufatura das boquilhas originalmente desenhadas por Sax, bem
como de características idiomáticas aplicadas pelos músicos de jazz ao novo instrumento. Nos
Estados Unidos, o primeiro saxofonista de nome talvez tenha sido Sidney Bechet (1897-1959), que
116
trocara a clarineta pelo saxofone soprano, interpretando temas do repertório de Nova Orleans no
estilo chamado Traditional, como reportado por Mark Gridley:
O clarinetista e saxofonista soprano de Nova Orleans Sidney Bechet (1897-1959) foi um dos mais
respeitados músicos dos primórdios do jazz. Juntamente com Armstrong, ele foi um dos primeiros
improvisadores a realizar o sentido de swing do jazz. Assim como Armstrong, ele dobrava o tempo e
criava solos dramáticos. Bechet tinha uma sonoridade quente com um vibrato amplo e rápido. Era um
improvisador enérgico e exigente que tocava com grande imaginação e autoridade. Morreu em 1959,
tendo passado boa parte de sua carreira na França.40
(Gridley, 1988, p.75)
Refiro-me a Bechet como um dos precursores, senão o precursor do uso do saxofone no
jazz, talvez antes mesmo do jazz existir como gênero, já que Bechet viveu o seu auge como músico
justamente durante o período de consolidação desse tipo de música. O fato de ter residido boa parte
de sua vida em Paris, devido principalmente a questões de segregação racial em voga nos Estados
Unidos até meados do século XX, não ofuscou sua figura como referência para as gerações
seguintes de saxofonistas americanos, como Johnny Hodges (1906-1970) e posteriormente John
Coltrane (1926-1967), como mostra esta outra citação de Mark Gridley.
A música do saxofonista da era do swing Johnny Hodges, um discípulo de Bechet, e do saxofonista
moderno John Coltrane, que fora originalmente influenciado por Hodges assim como esteve atento a
Bechet, é caracterizada por entradas de solos longas e deslizantes, além de notas que aparecem
precisamente no melhor momento para a máxima resolução da tensão gerada pela frase de entrada. 41
(Gridley, 1988, p.75)
Vê-se que a referência à Bechet é clara na transcrição supracitada, e não só em relação à
sonoridade, mas também ao seu estilo interpretativo e de fraseado, características estas que muitas
vezes são indissociáveis, haja vista o profundo grau de ligação estética entre essas escolhas, o que
denota um desenvolvimento de uma escola de saxofone voltada para esse repertório. Além disso, é
referenciado à Coltrane o fato dele ter ressurgido com o saxofone soprano como solista no jazz, já
que Bechet havia sido, até então, o único solista de renome neste instrumento: “Durante os anos
1960, o saxofone soprano foi ressuscitado pelo saxofonista de jazz moderno John Coltrane, sendo
40
41
New Orleans clarinetist and soprano saxophonist Sidney Bechet (1897-1959) was one of the most highly
regarded musicians in early jazz. In addition to Armstrong, he was one of the first improvisers to display jazz
swing feeling. Like Armstrong, he double-timed and created dramatic solos. Bechet had a big warm tone with a
wide and rapid vibrato. He was a very energetic, hard-driving improviser who played with broad imagination
and authority. He died in 1959, having spent a large part of his carrer in France.
The music of swing era saxophonist Johnny Hodges, a Bechet disciple, and modern saxophonist John
Coltrane, who was orriginally influenced by Hodges as well as being aware of Bechet, is characterizes by
long, swooping lead-ins and tones which arrive at precisely the time best suited for maximum relief of the
tension generated by the lead-in.
117
uma de suas músicas intitulada Blues to Bechet (Blues para Bechet)”42(Gridley, 1988, p.75).
Essa trajetória do saxofone no jazz, ilustrada pelo caminho percorrido a partir de Bechet,
passando por Hodges e chegando a Coltrane, aponta para uma consolidação de um vocabulário
jazzístico que permite que possamos perceber, mesmo que pontualmente, características de
correntes estéticas pregressas na maneira de tocar de músicos mais modernos, caso de John
Coltrane, que usa caracteríscas interpretativas de Hodges, especialmente no que se refere ao
entendimento do tempo na interpretação de baladas, além do uso de portamentos conhecidos no
meio dos músicos de jazz por smearing – que numa tradução literal significa sujando, ou,
lambuzando – como descrito por Mark Gridley:
Ele desenvolveu um modo notável de escalar de nota a nota gradulamnete e de maneira muito suave.
Era quase como se seu instrumento fosse equipado com uma vara, como um trombone. Esta técnica é
chamada de portamento, mas os músicos de jazz se rereferem a ela como smearing. Hodges a usou de
modo a favorecer enormemente a interpretação em baladas (...) Um senso de tempo extraordinário foi
crucial para o estilo de Hodges. Hodges foi um mestre na sutileza das inflexões de sonoridade, e suas
síncopes eram especialmente bem encaixadas. Antes de 1942, Hodges freqüentemente aplicava
dobramentos de tempo relâmpagos, assim como Sidney Bechet, sua primeira influência, mas depois
da metade doa anos 1940, Hodges tendia a atrasar de modo bastante deliberado, não importanto qual
fosse o andamento (...) Ele é particularmente conhecido por um enfoque romântico ao tocar baladas
que permeou tanto a música americana, que inúmeros saxofonistas estão o imitando sem saberem
quem foi Johnny Hodges. Ele não apenas influenciou instrumentistas pré-modernos, mas também teve
forte impacto sobre músicos modernos tais como Ededie Vinson e John Coltrane. 43
(Gridley, 1988, p.118)
Ao ouvirmos Coltrane interpretar determinadas baladas, é possível notar características
interpretativas que podem ser relacionadas ao estilo de Hodeges, tais como as citadas anteriormente.
Referimo-nos às baladas já que este foi o gênero composicional no qual a marca interpretativa de
Hodges ficou mais profundamente gravada, como na gravação de Isfahan, como solista da Big Band
de Duke Ellington. Nas interpretações de Coltrane para Say It (Over and Over Again), de Frank
Loesser e Jimmy McHough, do disco Ballads de 1962, ou mesmo anteriormente, como na gravação
42
During the 1960s, the soprano sax was ressurrected by modern jazz saxophonist John Coltrane, one of whose tunes
was entitled “Blues to Bechet”.
43
He developed a remarkable way of gliding from note to note very gradually and smoothly. It was almost as if his
instrument were equipped with a slide, like a trombone. This technique is called portamento, but jazz musicians
generally refer to it as smearing. Hodges used it to great advantage in ballad playing.(…) An exquisite sense of
timing was crucial to the Hodges style. Hodges was a master of subtlety in tonal inflections, and his syncopations
were specially well timed. Pre-1942 Hodges often displayed flashy double-timing like Sidney Bechet, his primary
influence, but after the mid-1940s, Hodges tended to lay back very deliberately, no matter what the tempo.(…)He is
particularly known for a romantic approach to ballad playing that has so pervaded American music that countless
saxophonists are imitating it without knowing who Johnny Hodges was. He not only influenced premodern players,
but he also had in impact on such modern saxphonists as Eddie Vinson and John Coltrane.
118
de Theme for Ernie, composição de Fred Lacy incluída no disco Soultrane de 1958, existem
características interpretativas que podem ser associadas à performance do saxofonista de Ellington,
como no uso intenso de portamentos, mesmo que estes não se dêem tão exageradamente quanto em
Hodges, e, principalmente, de um jogo agógico de fraseado que gera deslocamentos nas notas,
normalmente atrasando seus ataques, o que resulta em síncopes pontuais durante a performance
Ora, se é possível percebermos traços de Hodges em Coltrane, por dedução seria também
possível encontrarmos resquícios dessas semelhanças na interpretação de Ornelas, já que segundo o
intérprete, Coltrane fora definitivo no seu desenvolvimento musical. O que torna difícil esse tipo de
comparação é que não há em nenhum dos discos de carreira de Ornelas gravações de standards de
jazz e tampouco de baladas, tão caras para se identificar referências relacionadas a Hodges e onde
os recursos apontados anteriromente seriam melhor observados. Mas há uma interpretação em
especial de Ornelas presente no disco Viagem ao Oco do Toco, lançado em 2005, durante a peça
para saxofone tenor solo Uma Opinião, onde o intérprete aplica de maneira intensa diversos tipos de
portamentos e vibratos à sua performance improvisada, remetendo, mesmo que sutilmente, a
característas encontradas na performance de Coltrane e, por conseguinte, na deJohnny Hodges:
Exemplo Musical 67: Trecho inicial de Uma Opinião, composição de Nivaldo Ornelas. Note-se a forte presença de
pitch bends, glissandos e vibratos no que poderia ser uma referência a características interpretativas alusivas ao estilo de
Johnny Hodges.
Podemos perceber, no exemplo anterior, que Ornelas já inicia seu solo com o uso de pitch
bends próximos aos que os músicos americanos chamam de scoop (pá), onde a nota é atacada de
baixo para cima, num estilo que lembra muito o de Coltrane. Nesse sentido, a interpretação de
Ornelas traz características estilísticas de Coltrane em sua realização, e, por conseguinte, dos traços
inerpretativos de Hodges, mesmo que os portamentos praticados por Hodges sejam muto mais
intensos em aplitude, aproximando-se de um glissando, característica essa que é apenas
parcialmente compartilahda com Coltrane e com Ornelas. Daniela Spielmann em sua dissertação de
119
mestrado Tarde de Chuva, sobre a música de Paulo Moura, traz um depoimento do saxofonista que
revela como essa meneira de tocar de Hodges era encarada por seus contemporâneos no Brasil,
geração que precedeu à de Ornela, mas que norteou muitas das escolhas musicais de sua geração
(Informação verbal):
“(...) O portamento exagerado como fazia na orquestra de Duke Ellington um saxofonista chamado
Johnny Hodges, aquilo ali pra música brasileira era detestável, considerava-se que aquilo fugia da
nossa sensibilidade. Benny Carter não usava aquele tipo de portamento, a não ser aqueles mais leves
de semitons, mas não aqueles longos como o estilo Johnny Hodges. (...) Já na clarineta quem fazia
muito era o Luiz Americano, mas ele fazia com alguma reserva, quem fazia mais este tipo de coisa era
o Abel Ferreira. E justamente os músicos não gostavam muito e diziam que estava imitando guitarra
havaiana; eu gostava, mas aí diziam saxofone não é guitarra havaiana” (entrevista concedida por
Moura à autora em 2006).
(Spielmann, 2008, p. 140)
A partir da declaração de Moura podemos notar que os músicos no Brasil procuravam
reservadamente utilizar esses dados de interpretação que segundo o depoente subvertem o perfil
musical dos gêneros brasileiros, até mesmo porque havia, e há, pelo menos no posicionamento de
Ornelas, uma atitude no sentido de se distinguir dos trejeitos musicais de saxofonistas que o
precederam, em sua grande maioria imersa sob a estética dos grandes solistas das Big Bands, caso
de Hodges. Desse modo, as escolhas em Ornelas se deram de modo a inferir novas possibilidades à
interpretação no instrumento voltadas para a realização em música brasileira, mesmo quando o
músico interpreta um repertório de temas de jazz e mesmo ele estando atento aos cânones do
gênero, conhecimento que o auxilia a reconehcer essas características em sua performance e a evitalas ou ressaltá-las deliberadamente.
De todo modo, as características interpretativas anteriormente apontadas serão mais
profundamente argumentadas no decorrer do presente Capítulo. Por hora, cabe resslatar que como
linhas mestras no entendimento didático e estético do saxofone, adotam-se estas duas escolas para
fins bem diferentes, sendo uma inclinada à música de concerto, ou erudita, e outra ao jazz e seus
desdobramentos, seja no funk, na música pop, no rock e nas realizações híbridas que conjugam
características de ambas, onde talvez, os dados de maior identificação e distinção entre as duas
práticas residam no entendimento de dois aspectos técnicos e estilísticos muito fortes: a sonoridade
e a articulação.
120
3.1.1.1 - A Sonoridade do Saxofone na Música Brasileira:
Frente a este paradigma, o da “sonoridade”, é difícil estabelecer parâmetros para a descrição
das varáveis que o constituem. Estes aspectos são seguramente melhor identificados se expostos à
análise de ondas sonoras através de ferramentas de prospecção tais como programas de computador
que realizam a aferência de suas características frente a processos espectrográficos, procedimentos
estes que não são utilizados nesta pesquisa. O que aqui procuramos buscar são notas gerais de
características de sonoridade de ambas as escolas, anteriormente citadas, tomadas a partir de
impressões auditivas de seus usos por saxofonistas da música brasileira e, em especial, do perfil
interpretativo de Nivaldo Ornelas.
Se levarmos em conta as características de sonoridade e de interpretação das duas estéticas
anteriormente expostas e ao observarmos a maneira de tocar dos saxofonistas brasileiros,
especialmente da música popular, podemos perceber que a escola francesa e a escola americana, ou
do jazz, se alternam na história. O fato é que é associado ao uso do saxofone no choro - e por
extensão na música brasileira - mormente ao fato de Pixinguinha (1897-1973), durante a sua
excursão a Paris e 1922, ter incorporado o instrumento aos Oito Batutas e com isso ter dado início à
história de seu uso no Brasil. Contudo é negligenciada a existência anterior do invento de Sax em
terras brasileiras, sendo que por aqui o saxofone já tinha seus representantes, como Viriato Figueira
(1851-1883), tido como primeiro solista de saxofone no Brasil e Anacleto de Medeiros (18661907), compositor, arranjador, regente, multi-instrumentista e que tinha predileção pelo invento de
Sax. Para estes intérpretes, certamente, o uso do saxofone não era referendado pelo jazz, até mesmo
porque no final do século XIX o instrumento ainda não fazia parte da instrumentação do gênero
americano, como evidencia Eric J. Hobsbawm em seu livro História Social do Jazz:
O saxofone entrou tarde no jazz. Os anos em que os jornalistas identificavam o jazz por seus
“saxofones gemendo” foram precisamente aqueles nos quais os poucos saxofonistas de jazz que havia,
tinham apenas se emancipado da tradição de clarineta de Nova Orleans. No entanto, da metade da
década de 20 em diante, uma série de instrumentistas brilhantes e sensíveis começou a desenvolver
uma técnica própria para o instrumento e colocaram a sua notável flexibilidade a serviço do jazz.
(Hobsbown, 2007, p.135)
Infelizmente não há registros sonoros dos pioneiros do saxofone no Brasil, mas é de se supor
121
que a estética de sonoridade e interpretação destes músicos passava ao largo das características ditas
jazzísticas que a música brasileira sofreria futuramente. É muito mais provável que a referência de
escola do saxofone no país tenha passado por uma estética europeia ligada à tradição das bandas
militares dos clarinetistas e dos oficleidistas. Ouvindo intérpretes do início do século XX como Luis
Americano (1900-1960), Sandoval Dias (1906-1993) ou mesmo Severino Rangel de Carvalho, o
Ratinho (1896-1972), podemos perceber traços da chamada escola francesa, mesmo frente a um
repertório de música popular, principalmente no que tange à escolha de um timbre mais amadeirado
para o instrumento, com articulações bem nítidas e pouco uso de recursos interpretativos e de
sonoridade relacionados ao jazz, como o subtone. Em contraposição, é perceptível que a escola do
jazz vicejou a partir dos anos 1940 com músicos como Zé Bodega (1923-2003), K-Ximbinho
(1917-1980) e, posteriormente, Paulo Moura (1932-2010), com uma sonoridade menos amadeirada
e com características de articulação não tão marcadas que incluem, por exemplo, notas escondidas
(ghost notes), bem como o uso de subtones, pitch bends e vibratos jazzísticos, portanto, torna-se
claro que a referência da cultura francesa do final do século XIX e início do XX tendenciou
escolhas de sonoridade e interpretação dos primeiros músicos de choro e com o passar do tempo a
referência do jazz, através principalmente das Big Bands e de seus músicos, alterou o eixo estético
para um jeito mais americano de tocar.
No caso de Nivaldo Ornelas, o músico resistiu fortemente no início da carreira em aceitar a
tocar saxofone, isto porque à época vigorava uma estética de saxofone no Brasil fortemente
inclinada à realização deste instrumento frente ao repertório de gêneros como o samba-canção e o
bolero, identificados com o universo da noite, como pode ser percebido em saxofonistas como
Moacir Silva (1940-2002), que durante dos anos 1960 lançava discos com o pseudônimo de Bob
Flemming. Nesta época, Nivaldo Ornelas tinha acabado de sair da Escola de Formação Musical em
Belo Horizonte e estava se dedicando ao clarinete com vistas para o repertório de música erudita,
logo, a associação do saxofone com esta estética e consequentemente com seu repertório eram
inevitáveis e indesejáveis pelo músico. Sobre estas primeiras impressões do saxofone Ornelas
122
declara que (informação verbal):
O (Célio) Balona tinha um conjunto de baile que tocava esse povo todo aí, no conjunto do Balona,
todo mundo passou pelo conjunto do Balona. O Balona foi um grande agregador desse tempo, né? Eu
tocava clarinete e os caras, pô, você tem que tocar saxofone pra tocar no conjunto do Balona. Falei,
saxofone? Mas nunca! Porque a ideia de saxofone era aquele som da noite, aquele som Ben Webster,
como é que chama? Coleman Hawkins, e eu não era fã desse som não. Hoje eu admiro, de longe, mas
também não é meu sonho de consumo, e naquela época muito menos, tava em outra.
Coleman Hawkins (1904-1969) e Ben Webster (1909 – 1973), citados na declaração, são
dois representantes do jazz realizado entre os anos 1930 e 1950, muito associados ao estilo swing e
que são referências dos primeiros grandes solistas do gênero, principalmente no saxofone tenor. A
maneira de tocar de Hawkins e Webster é marcada por um forte uso de recursos interpretativos tais
como o subtone, pitch bends, efeitos vocais chamados de growling, além de vibratos com grande
amplitude de altura e frequência. No Brasil estas características foram muito exploradas por
músicos que tocavam nas Big Bands brasileiras, como Zé Bodega e até mesmo Paulo Moura,
citados anteriormente, principalmente nas gravações deste no saxofone alto realizadas durante a
década de 1950. Nivaldo Ornelas não se adaptava a esta estética, mas uma outra referência do
saxofone no jazz o fez mudar de idéia (informação verbal):
Aí eu fui na casa do...do Balona, e o Antônio Morais, é um cara que, idealizador do Berimbau,
emprestou um disco, a gente tirava disco da Embaixada Americana, não tinha como comprar, nesse
tempo você não comprava um LP, não tinha loja especializada (…) Então alguém emprestou pro
Balona o disco Monk & Coltrane, chamava The Prophet,(...) Aí eu ouvi aquilo e levei um susto, né?
Opa, isso aí tá bom. Acheicontemporâneo o som, né? Diferente, gostei. O Coltrane tocou uma balada
(…) Na verdade quando eu ouvi o Coltrane tocando essa balada. Pô que som interessante. Ele com
pouco vibrato, assim aquele som...né?
Músicos de jazz das gerações posteriores a Hawkins e Webster abandonaram estes
esteriótipos e partiram para outros tipos de realizações, como ocorrido com John Coltrane. A balada
que Ornelas se refere é Ruby, My Dear, composição de Thelonious Monk (1917-1982) e presente no
disco Thelonious Monk with John Coltrane gravado em 1957. Como notas gerais das características
de sonoridade de John Coltrane apontadas por Ornelas, pode-se perceber um uso mais restrito de
recursos interpretativos característicos do jazz antigo, como vibratos, ou mesmo subtones, já que
este efeito é mais contundente no registros médio e grave do instrumento e Coltrane
preferencialmente realizava as melodias
em suas regiões média e aguda, regiões estas mais
123
brilhantes e de vigor do saxofone tenor, o que muda de maneira veemente o seu caráter. Há também
o entendimento de que, para cada um dos sete instrumentos que compõem a família dos saxofones
há uma identidade sonora muito forte que os diferencia e individualiza. Este ponto de vista é
compartilhado por Ornelas:
E a gente tava discutindo isso que cada [um] instrumento é uma alma pôxa, você não pode, não é
assim. Você tem que pensar a respeito, é ou não é? Mesmo soprano ou tenor, às vezes no show quando
eu toco só tenor fica bom pra caramba, tenho que tocar soprano, ferrou. Já não é a mesma coisa, a não
ser que você seja muito jeitoso, não sei, aí é uma coisa de cada um. Mas quando eu tô tocando só
soprano e começa a ajeitar, ajeitou, eu pego o tenor, aí o instrumento esfria e já não vem com o mesmo
som, como é uma coisa que tem que ter um nível razoável, né? Em se tratando de flauta então, nem se
fala, eu fiquei impressionado com um vídeo meu da Manchete que tá um som razoável nos três, eu
não sei como é que eu consegui aquilo, e comecei a perguntar, a turma lembrou, nesse período a gente
fazia 2 ou 3 concertos por semana, ensaiava segunda e terça e fazia show quinta, sexta e sábado
durante um ano, dois anos, aí é fácil. Desde que você pense nisso que eu te falei, né? A tá, agora é
flauta, ôpa. Então, é isso aí, entendeu?
Sendo assim, mais apropriado do que falar na sonoridade do saxofone de Nivaldo Ornelas
seria falar do saxofone tenor a parte do saxofone soprano. Quando Ornelas ouviu o som de John
Coltrane houve a partir dali uma referência não só musical, mas da qualidade de timbre de saxofone
tenor que guiou o músico por muitos anos. Nesse sentido o som de Ornelas tem traços de
semelhança com o de John Coltrane, mas essa similitude pode ser estendida ao entendimento da
sonoridade do saxofone no jazz moderno como um todo, que em notas gerais pode ser considerado
um som mais “elaborado”, menos rude do que a maior parte dos saxofonistas pré-modernos.
Quanto ao saxofone soprano, apesar do instrumento ter sido usado por John Coltrane, não
parece que Ornelas tenha buscado se orientar nele como intérprete desse instrumento. Ao ouvir
Ornelas no soprano, traços daquela dita escola francesa, de música erudita, vêm à tona, isto pela
leveza de sonoridade aliado ao um timbre extremamente doce e equilibrado, herança talvez de sua
experiência como clarinetista, havendo ainda a preferência por um fraseado mais legato, exaltando
essa delicadeza dos instrumentos de madeira.
É fundamental salientar que o jazz utilizado como referência de músicos de choro por volta
dos anos quarenta, como K-Ximbinho, Zé Bodega e Paulo Moura, não é o mesmo jazz praticado e
que serve de referência para Nivaldo Ornelas e outros saxofonistas de seu tempo, como J. T.
Meirelles (1940-2008), Vitor Assis Brasil (1945-1981), Mauro Senise (1950-), Roberto Sion (1951),
124
Cacau - Claudio Araujo Chamié de Queiroz (1953-), Raul Mascarenhas (1953-), dentre outros.
Portanto, há distinções estéticas tanto de sonoridade quanto nos usos de recursos técnicos e
interpretativos entre estas gerações de músicos, e essas “novas” escolhas fundamentaram o que
pode ser chamado de “saxofone moderno brasileiro”.
1.2 Da Articulação no Saxofone em Ornelas:
Diferentes práticas de articulação são distinguíveis na realização de diferentes gêneros
musicais. Por ser de ordem rítmica, a articulação diz muito a respeito da maneira de frasear do
músico e do conhecimento dele frente às características do gênero ou estilo que está interpretando.
Como visto anteriormente em relação à sonoridade, para as diferentes práticas ou estéticas
apontadas como escolas, são demandados diferentes resultados sonoros e, consequentemente,
diferentes tipos de articulação. Basicamente, a articulação é o recurso necessário para se ligar notas
ou separa-las, chamadas de legato e detaché (desligado), respectivamente. Os tipos de articulação
mais comuns são aqueles que envolvem golpes de língua e como método pedagógico costuma-se
associar o uso imagético de sílabas - sem o uso da voz - para a efetiva realização destas, como uma
maneira de visualização, por parte do estudante, do movimento e posicionamento da língua ao
desferir os ataques contra a palheta do instrumento, já que um condicionamento meramente
muscular da língua é praticamente inviável, como relata o tubista e educador Arnold Jacos (19151998) no livro Arnold Jacobs: Song and Wind escrito por Brian Frederiksen:
Treinar a língua através da musculatura é difícil, senão impossível. Jacobs prefere resolver os
problemas da língua através da fala, com relações consonantais e vocálicas. Por exemplo, as sílabas
“oo-thu” e “kee-hoe” são utilizados para movimentos para trás e para frente. “hah” versus “ssssss”
move a língua da porção mais baixa para a mais alta da boca. Para experimentar um fluxo de ar
contraído, diga “tee, yee, tee, yee.” Para experimentar uma passagem de ar aberta, diga “ah, oh,
ooh.”44
(Frederiksen, 2006, p.127)
Para Ornelas, o entendimento da articulação passa muito pela instrução recebida em aulas de
44
Training the tongue by musculature is difficult if not impossible. Jacobs prefers solving problems of the tongue
through speech, with consonant and vowel relationships. For example, the syllabes “oo-thu” and “kee-hoe” are used
for the back and forth motion. “Hah” vs. “ssssss” move the tongue from the lower to the upper portion of the mouth.
To experience a constricted air flow, say “tee, yee, tee, yee.” To experience an open airway, say “ah, oh, ooh.”
125
clarinete onde o músico se refere ao uso de ponta de língua. Pela ancestralidade didática do
saxofone estar ligada ao estudo ou ensino do clarinete, as abordagens em articulação em ambos se
assemelham e na maioria dos métodos em circulação no Brasil são usadas como referências as
sílabas tu ou ta, sendo que esse tipo articulação deve incluir um som consonantal dental, que na
performance do saxofone é substituído pela porção diagonal inferior frontal da boquilha, logo na
conjunção desta com a palheta (substituindo os dentes superiores) conjugado a um fonema vocálico,
que no caso tem uma interferência no sentido de posição da língua, abertura da glote e formato da
cavidade bucal. A realização destes fonemas é de certo duvidosa já que, como afirma David
Liebman: “O problema com estes exemplos é que a linguagem é idiomática e a mesma palavra pode
ter sonoridades (pronúncias) múltiplas dependendo da região geográfica do indivíduo, bem como o
contexto e outros fatores”45 (Liebman, 1994, p.23)
Portanto, a real emissão da sílaba pelos métodos franceses seria ty ao invés de tu, com a
vogal u afrancesada, e não o u da língua portuguesa, ou ainda como exemplifica Liebman ao sugerir
EE, como pronunciado na palavra inglesa eat. A princípio a diferença pode ser pequena, mas
movimentos infinitesimais de língua ou formato e abertura da glote (garganta) podem gerar
resultados muito diferentes. Essa técnica de vogais aplicadas ao timbre do instrumento não são
muito frequentes nos instrumentos de palhetas simples (saxofones e clarinetas), mas são
amplamente utilizados, por exemplo, na flauta transversal, apesar de poderem apresentar problemas
de tensão da glote ao serem realizadas.
Havendo assim a constatação de uma emissão errônea da sílaba citada na tradição didática
do ensino do saxofone no Brasil, o fato aponta para uma lacuna entre aquilo que Ornelas ouvia na
performance dos saxofonistas de jazz e aquilo que era por ele praticado através dos métodos
adotados nas aulas de clarinete que tomou. Em ambos os casos, tanto no ataque da nota (som
consonantal) quanto na sustentação do som (som vocálico), os resultados de articulação sofrem uma
interferência importante, portanto, os fonemas não são os mesmos, bem como os resultados
45
“The problem with these examples is that language is idiomatic and the same word can have multiple
depending on the individual's geographical region, as well as context and other factors.”
soundings
126
produzidos por eles.
Obviamente que a simples pronúncia de determinadas sílabas não resultará propriamente em
notas emitidas, há outras questões provenientes de técnicas aplicadas à respiração e emissão de
coluna de ar que permeiam a prática em um instrumento de sopro, nesse sentido, para se falar de
articulação temos de nos referir inicialmente ao som e, por conseguinte, à respiração, afirmação
compartilhada entre Arnold Jacobs Ao estudar o som, você está estudando respiração46,(Nelson,
2006, p.35) e Naílson de Almeida Simões em seu artigo A Escola de Trompete de Boston e Sua
Influência no Brasil:
A respiração, além de indispensável para todos os seres vivos, fornece a matéria-prima na arte de
executar um instrumento de sopro. Nesta proposta específica podemos citar:
Na ausência de ar, não existe vibração;
na ausência de vibração não existe som.
(Simões, 2001, p.21)
A respiração consiste nos movimentos de inspiração e expiração. No primeiro, ao expandir a
caixa torácica, como um fole, a pressão interna do corpo se torna menor do que a externa, fazendo
com que o ar entre nos pulmões através das cavidades, ou fossas, nasais, além da boca, insuflandoos. Na expiração, ao diminuir o espaço interno da caixa torácica através do movimento das costelas,
a pressão do corpo aumenta expelindo o ar dos pulmões num processo de troca gasosa, essencial
para a vida e que, no caso dos músicos de sopro, é utilizado como coluna de ar na performance
instrumental.
Além dos pulmões, há um músculo, involuntário, que auxilia e possibilita os movimentos de
expansão e contração da caixa torácica (inalação e exalação), o diafragma. Há um pensamento,
diria, atávico e generalizado no meio dos músicos de sopro, ao menos das madeiras na música
popular, que costuma relacionar fortemente o desenvolvimento de sonoridade do músico com a
quantidade de ar inalado e à força abdominal empregada para, em tese, estimular o uso do
diafragma através do aumento da pressão interna na região abdominal. É necessário apontar para a
distinção entre esses conceitos, havendo a pressão de ar interna e a pressão do ar projetada para
dentro do instrumento, resultante muito mais de características de embocadura e desenvolvimento
46
By studying sound, you are studying breath
127
acústico.
No primeiro caso, o entendimento de boa parte dos praticantes de instrumentos de sopro
relaciona a atividade musical à qualidade e quantidade de ar obtida através da respiração, tendo
como foco o chamado apoio do diafragma. Antes de qualquer coisa, cabe uma consideração a
respeito desse músculo e de sua função, como afirma Arnold Jacobs, em livro escrito por Bruce
Nelson Jacobs explica o funcionamento do diafragma da seguinte maneira:
O diafragma é um músculo grande que separa os pulmões dos órgãos da parte mais baixa da região
abdominal. Na inalação, o diafragma se contrai e se move para baixo, dilatando os pulmões. Na
exalação, o diafragma relaxa e se move para cima, encurtando os pulmões. O diafragma é o chão do
peito e o teto do abdômen. 47
(Nelson, 2006, p. 37).
Figura 7:Exemplo do processo de inalação citado por Nelson, 2006, p. 37
Inalação:
(1)
(2)
(3)
(4)
(5)
47
O Diafragma se move para baixo
Os pulmões inflam em todas as direções
A cavidade oral e a garganta abrem com o som de “Ô”
A língua está fora do caminho com o som “Ô”
A abertura dos lábios não é maior do que o espaço da garganta (o diâmetro do seu dedo opositor)
Enquanto estiver fazendo exercícios de respiração e tocando, apalpe a região abdominal entre a
costela e o osso do quadril para ter certeza de que a musculatura abdominal está relaxada.
The diaphragm is a large muscle that separates the lungs from the organs of the lower abdominal region. On
inhalation, the diaphragm contracts and moves downward, lengthening the lungs. On exhalation, the diaphragm
relaxes moves upward, shortening the lungs. The diaphragm is the floor of the chest and the roof of the
abdomen
128
Figura 8:Exemplo de exalação citado por Nelson, 2006, .37.
Exalação:
(1)
(2)
(3)
(4)
(5)
(6)
O diafragma se move para cima.
Os pulmões esvaziam em todas as direções
A cavidade oral e a garganta abrem com o som “RU”
A língua está fora do caminho com o som “RU”
O ar se move como vento para fora dos lábios; os lábios vibram livremente.
Enquanto estiver fazendo exercícios de respiração, zumbindo, e tocando, apalpe a região entre a
costela e o osso do quadril para se assegurar de que a musculatura abdominal esteja relaxada.
(Nelson, 2006, p. 37).
Desse modo, o funcionamento real do diafragma vai de encontro ao entendimento, diga-se
mais uma vez, errôneo e generalizado de que, ao fazer força no abdômen o músico estaria
estimulando o uso desse músculo, pelo contrário, o diafragma é relaxado na expiração e tencionado
na inspiração, portanto o que comumente se conhece por “apoio” do diafragma é o tensionamento
da musculatura abdominal que não tem efeito algum sobre o diafragma, apenas tornam rígidos os
pares de músculos dispostos em oposição isométrica. Esse tipo de força é comum às gestantes ao
darem a luz, ou, em estímulo ao evacuar, portanto, buscar um “apoio” para o diafragma dessa
maneira torna-se um esforço desnecessário:
Muitos professores usam a frase, “sopre a partir do diafragma”, e usam o termo “apoio
diafragmático”. O termo “apoio” levanta dúvidas em si mesmo. Muita gente comete o erro ao assumir
que a contração muscular é o que gera o apoio. O sopro da respiração deveria ser o apoio, não o
tensionamento dos músculos do corpo, mas o movimento de ar que é demandado pela embocadura ou
palheta.48
(Frederiksen, 2006, p.107)
48
Many teachers use the phrase, “blow from the diaphragm”, and use the term “diaphragmatic support”. The
term “support” raises questions in itself. Many people make the mistake of assuming that muscle contraction is
what provides support. The blowing of the breath should be the support, not tension in the muscles of the body,
but the movement of air that is required by the embochure or reed.
129
Ornelas dá seu parecer em relação a como pensa sobre esse assunto ao descrever os meios
com os quais foi se familiarizando e conhecendo os mecanismos de respiração (informação verbal):
Nivaldo – O diafragma é o peixe arraia. Sabe aquele peixe arraia? Já viu, não? Ele é assim ó, ele é
colado aqui, ele não é solto não, achava que ele era solto. Pedi a minha irmã a Sandra. Você conhece a
Sandra minha irmã? Ela é médica. Falei: Sandra olha um diafragma lá pra mim pôxa.
E completa:
Nivaldo – Ela falou assim: Ele não é solto não ele é agarrado, ele é preso. Não é isso? Ele é, como é
que fala? Móvel, mas ele não é solto no espaço não, ele é preso numas articulações aqui e ele é mais
pra baixo, ele não é reto não, ele faz assim. Eu vejo cara magrinho tocando bem pra caramba aí, como
é que é isso? Esse cara tá relaxadão e não pega mais ar do que precisa. Ainda tem essa, isso não
resolve, mas tem hora que resolve, saxofone tenor, tem que ter ar mesmo, é ou não é? Mas não adiante
fazer barulho. Aí enquanto eu estava em Belo Horizonte, 75, 74, eu já tava tocando com o Milton, eu e
o Toninho Horta fomos pro festival de Ouro Preto, fomos zoar lá, fazer bagunça. Chegou lá, dona
Odete Ernest, sabe quem é? Ela tava fazendo um curso de flauta.
(...)
Nivaldo – Eu e o Toninho (Horta) inscrevemos no curso de flauta dela, ela falava: Você toca saxofone
né? É, saxofone com flauta não sei não. Aí ela me ensinou a respirar de verdade, ela falou: Você tá
fazendo barulho. Não faz barulho e quando você tiver no palco tocando lembra do diafragma, mas
você relaxa ele. Tá tenso, aí não entra ar, não entra ar. Não, relaxa, pensa. Toda vez que eu tô no palco
as vezes assim eu, pá. Aí ajeita. Mas demora né? Isso foi o segredo, foi o que eu estudei, foi até a dona
Odete, a partir dali foi comigo mesmo, nada mais.
A realidade do músico brasileiro que se dedica à música popular, e principalmente das
gerações pioneiras da prática nessa modalidade, como o caso de Ornelas, definiram sua prática
instrumental sem uma orientação formal de seu ensino e aprendizagem, e mesmo quando havia
alguma interferência didática formal nesse processo, as noções técnicas que permeiam o universo
do mecanismo da respiração são assuntos pouco abordados e por vezes evitados pelos professores
de instrumento – é fato que mesmo hoje o tema seja negligenciado por um grande número de
profissionais, fato inclusive percebido dentro de centros acadêmicos de excelência como
universidades. O curioso é que Ornelas, à sua maneira, buscou através de outros meios uma
fundamentação teórica através de uma colcha de retalhos de referências e que, mesmo havendo
pontualmente equívocos de ordem conceitual, serviram e ainda servem como instrumento de
desenvolvimento técnico para o músico. Em entrevista concedida em maio de 2009, o músico fala
como se deu o seu contato com essas noções técnicas da prática do instrumento (informação
verbal):
130
Bernardo – Mas essas coisas de embocadura, de projeção de som, de ar, articulação, esse tipo de
coisa você chegou a ter alguma instrução?
Nivaldo – O que aconteceu é quando eu saía em Belo Horizonte eu falei: Gente, esse povo aqui; eu ia
perguntar e os caras falavam: Ah garoto, não, não tem nada disso não, não tem negócio de diafragma
não, tá bom, você tá tocando bem, o quê é isso? Eu achava que eles estavam escondendo o jogo de
mim, aqueles senhores lá que tocavam na noite. Aí comecei a perceber que eles não sabiam, eles
tocavam porque tocavam, porque tinham talento, mas iam até um certo ponto só, dali o cara não
passa. Sem informação você não anda. Aí eu entrei pro ICBEU na Rua da Bahia, pra aprender inglês,
e quando vinha músico americano ia lá no hotel atrás dos caras, e assim foi. O primeiro que eu
procurei foi o Frank Foster. Você se lembra do nome.
Bernardo -É um nome famoso mas eu realmente não conheço.
Nivaldo - Ele foi com o Elvin Jones em Belo Horizonte,
Bernardo – Inacreditável, hein?
[...]
Nivaldo – Não, não era o McCoy era um outro cara, era um outro cara, Reginald Offman, era uma
turma ferrada. Aí eu procurei o Frank Foster, falei que eu tava, queria desenvolver e tudo, aí ele falou
assim: Toca aí, deixa eu ver. Ele falou: Você deve ter muita dor nas costas. Falei: De vez em quando
eu tenho mesmo. Ele falou: Pois é, você tá com a postura tensa, pá, pá, pá, tá respirando em cima. Aí
nós fomos no parque municipal, ali em Belo Horizonte, à noite, aí ele falou: Olha, você tem que
aprender a respirar aqui em baixo, tem que tocar relaxado, você tá fazendo força, aí dói, assim você
não vai conseguir nada não, você tem que fazer força à favor e não contra, você tá fazendo força,
amassando.
Nivaldo – Não é assim não, relaxa que o som vem. Se ele tiver de vir ele virá, mas pra isso você tem
de fazer alguns exercícios. Aí ele me ensinou um exercício que soprava vela. Você já viu isso? Eu fiz
à exaustão. Aí ele me deu um toque, falou assim: Procura um cantor lírico que você gosta do trabalho
dele e aprende com ele, e eu tinha meu vizinho, Roberto Fabel, que é o cara que fez as letras do meu
primeiro disco, sabe aquele? Roberto Fabel. E o Roberto era cantor lírico do Palácio das Artes, muito
bom, assim, falei: Roberto, como é que é esse som? Você enche o teatro de som e eu não encho nem a
metade! Ele falou: O lance tá todo aqui dentro. Aí ele me passou exercício de Yoga de respiração,
aquele aqui. Sabe aquele de abrir aqui, não? (mostra a respiração intercostal) e mil outros, aí eu
comecei a praticar isso com o da vela e aí desenvolvi rápido, mas, você vê, foi o que eu estudei, coisa
bem elementar de instrumento de sopro foi com esse pessoal, mas valeu a vida toda.
Vê-se que Ornelas, na falta de um ensino formalizado do saxofone, buscou a sua maneira
caminhos para resolver problemas específicos de seu desenvolvimento instrumental, recorrendo a
músicos mais experientes, no caso o saxofonista americano Frank Foster (1923 -), importante
instrumentista do jazz, bem como professores de canto e aulas de Yôga. Tal comportamento é
recorrente no Brasil, já que, mesmo hoje, são poucos os centros urbanos que dispõem de professores
de saxofone realmente capacitados para difundir esse tipo de informação. Obviamente que a
situação contemporânea é muito distinta e mais favorável do que aquela vivida por Ornelas na Belo
Horizonte dos anos sessenta e setenta, mas mesmo assim, a difusão do conhecimento aplicado à
performance nos instrumentos de sopro no país ainda é marcada por uma série de crenças e
suposições sem embasamento didático. No caso de Ornelas, esses caminhos por vezes resultavam
em conceitos de certo controversos, mas em alguns momentos quando, por exemplo, o músico se
refere à respiração intercostal, seu pensamento é assertivo e compartilhado por Jacobs quando ele se
131
refere à expansão da caixa torácica com fins para aumentar o espaço de dilatação dos pulmões, bem
como no pensamento generalizado de se tocar primando pelo relaxamento e não enrijecendo a
musculatura abdominal.
Já em relação à articulação, especificamente, o músico é categórico ao afirmar que evita ao
máximo este tipo de articulação – diga-se: de ponta de língua - certamente a experiência do músico
ao ouvir os músicos de jazz e a pronúncia por eles realizada não era compatível com a sua própria
experiência neste campo, a qual difere daquela amplamente ensinada em conservatórios e
especialmente junto ao clarinete, instrumento no qual o músico foi inicialmente instruído. Talvez
em função da escassez de material didático de jazz sobre o tema propagou-se no Brasil, e em
especial na orientação de Ornelas, um modo intuitivo para a realização deste tipo de técnica, já que
nos métodos estadunidenses de jazz são propostas outras articulações análogas a outros fonemas,
sendo o mais comum o uso do fonema doo, traduzido para o português como du, além de serem
tratadas as articulações de sopro, chamadas de breath articulation e as de meia língua, prática
comum para se usar nas swing eights ou mesmo para o uso em notas fantasma (ghost notes)49.
Bernardo – Eu pergunto esse negócio de articulação, de uso de língua,
Nivaldo – Nunca usei, nunca pensei nisso,
Bernardo – Porque das coisas de saxofone é o que fica escondido, né? Então a hora você vai ver ou
escutar não fica muito claro, por isso que eu te perguntei a respeito. Mas você nunca pensou nisso,
foi uma coisa sempre usada...
Nivaldo - Eu, na verdade, clarinete a gente usava muita ponta de língua (tacatacataca – como num
stacatto duplo), né? Não é isso? Deixa eu até te mostrar aqui fazer na flauta ó. Na flauta a gente faz
também ó (Faz uma
sequência de golpes simples seguidos de duplos). Né, esse tipo de coisa?
No sax fica brega, fica esquisito, aí eu
na verdade eu procurava evitar todo esse movimento,
comecei a ver a linguagem dos caras de jazz, que um
lance
mais
natural
possível,
pronunciado. É a pronúncia, é a intenção, é muito mais olhar e entender do que praticar, eu fiz foi isso,
não pensei nisso.
Bernardo – A sua articulação normalmente então é de sopro mesmo né? Você faz os acentos com o
diafragma?
Nivaldo – As vezes com diafragma. Com o diafragma com o saxofone tem que ter muito cuidado, eu
acho, porque o diafragma ele arrebenta também, né? Tá cheio de nego com hérnia aí, né? Inclusive eu.
Eu fui operado de hérnia. Por causa de saxofone. Pô fiquei três meses sem tocar.”
Cabe aqui ponderar que, são observadas e avaliadas as considerações técnicas a partir das
referências e do modo de pensar de Ornelas, sem, a priori, expor nenhum juízo de valores em
relação aos seus posicionamentos e abordagens às técnicas ou a maneira mais coloquial de se
49
Para maiores informações sobre articulações no jazz ver FABRIS, BORÉM. Catita de K-Ximbinho na Interpretação
de Zé Bodega (2006).
132
reportar a elas. Dizemos isto pelo fato de ter abordado com ele, no trecho da entrevista supracitada,
questões a respeito do uso do diafragma. A questão, amplamente controversa, é tratada pelo músico
à maneira que os músicos de sua geração e de seu metier tratam o tema, mesmo sabido que há,
generalizadamente, um mal entendido em relação a esta mecânica quando, por exemplo, nos
referimos à articulação com o diafragma. Esse termo é usado equivocadamente e se refere, na
verdade, à articulação de sopro (breath articulation), sem o uso de língua. O equívoco se dá porque
é impossível atacar uma nota com o uso do diafragma, pois como já exposto, o referido músculo é
tencionado na inspiração e relaxa ao se expirar, sendo fisicamente inviável a sua atuação no
processo do ataque da nota.
Embora o músico diga não ser adepto das articulações com uso de língua e tampouco pensa
no assunto, a performance do saxofonista demonstra que ela é baseada na articulação mormente em
legato, mas com a perceptível realização de golpes de língua por ele desferidos, principalmente em
trechos onde notadamente há um incremento rítmico com notas repetidas, como demonstram os
exemplos a seguir:
Exemplo musical 68: c. 73 -78, Trecho de solo de Nova Lima Inglesa no qual o intérprete utiliza articulações de língua e
notas ligadas
Exemplo musixal 69: c. 82-86, Outro fragmento do solo de Ornelas em Nova Lima Inglesa: Uso de articulação de
língua em diferentes combinações rítmicas,
Exemplo musical 70: Trecho de solo de Ornelas no saxofone tenor em From The Lonely Afternoons presente no disco
Diamond Land (1986)
Mesmo Ornelas admitindo que não pense na articulação, quando nos deparamos com figuras
133
de síncopes com notas repetidas é impossível conceber a realização destas linhas melódicas sem
lançar mão de algum tipo de articulação, seja esta de língua ou de sopro. No caso dos trechos
selecionados de Nova Lima Inglesa e From The Lonely Afternoons, o tipo de articulação percebida
nas gravações tende a uma compreensão de uma articulação com golpes de língua tendo o du ou da
como sílaba predominante, já que estas são realizadas de maneira mais leve a fim de deixar clara a
separação entre as notas, mas sem pronunciar um acento em nenhuma delas.
Outros tipos de articulação, provenientes, por exemplo, da prática relacionada ao gênero jazz
são perceptíveis na performance do saxofonista mineiro, como em solo realizado no saxofone
soprano durante a música Bons Amigos do guitarrista Toninho Horta, gravada em 1980. A
articulação presente no trecho selecionado se refere a um recurso interpretativo conhecido pelo
temo inglês ghost note (nota fantasma) ou dead note (nota morta). O uso desse artifício permite que
a divisão melódica em tempo mais rápido preserve a intenção swing dos solos de jazz, já que a
realização da divisão desigual entre colcheias conhecidas por swing eights não é realizável em
andamentos muito lentos ou muito rápidos. No caso de Ornelas, por não haver a realização de swing
eights ou do próprio swing do jazz tanto na composição de Horta quanto em sua interpretação, esse
tipo de realização é incorporado ao seu estilo preservando a intenção rítmica da música brasileira,
no caso uma bossa nova, tendo a divisão eqüitativa entra as colcheias, e, por conseguinte, a de suas
semicolcheias, um dado rítmico fundamental para a sua realização. Com a introdução desse recurso
o músico “esconde” algumas das notas a fim de evidenciar o acento na nota sol sustenido, ponto
culminante da frase, empregando um fraseado que tem sua origem junto aos músicos americanos de
jazz, mas que se tornou próprio da música brasileira principalmente a partir dos anos 1960, em
estilos instrumentais como o samba jazz, o samba de gafieira e em algumas realizações do choro de
músicos como Pascoal de Barros, Zé Bodega, Juarez Araújo (1930-2003) e Paulo Moura, apontando
para o uso idiomático desse recurso interpretativo voltado para o “saxofone brasileiro”.
134
Exemplo musical 71: Trecho de solo de Nivaldo Ornelas no saxofone soprano realizado na música Bons Amigos.
Esse desenvolvimento de articulação também é percebido na participação do saxofonista em
outro disco de Toninho Horta durante solo sobre a música From The Lonely Afternoons, composição
de Milton Nascimento presente no disco Diamond Land do guitarrista de Belo Horizonte.
Exemplo musical 72: Trecho se solo de Nivaldo Ornelas na música From the Lonely Afternoons no disco Diamond
Land de Toninho Horta.
Para a realização desse tipo de articulação, o músico pode lançar mão da chamada
articulação doodl, onde a primeira nota é articulada em legato com a sílaba du, e a segunda tem a
palheta abafada pela língua, contanto que haja a emissão, menos pronunciada, dessa nota. No caso
do trecho anteriormente citado, Ornelas pode ter apenas aproximado a língua, ou estreitado a glote
para esconder as notas dó sustenido e mi marcadas no compasso 8 já que elas estão em seqüência,
inviabilizando a articulação doodl em sua totalidade. O processo para a realização tanto desse tipo
de articulação quanto de outros, não parece importante para o músico, o que realmente importa para
Ornelas é pensar no resultado que se pretende e não na maneira como fazê-lo, o seu foco está na
linguagem internalizada através de processos auditivos, conseguindo seus resultados através da
experimentação em tentativa e erro.
Portanto, como afirma o próprio Nivaldo Ornelas, nestes casos é fundamental que o músico
entre em contato com a realização musical da articulação, que este tenha contato auditivo do
fenômeno, já que os universalismos dos métodos são inviáveis, idéia também compartilhada por
David Liebman (LIEBMAN, 1994, p.23) De qualquer modo, é difícil generalizar sobre o som sem
de fato ouvi-lo.50; e amplamente difundida por Arnold Jacobs que diz:
50
Althogh it is difficult to generalize about sound withou actually hearing it.
135
Até no estágio mais elementar, um instrumentista muito jovem não deve estar focado em aprender a
tocar o instrumento. Ao invés disso, ele deveria aprender como um instrumento deve soar. No ato de
aprender o som, ele está aprendendo o instrumento. A ênfase está no aspecto criativo do fenômeno do
som, o que ele quer fazer com isso – o seu produto é o som, e o que ele fará com isso em termos de
frase, dinâmica, emoção. Ele tem de comunicar.51
(Frederiksen, 2006, p. 95)
Essa escuta atenta, através de gravações de ícones do jazz, como John Coltrane, saxofonista
que Ornelas mais cita como sendo uma de suas principais referências no instrumento, moldaram, até
certo ponto, o fazer do músico que aplica características de sonoridade e de articulação
possivelmente inspiradas tanto no músico americano quanto na própria linguagem e características
interpretativas do jazz como um todo. As citadas ghost notes são encontradas amplamente na
performance de Coltrane, como no solo de Moment’s Notice, composição do próprio músico
presente no disco Blue Train de 1957.
Exemplo musical 73: Uso de ghost notes em trecho de solo de John Coltrane na música Moment’s Notice, do disco Blue
Train de 1957.
Até o momento, temos nos dedicado a descrever os processos de articulação a partir do
ataque (início) das notas, mas como bem lembra Daniela Spielmann citando Schluter, o som é
constituído de três estágios, sendo eles os seguintes, conforme atesta Schluter (apud Spielmann,
2008, p. 82):
Schlueter lembra que se deve ter consciência de três estágios de sons e notas:
• Começo: em geral deve-se pensar neste início com o mínimo de esforço sem forçar o ataque. Há
várias polêmicas em relação ao uso da palavra “ataque”, sendo preferível o termo “inicio de nota”.
Deve-se ter em mente a sílaba “dhot” (o autor dedica seu artigo ao trompete, mas neste quesito sua
análise sobre sons e notas pode ser utilizada para qualquer instrumento).
• Meio: é o estágio que define o valor ou tamanho da nota (longa ou curta).
• Fim: é a etapa mais importante da nota. Determina-se com ele a projeção do som e a conclusão das
frases. Quanto mais bruscamente o som é cortado mais ele se projetará.
A respeito do fim das notas, estas podem ser realizadas no saxofone de duas maneiras
básicas. Ou se interrompe a emissão de ar direcionada para dentro do instrumento através do
51
Even the most elementary stage, a very young player should not be focused on learning to play the instrument.
Rather, he should learn how an instrument should sound. In the act of learning the sound, he is learning the instrument.
The emphasis is then on the creative aspect of the sound phenomena, what he wants to do with it-his product is sound,
and what he is going to do with it in terms of phrase, dynamics, emotion. He has to communicate.
136
controle de sopro, ou, cessa-se a vibração da palheta com a aplicação da língua sobre ela. A
realização destes dois tipos de interrupção do som determina o tipo de contorno das notas, seu fim,
caracterizando e distinguindo a variedade de articulações possíveis, dos mais projetadas e curtas às
mais suaves e longas, como argumenta Naílson Simões (2001) citado por Spielmann (2008, p. 83).
Segundo Simões, a língua serve como modeladora do ar que automaticamente atua na articulação
musical ou nas sílabas que se fala no cotidiano, impulsionadas pela coluna de ar. A língua é
responsável pela separação das notas e ajuda sensivelmente nas notas ligadas. Então trabalha-se com
duas instâncias de articulação que são ligadas pelo som ou pelo silêncio. E com variáveis de dinâmica
e intensidade:
• Conexão pelo Som: “Notas ligadas”.
• Conexão pelo Silêncio: “Staccato”, “Tenuto” ou “Longo”, “Martellato”.
A realização de notas com “conexão pelo silêncio” como expõe Simões são também
perceptíveis na performance de Ornelas, como staccatos, notas acentuadas curtas, bem como as
duas possibilidades de fim de nota realizáveis no saxofone, através do controle do sopro e com a
intervenção da língua. No exemplo a seguir, apontamos alguns desses usos presentes na
interpretação do saxofonista mineiro retirado do solo de saxofone tenor da música Ninfas de sua
autoria.
Exemplo musical 74: c. 85 – 86 de Ninfas, note-se uso de notas acentuadas, tenutos e staccato.
Outros quesitos referentes ao que chamamos aqui de recursos dramáticos também são
utilizados na performance do saxofonista, como o vibrato. Tecnicamente a sua realização no
saxofone pode se dar de duas maneiras, com o movimento dos lábios na embocadura, relaxando e
contraindo-os, resultando em um vibrato de altura, onde a afinação da nota é variada, ou através da
modulação de intensidade do sopro resultando em um vibrato de intensidade. É francamente muito
mais apropriado e comum no uso do saxofone a aplicação da primeira técnica citada, sendo a
escolha da amplitude de vibrato e de sua velocidade decisões interpretativas relacionadas ao estilo
da peça a ser executada, sendo que no jazz costuma-se associar os vibratos de maior intensidade a
137
um estilo mais antigo (anterior aos anos 1950 aproximadamente), conhecido como hot e uma menor
quantidade tanto do uso quanto da intensidade dos vibratos em saxofonistas mais recentes,
associados ao estilo cool. Fato é que hoje em dia as várias tendências musicais coexistem em uma
infinidade de maneiras muito mais marcadas por escolhas individuais do que propriamente por
correntes estéticas. A fragmentação, a pluralidade e o individualismo que vivemos na sociedade
contemporânea são também perceptíveis no universo do intérprete em música popular que cada vez
mais individualiza e cria o seu campo de referências e usos.
Em Ornelas, a sua relação com a referência de sonoridade de John Coltrane marcou
profundamente suas escolhas interpretativas, como citado no início deste tópico. No caso dos
vibratos, ele os utiliza com muita parcimônia, sendo esta uma decisão consciente de Ornelas e
declaradamente referendada no estilo de Coltrane. Esses vibratos têm como característica pouca
amplitude de altura, menor freqüência rítmica e o fato de aparecerem proeminentemente no fim de
notas longas.
Exemplo musical 75: Uso de vibratos por Ornelas na música Nova Lima Inglesa, gravação de 1990.
Em outros momentos, mesmo durante a realização de notas longas, o músico não faz
nenhum uso de recurso, resultando em notas “lisas”, característica fortemente associada à estética
do saxofone moderno, realização encontrada em músicos de gerações posteriores aos anos
cinqüenta, partindo de Coltrane, e desenvolvido por outros como Wayne Shorter (1933 -), nos 1960
e Michael Brecker, (1949-2007) a partir dos ’70.
Exemplo musical 76: Trecho de solo de Nivaldo Ornelas no saxofone tenor durante a música Forró em Santo André,
presente no disco Montreaux Jazz Festival e Hermeto Pascoal: note-se o uso de notas longas sem a aplicação de
vibtratos.
138
Quanto a outros recursos de interpretação tais como subtones52 e pitch bends
(portamentos)53, estes são pouco utilizados pelo intérprete. No caso dos subtones, suas aparições são
raríssimas nas realizações do saxofonista, e mesmo quando ocorrem, parecem preservar um pouco
da sonoridade real das notas do registro grave tanto no saxofone soprano quanto no tenor. Nos
exemplos abaixo estão indicados usos desses recursos interpretativos nas gravações de Bons
Amigos, de Toninho Horta, realizada no saxofone soprano, e no solo de saxofone tenor em Ninfas,
composição de Ornelas de seu disco de estréia, Portal dos Anjos, de 1978.
Exemplo musical 77: Uso de subtone na gravação de Bons Amigos, de 1980.
Exemplo musical 78: Uso de subtone, notas fá do c. 47 e c.49, em Ninfas, gravação realizada em 1978.
Exemplo musical 79: Outro uso de subtone na música Ninfas. Nota mi c.53.
Cabe salientar que os exemplos acima relacionados estão indicados na tonalidade dos
saxofones soprano e tenor, instrumentos transpositores em Bb. Essa escolha se dá de modo a
evidenciar a região grave e extrema grave do instrumento, regiões onde o efeito de subtone é
melhor realizável.
52
Já no registro grave e médio-grave, é muito comum o subtone, técnica típica do meio jazzístico na qual o saxofonista
relaxa o queixo e desloca a mandíbula um pouco para trás da posição normal da embocadura. A sonoridade
resultante torna a região grave do instrumento mais “aveludada” e com maior flexibilidade para variar as baixas
dinâmicas, tornando mais fácil a progressão do pianissimo ao mezzo-piano. Outra característica do efeito subtone é a
mistura do som real do instrumento com um pouco de ar, resultando em um timbre soproso. (FABRIS, BORÉM,
2006, p. 20).
53
Este é um recurso expressivo deslizante que geralmente aparece em intervalos melódicos pequenos. Normalmente é
realizado iniciando-se a nota pretendida um pouco acima ou abaixo da sua afinação real, e deslizando-se da freqüência
inicial até a desejada (Fabris, Borém, 2006:20).
139
Já os pitch bends aparecem com mais freqüência do que o recurso anteriormente apontado,
mas mesmo assim, de maneira sutil. Também os pitch bends podem ser realizados de duas maneiras
distintas, ou se desafina a nota através do relaxamento da embocadura – efeito que pode ser
realizado tanto no início da nota, atacando-a mais baixo do que sua afinação real, bem como no
final dela ou mesmo durante a nota, desafinando-a e restabelecendo a afinação - ou então através
das chaves do saxofone, movendo os dedos vagarosamente para se obter o efeito desejado.
Exemplo musical 80: Identificação de pitch bends na gravação de Ninfas.
No caso de Ornelas, a aplicação dos pitch bends parece ser sempre realizada através da
desafinação da nota com o uso da embocadura. O recurso de se abrir ou fechar chaves, que
inclusive pode ser utilizado para realização de glissandos, não foi percebida na performance do
saxofonista.
Outros tipos de ornamentação também são encontrados no estilo interpretativo de Ornelas,
tais como apojaturas, mordentes e grupetos, usos possíveis tanto na prática da música brasileira
quanto na do jazz, mas que tem o seu uso mais freqüente e referencial frente ao repertório de
música erudita. Estas ornamentações se distinguem da seguinte maneira: apojatura, do italiano
appoggiatura, se refere a uma nota apoiada, em grau conjunto acima ou abaixo da nota principal; o
mordente consiste na alternância rápida entre a nota principal e outra em grau conjunto acima ou
abaixo, e por fim, o grupeto, ornamento que compreende a realização de quatro notas: a nota acima
da principal, a nota principal, a nota abaixo da principal e novamente a nota principal.
Exemplo musical 81: Uso de apojaturas ascendentes durante solo de Nivaldo Ornelas em Forró em Santo André.
140
Exemplo musical 82: Realização de mordente ascendente e de tempo irregular em Bons Amigos.
Exemplo musical 83: Ornamentos em Nova Suissa Sábado à Tarde gravada em 1982. Da esquerda para a direita; o
primeiro se refere a um grupeto escrito, por apresentar maior regularidade rítmica, o segundo se trata de um mordente
ascendente e o último uma apojatura ascendente.
Esse conjunto de características aponta para usos do saxofone frente ao repertório da
modalidade música instrumental onde são conjugadas características diversas relacionadas num
primeiro momento à performance no jazz – principalmente a partir dos anos 1950 – bem como da
tradição da música brasileira, mas que apontam também para escolhas galgadas na autonomia e
distinção do estilo interpretativo de Ornelas como escolhas possíveis e reveladoras de sua
personalidade como instrumentista, e que, além de serem parcialmente compartilhadas por outros
saxofonistas de sua geração também servem como referência para músicos das gerações seguintes.
2. Escolhas Rítmico-Melódicas em Improvisos de Nivaldo Ornelas:
Na tradição da música instrumental, seções improvisadas, conhecidas pelo termo inglês
chorus54, tem sua relação fortemente identificada com a prática do jazz, como afirma Acácio
Piedade e Marina Bastos (PIEDADE, BASTOS, 2006): Na música instrumental, a forma do
improviso está diretamente ligada à do jazz.
Mesmo parecendo parcial, a afirmação de Piedade se restringe àquela modalidade
instrumental referida por ele como MI (música instrumental), surgida a partir dos cruzamentos entre
a bossa nova e o jazz, e não do entendimento de música instrumental tanto em seus desdobramentos
seguintes, quanto em outras práticas correlatas, já que há diversas maneiras de improvisação em
54
Chorus são seções de improvisação que ocorrem obedecendo-se a estrutura harmônica e formal da música.
141
música instrumental, especialmente nos gêneros de música popular. O que se pretende aqui é
evidenciar que as práticas de improvisação caminhavam a partir dali muito mais ligadas às práticas
do jazz do que a outras já existentes, como por exemplo, a do choro.
A análise dos solos improvisados, portanto, deve servir para se identificar recorrências,
reiterações dos usos e escolhas de certas estruturas musicais (melódicas, rítmicas e harmônicas).
Materiais que dêem pistas das referências musicais do universo ao qual o intérprete se inscreve,
relacionadas ao conceito de habitus exposto anteriormente durante o Capítulo II na análise de Nova
Lima Inglesa, mas que no jargão da música instrumental podem ser identificadas como fórmulas: “a
forma e a abordagem que os solistas de jazz demonstram em relação à fórmula são pistas
importantes para o entendimento de seus estilos”. (Santiago, p.08, 2006)
Certas fórmulas podem ser reconhecidas de um solista para o outro e efetivamente posicionar o
músico dentro de categorias e gêneros da tradição jazzística(...) Absorvendo a técnica dos músicos
admirados e de maior experiência através da imitação, os solistas do jazz se conectam a uma tradição
vastamente difundida na qual um material é passado de músico para músico. É nesse sentido que as
fórmulas de um músico são um arquivo criado como uma afirmação artística, uma assinatura pessoal,
dentro de uma tradição estilística escolhida. Como resultado, os improvisadores são reconhecidos não
só pelo seu som (no sentido mais geral: fraseado, articulação, timbre, etc.), mas também pelas
fórmulas por eles tocadas.
(Santiago, p.08, 2006)
Essas fórmulas revelam características de identidade musical, ou traços individuais, que são
assim identificados por Bastos e Piedade:
No caso do jazz, as improvisações trazem à tona os diversos estilos individuais, reconhecidos pela
audiência, e que por vezes fazem referências culturalmente compartilhadas muito significativas, como,
por exemplo, no caso de paródias e citações.
(Bastos e Piedade, 2007)
Segundo Santiago, podemos classificar genericamente os modelos de improvisos em duas
categorias: “Uma visão mais generalizada poderia classificar uma improvisação como temática ou
não-temática” (Santiago, 2008, p.07). A diferença básica entre as duas referências é que o
improviso temático teria como fundamento a melodia original da música e seu desenvolvimento,
enquanto que o modelo não temático leva em consideração as relações harmônicas e formais de
uma peça, não tendo o solo improvisado uma relação direta com a melodia da música no qual se
realiza.
Boa parte das escolhas melódicas de Nivaldo Ornelas está fundamentada na realização de
142
variações a partir do tema das músicas em que sola como na sua composição Rock Novo, com isto,
o intérprete desenvolve melodicamente outras características harmônicas a partir do referencial
dado pela melodia original. Isso ocorre, por exemplo, com a utilização melódica do modo
Mixolídio, modo derivado da escala maior diatônica tendo como centro modal o seu quinto grau.
Esta ocorrência pode ser tanto compartilhada pelas práticas de rock (como visto na análise de Rock
Novo, durante o Capítulo II), como também de gêneros de música brasileira, como demonstrada na
música Baião de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, de 1946:
Exemplo musical 84: Trecho da música Baião de Luiz Gonzaga e Hunberto Teixeira.
O uso deste material melódico arpejado, como no exemplo acima, pode ser considerado
como um padrão melódico utilizado tanto no gênero musical baião, quanto na modalidade música
instrumental, e é também utilizado por Nivaldo Ornelas durante seu solo:
Exemplo musical 85: Uso de padrão melódico arpejado no modo mixolídioem improviso de Nivaldo Ornelas durante a
música Rock Novo.
Tendo em vista a proposição do desenvolvimento melódico a partir do referencial do tema, o
fragmento acima destacado pode ser compreendido como uma das utilizações de estruturas
melódicas derivadas do motivo original. Estes novos motivos, apesar de apresentarem traços de
similaridade com o motivo inicial, se comportam quase como um “novo tema”, haja vista a unidade
melódica entre as novas estruturas e sentido lógico do solo como um todo.
No exemplo abaixo pode ser observado como Nivaldo Ornelas desenvolve melodicamente
seu solo. Ao iniciar a seção sobre o acorde de F, ele utiliza como material melódico as notas do
acorde (notas presentes no motivo inicial do tema, ex. 85), e desenvolve esta idéia em dois
143
membros de frase, que chamo aqui de A e B, numa relação de pergunta e resposta (exemplos 86 e
87):
Exemplo musical 86: Melodia do tema de Rock Novo, seção A.
Exemplo musical 87: c. 115-118: trecho do solo de Ornelas sobre o acorde de F
Exemplo musical 88: c. 115 – 116: primeiro membro de frase e c. 117-118: segundo membro de frase
Na frase que se segue, agora sobre o acorde de Fm, o intérprete desenvolve o mesmo padrão
melódico sobre o novo modo, desenvolvendo melodicamente o trecho que, apesar de permanecer
contendo quatro compassos, apresenta agora três membros de frase no lugar de dois:
Exemplo musical 89: c 21 – 24: trecho da melodia de Rock Novo, seção B’.
Exemplo musical 90.c. 119 – 122: desenvolvimento melódico do trecho sobre acorde de Fm
Podendo esta frase ser subdividida da seguinte maneira:
:
Exemplo musical 91a: c.119: primeiro membro de frase
144
Exemplo musical 91b: c. 120: segundo membro de frase
Exemplo musical 91c: c. 121: terceiro membro de frase
O “novo tema” continua a ser desenvolvido na frase imediatamente posterior, sendo a nova
seção, também com 4 compassos, mas com duas frases em uma relação de pergunta e resposta
(exemplo musical 92), e o desmembramento desta (exemplo musical 93a e 93b):
Exemplo musical 92: c. 121 – 124: desenvolvimento melódico em duas frases de dois compassos
Exemplo musical 93a: c. 121 – 122: frase pregunta
Exemplo musical 93b: c. 123-124: frase resposta
Observando o desenvolvimento do primeiro fragmento melódico de cada uma das frases,
estes se comportam da seguinte maneira:
Exemplo musical 94a: c.115 – 116: primeira variação do tema
145
Exemplo musical 94 b: c.119: variação do “novo tema” com redução rítmica da melodia e modulação
Exemplo musical 94c: c.123-124: desenvolvimento da variação melódica
Esse tipo de desenvolvimento fraseológico identificado com a construção idiomática do
saxofonista Nivaldo Ornelas durante a realização do solo em sua música Rock Novo reaparece em
participações do músico frente a repertórios de outros compositores, como na gravação da canção
Cuerpo y Alma do compositor uruguaio Eduardo Mateo (1940-1990), inserida no disco Nascimento
de Milton Nascimento, lançado em 1997. Nivaldo Ornelas abre o arranjo da canção realizando a
seguinte introdução no saxofone soprano:
Exemplo musical 95: Introdução de saxofone soprano da música Cuerpo y Alma
Durante seu solo o músico desenvolve os motivos apresentados anteriormente sobre a
mesma seqüência harmônica, reordenando as notas da introdução e preservando a sua
intencionalidade melódica. A primeira frase do solo de Nivaldo Ornelas pode ser dividida em dois
membros de frase, sendo o primeiro dos membros de frase desenvolvido sobre os acordes de A/C# e
de E/B, tendo como apoios melódicos as notas dó sustenido, si, sol sustenido e mi (as mesmas
utilizadas durante a introdução):
146
Exermplo musical 96: c. 1-2: primeiro membro de frase da introdução de Cuerpo y Alma
Exemplo musical 97: c. 38-40: desenvolvimento melódico a partir do motivo da introdução durante o chorus realizado
no saxofone soprano
O segundo membro de frase identificado se desenvolve sobre os acordes de G7 e de G7/D,
tendo como notas de referência as notas fá sustenido, mi natural e lá natural, como podem ser
observadas no exemplo a seguir:
Exemplo musical 98: c. 3-5: segundo membro de frase da introdução de Cuerpo y Alma
Exemplo musical 99: Desenvolvimento melódico do segundo membro de frase da introdução durante solo de Ornelas.
O desenvolvimento melódico do solo de Nivaldo Ornelas apresenta, em aluns momentos,
recorrências de motivos desenvolvidos pelo próprio intérprete, aplicando novos materiais melódicos
e rítmicos ao material melódico inicial. Nos exemplos que se seguem podem ser observados o uso
de fragmentos melódicos baseados em intervalos de quarta sobre trecho da introdução da música
Cuerpo y Alma:
147
Exemplo musical 100: Intervalos de quarta entre as notas Mi e Si no primeiro membro de frase do solo de Cuerpo y
Alma
Exemplo musical 101: Intervalo de quartas entre as notas sol e ré com desenvolvimento melódico no segundo membro
de frase do solo de Cuerpo y Alma
Por vezes fragmentos de solos distintos, como os anteriormente citados, tendem a revelar
usos similares de construções melódicas, como no exemplo abaixo, extraído da transcrição de Rock
Novo, onde Nivaldo Ornelas desenvolve melodicamente o trecho assinalado por meio de padrões
arpejados:
Exemplo musical 102: Trecho arpejado no solo de Rock Novo (1990)
Exemplo musical 103: Trecho arpejado no solo de Cuerpo y Alma (1997)
Exemplo musical 104: 2º trecho com arpejos no desfecho do solo de Cuerpo y Alma.
Esse tipo de inteligência melódica pode ser considerada uma marca do músico quando ele
utiliza as duas organizações melódicas básicas, escalas e arpejos, como ferramentas fundamentais
para a construção seu discurso musical. Estes usos reforçam inclusive os encadeamentos
148
harmônicos de modo a conduzir melodicamente a harmonia da música, ainda em outros solos,
padrões semelhantes aos de arpejos também aparecem, como em From The Lonely Afternoons de
Milton Nascimento gravada por Toninho Horta em seu disco Diamond Land de 1986, onde aparece
um padrão envolvendo as notas mi, lá e si:
Exemplo musical 105: Uso de padrão rítmico-melódico em improviso de Nivaldo Ornelas na música From the Lonely
Afternoons.
Tendo centralmente em seus solos a característica das variações melódicas, sob este aspecto
outras participações do saxofonista também podem ser consideradas, como na gravação de Ponta de
Areia de Milton Nascimento presente no disco Minas de 1975. Neste solo o músico utiliza
basicamente notas da escala pentatônica de Si bemol maior, se transposto para o saxofone soprano,
o tom seria o de Lá menor, ou seja, contendo somente notas naturais. Estas notas da pentatônica de
Si Bemol Maior são também utilizadas por Milton Nascimento na melodia do tema e as escolhas de
Ornelas para os dois chorus que realiza residem, mais uma vez, na variação temática da linha
melódica da composição, utilizando muitas vezes as mesmas notas da melodia original, porém,
dando outra intenção à melodia, dialogando com outras possibilidades métricas e estendendo sua
tessitura, como mostram os exemplos a seguir:
Exemplo musical 106: Melodia cifrada de Ponta de Areia de Milton Nascimento
Exemplo musical 107: Identificação de notas repetidas da melodia de Ponta de Areia (sistema superior) no solo de
saxofone soprano (sistema inferior) durante o 1º chorus do improviso de Nivaldo Ornelas.
Excepcionalmente às notas da escala pentatônica de Si bemol maior, aparecem no solo do
149
saxofonista o uso da nota lá natural, sétima maior da escala diatônica de Si Bemol Maior, utilizado
primeiramente no quinto compasso de seu solo sobre os acordes de Cm7 e F4sus7, resultando nos
intervalos de sexta maio (ou décima terceira maior) e terça maior, (ou décima maior), destes,
respectivamente:
Exemplo musical 108: Nota lá natural na escala diatônica de Si bemol maior durante solo de Nivaldo Ornelas em Ponta
de Areia.
Logo após esta passagem, já no compasso de número sete, o saxofonista volta a utilizar a
nota lá natural, agora sobre o acorde de tônica Bb9, resultando justamente na sétima maior do
acorde, lembrando que esta cifra não prevê a sétima maior como tensão do acorde, mas uma nona
maior adicionada à tríade maior perfeita:
Exemplo musical 109: Nota lá natural sobre o acorde de Bb9, sétima maior do acorde em passagem do solo de Nivaldo
Ornelas em Ponta de Areia.
Na última frase do seu solo, já no segundo chorus, Nivaldo Ornelas lança mão da nota mi
bemol, a nota que restava para completar a escala diatônica de Si bemol maior, sobre o acorde de
Cm7, resultado numa escala de dó dórico, mesmo tendo uma intenção tonal no solo como um todo.
O improviso termina com outras aparições da sétima maior de Bb9:
Exemplo musical 110: Última frase do solo de Nivaldo Ornelas em Ponta de Areia com o uso de outras notas que não
da escala pentatônica de Si bemol.
Os usos melódicos que Nivaldo Ornelas lança mão no solo anteriormente exposto denotam
que o músico se restringiu inicialmente às notas da escala pentatônica de Si Bemol Maior, já
150
utilizadas no tema de Milton Nascimento, acrescidas de seus IV e VII graus, acréscimos que
poderiam ser entendidos como pertencentes à escala diatônica de Si Bemol Maior, mas que nesse
contexto, o da harmonia modal, são entendidas melodicamente como apojaturas, notas de passagem
cujos usos devem ser percebidos frente à ambiência da harmonia modal, sendo apontada, nessa
música, a escala de Si Bemol Jônico. Mesmo estando restrito ao uso dessas sete notas, o solo
construído por Ornelas é extremamente inventivo, isto pelo fato do músico recorrer a estruturas
melódicas que funcionam, mais uma vez, como variações do tema, imprimindo uma forte relação
simbiótica aplicada à música como um todo.
Seguindo esse tipo de afirmativa, agora em solo da música Bons Amigos de Toninho Horta e
Ronaldo Bastos presente no disco homônimo do guitarrista lançado em 1980, Ornelas demonstra
mais uma vez a sua intenção frente aos chorus improvisados, como exposto em entrevista realizada
em maio de 2009 (informação verbal):
Bernardo – É porque justamente a impressão que me dá, se eu fosse avaliar o tipo de padrão
melódico que você usa são escalas e arpejos.
Nivaldo – É.
Bernardo – Tô muito enganado, não?
Nivaldo – Eu sempre procurei melodia, nunca procurei escala nem arpejo. Eu procurei...
Bernardo – Digo o uso de fragmentos disso, claro.
Nivaldo – É, pode ser. Mas eu procurei o seguinte: Fazer uma melodia dentro de uma outra melodia,
nem sempre é possível, às vezes fica muito ruim, mas a minha ideia era essa.
Referente à canção Bons Amigos, Nivaldo Ornelas expõe mais uma vez esse tipo de
manipulação de estruturas rítmico-melódicas, preservando algumas notas do tema além do seu
contorno melódico:
Exemplo musical 111: Primeira frase de Bons Amigos de Toninho Horta e Ronaldo Bastos
Exemplo musical 112: c. 1-4 do improviso de Nivaldo Ornelas em Bons Amigos, note-se o uso de notas do tema no solo
além da preservação do contorno melódico.
151
Diferentemente da maioria das outras composições gravadas por Nivaldo Ornelas presentes
neste estudo, Bons Amigos apresenta um tipo de encadeamento muito comum ao jazz e também à
bossa nova que são os movimentos cadenciais na seqüência II-V-I. Alguns músicos de jazz têm por
rotina o estudo de padrões melódicos retirados de solos de cânones do gênero e que com seu uso
freqüente passam a fazer parte do vocabulário do músico que se dedica a este tipo de prática. Estas
frases, estudadas sobre passagens harmônicas como as citadas, são conhecidas pelo termo inglês
patterns (padrões). Se por um lado o uso de frases prontas facilita a construção de um solo, pelo
fato de estarem “debaixo do dedo”, por outro, estes improvisos podem soar como colagens de
citações de outros músicos ou mesmo pastiches dos originais. No caso de Ornelas estes usos não
são reconhecíveis, pelo contrário, o modo como o músico improvisa vai muito na contramão desse
tipo de prática, como afirma o pianista Túlio Mourão em entrevista ao jornal Estado de Minas de 18
de fevereiro de 2005: “Depois da Berklee School of Music, de Boston, que criou modismos e clichês
que acabaram por se mostrar pobres, é importante que pessoas como Nivaldo nos mostrem novos
caminhos na música instrumental”
Apesar da nítida opção de Ornelas por escolhas menos calcadas em padrões e clichés, é
possível lançarmos mão de uma prospecção no sentido de identificarmos os usos melódicos
realizados pelo saxofonista na música Bons Amigos e a efetiva comprovação que as escolhas do
músico estão alinhavadas justamente no sentido da originalidade e distinção.
No exemplo a seguir, o movimento cadencial está no campo harmônico de Si Maior, sendo
os acordes de C#m7(9) o segundo grau e o de F#7(13) o quinto grau da tonalidade. Como padrão
melódico utilizado, este está muito mais relacionado com a melodia do tema original, e mesmo se
observarmos as notas utilizadas, limitam-se às notas da escala diatônica do centro tonal de Si Maior.
Exemplo musical 113: Frase de Nivaldo Ornelas em II-V-I presente no solo de Bons Amigos
Imediatamente após a realização da frase citada, a harmonia da música segue em mais um
152
movimento de II-V-I, desta vez tendo como centro tonal o campo harmônico de Lá Maior, onde o
acorde de Bm7(9) é o seu segundo grau; E7(4)(9) e E7(9) são o quinto grau, note-se que, a
diferença entre os acordes é que no primeiro houve a substituição da terça maior, nota sol sustenido,
pela quarta justa, nota lá natural, que caminha cromaticamente para a sua terça maior; e por fim
A7M(9), que é seu primeiro grau.
Exemplo musical 114: Frase sobre movimento cadencial de II-V-I durante solo de Ornelas em Bons Amigos.
Nesse caso há sim o uso de um padrão rítmico-melódico realizado por Onelas que caminha
em intervalos de terça menor, da nota ré ao sol sustenido. Mesmo dentro deste padrão, as notas
utilizadas são todas pertencentes à escala diatônica de Lá Maior, e o padrão rítmico utilizado, prima
pelo uso da síncope. Apesar do claro uso deste padrão, uma espécie de marcha melódica presente
em sua performance, não podemos afirmar que se trata de um padrão advindo do repertório de
frases de algum outro saxofonista ou mesmo de um outro músico do jazz ou da música brasileira.
Neste caso podemos dizer que o músico lança mão de seus próprios padrões, sem relacioná-los a
clichês, mas certamente são reflexos da prática instrumental do músico, do quê e como estuda além
de ser possível vislumbrar o modo como pensa e resolve musicalmente esse tipo de situação. Em
trecho de entrevista concedida em maio de 2009, Nivaldo Ornelas fala como foi o seu processo de
estudo direcionado para a improvisação e, mais especificamente, voltado para o jazz, citando o livro
de patterns de Oliver Nelson:
Bernardo – Justamente. Analisando alguns dos seus solos eu não cheguei exatamente a uma
definição, a uma referência desse tipo de pattern.
Nivaldo – Mas eu fiz isso, mas aquilo ali não era o objetivo.
Bernardo – A tá, entendi.
Nivaldo – Aquilo era en passand.
Bernardo – É pra entender o mecanismo.
Nivaldo – O livro você pega a página e virou a página, se tiver tirado já tirou, não é com o objetivo de
tirar aquilo não, eu quero entender, eu quero tirar coisas que vão me dar mais coisas, mas eu procurei
sempre fugir disso, não sei se passou no meu som, eu sempre procurei...um negócio aqui no Rio,
gostei de muita coisa, mas os caras aqui também, por outro lado, nessa época, tinha muito de blue
note, de pentatônica, aquele negócio de (pega a flauta e fraseia sobre pentatônicas com blue note) isso
aqui, isso na verdade vem lá de trás, vem do Ravel, vem do Gershwin e vem da música negra dos
plantadores de algodões que deu no jazz, que é isso né? (toca mais um pouco a flauta e cita o tema
Moanin' de Art Blakey), então, eu fugia disso que nem o capeta da cruz, como dizem. Eu não queria
153
isso, como não quero, eu achava que isso aí, isso é deles, o músico americano negro que faz isso, isso
é deles, da identidade deles, do jazz americano, mas o jazz como conceito de liberdade de expressão
artística envolve não só a música abrange não só a música. A pintura, as artes plásticas a literatura,
tudo. Isso é da humanidade toda, e a minha ideia era essa e não essa desse som, por isso que eu fugi
disso, então eu fugia do pattern da Berklee. Não, isso eu não quero não.
A partir de uma breve observação do método citado, podemos perceber que Nelson
apresenta estudos técnicos que envolvem, sobremaneira, a mecânica do saxofone através de
exercício baseados em fragmentos melódicos que são repetidos cromaticamente, sejam ascendentes
ou descendentes, abrangendo toda a extensão do saxofone55. Nesse sentido, o estudo não apresenta
os recortes de solos de improvisadores consagrados, tampouco a cifra no qual o referido padrão
deve ser tocado. Ornelas ao citar o método diz que ele mesmo, de maneira ainda rudimentar,
harmonizou os estudos e gravou, com o auxílio de um gravador de rolo, um violão e um
metrônomo, exercício por exercício produzindo uma espécie de play-along, ou seja, um
acompanhamento no qual pudesse praticar estes exercícios.
Sugerimos aqui um estudo semelhante ao de Nelson através do padrão identificado em Bons
Amigos e destacado do exemplo anterior. A organização melódica do exercício poderia se dar da
seguinte maneira:
Exemplo musical 115: Simulação de exercício baseado no método Imoprovisation for Saxophone a partir de padrão
melódico de Nivaldo Ornelas.
Diferentemente da maioria dos métodos de padrões melódicos da atualidade, o método
Improvisation for Saxophone de Oliver Nelson não indica sobre qual ou quais acordes as estruturas
melódicas indicadas devam ser utilizadas. Isso abre caminho para o julgamento do intérprete quanto
ao uso que este dará em relação aos padrões melódicos sugeridos, e caminha ao encontro da ideia
55
Ou quase toda, já que, a época em que o método foi escrito, a maioria dos saxofones tinha uma extensão que ia até a
nota Fá natural, no tom transpositor, para os saxofones em Bb seria a nota Mi Bemol e para os saxofones em Eb a
nota seria um Lá Bemol, tons concerto.
154
que Ornelas tem deste tipo de estudo (informação verbal): “O livro você pega a página e virou a
página, se tiver tirado já tirou, não é com o objetivo de tirar aquilo não, eu quero entender, eu quero
tirar coisas que vão me dar mais coisas”, ou seja, o método funciona como uma fonte de inspiração
e aprofundamento de recursos e possibilidades técnicas, principalmente mecânicas do instrumento,
apresentando novas referências para a geração de novas realizações criadas pelo intérprete.
Dentro das estratégias de estudo em improvisação, Ornelas desenvolveu, paralelamente ao
estudo dos padrões melódicos de Nelson, outro playalong com músicas de John Coltrane, extraídas
do disco Giant Steps do músico estadunidense. Nesse disco, gravado em 1959, Coltrane
apresentava, pela primeira vez, somente composições autorais já apontando para uma realização no
chamado jazz modal, além de indícios de extrapolação da tonalidade, como na música título do
álbum, composição baseada em um encadeamento no qual três tonalidades se alternam como
centros tonais, sem haver uma inclinação clara para nenhuma delas. Músicas incluídas nesta mesma
compilação como, Mr. PC, Naima e Countdown acabaram se tornando Standards do gênero
(informação verbal):
Nivaldo – Voltei pra estudar inclusive, fiquei um ano estudando, mesmo. Aí que eu peguei o que eu
sabia de violão, peguei aquele disco o Giant Steps, tirei ele todo, viu? Tudo, todas as harmonias, e...
Bernardo – E mergulhou ali.
Nivaldo – Mergulhei, fiz um playback com metrônomo e violão e comecei a estudar aquilo, que eu
tinha lido uma reportagem que o Coltrane pra tocar aquele trabalho ele estudou um ano, já ouviu falar
sobre isso?
Bernardo – Umhum
Nivaldo – Tinha um gravador AKAI. Chegou um jornalista na casa dele ele tava praticando. Se ele fez
isso eu tinha que praticar 2, 3, porra. E assim eu fiz e quando eu cheguei no Rio da outra vez, 73, aí
eu já tava tocando diferente.
Bernardo – Você ficou um ano em Belo Horizonte.
Nivaldo – É. Do meio de 72 ao meio de 73, aí eu voltei tocando diferente mesmo, assim e tal, e o
pessoal sentiu, mas mesmo assim o pessoal tava aqui e eu tava aqui, muita diferença. A gente lá acha
que lá é o mundo, mas não é, sabe como é que é? Foi um cara do Maranhão me entrevistar uma vez e
falou: Rádio Difusora do Maranhão falando pra o mundo. Na cabeça dele, o mundo tá ouvindo ele,
né? Então é nesse conceito. Aí eu encontrei com o Hermeto num Festival da Canção, num festival
qualquer, aí ele falou: Tá de pé a nossa
proposta? Tô fazendo a minha banda, vâmo nessa pra São
Paulo? Falei: Vão bora. Eu era recém casado, não tinha filho, morava em apartamento alugado, assim,
já com móveis, e eu não tinha nada, só tinha uma televisãozinha pus debaixo do braço e fui pra São
Paulo.
Ornelas diz ter se dedicado durante praticamente um ano inteiro ao estudo dessas harmonias
e da maneira de tocar de Coltrane, portanto, seria de se esperar que muito da música do saxofonista
estadunidense estivesse presente na performance do músico mineiro. Essa dedicação à música de
Coltrane também é revelada nos vários tributos que presta ao músico, shows que pontuam a carreira
155
de Ornelas, como em apresentações realizadas durante o ano de 2010 juntamente com o pianista
Kiko Continentino (1969-); o contrabaixista Sérgio Barrozo (1942-) e o baterista Paulo Braga,
músico que começou a tocar com Ornelas ainda no Berimbau Clube no Edifício Maletta em Belo
Horizonte durante os anos 1960. Em um dos shows do quarteto, gravado em vídeo e disponibilizado
pela internet, Ornelas toca o blues Mr. Day, composição de John Coltrane, gravada originalmente
em 1960 e presente no disco Coltrane Plays the Blues de 1962.
Mr. Day é um blues de 12 compassos em F#, centro modal pouco usual no jazz56 e que
demonstra o caráter de estudo que a composição incita. A tonalidade é preservada por Ornelas, bem
como o arranjo da música, gravada também na formação de quarteto por Coltrane, com McCoy
Tyner (1938-); no piano; Steve Davis no contrabaixo e Elvin Jones (1927-2004) na bateria. O
andamento encontrado na gravação original fica em torno de 225 bpm tendo a semínima como
unidade de tempo, em um compasso quaternário simples. A versão de Ornelas, por ser uma versão
ao vivo, tem uma regularidade métrica mais elástica do que a versão em estúdio realizada por
Coltrane, apresentando uma leve oscilação entre 215 e 220 bpm, muito próximo de sua versão
original. O saxofonista mineiro também procura preservar o arranjo original da música que inicia
com uma condução de baixo, numa espécie de ostinato, mas que se diferencia da gravação do
saxofonista americano em relação à entrada dos outros instrumentos. Enquanto que na versão de
Coltrane a introdução se resume a dois chorus da música, sendo o primeiro somente com o baixo e
o segundo de baixo e bateria; na versão do quarteto de Ornelas a introdução se estende por quatro
chorus, o primeiro somente com o baixo, o segundo com o piano dobrando a linha de baixo e o
terceiro e quarto com a bateria, o piano tocando a harmonia da música e o baixo realizando o
ostinato inicial.
O fato de Ornelas não gravar standards de jazz em seus discos de carreira e tampouco temas
de Coltrane indica que o músico reserva esse tipo de realização a apresentações ao vivo, associando
a sua produção fonográfica às realizações autorais, mesmo quando atua como músico participante
56
O blues é uma estrutura harmônica modal baseada em acordes maiores com sétima menor, podendo conter 8, 12 ou
16 compassos.
156
de trabalhos de terceiros onde a sua assinatura como instrumentista sobressai em função de um
mero tecnicismo musical. Paralelamente às realizações em discos, os shows que Ornelas realiza
apontam para um uso mais próximo de matrizes jazzísticas, como neste exemplo de Mr. Day, onde
o saxofonista demonstra a sua intimidade com o repertório e a linguagem do jazz, portanto, a
comparação entre as interpretações de Ornelas e Coltrane para a mesma música torna-se o elo entre
aquilo que o músico mineiro estudou e o que por ele é realizado nesse tipo de repertório.
Nos exemplos a seguir, podemos observar o primeiro chorus de cada saxofonista para cada
uma das versões descritas no parágrafo anterior, sendo que Coltrane a gravou no saxofone tenor,
enquanto que Ornelas escolheu o soprano para esta performance.
Exemplo musical 116: Primeiro chorus do improviso de John Coltrane para Mr. Day, gravação de 1960: Note-se que o
músico começa a improvisar antes mesmo do fim do chorus do tema.
Exemplo musical 117: Primeiro chorus do improviso de Nivaldo Ornelas para Mr. Day, gravação realizada ao vivo em
2010.
É curioso observarmos que o material melódico utilizado em ambos os casos é muito
semelhante, onde há a preferência pelo uso das swing eights (colcheias suingadas) como realização
da rítmica do jazz (mesmo que apareçam pontualmente usos de colcheias equivalentes “straight”),
as ghost notes, que casualmente aparecem em intervalos de terças ascendentes, além do uso
157
melódico de escalas mixolídias sobre os acordes X7; além das tensões harmônicas de sexta
(décima-terceira) menor em ambos os solos.
Exemplo musical 118: Ghost Notes em terças menores ascendentes na realização de John Coltrane.
Exemplo musical 119: Uso de ghost notes em terças menores ascendentes durante solo de Nivaldo Ornelas
Exemplo musical 120: Escala de fá sustenido mixolídio ascendente iniciada na nota lá sustenido em solo de John
Coltrane.
Exemplo musical 121: Escala de fá sustenido mixolídio descendente iniciada na nota dó sustenido em solo de Nivaldo
Ornelas.
Exemplo musical 122: Sextas (décimas terceiras) menores em solo de John Coltrane.
Exemplo musical 123: c. 11, sexta menor, nota ré natural, sobre o acorde de F#7 durante improviso de Ornelas.
Apesar de haver um grande número de semelhanças nos dois solos, os estilos interpretativos
de ambos são bastante distintos, e Ornelas, apesar de utilizar materiais musicais similares à Coltrane
durante seu improviso, emprega escolhas interpretativas calcadas em sua personalidade musical, a
158
começar pela escolha do saxofone, o soprano no lugar do tenor, tocado por Coltrane, ou mesmo nos
tipos de padrões melódicos utilizados, talvez muito mais pertinentes se comparados ao método de
improvisação de Oliver Nelson, como nos exemplos abaixo selecionados, do que na coleção
particular de frases de John Coltrane.
Exemplo musical 124: Padrão rítmico melódico utilizado por Ornelas no início de seu solo.
Exemplo musical 125: Outro padrão aplicado no solo de Ornelas na realização de Mr. Day.
Mais do que perceber usos similares de materiais musicais, até mesmo porque é difícil
estabelecermos uma genealogia nos usos desses recursos, como na aplicação de ghost notes em
arpejos, que apesar de coincidentes nos chorus de ambos os saxofonistas, também são amplamente
encontrados em várias interpretações de saxofonistas do jazz de diferentes épocas e estilos, ou
mesmo no uso da escala mixolídia sobre um acorde dominante, já que esta é a escolha imediata para
a aplicação de uma estrutura escalar sobre esse tipo de acorde. Outros indícios inerpretativos, muito
mais sutis e que aparecem em ambas as realizações, são propositivos de uma estética do jazz
moderno, como a quase ausência de blue notes nas realizações de ambos, o pouco uso de vibratos,
que aparecem mais em Coltrane do que em Ornelas, além de estruturas frasais longas e envoltas em
certo lirismo interpretativo.
As escolhas identificadas no solo realizado pelo músico mineiro certamente poderiam fazer
parte de outras decisões interpretativas do saxofonista aplicadas a outros repertórios e até mesmo
em suas músicas autorais, logo, o fato de não encontrarmos alusões “Coltranianas” declaradas na
realização musical de Ornelas não se apresenta aqui como um problema, já que o posicionamento
do músico se dá no sentido de estabelecer uma produção musical direcionada a características
159
estéticas individuais, tendo na música de Coltrane, e no jazz moderno como um todo, um ideário
alusivo de intenções e características a serem utilizadas e ordenadas a sua maneira (informação
verbal):
Bernardo – E quando você vai tocar com outros músicos? Você tenta se adaptar à linguagem daquele
músico, ou você tentar levar isso que você tem?
Nivaldo – Não, eu procuro me adaptar. Quando é em termos de improvisação não, porque
improvisação é livre, você faz o que você acha que, né? Eu tenho muita dificuldade, as vezes, porque
o cara as vezes quer uma coisa explosiva e eu não quero, aí a gente tem que chegar a um consenso, é
ou não é?
Bernardo – Porque eu já vi você tocando Coltrane e sei que você é um músico do jazz.
Nivaldo – Sou do jazz, completamente.
Bernardo – E o seu trabalho instrumental não lembra o Coltrane.
Nivaldo – Mas nem eu quero que lembre, isso seria uma loucura.
Bernardo – E a participação sua mesmo com improviso e solos em outros discos, e eu também não
vejo o Coltrane lá.
Nivaldo – Na verdade, alguém me falou uma coisa uma vez, quem é que tava falando? Que aqui no
Rio o gente, agora também não faz, mas a gente sentava muito pra conversar sobre música e não fazer
música, eu acho muito...tem hora que vale mais a pena do que tocar. E nós fizemos muito isso aqui, a
minha turma. Conversar as coisas: Pois é esse estilo, esse jeito, isso, aquilo, harmonia, pá, pá. E tava
falando das pessoas que tiram solos dos discos, que imita a gente tava na época de quem? Periquito
que tava falando do Michael Brecker...Aí eu falei o seguinte: Eu acho que ele tem que fazer isso que
ele ta fazendo, esse é o momento dele. Eu fiz isso com o Coltrane a vida inteira, se não tiver de ficar
não fica, se tiver de ficar, fica. Vai depender da personalidade de cada um, do universo interior do
sujeito. Mais do que eu batalhei o Coltrane era pra eu ser um Coltrane absoluto, e eu não sou. Como
eu gostaria de, até falei. Mas, pô, tá pensando o quê? Ta pensando que é assim? E falei: Se o Periquito
tiver o universo dele uma hora ele solta, desprende da nave mãe.
Bernardo – Então você passou por isso de alguma maneira.
Nivaldo – Mas muito, eu queria ser um Coltranezinho, porra! Zinho não, zão. Fiz isso a exaustão, ele
e outros músicos, houve uma época do Wayne Shorter, enfim, tive isso sim, tirei solos e tirei solos e
solos, tinha uma certa facilidade. Eu tirava primeiro cantando e depois tocando, porque cantando não
existe reservas, você já pensou nisso? Porque pra você cantar, você canta qualquer música, no
instrumento tem que pegar o tom, opa, aqui ta alto, ta baixo, você já tem uma dificuldade, cantando
não tem dificuldade, então eu tirava assobiando às vezes, tirei solos e solos, milhões de solos e
colocava no jeito de tocar, mas, aos poucos eu fui separando disso.
Não é uma loucura? Então, é
isso.
A prática do solfejo e o tirar de ouvido tendo como o veículo inicial para essas realizações a
própria voz, traz a tona, novamente, a marca dos processos de estudo musical e improvisação que
permearam o início da prática de Ornelas. Outras realizações do músico como improvisador
revelam, aparentemente, uma menor relação entre a improvisação e o tema da música, como no
caso de Vôo dos Urubus, composição do guitarrista Toninho Horta, gravada em disco homônimo do
músico de 1980. O caráter de novo tema implícito na maneira de improvisar do músico continua
presente e afirma a postura de: Fazer uma melodia dentro de uma outra melodia, o que pode
decorrer numa melodia contrastante à melodia principal do trecho.
Aqui, Horta compôs uma melodia cromática em compasso ternário simples em grupos de
160
quiálteras de 4 notas, ou seja, 4 tempos contra 3, um tipo de divisão bastante característica das
composições do guitarrista mineiro:
Exemplo musical 126: Seção A da música Vôo dos Urubus de Toninho Horta
Nivaldo Ornelas realiza seu solo sobre esta estrutura harmônica, e em contraposição ao
caráter agitado e dinâmico do tema, o saxofonista parece querer valorizar em seu solo um contorno
melódico mais contundente destacando o uso de notas longas em uma região aguda e superaguda
do saxofone tenor, explicitando determinados “coloridos” harmônicos:
Exemplo musical 127: Seção inicial do improviso de Nivaldo Ornelas sobre Vôo dos Urubus, note-se o uso de notas
longas e a preocupação na construção melódica como numa variação.
Ao observarmos os intervalos utilizados pelo músico em seu improviso, podemos notar
neste caso uma valorização das extensões harmônicas prescritas na cifra de Vôo dos Urubus, mas
com uma condução melódica que enfatiza o uso de intervalos em graus conjuntos, de modo a tornar
o emprego dessas extensões mais natural, conduzidas pela lógica escalar. A impressão é de que
161
Ornelas está solfejando as notas de seu solo, muito mais do que um cacoete técnico do instrumento,
nesse caso, o saxofone não “toca por si”, aqui o idiomatismo reside na escolha do timbre, da região
extremo aguda do saxofone tenor e em seus recursos interpretativos, tais como pitch bends e
agógica. Esse tipo de abordagem talvez seja oriunda das práticas musicais que desenvolveu em seu
início de carreira, como a sólida formação em teoria e solfejo que obteve ao ter frequentado a
Escola de Formação Musical em Belo Horizonte, ou mesmo na maneira com a qual começou a
praticar a improvisação com seus pares nos tempos do Berimbau Clube, como revela trecho de
conversa com o músico em 17 de abril de 2009 (informação verbal):
...Depois, esse Waltinho, o baterista que mora aqui no Rio, esse cara é um gênio, ele juntava os
músicos e falava: eu vou ensinar vocês a improvisar, vocês estão improvisando errado, não é assim
que faz não, vou ensinar. Botava o Bituca no meio, tocando violão, Bituca não improvisava, não
gostava, não sei. Pegava uma música qualquer e fazia a harmonia, e cada um fazia um chorus,
improvisando de boca, lálálá, cantando de qualquer jeito, o Waltinho fazia duzentos chorus, ele saía
cantando e a gente ficava assim, mas como é que é isso cara? Nessa brincadeira ensinou a gente como
improvisar ouvindo. Falou: Ó, ta vendo a harmonia como é, ó, pá, pá, pá. Então era uma aula, chegava
a noite no Berimbau nêgo...pé.
Em outro solo, desta vez com Hermeto Pascoal na música Forró em Santo André, gravado
em 1979 em show realizado durante o Festival de Montreaux, na Suíça, como integrante da banda
do músico alagoano, o saxofonista trabalha seu solo, claramente, em contraposição ao tema de
Forró em Santo André bem como ao solo do saxofonista Cacau (Carlos de Queiroz), solo este que
precede a improvisação de Ornelas, no qual o baritonista toca com extremo virtuosismo e verve. As
seções de improviso ocorrem sobre três acordes, Eb7M, Dm7 e Cm7, diferentemente do tema da
música que tem uma harmonia muito mais movida e variada. Ao entrar em seu solo, Nivaldo
Ornelas busca contrastar o seu improviso tanto em relação ao chorus realizado por Cacau quanto
com o tema da música, reforçando o uso de notas longas na região aguda do saxofone tenor e das
extensões harmônicas de Cm7, notas ré natural (nona), fá natural (décima primeira), lá natural
(décima terceira); além da nota sol natural, quinta justa do citado acorde.
Exemplo musical 128: Frase inicial do improviso de Nivaldo Ornelas em Forró em Santo André.
162
No desenrolar do improviso o saxofonista desenvolve ritmicamente as notas da melodia
inicial, construindo um discurso musical que através de repetições e variações cria um forte elo de
coerência entre essas frases musicais. No exemplo a seguir, podem ser notados o reordenamento,
tanto na disposição em que essas notas aparecem, quanto em relação à duração de cada uma delas,
sendo utilizadas as notas lá natural, fá natural, sol natural e ré natural, com a adição da nota si
bemol após a nota sol, resultando na sétima menor de Cm7.
Exemplo musical 129: Desenvolvimento melódico da primeira frase apresentada em solo sobre a música Forró em
Santo André.
Ornelas continua repetindo as tensões que valorizara no início de seu solo, empreendendo
nova divisão, dessa vez de quiálteras de semínimas, em oposição às notas de maior valor dos
compassos anteriores.
Exemplo musical 130: Desenvolvimento rítmico-melódico em quiálteras durante solo de Forró em Santo André.
Na frase seguinte, o intérprete ressalta a nota dó natural, fundamental de Cm7, acorde que polariza a
seção compreendida pelos acordes Eb7M, Dm7 e Cm7, além de contrastar e reduzir ritmicamente as
durações das notas na frase, passando de quiálteras de semínima para uma organização basicamente
em grupos de colcheias, como vemos no recorte do primeiro membro de frase do período:
Exemplo musical 131: c. 34-35: Nova organização melódica com ênfase na nota dó e uma organização de pergunta e
resposta em trecho de solo na música Forró em Santo André.
Continuando esse novo período, o intérprete responde à “pergunta” do primeiro membro de
frase e em sua resposta ao invés de realizar uma construção A-B, como seria de se supor, Ornelas
163
mistura as informações da nova frase à idéia musical em quiálteras exposta anteriormente,
repetindo-a quase que literalmente, excedendo o seu quarto compasso, durante a emissão da nota fá
natural, dessa vez sem a subdivisão inicialmente apresentada, porém, introduzindo novas estruturas
melódicas como a de sextina e a escala descendente em fusas.
Exemplo musical 132: c. 38-46, frase com aplicação de novas estruturas melódicas em chorus do saxofonista sobre
Forró em Santo André.
Mais a frente dentro do mesmo solo, o intérprete busca manipular não somente as tensões
harmônicas e a rítmica no desenvolvimento melódico de seu discurso musical, mas também procura
expandir a extensão utilizada por ele alcançando a região superaguda do saxofone tenor, região que
extrapola o limite de tessitura natural do instrumento. Nessa região de harmônicos superiores,
conhecido também pelo seu termo inglês overtones, as digitações já não obedecem a lógica das suas
duas oitavas mais graves. Afonso Cláudio Segundo de Figueiredo expõe as características dessa
técnica em sua tese de doutorado Improvisação no Saxofone: a prática da improvisação melódica
na Música Instrumental do Rio de Janeiro a partir de meados do século XX, (FIGUEIREDO, 2005,
p. 140): A tessitura do saxofone tem o limite de duas oitavas e uma quinta, indo de Bb1 a F3.
Qualquer nota mais aguda que F3 só poderá ser emitida como um overtone, ou seja, como um
harmônico de outra nota natural do instrumento.
Cabe pontuar que nos métodos de orquestração mais utilizados e que indicam as
características do saxofone, como no Tratise on Instrumentation de Hector Berlioz (1803-1869),
publicado originalmente em 1843 e mais tarde revisado e extendido por Richard Strauss (18641949), quando figura a tessitura para saxofone esta aparece, para altos, tenores e barítonos57 , muito
próxima àquela indicada por Figueiredo, diferindo apenas em seu limite mais grave, escrito a partir
57
A família dos saxofnes, representada nesse tratado, indicava a extensão de seis de seus instrumentos: sopranino
(high), soprano, alto, tenor, barítono e baixo, excedendo o registro do saxofone contra-baixo pelo fato de que à
época o projeto para a cosntrução do sétimo instrumento da família ainda não havia saído do papel. Quanto às
tessituras dos saxofones sopranino, soprano e baixo, estas diferiam das do alto, tenor e barítono, constando dos
registros de B1 a D3 para soproninos e soprano e B1 a Eb3 para o saxofone baixo.
164
do B1 e não do Bb1, nota que seria incluída postriormente ao tratado do compositor francês. Essa
extensão é aceita apesar de nos instrumentos fabricados a partir dos anos 1970 já estarem incluídas
as chaves do F#3, e mais recentemente, algumas fábricas também icluem em alguns de seus
modelos recursos para o G3, ou seja, o limite de F3 se configura como (FIGUEIREDO, 2005, P.
140): o padrão mínimo estabelecido, lembrando que estas são notas de efeito, que soarão, no caso
dos saxofones transpostos em si bemol, de Ab1 a Eb 3, e nos instrumentos em mi bemol, a tessitura
será de Db1 a Ab3.
Figueiredo também revela que o uso dessa técnica foi difundido principalmente a partir dos
anos 1970 e 1980 por músicos de jazz como David Sanborn (1945-), Ernie Watts (1945-), Michael
Brecker e Jan Garbarek (1947-); já no Brasil (FIGUEIREDO, 2005, p.140): (...) Nivaldo Ornellas e
Mauro Senise utilizavam os overtones como uma parte importante do seu vocabulário desde o final
dos anos setenta, adicionando praticamente uma oitava extra à tessitura do saxofone. Embora,
como ateste Figueiredo, a difusão do uso de overtones tenha sido realizada em grande escala por
músicos dedicados à música popular a partir dos setenta, o uso desse recurso técnico foi
pioneiramente utilizado por Sigurd Ràscher pelo menos quatro décadas antes dos músicos
anteriormente citados. A região superaguda do instrumento já era explorada por intérpretes e
compositores de música erudita, tal qual o saxofonista alemão, fato percebido tanto através de peças
do gênero, como o Concerto para Saxofone e Orquestra do compositor sueco Lars Erik Larsson
(1908-1986), composta em 1932, peça dedicada a Ràscher e que prevê a utilização de uma extensão
de mais de quatro oitavas do saxofone alto, indo de Bb1 a E#4 (pela tonalidade transposta), como
pelo método escrito pelo músico intitulado Top-Tones for the Saxophone, editado em 1941 e
amplamente utilizado tanto no meio da música de concerto quanto por saxofonistas de música
popular.
Nesse método, Ràscher propõe estudos simulando um “saxofone natural”, como num tubo
único no qual são indicados exercícios para se isolar os harmônicos superiores realizados a partir
das notas mais graves do saxofone, indo de Bb1 a D1. Essa atividade prevê fundamentalmente que
165
o praticante desenvolva intimidade com as notas para além da extensão natural através de sua
emissão tendo como único parâmetro o domínio da coluna de ar projetada para dentro do tubo.
Contudo, para se realizar as notas da região superaguda são necessárias também digitações próprias
e que variam para cada conjunto (combinação) de saxofone, boquilha e palheta, haja vista que as
notas das possíveis séries harmônicas do saxofone apresentam uma defasagem de afinação para
baixo à medida que essas notas vão se distanciando de sua fundamental, logo, é necessário que o
músico “encontre” uma digitação própria para compensar esses desajustes.
Ornelas fala de sua experiência ao se aventurar pela região dos superagudos, ou overtones,
do saxofone tenor a partir da década de 1970. (informação verbal):
Bernardo – E essa história dos superagudos no tenor?
Nivaldo – Fui o primeiro no Brasil que fez isso.
Bernardo – Eu não sei de números não, mas Nivaldo, mas é uma coisa que eu acho surpreendente.
Nivaldo – Foi, no Brasil.
Bernardo – Você já flertava ali o sol, sol sustenido, lá, ali era uma coisa recorrente.
Nivaldo – Eu já ia no dó ó, meu Deus do Céu.
Bernardo – Ah é, o dó tem um solo no Concerto Planeta Terra de 89, mas em 78 com o Hermeto. É
em 78, né? Ou 76? Em Montreaux.
Nivaldo – 79.
Bernardo – 79. A região do lá ali é uma coisa assim...
Nivaldo - Eu tenho um negócio gravado meu, não sei se é desse tempo, , mas tocando superagudo
mesmo assim com uma facilidade, falei: Gente como é? Da onde é que eu tirei isso? Porque ninguém
fazia isso.
Bernardo – Pois é.
Nivaldo – Tinham uns músicos americanos que faziam, né? Ash. Mas ninguém ouvia.
Bernardo – A conta-gotas, né?
Nivaldo – É. Por exemplo, quando eu vi o Michael Brecker pela primeira vez na vida, de 78 pra 79,
30 anos atrás, lá no Palácio das Artes, que ele reclamava do som pra caramba, todo hora ele ia na
mesa e falava: Pô,
mas como é que é? O cara era aquele cara lá de Belo Horizonte, tá lá até
hoje.
Bernardo – Quem. O Murilo?
Nivaldo – É um cara lá. Aí, ele tocava que nem o Coltrane, mas ele não tocava muito superagudo,
ainda, ele ia no lá assim na melhor das hipóteses. Quem eu vi tocar superagudos mesmo foi o Ernie
Watts quando eu fui com o Hermeto em Montreaux. Fiquei impressionado com o Ernie Watts, pô,
caramba. Cheguei aqui cheio de ideias. Uma olhada que você dá no lance, isso vale muito, quando
você presta atenção, né?
Em Forró em Santo André, gravação realizada por Nivaldo Ornelas juntamente com
Hermeto Pasoal e sua banda em 1979, Ornelas chega a atingir o C4 do saxofone tenor (Bb 4, sem
transposição):
Exemplo musical 133 Uso de overtones durante solo de Ornleas em Forró em Santo André.
166
Ao ser questionado como realizava tais notas nessa região, o músico atribuiu seu sucesso
nessa técnica a um talento nato e ao fato de ter estudado clarinete, instrumento de palheta simples
que apresenta proeminente extensão de praticamente quatro oitavas e que, para a região agudíssima,
usam-se diversas digitações para cada uma das notas, assim como na região super aguda do
saxofone, havendo entre elas pequenas diferenças de afinação e timbre, mas com outros padrões
para essas digitações que fogem em muito das digitações de suas outras oitavas. Esse dado comum
entre as práticas dos distintos instrumentos é sem dúvida indicativa da pré-disposição do músico em
tocar nessa região do saxofone.
Após o intérprete tocar no extremo agudo de seu saxofone tenor, seção de seu solo que
funciona como um clímax de notas longas de extrema verve e vigor, características tímbricas
próprias dos overtones, Ornelas infere características de aleatoriedade flertando com as referências
do free jazz que praticara ainda nos anos 1960 em Belo Horizonte juntamente como Quarteto
Contemporâneo. No encarte do CD Viagem Em Direção ao Oco do Toco, gravado em duo com o
pianista e tecladista André Dequech e lançado em 2005. Nivaldo Ornelas aponta essas referências e
busca delimitar o conceito de improvisação livre que permeia esse tipo de realização:
Viagem em direção ao oco do toco é o resultado de um trabalho que começou há muito tempo, no
início da minha carreira. Muito mais que musical, é um trabalho conceitual. É como um pintor, que
não pinta paisagens, mas o seu próprio interior, o momento em que está vivendo. No nosso caso, eu e
André fizemos música como se estivéssemos conversando – nada prévio, nada ensaiado, improviso
puro. Eu, particularmente, acredito que os músicos em geral, num futuro muito próximo, vão retomar
este caminho. Como disse, no início de carreira eu e meus amigos já tentávamos fazer esse tipo de
som. É claro que tecnicamente não era muito bom, mas o conceito era! O Quarteto Contemporâneo
não gravou nenhum disco, mas lançou sementes que deram muitos frutos. No meu caso específico, ele
me levou direto ao grupo do Hermeto Pascoal (Montreaux/1979) e, em seguida, ao grupo Academia
de Dança do Egberto Gismonti. Ambos procuravam esta forma de tocar e acabaram encontrando com
muito sucesso.
O dado do que chamamos aqui de aleatoriedade reside basicamente em uma passagem após
uma série de superagudos em notas longas, ao final dessa seção o músico realiza um glissando com
uma série de overtones do instrumento passando por várias notas sem um ordenamento preciso
desses harmônicos superiores. No exemplo exposto a seguir, o compasso de número 114,
representado pelo símbolo
, se refere ao uso de notas de séries harmônicas do saxofone. Esse uso
de super agudos intercalados com glissandos, um efeito próprio de saxofonistas do free jazz como
167
Eric Dolphy e Albert Ayler58, pode ser obtido ao utilizar o controle de projeção de coluna de ar com
fins para a emissão de notas da região superaguda e concomitante à emissão de uma nota
superaguda qualquer, digita-se as chaves de instrumento de maneira aleatória. O resultado sonoro é
um efeito de notas de várias alturas pouco distinguíveis, podendo-se perceber apenas nuances entre
as notas mais graves e as mais agudas. O efeito, determinante de um idiomatismo do saxofone,
apesar de ter seu uso ligado, inicialmente, ao jazz, é aplicado por Ornelas com fins para a música
brasileira, não destoando, de modo algum, da estética musical de Hermeto Pascoal, pelo contrário, o
músico consegue somar a sua intervenção a um entendimento maior de seu solo como integrante de
uma macro-estrutura.
Exemplo musical 134: c. 114 uso de recurso de aleatoriedade rítmico-melódica através de superagudos do saxofone
tenor durante solo de Forró em Santo André.
Em outra passagem o saxofonista parece utilizar um recurso que se assemelha ao que
Figueiredo chama de false fingerings “é uma técnica que consiste em utilizar uma posição
alternativa para a produção de determinadas notas no saxofone, obtendo uma mudança no timbre da
nota” (Figueiredo, 2005, p.132):. Ainda durante o solo de Forró em Santo André, Ornelas ao tocar a
nota dó natural da segunda oitava do saxofone tenor (nota transposta), realizada com o dedo médio
da mão esquerda com adição da chave de oitava acionada com o polegar da mesma mão, move as
chaves da mão direita do instrumento resultando na mudança de timbre da nota emitida.
Exemplo musical 135: Aplicação de recurso de false fingerings por Nivaldo Ornelas.
Pudemos observar a partir das referências aqui dispostas que Ornelas durante a realização
58
Para um melhor entendimento do fenômeno musical em questão recomenda-se a audição da música Ghosts de Albert
Ayler, presente no disco Spiritual Unity (1964), gravada com Albert Ayler no saxofone tenor; Gary Peacock no
contrabaixo e Sunny Murray na bateria.
168
dos solos como músico integrante de outros trabalhos ou mesmo quando intérprete de suas próprias
composições prima pela originalidade e distinção ao utilizar de maneira re-significada as
informações às quais se baseou para o seu desenvolvimento como instrumentista, seja através de
estudos aplicados ao jazz, como no método de padrões melódicos de Oliver Nelson ou na memória
de seus estudos de transcrição de solos do disco Giant Steps de John Coltrane. Residem no
improvisador traços do compositor, das referências da canção, da variação temática como um
recurso composicional, mas que mune o improvisador com novas ferramentas que se contrapõem à
ortodoxia e planificação dos usos melódicos (escalares e de padrões melódicos) que permeiam boa
parte da produção dos solistas dedicados à música instrumental. A distinção marcada por Nivaldo
Ornelas aponta para, acima de tudo, a figura do melodista, que tem no saxofone um veículo para a
realização musical, e que em parte determina essas escolhas, sendo o fenômeno “música” a entidade
maior dessa relação.
169
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa aqui exposta mostrou de maneira plural e ampla, várias facetas da produção
musical do saxofonista, flautista e compositor Nivaldo Ornelas através da observação do fenômeno
de hibridação cultural, sistematizado por Néstor Garcia Canclini em seu livro Culturas Híbridas, e
observado nesta pesquisa em seu viés musical, tendo como objetos dessa investida análises tanto de
composições do autor quanto de solos improvisados constituintes de uma série de realizações do
músico como intérprete participante de gravações de outros autores, sendo que todos esses agentes,
autores e intérpretes, estão ligados à produção de música popular brasileira, seja de música
instrumental ou vocal.
A relação da produção musical do saxofonista com as referências adquiridas nos tempos de
juventude vividos em Belo Horizonte foram amplamente expostas e ponderadas principalmente
através das análises de quatro composições do autor: Nova Lima Inglesa; Nova Suissa, Sábado à
Tarde; Rock Novo e Ninfas; tendo sido observados os cruzamentos decorridos do fenômeno de
hibridação, seja naquilo que Nestor Garcia Canclini chama de heterogeneidade multitemporal, onde
a presença do antigo convive com o moderno ou o perene com o fugaz, apontando para uma
produção de atemporalidade, assim como foram identificadas referências das diferentes
“espacialidades” que compõem este mosaico, tratadas tanto no âmbito dos binômios como o
conflito gerado entre o nacional e o estrangeiro, como das referências transversais representadas
pelos universos rural, suburbano e urbano, referências estas imagéticas das interpolações entre
tempo e espaço e representação alusiva às composições de Ornelas que configuram um caminho
propositivo dos lugares nos quais foram “coletadas” essas referências.
Nessas análises puderam ser observadas as características das reminiscências de sua
formação musical, principalmente vindas de sua história familiar no bairro da Nova Suíssa em Belo
Horizonte, da música tanto dos folguedos identificados genericamente por congados e folias, quanto
das serestas realizadas por seus pais em casa; ou mesmo da música religiosa – sacra - do Convento
Bom Pastor; da Escola de Formação Musical, onde aprendeu teoria e solfejo e mais tarde, seu
170
primeiro instrumento, o clarinete; além, é claro, das referências de sua geração identificada com o
chamado Clube da Esquina; ou dos encontros que precederam e permearam aquela produção
musical que flertava com os estrangeirismos do rock e do jazz, embora, re-significados através da
tipicidade do olhar de seus agentes - participantes e colaboradores – que traduziram e traduzem a
idéia desses cruzamentos e diálogos revelados como um fenômeno intimamente ligado ao conceito
de hibridação musical proposto neste estudo.
Dessas referências de suas composições e interpretações foi possível identificar e categorizar
os papéis representados por Ornelas e, marcadamente, um distanciamento entre essas práticas,
embora se assemelhem no sentido da busca pela distinção de um projeto estético musical. As
práticas do autor e do intérprete, aparentemente dicotômicas, se entrelaçam e moldam o estilo
próprio do músico, estabelecendo um movimento de troca e complementaridade que, esteticamente,
se auxiliam na construção, difusão, circulação e consagração de seu trabalho. Escolhas distinguíveis
pelo lirismo, o refinamento e “economia” de idéias, sem haver desperdícios, excessos. Essas
características, aliadas à coragem necessária para empreender um projeto de estilo tão próprio e por
vezes, inusitado, acaba por resultar na assinatura de sua produção musical, que se assomam para a
realização da construção idiomática em sua música, da sua relação com o saxofone, das
potencialidades e características exclusivas do instrumento voltadas para a realização e constituição
de um saxofone brasileiro. Parte do trabalho aqui exposto foi também realizado no sentido
especulativo de perceber como se dá o processo de composição do autor, da negociação entre a
experimentação e o mecanicismo das fórmulas composicionais, embate entre o apolíneo e o
dionisíaco, mas que têm os pés fincados na tradição de suas referências primordiais.
Os caminhos percorridos pelo intérprete, o saxofonista, também foram considerados, sendo
que o entendimento de sua coleção particular de referências pôde também ser estendido ao processo
quase que auto-didático ao qual se submeteu para o aprendizado e desenvolvimento técnico de seu
principal instrumento de ofício. As referências das chamadas “escolas” de saxofone que parecem ter
se alternados em suas performances, sua identificação estética com o jazz de John Coltrane, deram
171
nova vida e auxiliaram na constituição de uma estética voltada para o saxofone moderno brasileiro,
da multiplicidade, das trocas entre referências do mundo globalizado tendo o típico como o centro
de um plano panóptico a partir do qual se mira. Os resultados desse conjunto de observações nos
levam a crer que a produção musical de Nivaldo Ornelas é distinguível dentro da produção
ordinária da modalidade musical a qual se inscreve, sendo sua obra representativa dos fenômenos
de hibridação musical sugeridos, além de ter sido fundamental para que pudessemos elaborar um
quadro de como atuam os músicos instrumentistas dedicados à música instrumental no Brasil, do
seu modo de pensar, de suas estratégias de composição, de performance, de estudo e para que
pudéssemos ter a real dimensão da contribuição deste agente na formação e desenvolvimento da
modalidade musical música instrumental, decorrente das negociações e cruzamentos dinamizados
no legado de sua produção como autor e intérprete.
172
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PEDROSO, João Carlos. Nivaldo Ornellas lança novo disco. O Globo, Rio de Janeiro, p. 5, 16 mai.
1990.
RAFAELLI, José Domingos. O mágico sax de Ornelas. O Globo, Rio de Janeiro, 27 jul. 1988.
Segundo Caderno, p.5.
Matérias não assinadas:
Atração no People é o som de Nivaldo. O Globo, Rio de Janeiro, 25 jul. 1988.
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Em show e disco, a “Viagem através de um sonho”, de Nivaldo Ornellas. O Globo, Rio de Janeiro,
p.19, 18 jul. 1983.
Fôlego mineiro: O vibrante saxofone de Nivaldo Ornelas. Veja, São Paulo, 19 out. 1983.
Homenagem a Coltrane. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 set. 1989.
Prêmio Sharp dá quatro troféus para CD de Nana. O Globo, Rio de Janeiro, 03 jun. 1999.
Ornellas leva som até o Centro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 jul. 1993.
SOPROS DE VOLTA A MINAS. O Globo, Rio de Janeiro, 02 mai. 1998.
Tributo: A música de Ary Barroso. O Globo, Rio de Janeiro, 08 nov. 2003
Endereços eletrônicos:
http://www.nivaldornelas.com.br
http://www.youtube.com/watch?v=v3pYqihpvL0
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