Alto-, alter-, auto-falantes

Propaganda
Sérgio Freire Garcia
Alto-, alter-, auto-falantes:
concertos eletroacústicos e o ao vivo musical
Doutorado em Comunicação e Semiótica
PUC/SP
São Paulo, 2004
Sérgio Freire Garcia
Alto-, alter-, auto-falantes:
concertos eletroacústicos e o ao vivo musical
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação
e Semiótica, sob a orientação do Prof. Doutor Silvio Ferraz
Mello Filho.
Doutorado em Comunicação e Semiótica
PUC/SP
São Paulo, 2004
Para Ana
e nossa criança
(a caminho)
Agradecimentos
Ao Silvio, pela orientação segura e serena, e a amizade daí resultante.
À CAPES, pelo apoio indispensável tanto no decorrer do curso (PICDT) quanto no
estágio no exterior (bolsa sandwich).
A Thomas Kessler, Wolfgang Heiniger e Barbara Rufer, pela acolhida amistosa no
Elektronisches Studio da Academia de Música da Basiléia.
Aos colegas da Escola de Música da UFMG − em especial Oiliam, Eduardo,
Gilberto e Rogério − que se desdobraram em suas funções para que eu pudesse
contar com a tranqüilidade e dedicação necessárias a este estudo.
Ao Neide e à Daisy, pais, educadores, companheiros.
A Guilherme, Maurício e Luciana, queridos irmãos.
A Ana, pelo amor, companhia, paciência, sugestões e leitura.
Resumo
As rupturas espaciais, temporais e causais vividas pela percepção auditiva
frente aos novos meios de reprodução, transmissão e produção de sons (discos,
rádio, gravadores, sintetizadores, computadores) a partir do final do século XIX
podem ser englobadas sob um único termo: escuta mediada por alto-falantes.
Derivam-se daí novas modalidades de escuta (bem como de prática) musical,
desenvolvidas tanto por especialistas quanto por leigos. O presente trabalho
investiga o papel dos alto-falantes na produção poética musical − processo que
tem suas origens já na primeira metade do século XX −, tendo como campo de
delimitação os concertos eletroacústicos. Para tal investigação, a classificação
tradicional da produção eletroacústica em obras sonoramente pré-fixadas
(também chamadas de acusmáticas ou “arts des sons fixés”), obras mistas (que
envolvem alguma performance instrumental) e obras que utilizam “live-electronics”
(performance com “instrumentos” não convencionais, sejam microfones, simples
filtros de áudio ou complexos sistemas digitais interativos) mostrou-se
inadequada. Embora esta tipologia só faça realmente sentido quando se
pressupõe a apresentação ao vivo destas obras, ela não é suficiente para uma
análise
detalhada
dos
procedimentos
técnico-estéticos
utilizados
nessas
ocasiões. Por outro lado, uma abordagem desta produção baseada apenas em
seus elementos “intrinsecamente” musicais se mostra igualmente insuficiente.
Assim, optou-se por uma categorização um pouco diferente, baseada em alguns
elementos fundamentais da apresentação em concerto de música eletroacústica:
(0) omnipresença de alto-falantes; (1) presença de obras ou partes musicais prégravadas; (2) presença de performance musical tradicional; (3) presença de novos
instrumentos / controladores. Nos concertos eletroacústicos, a concretização de
uma fruição musical “ao vivo” está diretamente ligada à percepção, por parte dos
ouvintes, das inter-relações entre esses elementos, sempre expressas através de
alto-falantes. São propostos, ao final, os principais traços de uma “poética dos
alto-falantes”, capaz de explorar não só misturas variadas desses diversos
elementos como também as múltiplas funções e ambigüidades desempenhadas
pelos alto-falantes em concertos.
Abstract
Space, time and cause ruptures undergone by aural perception due to the
new means of reproducing, transmitting and producing sounds (discs, radio, sound
recorders, synthesizers, computers), starting in the late 19th century, may be all
lumped and clustered into one single expression: loudspeaker-mediated listening.
New modalities of musical listening (and practice) are derived therefrom, by both
experts and laymen alike. This work aims at investigating the role of loudspeakers
in musical poetics – a process whose genesis dates back to the 20th century´s
first half – within the framework of electroacoustic concerts. The traditional
classification of electroacoustic production into completely pre-recorded works
(also known as tape music, acousmatic music or “art des sons fixés”), mixed
works (involving some instrumental performance) and works involving liveelectronics (performance with unconventional instruments, such as microphones,
simple audio filters or complex interactive digital systems) has proven inadequate.
Even though such typology makes sense only when it is assumed that
performances are live, this is not enough for a detailed analysis of the technicalesthetic procedures used on such occasions. On the other hand, an approach to
this production based solely on its “intrinsically” musical elements is equally
insufficient. Thus, a slightly different categorization was chosen, based on some
fundamental elements of a performance in an electroacoustic music concert,
namely: (0) omnipresence of loudspeakers; (1) presence of pre-recorded musical
works or parts thereof; (2) presence of traditional musical performance; (3)
presence of new instruments / controllers. In electroacoustic concerts, making
concrete a “live” musical fruition is directly linked to the listeners´ perception of the
interrelations among such elements, always expressed through loudspeakers. At
this paper’s end, the chief traces of a “loudspeakers´ poetics” are proposed,
capable of exploring not just several different mixtures of these various elements
but also the multiple functions and ambiguities of the loudspeakers in concerts.
“Ma musique, je sais comment je l’ai faite, mais j’ignore ce qu’elle te fait.”
Le concert, du moins symboliquement, est le lieu de cette interrogation.
(SCHAEFFER, Pierre. Traité des Objets Musicaux. Paris: Seuil, 1966, p. 682.
Nova edição. O penúltimo capítulo deste livro – “A la recherche de la musique
même” –, que contém esta citação, foi escrito dez anos após a publicação do
tratado.)
Sumário
Introdução ...................................................................................................................1
Capítulo 1 − Reprodução e música: considerações indispensáveis ........................4
1.1. Obra musical, composição e interpretação .........................................5
1.2. A fixação da interpretação ................................................................13
1.3. A art des sons fixés ...........................................................................22
1.3.1. A escrita “sismográfica”...........................................................23
1.3.2. O “filme sem imagens” ............................................................25
1.3.3. Legitimação .............................................................................28
1.4. O pensamento algorítmico................................................................31
1.5. Sobre a noção de "ao vivo" em música............................................35
Capítulo 2 − O outro lado do alto-falante.................................................................45
2.1. A música gravada............................................................................. 49
2.2. Rádio.................................................................................................. 55
2.3. A gravação de sons quaisquer ......................................................... 62
2.4. Novos instrumentos musicais ........................................................... 71
2.5. Reprodução x produção.................................................................... 81
2.6. Processamento de sons.................................................................... 85
2.7. Do lado de cá do alto-falante ............................................................ 91
Capítulo 3 − Concertos eletroacústicos: as diferentes falas dos alto-falantes.......95
3.1. Práticas composicionais com novas tecnologias por volta
de 1950...............................................................................................97
3.2. Os concertos como objeto de estudo ..............................................106
3.3. A omnipresença de alto-falantes .....................................................111
3.3.1. Instrumento x “buraco” ...........................................................111
3.3.2. Projeção sonora .....................................................................114
3.3.3. Anamorfoses, personagens ..................................................115
3.3.4. Configurações........................................................................117
3.4. A presença de obras ou partes pré-gravadas .................................128
3.4.1. Discursos e sintaxes .............................................................129
3.4.2. Paisagens ..............................................................................131
3.4.3. Obras, partes, vozes, canais.................................................132
3.5. A presença da performance musical tradicional .............................136
3.5.1. Amplificação sonora ...............................................................136
3.5.2. Extensão tímbrica...................................................................138
3.5.3. A exploração de contrastes...................................................141
3.5.4. A exploração de situações ambíguas...................................142
3.5.5. Algumas questões de “escritura” ..........................................145
3.5.6. Sincronização ........................................................................147
3.6. A presença de novos instrumentos / controladores ........................152
3.6.1. Live-electronics.......................................................................155
a) o controle da difusão sonora .................................................155
b) aparelhos de reprodução e gravação sonoras .....................157
c) o controle da síntese e processamento de sons ...................160
d) gestos, automação, digitalização ...........................................163
3.6.2. Sistemas interativos ...............................................................167
a) sensing, processing, response................................................169
b) limitações contextuais .............................................................173
Conclusão: Uma poética dos alto-falantes ........................................................... 175
Excurso final: alto-falantes, concertos, música absoluta ..................................... 181
Anexo: Kurt Weill. “Possibilidades da radioarte absoluta” (1925)........................ 190
Bibliografia ............................................................................................................. 196
Introdução
A idéia inicial desta pesquisa foi motivada por uma atividade musical,
acredito que a mais freqüentada por mim nos últimos anos, seja como
espectador, compositor-intérprete ou idealizador-coordenador: os concertos
eletroacústicos. Já era então claro que questões ligadas especificamente à
criação de obras eletroacústicas (sejam de fundo tecnológico ou técnico-musical)
não teriam grande destaque neste estudo, cujo foco principal estaria voltado para
os diferentes modos de apresentação pública dessas obras, e suas possíveis
implicações no processo criativo.
A grande variedade de propostas composicionais presentes em vários
desses concertos dava a impressão de um campo essencialmente plural, sem um
elemento de coesão mais consistente e genérico do que o uso de novas
tecnologias. Podia também ser sentida – com maior ou menor evidência – uma
postura ligada a um uso não convencional dessas tecnologias. Daí surgiu um
importante eixo norteador deste estudo, baseado na discussão dos conceitos de
produção e reprodução sonora e musical. Não foi difícil detectar que os dois
conceitos mantêm uma relação muito mais complexa do que a simples oposição,
cujos reflexos podem ser sentidos nos três capítulos desta tese. A noção de ao
vivo musical − que só passa a fazer realmente sentido após o advento da
gravação sonora −, também é parte integrante desse eixo de análise.
Comparados aos concertos tradicionais, os concertos eletroacústicos
apresentam algumas diferenças marcantes: quanto ao modo de representação
(“escritura”) musical de suas obras; quanto às fontes sonoras (os indispensáveis
alto-falantes); quanto ao modo de se apresentar (e tocar) essas obras. A cada
uma dessas diferenças é dedicado um capítulo específico; os dois primeiros
capítulos, no entanto, extrapolam os limites definidos pelos concertos e seus
contextos.
1
Introdução
O
primeiro
capítulo
(“Reprodução
e
música:
considerações
indispensáveis”) trata da reprodução musical em geral, embora mantenha sempre
o foco em aspectos relevantes para a produção eletroacústica e suas formas de
apresentação. Tentou-se aqui discutir sob um mesmo ponto de vista formas de
reprodução tão distintas quanto a idealidade da partitura, a automação mecânica,
a gravação sonora de obras instrumentais, a obra sonoramente pré-fixada e a
expressão algorítmica. Ao final, são discutidas as mutações da noção de ao vivo
trazidas por estes diferentes modos de representação.
O segundo capítulo (“O outro lado do alto-falante”) é dedicado à
multiplicidade de experiências auditivas proporcionadas pelos alto-falantes desde
o final do século XIX: a música gravada, o rádio, a gravação de sons quaisquer,
novos instrumentos eletroeletrônicos. Mostra-se aqui que diversas noções caras à
música eletroacústica (cujo nascimento oficial se dá em 1948, com a música
concreta) foram, na verdade, realizadas ou pelo menos pensadas durante a
primeira metade do século XX: ampliação da paleta sonora, invisibilidade do meio,
ausência de intérpretes (substituídos ou pela automação da produção sonora ou
por gravações), relativização do aqui e agora da produção sonora, conflitos entre
produção e reprodução, autonomia da escuta. São também discutidas práticas
mais atuais (síntese e processamento de sons), cuja utilização e exploração
extrapolam o universo das obras eletroacústicas de concerto.
O terceiro − e principal − capítulo desta tese (“Concertos eletroacústicos: as
diferentes falas dos alto-falantes”) aborda a produção eletroacústica sob a ótica
de sua apresentação em concertos. A divisão tradicional dessa produção nas
categorias acusmática (de obras totalmente pré-gravadas), mista (obras
envolvendo performance musical tradicional e meios eletroacústicos) e liveelectronics só faz realmente sentido quando se pensa em uma apresentação ao
vivo das obras. No entanto, tal classificação é insuficiente para dar conta de todos
os procedimentos utilizados nessas apresentações. Optou-se, então, por uma
metodologia um pouco diferente, baseada na presença de diferentes elementos
nesses concertos: (0) a omnipresença de alto-falantes; (1) a presença de obras
ou partes pré-gravadas; (2) a presença da performance tradicional; (3) a presença
de novos equipamentos / instrumentos / controladores.
2
Introdução
A conclusão propõe uma poética dos alto-falantes, cuja principal
característica é a exploração de diferentes misturas e inter-relações entre estes
elementos, através da múltiplas funções e ambigüidades desempenhadas pelos
alto-falantes em concerto. Essa poética se aplica tanto à apreciação de obras
existentes quanto à criação de novas composições, sendo menos uma tentativa
de unificação conceitual da experiência eletroacústica do que uma espécie de
“manual de sobrevivência” em um campo tão vasto. A valorização dos contextos
de criação e apresentação de suas obras é uma estratégia fundamental dessa
poética.
O excurso final (“Alto-falantes, concertos, música absoluta”) leva a
discussão para um campo mais amplo, onde são abordadas as relações entre a
produção eletroacústica de concerto e a idéia de música absoluta. O
questionamento da validade de se estabelecer − mesmo para o repertório
tradicional − uma divisão entre elementos musicais e extramusicais é também
trazido à produção eletroacústica, abrindo-se assim novas perspectivas de
atuação para a poética dos alto-falantes aqui proposta.
3
Capítulo 1 - Reprodução e música: considerações indispensáveis
Neste capítulo são abordados tópicos relacionados com o conceito de reprodução −
aplicado à prática musical − fundamentais para a posterior discussão do tema desta
pesquisa. São eles: a reprodução propriamente musical (feita pelo intérprete a partir
de uma partitura ou da lembrança de uma obra), a reprodução técnica de uma
interpretação, a obra musical fixada sonoramente já em seu processo de criação, a
expressão de idéias musicais através de algoritmos1. Cada um desses tópicos
propõe modos específicos de comunicação musical, que além de exercerem efeitos
sobre a composição, estão também intimamente ligados às características de todo
o entorno musical. Dada a vastidão do tema, seu enfoque será essencialmente
panorâmico, concentrando-se apenas nos aspectos mais relevantes para o estudo
em questão; a abstenção de detalhes contribuirá para uma apreensão em
perspectiva desses diferentes modos de reprodução. A discussão da noção de “ao
vivo” em diferentes situações musicais complementa a abordagem do assunto.
1
Casos híbridos serão abordados no terceiro capítulo.
4
1.1.
Obra musical, composição e interpretação
Pois só através do músico é que o ouvinte pode entrar em contato com a obra
musical.2
(Stravinsky)
O conceito de música mais difundido e amplamente aceito, pelo menos na
consciência ocidental, é aquele que combina uma obra (composição) de
existência apenas ideal com uma interpretação que a concretiza sonoramente.
Isto se aplica tanto a obras notadas em uma partitura quanto a obras transmitidas
via tradição oral. Fundamental nesse conceito é o fato de que a interpretação se
aplica a uma obra concebida em um momento anterior, a qual, por seu lado,
pressupõe um número ilimitado de versões corretas3. Também fundamental é a
convicção de que tal obra musical só se completa e se justifica através de sua
manifestação acústica frente a ouvintes, delineando-se assim a divisão tradicional
da comunicação musical entre as funções de compositor, intérprete e ouvinte.
A dualidade existente entre concepção (normalmente expressa por uma
partitura) e interpretação é expressa por diferentes compositores e autores:
As relações sonoras estabelecidas por meio de notação necessitam de
interpretação. Sem interpretação elas não são entendidas.4
Ela [a reprodução musical] serve à produção, que pode fazer-se presente de
forma imediata somente como algo reproduzido, e que de outro modo se
imobilizaria como texto morto; ela é a forma de todo consumo musical, já que a
sociedade participa apenas das obras reproduzidas, não dos textos em si.5
É necessário distinguir dois momentos, ou melhor, dois estados da música:
música potencial e música real. Tendo sido fixada no papel ou retida na memória,
a música já existe antes de sua performance efetiva.
6
2
STRAVINSKY, Igor. Poética Musical em 6 Lições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 120. Texto de
conferências realizadas na Universidade de Harvard em 1939 e publicado originalmente em 1942. Tradução
de Luiz Paulo Horta.
3
A questão da composição “ao vivo” será tratada mais adiante neste capítulo.
SCHOENBERG, Arnold. “Mechanical Musical Instruments”. In STEIN, Leonard (ed.). Style and Idea:
Selected Writings of Arnold Schoenberg. London: Faber and Faber, 1975, p. 327. Publicado originalmente em
alemão em 1926. [Todas as traduções de textos em língua estrangeira que aparecem nesta tese sem a
indicação de um tradutor são de minha autoria.]
5
ADORNO, Theodor W. “Zur gesellschaftlichen Lage der Musik” (1932). Gesammelte Schriften: Band 18
(Musikalische Schriften V). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997, p. 752.
6
Stravinsky [ver nota 2], p. 111.
4
5
1.1. Obra musical, composição, interpretação
Uma composição musical não é mais do que um plano, um esquema cuja
realização sonora depende de um meio mecânico.7
Devido à sua dupla função de fixação de concepções formais e de instruções para
ação, a partitura é mediadora entre produtor e reprodutor musicais.8
A obra é a unidade formada pelo esquema determinado pela partitura (com seus
pontos de indeterminação) e pelas possibilidades de interpretação resultantes
desses pontos de indeterminação.9
As referências feitas acima a uma “música potencial”, “esquema”,
“produção”, “concepções formais”, “texto”, “partitura” apontam para uma
idealidade da composição, que se caracteriza muito mais como um esboço, um
código, do que como um objeto passível de fruição estética. Por outro lado, sabese que “uma dose maior de idealidade significa sempre um campo de atuação
mais amplo para o intérprete”10, sujeito responsável pela concretização dessa
obra ideal. A obra musical apresenta esses dois pólos não como uma mera
oposição entre idealismo e realidade, e sim como uma interdependência, já que a
composição conta com a interpretação, pressupondo vários de seus traços
concretos, enquanto a interpretação deve estar ciente dos valores de caráter
abstrato contidos na composição11.
O fenômeno musical tem, portanto, dois aspectos correlatos: uma tendência à
abstração, na medida em que a execução propicia o surgimento de estruturas; a
aderência ao concreto, na medida em que ele se mantém ligado às possibilidades
instrumentais.12
Não é raro encontramos referências à música como uma arte situada entre
a arquitetura e a poesia: “No que diz respeito à relação entre idealidade e
realidade, arquitetura e poesia parecem constituir, por assim dizer, posições
extremas, entre as quais deve-se encontrar o lugar da música.”13 Ou: “A língua
rejeita seu material após o uso; a arquitetura nele se instala; a música o esquece
7
8
VARÈSE, Edgar. “Les Interprètes?” (1946). Écrits. Paris: Christian Bourgois, 1983, p. 115.
BOEHMER, Konrad. Zur Theorie der offenen Form in der neuen Musik.. Darmstadt: Tonos, 1967, p. 158.
9
NACHTSHEIM, Stephan. Die musikalische Reproduktion: Ein Beitrag zur Philosophie der Musik (Aachener
Abhandlungen zur Philosophie, Band 1). Bonn: Bouvier, 1981, p. 22.
10
Nachtsheim, p. 89.
11
Na verdade, uma partitura conta ainda com vários outros pressupostos de ordem mais prática:
acessibilidade, legibilidade, a existência de músicos e conjuntos musicais com relativa uniformidade, escolas,
luthiers, público etc.
12
SCHAEFFER, Pierre. Traité des Objets Musicaux. Paris: Seuil, 1966, p. 46.
13
Nachtsheim, p. 89. ver nota
6
1.1. Obra musical, composição, interpretação
aqui, o retém acolá. Ela é uma arquitetura que fala.”14 A música não é pura
linguagem, pois, se assim fosse, seria possível compreender sua escrita sem ter
que se remeter aos correlatos sonoros de seus signos. E as particularidades e os
progressos da lutherie – inclusive a eletroeletrônico-digital − não exerceriam
tamanha influência em seu desenvolvimento. Mas também não é pura sensação
sonora, já que diferentes sistemas de valores (mediados pela percepção) são
capazes de criar relações abstratas entre si, não sendo raro que algumas dessas
relações sejam totalmente dependentes das possibilidades da própria escrita15. A
dualidade entre abstração e concretude encontra-se expressa tanto nas obras
caracterizadas como música absoluta (que só se referem a si mesmas e à própria
música) quanto nas obras funcionais, “características” ou programáticas.
É claro que essa dualidade representa um estágio específico de um
processo histórico. Parece-me não haver dúvidas sobre “a precedência
instrumental” na música, expressa metaforicamente por Schaeffer como a
anterioridade da prática de um homo faber que provavelmente precede o homo
sapiens.16 Mas como abordar, no caso das tradições orais, o surgimento de uma
obra? Segundo François Delalande:
Uma configuração agrada, ela é transmitida, aperfeiçoada, tornada mais
complexa, progressivamente diferenciada de outras, ela se torna uma peça
individualizada, eventualmente batizada. O processo de transmissão assume o
lugar do processo de criação.17
Na tradição oral, o processo de transmissão musical assume ainda um
outro papel: “Mas para a música sem suporte [escrito ou gravado], conservação e
transmissão se confundem. O repertório se conserva no ato de sua
transmissão.”18 Um tal repertório é simultaneamente criado e conservado em seu
processo de transmissão19. Assim, a idealidade de uma obra também não é
14
Schaeffer [ver nota 12], p. 496.
Uma outro tipo de relação entre essas duas artes se dá através de aspectos “formais”. Segundo Dalhaus, o
concerto barroco criou, com a técnica de exposição de um mesmo tema em várias tonalidades, “uma
estrutura [Gerüst] que tornou plausível, devido à possibilidade de observação de seu todo, a comparação
(que se transformou em lugar comum) entre música e arquitetura.” DALHAUS, Carl. Die Idee der absoluten
Musik. Kassel: Bärenreiter, 1978, pp. 109-110.
16
Schaeffer [ver nota 12], p. 42.
17
DELALANDE, François. Le Son des Musiques: entre technologie et esthétique. Paris: INA; Buchet/Castel,
2001, p. 48.
18
Delalande, p. 47.
19
T. Rice aponta para uma diferença, surgida nos estudos musicológicos, “entre transmissão oral e aural”, a
primeira se referindo a instruções ou comentários falados, a segunda se referindo ao aprendizado musical
15
7
1.1. Obra musical, composição, interpretação
estranha a essa prática musical, já que sua individualidade persiste mesmo nos
intervalos de tempo existentes entre os diferentes momentos de sua (re)criaçãoexecução.
A tradição oral cria, conserva e transmite uma musicalidade coletivamente
construída. A partitura, por outro lado, representa um frágil equilíbrio entre a
codificação de instruções visando uma execução instrumental e a expressão de
uma linguagem musical mais abstrata e individualizada. A notação condiciona
tanto o pensamento musical do compositor quanto a exploração instrumental do
intérprete, os quais conseguem, por meio desta, compartilhar e expressar uma
mesma obra (de natureza ideal). O surgimento de novas formas de exploração da
notação musical, que colocam em cheque tanto o equilíbrio mencionado acima
quanto a noção de identidade da obra em questão, pode ser observado a partir do
final da Segunda Guerra Mundial20.
No caso de obras com estruturas ou materiais intencionalmente ambíguos,
tais como as obras “abertas” para instrumentos dos anos 1950 e 60, que “não
consistem numa mensagem acabada e definida, numa forma univocamente
organizada, mas sim numa possibilidade de várias organizações confiadas à
iniciativa do intérprete”21, não se consegue passar para o ouvinte toda a riqueza
do campo de possibilidades aberto pelo compositor ao intérprete. Se em obras
literárias essa estratégia de criação se demonstra realmente eficaz, uma vez que
o leitor, frente ao texto, é capaz de avaliar e explorar essas possibilidades, o
mesmo não acontece com obras musicais apoiadas nas mesmas premissas
estéticas. Nessa situação, os intérpretes continuam a vislumbrar todo o campo de
possibilidades, mas para o ouvinte “cada versão oferece à audição apenas um
resultado de uma permutação (uma seqüência linear, portanto, e não um
campo).”22 Assim, a identidade de uma obra só poderia ser realmente revelada
através da audição de diferentes execuções, ou pela coincidência do intérprete e
ouvinte na mesma pessoa.
“por ouvido”. RICE, Timothy. “Transmission”. In: SADIE, Stanley (ed.). The New Grove Dictionary of Music
and Musicians (second edition). London: Macmilan, 2001, vol. 25, pp. 696-698.
20
Momento que, por outro lado, também simboliza o predomínio das diferentes formas de recepção musical
(sejam gravações ou radiotransmissões) sobre sua produção.
21
ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1968, p. 39. Edição brasileira do ensaio inicialmente
escrito em italiano em 1958, e revisado a cada nova edição ou tradução. Tradução de Giovanni Cutolo.
22
Boehmer [ver nota 8], p. 83.
8
1.1. Obra musical, composição, interpretação
Também as obras instrumentais expressas por partituras gráficas delegam
aos − e demandam dos − intérpretes decisões sobre materiais e estruturação
musicais que desafiam a relação de identidade entre uma notação abstrata e sua
realização sonora concreta. Não levando em conta os casos onde a notação é
apenas um “artifício mnemônico” desenvolvido pelos próprios intérpretescompositores, pode-se dizer que uma “música gráfica”, oferecida aos intérpretes
como (pre-)texto musical a ser interpretado, se vê na seguinte situação: “uma vez
quebrada a íntima afinidade entre o símbolo determinante e aquilo que é por ele
determinado, a autonomia da partitura-quadro surge às custas da autenticidade
musical.”23
Por outro lado, uma escrita super-saturada, que “levou a capacidade
prescritiva da notação tradicional a seus extremos, com um detalhamento de
articulação até então sem precedentes”24, serve a uma nova concepção de obra
musical, intencionalmente complexa e multifacetada, que estimula
a coexistência, tanto dentro de um mesmo indivíduo quanto entre diferentes
indivíduos, e tanto dentro de uma única audição quanto de diferentes audições, de
múltiplos pontos de vista, implicando a presença de um alto grau de ambigüidade
em relação à sua ‘verdadeira’ identidade.25
Tal ambigüidade concretiza-se não apenas por meio da complexa e
refinada escrita musical, mas também através da própria atuação dos intérpretes,
que se vêem praticamente impossibilitados de construir uma visão geral da obra.
Da discussão acima deduz-se que o intérprete tem um papel essencial a
desempenhar na comunicação de uma obra musical fundamentada na dualidade
entre composição e interpretação. Mas qual é sua real contribuição? O que ele
traz de imprescindível? Gostaria de trazer para esta discussão alguns conceitos
do filósofo Stephan Nachtsheim26: Nachentwurf (reesboço), Mitgestaltung (cocriação), Manifestation (manifestação).
23
Boehmer, p. 159. Nesse livro, o autor analisa diferentes formas de inserção de procedimentos de
indeterminação na composição instrumental, que vão da “mobilidade das estruturas” ao “acaso como
ideologia”, passando por “variabilidade estrutural”, “indeterminação estrutural” e “indeterminação como forma
(música gráfica)”.
24
FOX, Christopher. “New Complexity”. In Sadie (ed.), vol. 17, p. 802.
25
BOROS, James. “Why Complexity? (Part Two): Guest Editor’s Introduction”. Perspectives of New Music,
vol. 32, no. 1, 1994, p. 91.
26
Expressos em seu livro (já citado nesta tese) Die musikalische Reproduktion [ver nota 9]. A discussão
nesse livro resume-se a obras expressas por uma partitura, embora o autor saliente que o mesmo raciocínio
9
1.1. Obra musical, composição, interpretação
Primeiramente ele justifica a necessidade do reesboço: “Se a interpretação
musical deve ter o modus de reprodução, então ela deve ser evidentemente
Nachentwurf (aqui assim chamado), já que a estrutura da partitura exclui uma
vivência direta da forma.”27 Mas este reesboço ainda não é manifestação de uma
obra, e sua existência se deve à imaginação, ou seja, ao “poder de se contemplar
um objeto mesmo sem sua presença.”28 Como exemplos de reesboço ele cita o
fenômeno de se tocar ou reger de cor, e a capacidade de se imaginar uma obra
apenas pela leitura de sua partitura. Se o intérprete não fosse capaz do reesboço,
“a mera execução da partitura” permaneceria simplesmente “produção de um
fenômeno acústico modulado de forma insólita.”29 Mesmo quando não se exige do
intérprete mais do que mera execução da partitura (como, por exemplo,
Stravinsky algumas vezes se expressou), sua função também extrapola a mera e
instantânea modulação acústica, pois o próprio domínio do funcionamento dos
instrumentos já está condicionado pelo que deles se espera.
A co-criação (Mitgestaltung) se relaciona com o fato de que várias
características da obra musical permanecem indefinidas até sua realização
sonora. “Na música, a pincelada característica do pintor − talvez se possa exprimir
isto assim − fica a cargo do intérprete.”30 E ainda: “Aqui o material, frente à
unidade da estrutura, ainda conta, de certo modo, com um excesso.”31
Schoenberg expressa-se de modo semelhante, ao dizer que “todas as outras
coisas”, que estão além da relação entre alturas e divisões de tempo, são
recursos do intérprete: “dinâmica, tempo, timbre e caráter, claridade, efeito etc.”32
Observando-se o desenvolvimento da notação na música ocidental, fica
claro que a margem de liberdade deixada para o intérprete vai se encolhendo na
proporção em que se ampliam o número e as funções dos signos da escrita,
aumentam-se as exigências técnico-instrumentais e desaparecem formas
musicais de referência, compartilhadas por uma determinada comunidade
poderia ser aplicado à tradição oral. Ele evita, no entanto, tratar de casos nos quais “a idéia originalmente
esboçada utiliza-se diretamente da máquina, como no caso da música eletrônica” (p. 237, nota 20).
27
Nachtsheim, p. 117. Grifo do autor.
28
Nachtsheim, p. 122.
29
Nachtsheim, p. 125.
30
Nachtsheim, p. 110.
31
Nachtsheim, p. 134.
32
Schoenberg [ver nota 4], p. 326.
10
1.1. Obra musical, composição, interpretação
musical.
Quanto maior a presença de uma real objetividade em uma obra musical, maior a
liberdade de seu intérprete; protegido da arbitrariedade pela objetividade e na
objetividade cheio de vida. Desaparecendo o mundo formal objetivamente
determinado, desaparece com ele a liberdade interpretativa; esta transforma-se
em acaso onde é praticada, ou dá lugar – em casos extremos – à mera realização
do texto.33, 34
É compreensível que esse excesso de controle sobre a atuação do
intérprete, ligado simplesmente à subjetividade do compositor, tenha induzido
reações contrárias, expressas principalmente na prática das formas abertas, já
discutidas acima. Mas em um mesmo período histórico podem conviver formas
variadas de produção e reprodução musicais: no barroco encontramos, por
exemplo, o baixo cifrado e a fuga, que exigem do intérprete habilidades de cocriação bem diversas.
Se por um lado as características da reprodução musical acima descritas
permitem que interpretações diferentes de uma mesma obra possam ser
igualmente válidas, por outro elas também permitem o desenvolvimento de
“escolas” e “estilos” de interpretação. Isto se evidencia principalmente na
interpretação de obras do passado. Carl Dalhaus discute três correntes de
interpretação que contam com pressupostos histórico-filosóficos distintos, não
antes de constatar que “a pesquisa da interpretação é em grande parte uma
história de controvérsias.”35
Uma linha defende a adaptação como atividade legítima, já que “o
conteúdo [musical] deve, a fim de manter o ‘mesmo’ efeito, ser expresso por
outros sons.”36 Outra corrente acredita que uma vez que “o conteúdo de uma obra
33
ADORNO, Theodor W. “Zum Problem der Reproduktion” (1925). Gesammelte Schriften: Band 19
(Musikalische Schriften VI). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984, p. 442.
34
Nos casos extremos da chamada “nova complexidade”, a obtenção dos resultados estéticos planejados
conta, inclusive, com a previsível impossibilidade dos intérpretes – apesar de todo talento, estudo e esforço de pronunciarem todo o conteúdo da partitura. As dificuldades encontradas pelos intérpretes no re-esboço e
co-criação são parte fundamental do próprio esboço da obra. Brian Ferneyhough, nas observações contidas
na partitura da obra Cassandra’s Dream Song (1970), para flauta solo, afirma: “A notação não representa o
resultado requerido: é a tentativa de se realizar na prática as especificações escritas a responsável por
produzir a qualidade sonora desejada (porém não notável).” FERNEYHOUGH, Brian. Cassandra’s Dream
Song (1970). Partitura no. 7197. London: Editions Peters , 1975.
35
DALHAUS, Carl. “Aufführungspraxis”. In: DALHAUS, Carl. e EGGEBRECHT, Hans Heinrich (eds.).
Brockhaus Riemann Musiklexicon. 4 + 1 volumes. Mainz: Schott, 1989, vol. A, p. 66.
36
Dalhaus, p. 67.
11
1.1. Obra musical, composição, interpretação
está ligado às sonoridades do passado, qualquer modificação é uma
falsificação.”37 Uma terceira interpreta o fato de uma obra poder tomar rumos
diferentes daqueles quando foi composta como “um desdobramento na história.”38
As seguintes afirmações estão de acordo com esta última corrente:
A interpretação é necessária para preencher o hiato entre a idéia do autor e o
ouvido contemporâneo, as capacidades assimilativas do ouvinte na época em
questão.39
Pois a reprodução concreta não tem a ver – como a crítica de arte predominante
gostaria sempre de deixar esquecido − com uma obra eterna nem com um ouvinte
ligado a condições naturais constantes, e sim com condições históricas. Não
somente a consciência da audição é dependente das mudanças das condições
sociais; não somente a consciência do a ser reproduzido depende do estágio da
situação musical geral; as próprias obras tem sua história e se modificam nela.40
Se as etapas de reesboço e co-criação, características da reprodução
musical, ainda representam atividades que podem ser levadas a cabo de forma
solitária, a real comunicação musical exige a co-presença de intérpretes e
ouvintes, em uma situação na qual se dá a manifestação (Manifestation) de uma
obra. “Quem quer ouvir música, assim se deixaria descrever a situação, não pode
renunciar à presença corpórea do manifestante; ele deve se deslocar até o
intérprete ou deixar este vir até ele.”41 Pois a obra musical só se deixa perceber
em seu próprio decorrer temporal, através da atuação constante do intérprete. O
fim da atividade do intérprete significa ao mesmo tempo o fim da disponibilidade
do objeto estético. “A estética tradicional fala da fugacidade, da momentaneidade
ou do caráter transitório da música. Com isto ela quer dizer que a estrutura
musical sempre necessita, para poder ser vivenciada, de uma manifestação
renovada.”42 Hoje em dia, o exemplo mais típico da manifestação de uma obra é a
chamada execução “ao vivo”43.
37
Dalhaus, p. 67.
38
Dalhaus, p. 67.
Schoenberg [ver nota 4], p. 328.
40
Adorno (1932) [ver nota 5], p. 753.
41
Nachtsheim [ver nota 9], p. 156.
42
Nachtsheim, p. 151.
43
A última seção deste capítulo é dedicada à discussão da noção de ao vivo na música, do ponto de vista
não só da obra ideal, como também das demais formas de reprodução e recepção musicais, tratadas a
seguir.
39
12
1.1. Obra musical, composição, interpretação
Obviamente, as rupturas espaço-temporais que vêm influenciando
profundamente a percepção sonora desde o final do século XIX relativizaram –
sem eliminar completamente – a noção de manifestação acima descrita. No caso
do disco, a gravação de uma interpretação de determinada obra é ainda uma
manifestação legítima da obra. Mas os novos meios tecnológicos de manipulação
sonora também passaram a provocar mudanças significativas nos processos de
produção e reprodução musicais.
1.2.
A fixação da interpretação
O que a imprensa fez para o compositor, você [Mr. Edison] fez para o
instrumentista, o cantor e o regente.44
(John Philip Souza)
A primeira ruptura ocorrida no modelo de comunicação musical acima
descrito é dado pela separação temporal entre a co-criação e a manifestação, ou
seja: uma interpretação é concebida (e armazenada de algum modo) por um
“intérprete”, sem que isto implique uma realização sonora imediata da obra. Tratase da música executada em um vasto número de instrumentos e artefatos
musicais automáticos: carrilhões, caixinhas de música e outros autômatos a
cilindros, realejos, órgãos, relógios, pianolas etc. O fascínio exercido por esses
instrumentos pode ser detectado até mesmo na produção de renomados
compositores: C. P. Emmanuel Bach, Haydn, Mozart, Beethoven, os quais
compuseram obras especialmente para eles.
Essa fixação da interpretação exige no mínimo duas coisas: a definição de
cada nota (ou evento sonoro) a ser tocada, e a determinação das relações
44
Esta frase é atribuída por James Francis Cooke a John Philip Souza, durante uma visita deste a Thomas
Edison em 1923. Cf. HARVITH, John e HARVITH, Susan E. Edison, Musicians, and the Phonograph. New
York, Westport and London: Greenwood Press, 1987, p. 7 e p. 19.
13
1.2. A fixação da interpretação
temporais entre esses eventos (mesmo que expressas apenas de forma relativa,
estando sujeitas às variações da rotação manual de um cilindro, por exemplo). Tal
mecanismo deve ser capaz de efetuar um gesto simples (como tocar um sino) ou
uma ação com início e fim (controle do fluxo de ar em um tubo, percussão e
liberação de uma tecla), em um ritmo pré-determinado. Em alguns casos pode-se
também controlar a dinâmica, a mudança de registros, posição de pedais. Com
isto, perde-se a flexibilidade do intérprete em relação ao tempo e ao “texto”
musical, flexibilidade que se expressa em diferentes níveis: na individualidade de
cada execução, no controle das sonoridades, no fraseado, nas relações rítmicas,
na duração de cada nota. Quanto mais simples o mecanismo sonoro – muitas
vezes miniaturizado – e quanto mais esquemático o mecanismo de controle,
maior será a característica automática do resultado musical.
Na verdade, o que é fixado pelos instrumentos musicais automáticos são
os gestos de controle necessários para a concretização sonora da obra. Os sons
propriamente ditos são gerados no próprio decorrer da execução. Aplicando um
raciocínio semelhante ao nível da produção sonora, constata-se também que os
instrumentos musicais apresentam um menor ou maior grau de mecanicismo
nesse processo. Basta comparar a emissão vocal com o funcionamento de um
órgão. Béla Bartók, em seu ensaio “Música mecânica” (1937), aborda com clareza
esta questão: “O mais importante: não há um ponto definido de demarcação entre
música mecanizada e não-mecanizada.”45 Seu enfoque parte do princípio de que
“quanto menos objetos estiverem interpostos entre o corpo humano e o corpo
vibrante, mais direto – poderíamos quase dizer mais humano – será o som
produzido.”46 Sua abordagem vai da voz cantada ao realejo, passando pelos
instrumentos de sopro, instrumentos de arco, de cordas, piano, órgão. Para ele, o
final do século XIX marca também uma mudança qualitativa da mecanização da
música (com o alto nível de aperfeiçoamento técnico alcançado), que pode então
desenvolver-se por “caminhos até então não sonhados.” A pianola consta como o
principal exemplo47.
45
BARTÓK, Béla. “Mechanical Music” (1937). In SUCHOFF, Benjamin (ed.). Béla Bartók Essays. New York:
St. Martin’s Press, 1976, p. 290. Ensaio publicado originalmente em húngaro.
46
Bartók, p. 289.
47
As possibilidades de se gravar os comandos de uma performance humana serão discutidas mais adiante
neste capítulo.
14
1.2. A fixação da interpretação
Mas é também nessa mesma época que começa a desenvolver-se um
outro tipo de tecnologia sonora que teria conseqüências bem mais profundas no
posterior desenvolvimento da música: a gravação de sons. O fonógrafo, inventado
por Thomas Edison em 1877, teve de trilhar caminhos tortuosos até descobrir sua
vocação para a música48. A gravação passou a ser aceita como uma
manifestação legítima de uma obra musical, apesar de todas as suas deficiências
iniciais: baixa qualidade acústica, curta duração, falta de espacialidade. Esse
modo de representação foi suficientemente eficaz para que o ouvinte, mesmo
distante do local e do momento da interpretação musical, o considerasse como
uma concretização válida da obra em questão.
É claro que nessa aceitação o caráter ideal da criação musical tem um
papel que não deve ser desprezado: a inexistência de um “original” da obra
plenamente realizado pressupõe um sem número de versões corretas, dentre as
quais pode ser incluída a própria gravação de uma dessas versões. Também
contribuem para isto as dificuldades inerentes à execução musical: ”Esses
aparelhos vêm encontrando tal aceitação universal somente devido ao fato de que
eles trazem para nossas casas interpretações musicais de uma qualidade
superior, a qual é totalmente estranha para a vasta maioria de nossa
população.”49
Para o ouvinte, a existência das gravações musicais representou uma
liberdade até então inimaginável. Ele se torna independente da necessidade da
presença física dos intérpretes, e passa a comandar a agenda de sua fruição
musical. A nova situação é defendida até mesmo por intelectuais, seja por
motivos estéticos ou práticos:
Poder escolher o momento de um prazer, poder desfrutá-lo quando ele não é
somente desejado pela mente, mas também exigido e como se já esboçado pela
alma e pelo ser, é oferecer as maiores oportunidades às intenções do compositor,
pois é permitir que suas criaturas revivam em um ambiente bem pouco diferente
daquele de sua criação. O trabalho do artista músico, autor ou virtuoso, encontra
na música gravada a condição essencial do mais alto proveito estético.
48
50
Este assunto será abordado com mais detalhes no segundo capítulo.
49
THOMPSON, Emily. “Machines, Music and the Quest for Fidelity: Marketing the Edison Phonograph in
America, 1877-1925.” The Musical Quarterly, vol. 79, no. 1, 1995, p. 140.
50
VALÉRY, Paul. “La Conquête de L’Ubiquité” (1928). In: HYTIER, Jean (ed.). Paul Valéry: Oeuvres II . Paris:
Gallimard, 1960, p. 1286.
15
1.2. A fixação da interpretação
Já que o disco se tornou a mais prática e rápida forma de divulgação da música,
principalmente numa cidade como o Rio de Janeiro, onde os bons concertos são
raros, a formação de uma discoteca não é assunto que se possa desdenhar numa
seção de jornal dedicada à música.
Não me refiro a discotecas de instituições; no momento só quero mencionar as
possibilidades de discotecas para amadores.51
Nossa civilização mecânica realizou um milagre ... ela trouxe de volta à vida, por
meios mecânicos, todo o repertório da música ocidental – para não falar de nos
apresentar às músicas do oriente.52
Em 1990, Paul Lansky, ao discutir a influência de novas máquinas na
prática musical, acrescenta dois novos pontos ao tradicional tripé compositorintérprete-ouvinte: o fornecedor de sons (sound-giver) e o construtor de
instrumentos. “Ser um sound-giver pode significar simplesmente dar um cassete
para um amigo, ou também publicar um CD. O sound-giver pode − ou não − ter
produzido os sons presentes na fita, isso realmente não interessa.”53 Em seguida
ele acrescenta que os únicos sound-givers existentes antes do advento da
gravação eram os próprios intérpretes.
Não há dúvidas de que a música gravada trouxe melhoras significativas na
vida dos ouvintes, abrindo a possibilidade de se "tocar" a qualquer hora em casa
uma grande variedade de obras musicais. Se em 1913, Thomas Edison disse que
“[eu] também farei do fonógrafo o maior instrumento musical do mundo...”54, do
outro lado do Atlântico, Thomas Mann expressava-se de modo bastante
semelhante, embora com uma boa dose de ironia, em seu romance “A Montanha
Mágica”, de 1924. Ao comunicar a chegada de um gramofone ao sanatório, o
conselheiro disse:
− A última conquista da técnica. Pois é, meus filhos, de primeiríssima qualidade!
Ultrafino! Não há coisa melhor nesse gênero. − Procurou arremedar de maneira
cômica a linguagem de um vendedor ignorante que apregoa a sua mercadoria. –
51
MENDES, Murilo. Formação de Discoteca e outros artigos sobre música (Matéria publicada originalmente
no suplemento “Letras e Artes”, do jornal carioca A Manhã, entre 1946 e 1947). São Paulo: Edusp, 1993, p. 6.
52
BARZUN, Jacques, apud CHANAN, Michael. Repeated Takes: a short history of recording and ist effects on
music. London: Verso, 1995, p. 12.
53
LANSKY, Paul. “A View From the Bus: When Machines Make Music”. Perspectives of New Music, vol. 28,
no. 2, 1990, p. 107.
54
Citado por Harvith [ver nota 44], p. 11, onde o leitor é remetido à seguinte nota: “Allan L. Benson, “Edison’s
Dream of New Music”, Cosmopolitan 54, no. 5 (May 1913): 797-800. See also the Copland and Colgrass
interviews in this book.”
16
1.2. A fixação da interpretação
Isto não é aparelho, não é máquina – continuou, enquanto tirava uma agulha de
uma caixinha colorida, de lata, que se achava na mesa, e a fixava no diafragma −,
isso aí é um instrumento, é um Stradivarius, um Guarnieri, com ressonâncias e
vibrações do mais extremo refinamento!55
Por outro lado, é justamente a possibilidade de autonomia aberta aos
ouvintes que passa a ameaçar a tradição musical produtora dessas mesmas
obras. Adorno expressa este conflito de modo enigmático: “Se a força produtiva
da música esgotou-se com os discos, se estes não produziram uma nova forma
com sua tecnologia própria, então eles transformam o mais recente som de
velhos sentimentos em um texto arcaico de um conhecimento futuro.”56 John
Philip Souza, que “temia a substituição da prática musical pela audição passiva”57,
já em 1906 difundiu o termo “música enlatada” [canned music]58. A profundidade
dessas mudanças pode ser sentida desde então em diferentes níveis da vida
musical: não só na independência dos ouvintes frente aos músicos tradicionais,
mas também nos diferentes modos de execução e distribuição musicais
desenvolvidos, no tamanho e variedade do repertório, nas novas modalidades de
profissionalização, nas disputas por direitos autorais etc.
Os procedimentos técnicos de gravação propiciaram o surgimento de uma
nova modalidade de reprodução musical, que poderia ser caracterizada como
transmissão (ou tradição) aural. Nela não só os ouvintes passam a ter um contato
direto e quase exclusivo com gravações, como também as obras musicais
passam a portar uma marca sonora específica, definida em estúdio59. Nessa
situação, o trabalho de intérpretes, arranjadores e técnicos é mais valorizado e
tem mais visibilidade que o do próprio compositor. Segundo Delalande, o mais
55
MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, pp. 712-713. Publicado
originalmente em 1924 em alemão. Tradução de Herbert Caro.
56
ADORNO, Theodor W. “Die Form der Schallplatte” (1934). Gesammelte Schriften: Band 19 (Musikalische
Schriften VI). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984, p. 533.
57
Thompson [ver nota 49], p. 139.
58
Um argumento contra o fato de que Souza tenha criado esta expressão pode ser encontrado na obra do
escritor O. Henry. O narrador do conto “The Phonograph and the Graft” (1903) diz em certo momento que
“we’ll export canned music to the latins” (p. 223). In: HENRY, O. Collected Stories (revised and expanded
edition). Edited by Paul J. Horowitz. New York: Gramercy Books; Random House, 1986.
59
Se em várias situações as gravações influenciam – em uma espécie de “feedback” - culturas musicais
similares às presentes nos discos, em outros casos elas representam modelos a serem copiados e tocados
“ao vivo”, como no caso da bandas cover.
17
1.2. A fixação da interpretação
característico dessas obras é o seu “som”, um novo conceito por ele
desenvolvido, que não se esgota na análise de fatores unicamente técnicos. Pois
o ‘som’ que nos interessa parece bem ser uma organização de timbres, de
ataques, de planos de presença, de ruídos utilizados como índices de uma ação
instrumental, e de outros traços morfológicos que ainda não deram lugar a uma
análise explícita, esta totalidade adquirindo um valor simbólico e inserindo-se em
uma tradição estética.60
O caso mais típico do novo conceito é a nova canção (variété), cuja
escritura harmônica e melódica, o mais das vezes banal
(“mais que banal:
banalizada”), funciona “como uma espécie de substrato sobre o qual edifica-se o
verdadeiro objeto de todas as atenções: o ‘som’”.61
Estritamente
falando,
essas
obras
representam
62
interpretação fixada, e sim uma obra fixada .
não
mais
uma
Mas grande parte de seus
elementos musicais “intrínsecos” fazem referência a práticas musicais tradicionais
(cantar, tocar, acompanhar em um contexto tonal-modal), os quais dão a
impressão de contar com uma nova “embalagem”, ou com uma “pronúncia
musical” cuidadosamente construída. Nesse caso, se a idealidade de uma obra
passível de várias interpretações não chega a ser anulada, as novas
interpretações, em contrapartida, passam a ter como referência não mais a
suposta partitura e sim uma interpretação-padrão.
A automação musical ganhou um novo impulso na segunda metade do
século XX, com o surgimento das possibilidades do seqüenciamento de
informações para o controle de diferentes parâmetros sonoros de sintetizadores63.
“Os
seqüenciadores
analógicos,
que
apresentam
hoje
um
interesse
primordialmente histórico, produzem seqüências automáticas de tensões de
controle e sinais de disparo, que podem ser utilizados para o controle de qualquer
módulo de sintetizador controlado por voltagem”.64
Esses seqüenciadores
armazenavam diferentes “valores” ou “estados”, que podiam então ser acionados
do início ao fim com um só gesto, podiam ser postos em “loop”, ou ainda serem
60
Delalande [ver nota 17], p. 14.
Delalande, p. 31.
62
Esta diferenciação será trabalhada mais a fundo na seção seguinte.
63
Algumas características dos sintetizadores serão abordados no segundo capítulo, seção 2.4.
64
RUSCHKOWSKI, André. Elektronische Klänge und musikalische Entdeckungen. Stuttgart: Philipp Reklam,
1998, p. 175.
61
18
1.2. A fixação da interpretação
comandados “passo-a-passo” por algum outro sinal externo. É óbvio que um
seqüenciador que conta com 8 ou 16 posições de memória aproxima-se de uma
performance humana apenas de modo bastante rudimentar. Mas foi o suficiente
para que novas modalidades de controle de sons eletrônicos pudessem ser
desenvolvidas, voltadas para a gravação ou para a performance ao vivo. Morton
Subotnick, por exemplo, explorou a grande velocidade dessas mudanças − não
mais condicionada por limitações de sistemas mecânicos − e também a grande
flexibilidade advinda da construção modular de sintetizadores (onde sinais de
controle e áudio eram intercambiáveis) na composição de obras do final da
década
de
1960:
“em
resumo,
o
seqüenciador
[analógico]
tornou
instantaneamente possível uma série amplamente variada de ritmos e texturas
que levariam semanas para serem realizados com técnicas clássicas.”65
Após o desenvolvimento de alguns modelos híbridos (que contavam com o
controle digital sobre a síntese analógica), o seqüenciamento digital atingiu um
novo patamar qualitativo com o estabelecimento, em 1983, do protocolo Midi
(Musical Instrument Digital Interface). Esse protocolo foi fruto de um acordo entre
grandes fabricantes de sintetizadores, a fim de que seus instrumentos pudessem
se comunicar entre si sem a necessidade de adaptadores, conversores ou coisa
similar. “Midi é, portanto, a rede de instrumentos musicais digitais que se
comunicam entre si e controlam uns aos outros.”66 Tal protocolo está construído
em torno da noção de nota musical (dentro da escala cromática temperada) e de
uma interface baseada em teclados de piano, sofrendo, por isto, grandes críticas
por parte não só da comunidade musical erudita (por exemplo, sua caracterização
como um “taylorismo acústico”67), mas também de pesquisadores em música e
informática68. Apesar disto, sua fácil aplicabilidade e confiabilidade lhe garantiram
praticamente o monopólio entre os usuários de novos instrumentos digitais. Miller
Puckette, ao ser questionado em 2001 se a revolução Midi havia sido um passo
para frente ou para trás, respondeu: “penso que foi um imenso passo para o
65
SCHWARTZ, Elliot e GODFREY, Daniel. (1993). Music since 1945: Issues, Materials and Literature. New
York, Schirmer Books, 1993, p. 128.
66
SZENDY, Peter. “De la harpe éolienne à la ‘toile’: fragments d'une généalogie portative”. Lire L’Ircam
(número especial dos Cahiers de l’Ircam), 1996. Republicado na internet: www.mediatheque.ircam.fr.
67
BOHEMER, Konrad. “Das ‘Schöne’ ist das Hässliche”. Neue Zeitschrift für Musik, vol. 155, no. 6, 1994,
p.23.
68
Ver, p. ex., MOORE, F. Richard. "The Disfunctions of MIDI." In: Proceedings of the 1987 International
Computer Music Conference. San Francisco: International Computer Music Association, 1987.
19
1.2. A fixação da interpretação
lado.”69
O protocolo aborda tanto os valores musicais abstratos quanto sua
interpretação com os mesmos conceitos e funções. Assim a mensagem note on
significa tanto uma altura definida quanto a execução dessa mesma nota; a
mensagem program change indica a escolha de um instrumento para certa parte
musical e também um módulo sintetizador específico. As durações são definidas
a partir de uma unidade temporal mínima, expressa em frações de uma semínima
(p.ex., 1/1024 de uma semínima), que obedece, por sua vez, a um andamento
globalmente definido70. Como essas durações estão ligadas tanto à escrita quanto
à interpretação musicais, acontecem alguns conflitos: interpretações captadas via
Midi podem apresentar uma partitura ilegível, enquanto partituras escritas via Midi
podem soar excessivamente mecânicas. Variações de altura fora da escala
temperada ficam a cargo da mensagem pitchbend. A sub-mensagem (integrante
de note-on) velocity representa a dinâmica de cada nota de forma aparentemente
mais precisa (em 127 níveis)71. Uma série de controladores contínuos tenta
simular grandezas mais voltadas à interpretação (aftertouch e diferentes tipos de
modulação) que às vezes podem também fazer parte da escritura musical
(crescendo/ decrescendo).
A fixação da interpretação de uma obra musical com o auxílio do protocolo
Midi pode se dar de duas maneiras: (1) uma execução instrumental – feita por um
músico em um teclado ou em algum outro controlador − é gravada. O que se
grava são características específicas dos gestos realizados por tal músico, que
podem ser posteriormente editadas e “corrigidas”, caso necessário72; (2)
escrevem-se e armazenam-se primeiramente todas as instruções necessárias à
performance, enviando-as em seguida aos sintetizadores. Na verdade, esses
processos não são muito diferentes do que já se fazia com os velhos instrumentos
automáticos ou a pianola; a diferença encontra-se no caráter abstrato das
69
In: LYON, Eric. “Dartmouth Symposium on the Future of Computer Music Software: A Panel Discussion”.
Computer Music Journal, vol. 26, no. 4, 2002, p. 28.
70
Com o desenvolvimento de sequenciadores de informações Midi – seja um hardware específico ou um
software -, tornou-se também necessário um padrão para garantir a compatibilidade entre sequenciamentos
feitos em diferentes equipamentos: é o chamado standard midi file.
71
Porém, como em toda mensagem Midi, o real resultado sonoro depende das características específicas de
cada sintetizador.
72
As vantagens da utilização de informações Midi na codificação e transmissão de gestos de um executante
humano para sistemas digitais diversos serão tratadas no terceiro capítulo.
20
1.2. A fixação da interpretação
informações Midi que armazenam essa interpretação. Elas não estão mais
necessariamente
ligadas
a
um
instrumento
específico,
podendo
ser
“reorquestradas” à vontade. Transposições, mudanças de andamento, supressão
de vozes, reequilíbrio dinâmico, mudanças de articulação, tudo isto pode ser
facilmente realizado.73
O protocolo Midi revela suas limitações quando se tenta associar os
valores abstratos por ele expressos às suas possibilidades de “interpretação”
musical; é o caso da escrita de uma partitura “capaz” de soar74. Primeiramente,
não há termos de comparação entre as diferentes estratégias de síntese sonora e
a riquíssima interação que acontece entre um músico e seu instrumento. Em
segundo lugar, um sistema automatizado é capaz de realizar apenas parcialmente
as funções interpretativas acima citadas: reesboço e co-criação. Já o intérprete é
capaz de coordenar e inter-relacionar estes dois níveis de controle: o acústico e o
musical, ao “incorporar” as frases musicais em seu instrumento. Os dois níveis
permanecem totalmente separados na representação Midi75.
73
A abstração das informações Midi faz com que elas possam também controlar outros tipos de
equipamento, como mesas de som e de luz.
74
Esta concepção é incentivada pela própria lógica e estrutura do protocolo.
75
O fato de que uma partitura não deve ser confundida com a totalidade da obra musical é claramente
demonstrado pela audição dos arquivos Midi - largamente disseminados pela internet - contendo obras do
repertório tradicional.
21
1.3.
A art des sons fixés76
Como precursores de uma prática composicional voltada para a criação de
obras musicais fixadas totalmente de antemão, encontramos dois procedimentos
composicionais bastante distintos: um está ligado a um rigoroso controle não
mais de vibrações acústicas, e sim de vibrações eletro-magnéticas, baseado em
valores oriundos de um pensamento musical abstrato. O outro refere-se à
construção de obras como se fossem um “filme sem imagens”. As idéias de
Varèse da primeira metade do século XX estão ligadas ao primeiro procedimento;
a prática do cineasta alemão Walter Ruttmann, por volta de 1930, representa a
segunda opção técnico-estética. Apesar desses procedimentos indicarem modos
de composição bastante diferentes, ambos pressupõem uma possibilidade técnica
comum: a realização sonora definitiva deve estar armazenada em algum tipo de
suporte de sinais acústicos.
Esses novos processos de criação apontam para o término da idéia de
uma obra musical baseada na dualidade de composição e interpretação − descrita
no início deste capítulo. A eliminação da interpretação implica uma nova função
para o compositor, que agora também passa a ser responsável pela pronúncia e
pelas qualidades sonoras concretas de suas obras, que muitas vezes não
guardam nenhuma relação com uma performance musical instrumental. Os sons
gravados, por seu lado, abrem uma imensa paleta sonora (“Todo o audível do
mundo inteiro se torna material”77) para a montagem acústica, que dificilmente
pode ser expressa por uma notação musical baseada em valores tradicionais,
mesmo quando entram em jogo trechos de gravações de outras músicas. Ao se
analisar o desenvolvimento histórico dessa nova modalidade de criação, os casos
híbridos, misturando procedimentos das duas vertentes, representam antes a
regra que a exceção78.
76
A criação deste termo é devida a CHION, Michel. L’Art des sons fixés, ou la musique concrètement. Paris:
Métamkine, 1991.
77
RUTTMANN, Walter, “Neue Gestaltung von Tonfilm und Rundfunk: Programm einer photographischen
Hörkunst”. In GOERGEN, Jeanpaul. Walter Ruttmanns Tonmontagen als Ars Acustica. Massenmedien und
Kommunikation, no. 89, 1994, p. 25. Publicado originalmente no Film-Kurier, Vol. 11, No. 255 (26 de outubro
de 1929).
78
Outras situações híbridas acontecem na mistura de procedimentos dessa natureza com a execução
musical ao vivo, assunto abordado no terceiro capítulo.
22
1.3. A art des sons fixés
1.3.1. A escrita “sismográfica”
Tenho certeza de que haverá um dia em que o compositor, após ter realizado
graficamente sua partitura, verá esta partitura colocada automaticamente em uma
máquina que transmitirá fielmente seu conteúdo musical ao ouvinte. Como
freqüências e novos ritmos terão de ser indicados na partitura, nossa notação
atual será inadequada. A nova notação será provavelmente sismográfica.79
(Varèse)
O que realmente diferencia essa partitura de Varèse de uma interpretação
mecanizada, abordada na seção anterior? E o que caracteriza essa partitura
como uma obra anteriormente fixada? Os limites parecem tênues e necessitam de
diferentes pontos de vista para sua definição80. Varèse está em busca de
elementos
e
valores
musicais
impossíveis
de
serem
obtidos
com
a
instrumentação convencional, de ampliações dos valores tradicionais da escrita
musical: alturas, registros, durações, intensidades, timbres. Há também uma
grande expectativa quanto a “movimentos de massas sonoras”, “deslocamentos
de planos”, “zonas de intensidades”, “novas organizações de resultantes
verticais”81. É óbvio que as instruções prescritas por essa nova notação não
estariam mais ligadas à excitação de corpos mecânicos vibratórios (que são
também acessíveis ao controle humano direto), e sim a comandos de circuitos
eletroeletrônicos. Seus efeitos seriam dificilmente antecipados por um solfejo
tradicional, até mesmo por um músico acostumado a lidar com grandezas físicoacústicas. Assim, essas instruções também não abririam espaço para uma
interpretação humana de seu conteúdo musical. Uma partitura com tal precisão
de escrita (“hoje o instrumento-máquina exige indicações gráficas precisas”
82
)
possibilitaria apenas uma realização correta.
Algumas partituras de realização (Realisationspartituren) de obras
eletrônicas
de
Stockhausen
podem
ser
caracterizadas
como
“escrita
79
VARÈSE, Edgard. “New Instruments and New Music (from a lecture given at Mary Austin House, Santa Fe,
1936)”. In: SCHWARTZ, Elliott e CHILDS, Barney (eds.). Contemporary Composers on Contemporary Music.
New York: Da Capo, 1978, p. 198.
80
A Toccata para piano mecânico de Paul Hindemith, composta diretamente neste instrumento e fixada em
papel perfurado, sem a mediação de uma partitura escrita, é um bom exemplo para a discussão da
ambigüidade desses limites. Ver HEBBEKE, Klaus. “Probleme beim Hören Eeektroakustischer Musik”, in:
RUSCHKOWSKI, André (org.). Die Analyse elektroakustischer Musik – eine Herausförderung an die
Musikwissenschaft?: wissenschaftliches Kolloquium im Rahmen der 4. Werkstatt Elektroakusticher Musik vom
26. bis 28. April 1991 in Berlin / Deustche Sektion der Internationalen Gesellschaft für Elektroakustiche Musik
(DecimE). Saarbrücken: Pfau, 1997.
81
Varèse (1936) [ver nota 79], pp. 197-98.
82
Varèse, p. 198.
23
1.3. A art des sons fixés
sismográfica”, pois também contêm um conjunto de instruções técnicas para se
alcançar um resultado sonoro específico83. No caso de Kontakte (1959/1960)84, a
Realisationpartitur − em formato de um diário – abre a possibilidade de pequenas
liberdades “interpretativas”. Nela, algumas instruções não são totalmente
deterministas: a definição do momento de entrada de alguns materiais, a procura
de uma duração adequada para um impulso em relação à freqüência do filtro, a
modificação do valor de algum sinal de controle em uma duração prédeterminada, a regulagem da realimentação do sinal elétrico de modo que seja
gerado um impulso soando como “pequenos sinos” etc. Mas é improvável que em
uma nova versão (caso esta venha a ser realizada) tais modificações assumam
algum valor “interpretativo”.
A idéia de uma notação capaz de incluir não apenas os valores musicais
tradicionais, mas também a definição de seu resultado sonoro, é viabilizada, a
partir de 1957, por Max Matthews, com o desenvolvimento da primeira versão de
uma série de compiladores acústicos (linguagens de programação voltadas para a
síntese digital de sons). As versões iniciais dessa série tinham o nome de Music,
e são as antecessoras do atual csound. Esses compiladores foram os primeiros
sintetizadores digitais, e trabalhavam em tempo diferido, ou seja, a produção de
seu resultado sonoro final não era automática. Isso se dava tanto pelas
exigências de processamento – superiores à capacidade das máquinas de então
− quanto pelo formato da programação, dividida entre uma orquestra (contendo
instrumentos virtuais) e uma partitura com as instruções de “performance”.
83
O fato de algumas destas partituras (Studie II, Hymnen, Telemusik) terem sido escritas e editadas após a
finalização das obras não invalida seu caráter “sismográfico”, ao mesmo tempo em que estimula a busca por
explicações de sua real finalidade. Ver Hebbeke (1991), p. 11.
84
Obra que apresenta duas versões: uma contém somente a parte pré-gravada (Elektronische Musik); a outra
adiciona à parte pré-gravada partes para um pianista e um percussionista. Partitura editada pela Universal
Edition, London: 13678LW (partitura de realização sonora) e 14246LW (partitura de execução).
24
1.3. A art des sons fixés
1.3.2. O “filme sem imagens”
Uma vez que agora a fotografia dos sons se dá através da exposição à luz de um
filme, estão disponíveis para a montagem acústica as mesmas possibilidades
existentes no corte do filme.85
(Ruttmann)
Em 1930, o cineasta alemão Walter Ruttmann realizou a obra Weekend,
uma montagem de tomadas sonoras, dividida em cinco cenas, com a duração de
11’20”. Apesar de não chamar essa criação de música, ele deixa claro o
parentesco entre tais atividades: “Certamente o hörspiel fotográfico está
subordinado a leis semelhantes às da música, mas decisivo é o fato de que a
sensibilidade para essas coisas é muito simples.”86 Essa foi, infelizmente, a única
experiência de Ruttmann com montagem acústica. Mais tarde, ele passou a
colaborar com o nazismo e filmou inclusive a ocupação de Paris pelos tanques
alemães, em 1940: Deutsche Panzer. Morreu em 1941.
A primeira metade do século XX é mais rica em especulações do que
propriamente em realizações de “filmes sem imagens”. A intensa produção alemã
de hörspiels nessa época apresenta uma forte tendência à valorização do texto
(muitas vezes literário) para que possa servir de exemplo a essa nova modalidade
musical de modo inequívoco. Mas, em outros países, foram levadas a termo
experiências dignas de menção.
Em 1941, John Cage, em trabalho conjunto com o poeta K. Patchen, criou
uma obra radiofônica entitulada The City Wears a Slouch Hat. Essa obra conta
com uma partitura de 250 páginas de efeitos sonoros imitando os ruídos reais de
uma cidade87. Cage, entretanto, admitiu em 1979 que “não obteve sucesso nesse
caso”88, devido à precariedade tecnológica da época.
Le Coquille à Planètes é uma ópera radiofônica em 8 episódios, realizada
no Studio d’Essai da rádio francesa em 1943−44, com música de Claude Arrieu;
ambientação e montagem de Pierre Schaeffer. Em Le Coquille, que foi ao ar em
85
Ruttmann [ver nota 77], p. 25.
Apud EISNER, Lotte H. “Walter Ruttmann schneidet ein Film-Hörspiel” (1930), in Goergen (1994), p. 30.
Artigo jornalístico publicado originalmente no Film-Kurier, vol. 12, no. 53 (1o. de março de 1930).
87
Cf. CAGE, John. Para los pajaros. Conversaciones com Daniel Charles. Caracas: Monte Avila, 1981, p.
308. Publicado originalmente em francês, em 1968. Tradução de Luis Justo.
88
Cf. FRISIUS, Rudolf. “Unsichtbare Musik – Akustiche Kunst” (1997). In: BLOMANN, Karl-Heinz e SIELECKI,
Frank (eds.). Hören: eine vernachlässigte Kunst? Hofheim: Wolke, 1997, p. 243.
86
25
1.3. A art des sons fixés
1944, buscou-se uma exploração mais “musical” das possibilidades da montagem
sonora.89
É no Entreguerras alemão que encontramos um dos mais importantes
textos sobre as possibilidades musicais abertas pelas novas tecnologias. Em uma
crônica de 1925, Kurt Weill especula sobre as “possibilidades da radioarte
absoluta”, na qual cobra da técnica e da montagem sonoras procedimentos
semelhantes aos do cinema.
O que o filme trouxe de novo: a mudança contínua de cenário, a simultaneidade
de dois eventos, o andamento [Tempo] da vida real e o tempo mais acelerado da
comédia satírica, a veracidade − similar à das marionetes − do filme de animação
e a possibilidade de se seguir uma linha desde sua criação até sua transição em
outras formas − tudo isto – transposto para relações acústicas − o microfone
também deve produzir. Assim como o filme enriqueceu os meios óticos de
expressão, também os meios acústicos devem ser imprevisivelmente multiplicados
através da radiotelefonia [Rundfunktelephonie]. A “câmera lenta acústica” deve ser
inventada − e muito mais. E tudo isso poderia então conduzir a uma radioarte
absoluta.90
Rudolf Arnheim, teórico e crítico de arte alemão, escreveu em 1933 sobre
sobre uma “inflação de novas artes” trazidas pelos últimos cem anos: “a fotografia
aparece por volta de 1830, o filme por volta de 1890, o rádio 1920, em 1930 o
filme sonoro.”91
Ao se examinarem os meios de composição, com a ajuda dos quais essas novas
artes exercem sua influência, surgem, apesar de toda diferenciação do aparato
técnico e das obras daí derivadas, coincidências tão espantosas que se é tentado
a falar de subdivisões de uma nova e única arte, a qual poderia ser chamada de
‘arte reprodutiva’.92
Qual é a especificidade dessa arte reprodutiva? O fato de que nela a própria
realidade se retrata.93
89
Ver BRUNET, Sophie. “Chronologie: Itinéraire, Œuvres e Manifestations”. In: Brunet (ed.). Pierre Schaeffer:
de la musique concrète à la musique même (número triplo 303–5 da Revue Musicale). Paris: Richard-Masse,
1977, p. 233.
90
WEILL, Kurt. “Möglichkeiten absoluter Radiokunst”, in DREW, David (ed.). Kurt Weill: Ausgewählte
Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1975, p. 130. Publicado originalmente em Der Deutsche Rundfunk, em 28 de
junho de1925.
91
ARNHEIM, Rudolf. “Film und Funk” (1933). In: Rundfunk als Hörkunst. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2001,
p. 211.
92
Arnheim, p. 211.
93
Arnheim, p. 211.
26
1.3. A art des sons fixés
...sua força está na ilustração, e seus métodos formais específicos consistem em
retratar a partir de um local de observação definido e segundo uma escolha
definida.94
Também Walter Benjamin, em seu hoje famoso ensaio de 1935 (“A obra de
arte na era de sua reprodutibilidade técnica” − primeira versão), aponta as
profundas mudanças trazidas pela reprodução técnica ao próprio conceito de obra
de arte:
Se o jornal ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado
estava contido virtualmente na fotografia. A reprodução técnica do som iniciou-se
no fim do século passado. Com ela, a reprodução técnica atingiu tal padrão de
qualidade, de modo que não somente transformou em seus objetos a totalidade
das obras de arte tradicionais, cujos efeitos submeteu a transformações
profundas, como conquistou para si um lugar próprio entre os procedimentos
artísticos.95, 96
As influências dessas novas artes reprodutivas, principalmente do cinema,
também se fazem sentir em outros meios culturais. Varèse não exclui a
possibilidade de que suas novas idéias sejam veiculadas pelo filme sonoro. Em
uma entrevista de 1930, cujo tema foi “Construirá o filme sonoro novas tendências
musicais?”, ele antecipa idéias da escrita sismográfica discutida anteriormente:
O executante, o virtuoso não deverão mais existir: uma máquina os substituirá
com vantagens. (...) O compositor contará, para se exprimir, com meios
aperfeiçoados e flexíveis. Sua idéia não será mais deformada pela adaptação ou
execução, como tem sido aquelas de todos os clássicos.97
Schaeffer, em um texto esboçado em 1941 − “Esthétique et technique des
arts-relais” −, expressa diferenças fundamentais entre a linguagem (o Verbo) e as
por ele chamadas de arts-relais (artes-relé, ou artes do meio), que se utilizam de
representações sonoras e visuais da realidade em sua composição: o cinema e o
94
Arnheim, p. 211.
BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (primeira versão, 1935). Walter
Benjamin: Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 167. Ensaio
escrito originalmente em alemão. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Grifo do autor. Tradução deste trecho
ligeiramente modificada pelo autor desta tese.
96
Na primeira versão desse ensaio, há um momento no qual Benjamin parece se esquecer da complexidade
da reprodutibilidade musical tradicional, ao comparar o ato de fotografar um quadro com o trabalho de um
regente: “Pois o desempenho do fotógrafo manejando sua objetiva tem tão pouco a ver com a arte como o de
um maestro regendo uma orquestra sinfônica: na melhor das hipóteses, é um desempenho artístico.” (p. 177)
97
VARÈSE, Edgar. “La Musique de Film” (1930). Écrits, p. 57.
95
27
1.3. A art des sons fixés
rádio:
Esta é a revolução que trazem o cinema e o rádio para nossos hábitos de
pensamento e de expressão. O homem não está mais só para ver o que quiser
ver, para escutar o que quiser escutar. Ele tem um parceiro. Alguém viu e escutou
em seu lugar, ele o descobre no entusiasmo ou na decepção.98
Com as idéias que ele faz do mundo, com as palavras com as quais ele nomeia as
coisas, o homem da linguagem se esforça em recriar um mundo real. As artes do
meio lhe trazem imagens e sons que seriam tão informes quanto o caos inicial se
ele não se esforçasse em fazê-los dizer alguma coisa. A partir do abstrato, a
literatura tende a reencontrar o concreto. O cinema e o rádio, artes
complementares, vão da coisa à idéia, do concreto ao abstrato.99
Se o cinema não teve maiores problemas em se tornar uma arte
independente, e o rádio – embora mais quantitativa do que qualitativamente –
adquiriu uma importância que nem a televisão conseguiu eliminar, o mesmo não
se passou com a exploração mais “musical” dessas artes do meio, que jamais
chegou a conquistar relevância cultural semelhante.
1.3.3. Legitimação
Os ouvintes de alto-falantes compreenderão, mais cedo ou mais tarde, que faz
mais sentido quando dos alto-falantes sai uma música que só pode ser escutada
junto a eles, e em mais nenhum outro lugar.100
(Stockhausen)
Nas idéias acima apresentadas, apenas Varèse se utiliza do termo música
para sua caracterização. Mas mesmo ele passará a usar o
organizado”
101
termo “som
para referir-se não apenas a uma possível obra fixada, mas
também à sua produção instrumental. E até o final da Segunda Guerra Mundial
essas idéias não conseguiram produzir novas obras condizentes com suas
expectativas. Varèse, por exemplo, teve que esperar até 1950 para “por a mão na
98
SCHAEFFER, Pierre. “Esthétique et technique des arts-relais” (1941). In: Brunet (ed.), p. 21.
Schaeffer, p. 23.
100
STOCKHAUSEN, Karlheinz. “Elektronische und instrumentale Musik” (1959). In: Texte zur elektronischen
und instrumentalen Musik - Band 1. Köln: DuMont, 1963, pp. 146-147. Primeira publicação em 1959, em die
Reihe no. 5.
101
Em 1940 Varèse escreve o artigo “Organized Sound for the Sound Film”, publicado originalmente em The
Commonweal, 13 de dezembro de 1940, pp. 204-205, e traduzido para o francês e republicado em Écrits
(Paris: Christian Bourgois, 1983, pp. 108-112). E em uma conferência na Universidade de Yale, em 1961, ele
afirmou: “...eu decidi chamar minha música de ‘som organizado’.” (Écrits, p. 164) John Cage, em 1937, em
uma palestra initulada “The Future of Music: Credo”, propõe a substituição do termo “música” por
“organização do som”. Essa palestra foi originalmente publicada em 1958 e republicada em Silence: Lectures
and Writings by John Cage. Hanover (NH): Wesleyan University Press, 1961, p. 3.
99
28
1.3. A art des sons fixés
massa”, com as obras Déserts (1950−54), para sopros, percussão, piano e
interpolações de som organizado102, e Poème Électronique (1957−58), obra
musical totalmente pré-gravada103, parte integrante da criação multimidia
homônima, coordenada por Le Corbusier para a exposição mundial de 1958, em
Bruxelas.
Até 1948, a utilização reprodutiva das novas tecnologias sonoras suplantou
completamente uma possível vertente produtiva, fazendo com que o surgimento
efetivo das artes dos sons fixados somente acontecesse em 1948, com a musique
concrète de Schaeffer. A partir de então, boa parte das iniciativas passa a usar
explicitamente o termo música em sua caracterização, fato que não dissipa nem
elimina a confusão e a proliferação terminológica104.
Atualmente, a obra musical fixada apresenta, segundo Delalande105, uma
vertente erudita e outra popular. François Bayle criou em 1974 o termo música
acusmática para designar a vertente culta106; a música techno representa a
vertente popular. Claude Cadoz refere-se a essas duas vertentes como “logique”
e “techno”107. Os produtos dessa arte dos sons fixados são facilmente
confundíveis com as reproduções musicais que se utilizam dos mesmos meios e
suportes tecnológicos, situação tornada ainda mais ambígua pela grande
exploração de situações híbridas por ambas as formas de produção. Pois tanto a
obra fixada pode-se utilizar de elementos de música tradicional, quanto a
interpretação fixada pode também explorar elementos da primeira. Geralmente, o
que é oferecido ao ouvinte através de alto-falantes traz elementos tanto ligados à
reprodução de uma interpretação quanto à produção musicais.
Uma obra musical – mesmo a totalmente fixada − não existe por si só; ela
deve, se não construir, ao menos prever sua comunicabilidade. Sua reprodução
102
A primeira versão das interpolações foi realizada nos estúdios da RTF, sob a direção técnica de Pierre
Henry.
103
Essa obra foi realizada nos laboratórios da Philips, em Eindhoven, Holanda.
104
O surgimento, após 1948, de diferentes práticas composicionais mediadas por novas tecnonogias será
discutido na primeira seção do terceiro capítulo.
105
Delalande [ver nota 17], pp. 32-50.
106
BAYLE, François. “la musique acousmatique, ou l’art des sons projetés” (1984). In: musique acousmatique
- propositions... ...positions. Paris: INA; Buchet/Chastel, 1993, p. 52. Texto de 1984, revisado em 1993.
107
CADOZ, Claude. “Musique, geste, technologie”. In: GENEVOIS, Hugues e VIVO, Raphaël de (eds.). Les
nouveaux gestes de la musique. Marseille: Parenthèses,1999, p. 78.
29
1.3. A art des sons fixés
em algum local definido, frente a um público, parece ser um elemento importante
para sua legitimação. É o mínimo de “performance” exigido, sem o qual perdemse quaisquer parâmetros de reconhecimento, apreciação e julgamento. Isso pode
se dar em situações diversas, tais como concertos108 ou situações mais funcionais
(contextos com imagens, dança, muzak etc.). François Bayle, por exemplo, se
pergunta: “O trabalho realizado − sonhado, identificado, fixado, ‘escrito’ − propõe
uma maquete, experimentada no contexto artificial do estúdio. Resistirá essa obra
à prova exterior?”109
O fato de que alguns autores da vertente erudita considerem que suas
criações só fazem realmente sentido em um ambiente de concerto, com uma mise
en scène adequada, cria uma situação que beira o paradoxal: uma obra
totalmente pré-fixada destinada a concretizar-se unicamente ao vivo. No livro Les
musiques électroacoustiques, de 1976, escrito em conjunto com Michel Chion,
Guy Reibel discute as dificuldades de se gravar em disco uma obra eletroacústica
totalmente pré-fixada, que, segundo ele, deve “ser produzida por uma orquestra
de alto-falantes para atingir suas verdadeiras dimensões.”110 O problema
enfrentado atualmente por alguns grupos de música popular (a apresentação ao
vivo ter de soar como o disco cuidadosamente trabalhado em estúdio) aparece
aqui de forma inversa, enfrentando desafios técnicos ainda maiores: a gravação
em disco deveria soar como a apresentação ao vivo. Uma outra possibilidade
apontada por Reibel é ainda mais utópica, não só pelas dimensões da
aparelhagem doméstica necessária, mas também por pressupor uma vontade
“interpretativa” por parte do ouvinte:
Assim, transferir diretamente o som eletroacústico em fita magnética para os
sulcos do disco supõe de forma implícita que o ouvinte dispõe de uma sala e de
um conjunto variado e numeroso de alto-falantes profissionais, bem posicionados,
e de uma mesa de som que lhe garantam a interpretação própria: não parece que
111
esse seja o caso.
108
Os concertos eletroacústicos são o tema principal desta pesquisa.
BAYLE, François. “pour une musique invisible: un acousmonium” (1975). In: Bayle (1993), p. 41. Texto de
1975, revisado em 1992. Grifo do autor.
110
CHION, Michel e REIBEL, Guy. Les musiques électrocacoustiques. Aix-en-Provence: Edisud / INA-GRM,
1976, p. 301.
111
Reibel, p. 301.
109
30
1.3. A art des sons fixés
Essas obras musicais envelhecem de um modo especial, pois não podem
mais ser renovadas por uma nova interpretação. O “original”, mesmo multiplicado
em inúmeras cópias, guarda as marcas do momento de sua fatura. Este fato,
característico de qualquer produto da era industrial, é ainda causa de desconforto
em alguns setores da música erudita, já que a idéia de composição musical ainda
guarda algo de idealidade, imaterialidade. E como a idéia de música baseada na
divisão entre uma concepção ideal e uma concretização sempre renovável (como
discutida no início deste capítulo) ainda está longe de se esvanecer, são poucas
as obras fixadas que gozam do mesmo status de fotografias, filmes ou mesmo
interpretações musicais mais antigas.
1.4.
O pensamento algorítmico
...uma categoria mais restrita de obras que, por sua capacidade de assumir
diversas estruturas imprevistas, fisicamente irrealizadas, poderíamos definir como
“obras em movimento”.112
(Umberto Eco)
A expressão de idéias musicais ligadas a um campo de possibilidades, e
não mais à prévia definição dos parâmetros passíveis de notação − já presente
nas obras abertas discutidas anteriormente113 −, traz em si certamente “as
ressonâncias
vagas
ou
definidas
de
algumas
tendências
da
ciência
contemporânea”, nas quais “se propõem lógicas de mais valores, que dão lugar,
por
exemplo,
114
cognoscitiva.”
ao
indeterminado
como
resultado
válido
da
operação
Essa prática ganha um novo e significativo impulso com a
aplicação e o desenvolvimento de algoritmos implementados em computadores a
112 Eco [ver nota 21], pp. 50-51.
113 Boehmer, no livro já citado (Zur Theorie der offenen Form in der neuen Musik), pp. 12-19, analisa uma
prática do período medieval ligada à aplicação de processos de indeterminação na música ocidental, descrita
por Guido D’Arezzo em seu tratado Micrologus. Por trás da afirmação de que “pode-se cantar tudo aquilo que
é escrito” encontra-se um esquema de associar à vontade as cinco vogais com cinco alturas diferentes.
114 Eco [ver nota 21], p. 56. Grifo do autor.
31
1.4. O pensamento algorítmico
partir de 1950. Seu uso se espalha por diferentes situações musicais, sejam
processos composicionais voltados para a fixação de uma obra em notação ou
em som, expressão de idéias musicais “infinitas”, síntese sonora, estratégias de
improvisação, processamento de som ao vivo, análise e recriação de obras etc. O
pensamento algorítmico pode levar a idealidade da composição musical a graus
extremos, nos quais nem mesmo “o verdadeiro produto da mente − a idéia
musical, o inalterável – […] estabelecido na relação entre alturas e divisões do
tempo”115 se mantém.
A Lexicon-Sontate (iniciada em 1992), para piano controlado por
computador, de Karlheinz Essl, é um bom exemplo desse novo tipo de concepção
musical.
Ao invés de ser uma composição na qual a estrutura é fixada pela notação, ela se
manifesta como um programa de computador que compõe a peça – ou mais
precisamente: um excerto de uma peça para piano virtualmente infinita.116
A execução dessa obra requer um computador carregado com o programa
do compositor – escrito no ambiente gráfico Max117 – que, após os cálculos
necessários, gera informações Midi para um piano acústico capaz de responder a
estas informações. (O compositor disponibilizou, em 1997, uma versão on-line da
obra.118) O programa decide, na hora, quais notas serão tocadas, sua dinâmica,
duração, segundo as características do discurso musical daquele momento
específico. Além de um modo automático de execução, um “intérprete” – não
necessariamente músico − pode também interagir com os módulos disponíveis
para a geração de idéias musicais. “Um módulo representa um modelo abstrato
de determinado comportamento musical. O módulo não contém qualquer material
musical pré-organizado, mas a descrição formal desse material e os métodos
pelos quais ele é processado.”119 Em 1995 o compositor relata a existência de 24
115 Schoenberg [ver nota 4], p. 326.
116 ESSL, Karlheinz. “Lexicon-Sonate: an Interactive Realtime Composition for Computer-Controlled Piano.”
Array (Communications of the ICMA), vol. 16, no. 1, 1996, p. 19.
117
Desenvolvido pelo IRCAM, comercializado posteriormente pela firma Opcode, e atualmente pela firma
Cycling74.
118
Ver www.essl.at/works/lexson-online.html. Embora seu resultado sonoro não seja tão rico como o da
versão original, esta versão on-line conta com as vantagens de uma distribuição e utilização praticamente
ilimitadas.
119
ESSL, Karlheinz. “Lexicon-Sonate. An Interactive Realtime Composition for Computer-Controlled Piano”
(1995). Anais do Segundo Simpósio Brasileiro de Computação e Música. Canela: UFRGS, 1995, p. 98.
32
1.4. O pensamento algorítmico
módulos, capazes de gerar resultados musicais com características claramente
perceptíveis, entre os quais se encontram Arpeggio, Clouds, Esprit, Figuren,
Gruppen, Glissandi, Motiv, Pointilist, Rêverie.120 Assim, a idéia composicional
propriamente dita permanece expressa nesses módulos (codificados em forma
algorítmica) e em suas inter-relações. Nessa obra, o próprio compositor é também
o responsável pela programação da “interpretação automatizada” ao piano, uma
tarefa não muito complicada do ponto de vista da automação do instrumento.
Ainda mais radical é a posição de Thomas Nagel, que acredita no
desenvolvimento de uma teoria geral dos processos composicionais, “uma teoria,
que, por assim dizer, descreve a estrutura fundamental – coletiva e arquetípica –
do ato composicional.”121 A ligação dessa teoria com as recentes descobertas do
campo científico é evidente:
Quando comecei a lidar, nos meados dos anos 1980, com a chamada teoria do
caos, reconheci no formalismo dessa teoria os fundamentos, sobre os quais
poderia construir minha teoria geral dos processos composicionais. Até o presente
momento, esta teoria consiste em vários programas de computador, que podem
ser utilizados para a composição de música instrumental e para a realização de
estruturas sonoras eletrônicas.122
A exploração de um campo de possibilidades (cuja definição e limites
dependem de cada obra em questão) não mais como versões incompletas de
uma obra virtualmente infinita, e sim como instrumento de produção de materiais
para posterior seleção e fixação, é também uma prática composicional bastante
comum, tanto na escrita instrumental quanto nas artes dos sons fixados. Pois um
programa pode, em cada uma de suas execuções, “não apenas fornecer material
musical definitivo, mas também inserir-se em uma estratégia de análisemodificação, que pode, por sua vez, gerar os fundamentos de uma modificação
construtiva dos algoritmos do programa.”123
É também comum a postura de que não há mais necessidade de se fixar
as
criações
artísticas
de
modo
definitivo,
sendo
mais
importante
o
120
Cf. Essel, pp. 101-103.
NAGEL, Thomas. “’Fraktalität als eine neue Möglichkeit zur Klangbeschreibung am Beispiel der Iterations I”
(1991). In: Ruschkowski (ed.), p. 92.
122
Nagel, pp. 92-93.
123
REITH, Dirk. “Analyse und Interpretation in der algorithmischen Komposition”. In: Ruschkowski (ed.), p. 51.
121
33
1.4. O pensamento algorítmico
desenvolvimento de obras dentro de uma estratégia que não visa a um resultado
final, e sim à exploração e ao refinamento dos processos criativos. O foco criativo
passa a se concentrar na criação desses processos e de formas de controle sobre
seus resultados, não mais definitivos. Some-se a isto a crescente digitalização de
todas as formas de representação humana, que, além de promover a
indiferenciação entre originais e cópias, também incentiva uma atividade criativa
mais voltada para processos e transformações que para obras finalizadas124. A
idéia de finalização passa a ser aplicada preferencialmente àquelas obras
realizadas anteriormente em outros meios, de fácil identificação, e prontas a
serem convertidas em “material” digital.
A gravação deixou de ser o principal fim ou referência musical. Não é mais do que
o traço efêmero (destinado a ser sampleado, deformado, misturado) de um ato
particular no seio de um processo coletivo.[...] [Q]uando um músico oferece uma
obra acabada à comunidade, ele ao mesmo tempo faz um acréscimo à reserva a
partir da qual os outros vão trabalhar. Cada um é, portanto, ao mesmo tempo
produtor de matéria-prima, transformador, autor, intérprete e ouvinte em um
circuito instável e auto-organizado de criação cooperativa, e de apreciação
concorrente.125
Nesse contexto, não faz mais sentido opor a idéia de produção (em um
momento prévio) de uma obra à sua reprodução (interpretação). E, obviamente,
as novas ferramentas à disposição dos compositores não são mais tão exclusivas
e distantes de um ouvinte comum, ao qual pode-se perfeitamente aplicar a
caracterização feita por Delalande ao compositor eletroacústico erudito:
“rigorosamente, desnecessário se ler ou escrever música, mas em compensação,
uma facilidade cada vez mais necessária face às máquinas, aos softwares.”126 Se
a utilização de algoritmos contribui para a quebra do equilíbrio entre a obra
musical idealizada e sua interpretação concreta, uma vez que realizações sonoras
124
Esse fato não impede que alguns compositores considerem o meio digital como o meio ideal para
produção de suas obras com sons pré-fixados. Por exemplo: “Por razões técnicas, estéticas, logísticas e
sociológicas, muitos músicos compõem tendo em mente o CD como a mídia ideal, independentemente do
fato de que eles esperem que sua peça tenha um número razoável de apresentações públicas ou mesmo que
sobreviva indefinidamente como uma obra de concerto.” AUSTIN, Larry e WASCHKA II, Rodney. “Computer
Music for Compact Disc: Composition, Production, Audience”. Computer Music Journal , vol. 20, no. 2, 1996,
p. 26. Também Denis Smalley se refere ao CD como “o meio ideal“ de disseminação de música
eletroacústica. SMALLEY, Denis (1992). “The Listening Imagination: Listening in the Electroacoustic Era”. In:
PAYNTER, John; HOWELL, Tim; ORTON, Richard e SEYMOUR, Peter (eds.). Companion to Contemporary
Musical Thought (2 volumes). London; New York: Routledge, 1992, vol. 1, p. 552.
125
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1997, p. 142. Escrito originalmente em 1997. Tradução
para o português de Carlos Irineu da Costa.
126
Delalande [ver nota 17], p. 44.
34
1.4. O pensamento algorítmico
muito diversas podem não mais indicar a sua origem comum, também a
representação digital colabora para o enfraquecimento da idéia de obra original,
ao não mais fazer distinções ou demarcar precedências – autorais ou temporais −
entre esta e suas cópias ou transformações.
1.5.
Sobre a noção de "ao vivo" em música
Música é o melhor meio que temos para digerir o tempo.127
(Auden)
A utilização do termo "ao vivo" na caraterização de diversas atividades
humanas tem a ver menos com uma qualificação intrínseca do que com uma
oposição entre as diferentes possibilidades de se realizar esta mesma atividade,
na qual uma delas apresenta maior grau de imediaticidade e/ou presença física
viva do que a(s) outra(s). Duas situações extra-musicais ilustram esta aplicação
proeminentemente comparativa do termo "ao vivo". Em instituições de ensino
inglesas o exame final de qualificação acadêmica deve ser realizado de forma oral
− processo intitulado viva (oriundo de viva voce) − e não de forma escrita; em
estudos de anatomia animal não é rara a dissecação ao vivo, em oposição a
cortes feitos em organismos já mortos.
No caso do rádio a situação é um pouco diferente: a chamada transmissão
ao vivo pressupõe a existência de um evento − limitado no tempo e espaço − cuja
transmissão seja simultânea a seu desenrolar. A oposição aqui não se dirige à
transmissão em si − que está sempre fadada a acontecer ao vivo − mas a outras
127
AUDEN, Wystan H., apud WATSON, Derek (org.). Dictionary of Musical Quotations. Hertfordshire:
Wordworth, 1994, p. 3.
35
1.5. Sobre a noção de ao vivo em música
configurações possíveis entre o evento e sua transmissão: ou não há transmissão
alguma do evento, ou se transmite do próprio local do evento, porém em um
momento diverso do ocorrido, ou ainda se transmite uma gravação do evento em
questão.128
A utilização desse termo no campo musical apresenta novas facetas e
nuances. Se a oposição tradicional ao "ao vivo" é feita pela noção de gravado,
não é raro encontrarmos a menção de uma gravação ao vivo; nesse caso tratase de uma gravação de um evento limitado no tempo e espaço (um concerto, por
exemplo), em oposição a uma gravação montada a partir de excertos de
diferentes execuções, ou como resultado da superposição de partes gravadas de
modo não sincrônico. Mas nem mesmo a co-presença em um determinado evento
é garantia da experiência ao vivo, pois pode-se estar diante de uma atuação
musical com play-back, seja total ou parcial. Os concertos, nos moldes em que
foram concebidos e praticados no século XIX, são eventos que têm como um de
seus pontos fortes os desafios enfrentados ao vivo por um intérprete na
concretização de uma obra musical. Mas desde a "falta original"129 de Pierre
Schaeffer, cometido em 1950, programas de concerto passam a contar com obras
eletroacústicas contidas em uma gravação pré-existente, as quais, além de
prescindir de uma atuação interpretativa para a criação de seus sons, também
não fazem, via de regra, referência explícita a eventos já acontecidos. Os novos
instrumentos e controladores trazidos para o palco por outras vertentes da música
eletroacústica trazem ainda novas complicações para a construção do ao vivo
durante uma apresentação pública.
Se a aplicação do termo ao vivo na música está tradicionalmente ligada ao
ato da interpretação musical de uma obra previamente composta, os outros
modos de reprodução acima abordados − a fixação da interpretação (e a
autonomia da escuta daí derivada), a arte dos sons fixados, a representação
algorítmica (que pode estar relacionada com o ato composicional ao vivo) −
também merecem ser analisadas sob esse ponto de vista. Na presente seção,
serão abordados apenas aspectos indispensáveis para a conclusão deste
128
Mais recentemente, a utilização do termo “on line” no campo da comunicação digital traz conotações
semelhantes.
129
SCHAEFFER, Pierre. La musique concrète. Coleção "que sais-je?". Paris: Presses Universitaires de
France, 1973 (2ª edição), p. 6. Primeira edição em 1967.
36
1.5. Sobre a noção de ao vivo em música
capítulo; a discussão mais aprofundada de tópicos específicos – a escuta como
prática musical autônoma e a análise dos elementos constituintes de um concerto
eletroacústico – será feita nos capítulos seguintes.
A situação mais característica da interpretação (e da própria idéia de
música) ao vivo é a de um músico tocando frente a uma platéia, sem
amplificação. Toda produção sonora vem da interação entre o instrumentista (ou
cantor) e seu instrumento. Esta interação é a um só tempo energética, mecânica
e musical. O instrumentista põe em vibração um refinado sistema acústico, cujo
domínio lhe exigiu uma dedicação considerável, com o objetivo de tocar da
melhor maneira possível o programa musical escolhido. Também faz parte desse
processo a interação do músico e seu instrumento com o ambiente específico em
que se encontra.
Claude Cadoz analisa com detalhes as características do gesto
instrumental, dividindo-o primeiramente em tipos (de excitação, de modificação,
de seleção), resumindo-o em seguida como “o conjunto dos comportamentos
gestuais aplicados ao instrumento, dos quais uma parte produzirá a energia
necessária à realização da tarefa.”130 Duas propriedades físicas são para ele
fundamentais: “o gesto deve ser ergótico; a cadeia instrumental deve assegurar
uma continuidade energética.”131 Ele define o gesto ergótico como aquele “que
transforma fisicamente o meio circundante ao utilizar a energia acumulada no
corpo humano.”132 Questões de retro-alimentação energética entre o músico e seu
instrumento são também fundamentais na técnica instrumental, fato que acaba
por envolver a totalidade do aparelho sensório-motor do executante.133
A
interpretação
constitui-se
em
um
elemento
essencial
para
a
complementação das lacunas deixadas pela notação em uma obra, que podem
variar das indicações para-composicionais do baixo cifrado barroco à exigência
mínima de interpretação feita por Stravinsky: "minha música deve ser 'lida' para
130
Cadoz [ver nota 107], p. 62.
Cadoz, p. 72.
132
Cadoz, p. 68.
133
Embora de forma não explícita, o órgão de tubos ocupa um lugar especial nesse artigo. Ele é citado como
exemplo de máquina que se utiliza da amplificação (um tipo de relé energético, característico do gesto não
instrumental – cf. pp- 73-74); por outro lado, no resumo tipológico dos gestos instrumentais, a mudança de
registros no órgão figura como exemplo de um gesto de modificação estrutural. (p. 92)
131
37
1.5. Sobre a noção de ao vivo em música
ser 'executada', não para ser 'interpretada’”134 A prática da composição com
"formas abertas" levou estas lacunas a uma dimensão extrema, onde muitas
vezes o trabalho do criador se limitou a algumas indicações imprecisas sobre a
execução, tornando o intérprete um verdadeiro co-autor da obra. A interpretação
de obras abertas pôde incentivar a colaboração entre compositor e intérprete,
além de propiciar ao intérprete uma experiência musical menos tecnicista e mais
“livre”. Estas situações são propícias para que a noção de ao vivo esteja mais
ligada à experiência pessoal dos envolvidos (em comparação com um ato
interpretativo tradicional) que ao resultado sonoro propriamente dito. Pois, para o
ouvinte, essa situação não apenas aumenta as incertezas sobre a identidade da
obra, como também confunde a sua possível avaliação do trabalho do intérprete,
já “que no decorrer de uma composição não se pode mesmo compartilhar com o
ouvinte as regras da roleta sonora.”135
A dependência da interpretação, objeto de preocupação de muitos
compositores, seja por falta ou excesso de liberdade do intérprete, é ao mesmo
tempo uma das grandes riquezas da experiência musical. Béla Bartók, em seu
artigo sobre música mecânica, afirma que, devido à variabilidade da interpretação,
“o melhor fonógrafo imaginável, portanto, não será jamais capaz de atuar como
substituto da música ao vivo.”136 Na realidade, o uso da caracterização de ao vivo
para a interpretação musical só passa a fazer sentido a partir da existência de
outros tipos de interpretação: uma gravação, uma execução mecanizada, ou
ainda uma apresentação musical dublada. Em todos estes casos, a cadeia
energética direta é interrompida, a noção de interação instrumental desaparece;
em alguns deles, até mesmo os gestos passam a ser desnecessários para a
produção sonora. Por outro lado, o início da reprodução fonográfica é
contemporâneo de uma tendência à complexidade na escrita composicional, cujas
exigências passam a superar os padrões da instrução musical e da prática
instrumental em vigor. Schoenberg chega a defender o uso de instrumentos
mecanizados com o objetivo de “tornar as execuções independentes do
despreparo do intérprete” nos casos em que “os perigos de um produtor de sons
134
STRAVINSKI, Igor e CRAFT, Robert. Conversas com Igor Stravinski. São Paulo: Perspectiva, 1984, p. 98.
Publicado originalmente em 1959. Tradução do inglês de Stella Rodrigo Octavio Moutinho.
135
Boehmer (1967) [ver nota 8], p. 98.
136
Bartók [ver nota 45], p. 298.
38
1.5. Sobre a noção de ao vivo em música
primitivo, não confiável e relutante”137 ameaçarem a integridade da obra musical.
Caminho
inverso
trilhou
a
música
eletroacústica,
quando
alguns
compositores sentiram falta de elementos ao vivo nas apresentações públicas de
suas obras pré-fixadas em fita magnética, e reintroduziram a interpretação
humana nesse novo contexto composicional. Quando se trazem ao palco novos
instrumentos
(sejam
equipamentos
de
áudio,
sensores,
controladores,
computadores), um novo tipo de análise se faz necessário, pois a relação entre o
intérprete e seu instrumento não é mais do tipo instrumental (caracterizada pela
continuidade energética entre o gesto humano e o sistema vibratório). Isto pode
gerar diversas distorções entre a percepção gestual e auditiva, uma vez que sons
podem surgir sem um vínculo imediato com a atuação do intérprete, do mesmo
modo que seus gestos também não são garantia de surgimento de um evento
sonoro. Simon Emmerson chega a diferenciar entre “real-time” e “live”. Se para
ele a noção de tempo-real pode ser “totalmente arbitrária”, bastando para isto que
uma ação seja feita simultaneamente à sua percepção, a restauração da noção
de ao vivo em uma época de rupturas espaciais, temporais e causais dos sons é
bem mais complexa. Ele acredita que é “no campo do timbre que a única conexão
entre o verdadeiro ‘ao vivo’ e o tempo-real pode ser feita”, por meio da criação de
“relações aparentemente causais”, nas quais “tanto informações timbrísticas
quanto articulação (sintaxe) interagirão para convencer o ouvinte acusmático de
uma presença ao vivo.”138
De início, parece-nos que a noção de ao vivo aplicada à audição musical é
apenas a contrapartida da interpretação ao vivo, já que esta não faz sentido sem
aquela. Ilustra a situação a frase freqüentemente utilizada: “Escutei fulano ao
vivo.” No entanto, a discussão ganha novos contornos quando se aborda a
mesma questão em sentido inverso: uma escuta musical ao vivo necessita
realmente de uma interpretação ao vivo? A experiência do ouvinte do século XX,
acostumado às distorções espaço-temporais na percepção auditiva, responde
negativamente a esta pergunta, ao mesmo tempo em que enfatiza a grande
autonomia por ele conquistada. Adicionalmente, se considerarmos a escuta não
137
Schoenberg [ver nota 4], p 328.
EMMERSON, Simon. “’Live’ versus ‘Real-time’”. Contemporary Music Review, vol. 10, Part 2, 1994, p. 99.
Grifo do autor.
138
39
1.5. Sobre a noção de ao vivo em música
simplesmente como um processo fisiológico simultâneo a uma emissão sonora, e
sim como tomada de consciência de eventos sonoros, podemos ainda identificar
outras duas situações relativas à percepção auditiva: “ouvir sem escutar” (estar
presente sem se dar conta dos eventos sonoros) e “escutar sem som” (ler uma
partitura, decorar uma obra musical, “reescutar” uma conversa). No caso musical,
sempre que um objeto remete a uma qualidade de sentimento sonora pode
implicar de algum modo um objeto musical, mesmo que o objeto dinâmico –
aquele que dispara tal sentimento – não seja um fenômeno acústico. Pode-se falar
de música mesmo na ausência física de som.139
Pode-se inferir da discussão acima que estamos excluindo da noção de
escuta musical ao vivo apenas as situações dominadas por uma escuta desatenta
e involuntária. As novas relações do ouvinte com gravações musicais podem ser
ilustradas por uma curiosa campanha de marketing promovida por Thomas
Edison para seu novo diamond disc, entre 1915 e 1926. Ela era baseada em tonetests:
Um artista posiciona-se ao lado do New Edison Phonograph e canta − ou toca. De
repente, e sem aviso, o artista pára e o New Edison continua sozinho. O teste
consiste em verificar se o público, de olhos fechados, pode dizer quando o artista
parou de cantar − ou tocar. Onde as instalações permitem, as luzes são apagadas
de repente e o artista se retira do palco, deixando o New Edison realizar seu feito
miraculoso de recriação da voz do cantor − ou da performance instrumental − com
tal realismo que o público não se dá conta da retirada do artista até que as luzes
sejam novamente acesas.140
A intenção de Edison era demonstrar que “era praticamente impossível
distinguir a voz do cantor ao vivo de sua recriação no instrumento”141. Com essa
estratégia baseada na equivalência entre uma interpretação ao vivo e a
reprodução de uma gravação, Edison tenta disfarçar as rupturas espaçotemporais provocadas pelo fonógrafo. A transferência dessa equivalência para o
139
FERRAZ, Silvio. “Música e comunicação: Ou, o que quer comunicar a música?” Anais do XIII Encontro
Nacional da ANPPOM. Belo Horizonte: UFMG, 2001, vol. 2, p. 516.
140
Este texto é citado por Harvith [ver nota 44], p. 12, onde o leitor é remetido à seguinte nota: “From a letter
drafted by the Federal Advertising Agency, March 2, 1920, and sent on Edison company letterhead to James
Montgomery Flagg, in the files of the Edison National Historic Site” (p. 20).
141
Citado por Thompson [ver nota 49], p. 132. A fonte primária é: “Demonstrate New Edison Invention”,
Boston Journal, 19 de Novembro de 1915.
40
1.5. Sobre a noção de ao vivo em música
ambiente privado é um pequeno passo. É exatamente isto o que acontece no
romance já citado de Thomas Mann:
Reclamaram mais música e receberam-na. Uma voz humana brotou da arca, voz
máscula, ao mesmo tempo macia e poderosa, acompanhada por uma orquestra.
Era um barítono italiano e de grande fama. Desta vez já não se podia falar de
distância e de véus abafadores. A magnífica voz ressoava na plenitude natural de
seu volume e vigor. Quem passasse para uma das salas vizinhas, cujas portas
estavam abertas, e não visse o aparelho, poderia pensar que o cantor em carne e
osso estivesse presente, e cantasse com as músicas na mão.142
Instrumentistas, ao ouvir gravações de seu próprio instrumento, constroem
ainda um outro tipo de escuta ao vivo: eles conseguem muitas vezes recriar
mentalmente os gestos necessários àquela execução específica. Schaeffer
classifica este tipo de escuta como especializada (em oposição a uma escuta
banal143) e também como escuta musicista (oposta à escuta musical144). Um bom
exemplo de escuta musicista é dado por ele ao imaginar as reações de uma
pessoa que escuta uma criança brincar de fazer sons com uma folha de capim:
Não lhe resta senão se identificar com a criança, soprar com ela, dar conta ou
falhar: a folha estala, se recorta, endurece, estoura, é como se ele próprio a
tocasse. O sopro é curto, longo, bem feito, precoce: é ainda o ouvinte, ao qual
falta o sopro, sendo torturado.145
Vale também lembrar que o século XX foi rico em exortações a uma
participação mais ativa do ouvinte na definição do próprio objeto musical. Se
vários desses textos ainda defendem, mesmo que de forma dissimulada, a própria
obra ou gênero musical praticado pelo compositor/escritor, é com John Cage que
esta postura atinge seu momento mais radical. Fundamental nas posições
estéticas mais conhecidas de Cage parece ser o fato de que a audição assume
uma total independência face a seus correlatos musicais (composição e
interpretação). “Compor é uma coisa, tocar é outra, ouvir é uma terceira. O que é
que elas podem ter em comum?”146 Se no meio musical essa postura foi muitas
vezes encarada como destrutiva, abriu-se, por outro lado, uma nova experiência
142
Mann [ver nota 55], p. 714.
Schaeffer (1966) [ver nota 12], pp. 120-128.
144
Schaeffer, pp. 332-348.
145
Schaeffer, p. 340.
146
CAGE, John. “Experimental Music: Doctrine”. In: Silence, p. 15. Publicado originalmente em 1955.
143
41
1.5. Sobre a noção de ao vivo em música
estética, dependente exclusivamente das intenções do ouvinte. O mundo audível
se tornou uma ‘obra’ em perpétuo movimento, passível de ser escutada a
qualquer momento, bastando para isto a intenção voluntária do ouvinte.
Algumas situações que misturam o registro sonoro e a noção de ao vivo já
foram mencionadas anteriormente: gravações “ao vivo”, execuções musicais com
play-back, a escuta doméstica de gravações147. Um caso especial dessa mistura
é a apresentação de uma obra acusmática em concerto. Apesar da maioria dos
ouvintes estar acostumada à fruição musical “ao vivo” frente a gravações, as
expectativas geradas por um concerto são de outra ordem. As duas experiências
não se acumulam de forma imediata e sem conflitos. Não só porque se espera de
um concerto elementos de uma performance instrumental altamente qualificada e
os desafios a ela relacionados, mas também porque nessa situação o ouvinte não
tem nenhum controle e acesso à gravação e à aparelhagem de difusão sonora.
Obviamente o design do concerto, a qualidade da aparelhagem e sua
adequação ao espaço de difusão, e as especificidades de cada obra exercem
grande influência sobre o ouvinte de obras acusmáticas. Mas é também inegável
que a intensidade da sensação de ao vivo depende primordialmente da atitude do
ouvinte, que algumas vezes não tem nada a ver
com a de seu vizinho de
poltrona. O ouvinte familiarizado com as novas tecnologias sonoras e modos de
escuta está mais preparado para uma experiência musical desse tipo, apesar de
muitas vezes questionar o ritual de concerto que envolve esta experiência. Já o
ouvinte tradicional de concertos, embora não raramente envolvido pelo conteúdo
composicional das obras, sente-se incomodado com as várias faltas: falta de algo
para se ver, de uma performance instrumental ao vivo, de identificação das fontes
sonoras, da idéia de uma recriação sempre renovada de uma obra pré-existente.
Não é uma idéia comum associar a noção de "ao vivo" com o ato
composicional, pelo menos na tradição ocidental. A composição é normalmente
concebida como uma atividade autônoma e anterior à apresentação de seu
resultado. Mas mesmo dentro dessa tradição, as especulações de Roger
Sessions, por exemplo, deixam entrever um suposto período na história da
147
Outras duas situações também merecem ser aqui lembradas: as performances de um DJ, que cria novos
ritmos a partir de gravações existentes (scratch), e as obras que exigem em sua partitura a gravação de
trechos de sua própria apresentação ao vivo, trechos estes que passam então a ser elementos integrantes da
composição em momentos posteriores.
42
1.5. Sobre a noção de ao vivo em música
humanidade na qual uma atividade musical sem diferenciação entre seus
participantes era a prática comum.
De fato, compositor, intérprete e ouvinte podem, sem exagero indevido, serem
encarados não somente como três tipos ou graus de relacionamento com a
música, mas também como três estágios sucessivos de especialização. No início,
sem dúvida, os três foram um só.148
Nessa situação, caracterizada pela indiferenciação entre as funções do
compositor, do intérprete e do público, o uso do termo composição ao vivo faz tão
pouco sentido quanto a tentativa de identificação de uma atividade menos ao vivo,
que se oporia a ela. Mas, ainda segundo Sessions, “o compositor começou a
emergir como um tipo diferenciado exatamente no momento em que um trecho de
material musical alcançou tal forma que seu produtor se sentiu impelido a repetila.”149
As grandes mudanças causadas pelo desenvolvimento e disseminação dos
novos meios tecnológicos de (re-)produção sonora permitiram o surgimento de
novas práticas ligadas à idéia de composição ao vivo. Aqui, o termo “ao vivo”
significa a simultaneidade entre a criação da obra e sua apresentação pública, em
oposição ao modelo tradicional de composição. Nessas situações, fugacidade,
irrepetibilidade,
improvisação
são
características
determinantes,
o
que
praticamente inviabiliza a aplicação de critérios mais tradicionais (originalidade,
identidade e estrutura da obra, exatidão da interpretação) em seu julgamento e
apreciação. Esta prática de composição/interpretação se dá por meio da criação
coletiva feita por grupos puramente instrumentais, ou também pela utilização de
sistemas, quase sempre interativos, eletrônico-digitais. Se diferentes grupos
instrumentais desenvolvem técnicas específicas de condução e articulação de um
discurso musical não previamente determinado, os sistemas interativos, por seu
lado, contam com diferentes estratégias de programação e performance. É óbvio
que tais estratégias e sistemas não devem ser completamente deterministas, o
que contrariaria a própria essência da composição ao vivo.
148
SESSIONS, Roger. The Musical Experience of Composer, Performer, Listener. New York: Atheneum,
1965, p. 4. Publicado originalmente em 1950.
149
Sesions, p. 5.
43
1.5. Sobre a noção de ao vivo em música
As situações acima descritas admitem uma dupla leitura: para alguns, elas
representarão apenas a realização de uma idéia anterior, mesmo que apenas
vagamente pré-determinada (seja pela experiência acumulada em cada músico,
seja durante os ensaios, seja pela programação prévia de algoritmos). Para
outros, elas podem representar uma reordenação ou superação de conceitos
musicais bastante arraigados, tais como a estrita separação de funções entre o
compositor, o intérprete e o ouvinte. De todo modo, nessas novas práticas o
compositor se torna muitas vezes um intérprete indispensável, o intérprete se vê
confrontado com uma considerável ampliação de suas funções, enquanto o
ouvinte é chamado a ter um papel mais ativo na própria definição da obra musical
que lhe é oferecida. Essa atitude mais ativa por parte dos ouvintes deve-se, em
boa parte, à experiência adquirida junto aos novos meios de produção,
reprodução e transmissão sonoras, tema do próximo capítulo.
44
Download