O Demônio de Maxwell e a Física da Vida

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O Demônio de Maxwell e a Física da Vida
H. Moysés Nussenzveig
[email protected]
A 2a Lei da Termodinâmica
irreversibilidade
Num sistema isolado, a entropia
(desordem) tende a aumentar
a seta do tempo
Só há transferência espontânea de
calor de um corpo quente para um frio
Não se pode usar uma geladeira para ferver água, nem um fogão para congelá-la!
O Demônio
“Now let us suppose that such a vessel is divided into two portions, A and B, by a division in
which there is a small hole, and that a being, who can see the individual molecules,
opens and closes this hole, so as to allow only the swifter molecules to pass from
A to B, and only the slower molecules to pass from B to A” (Maxwell, 1871).
O trabalho gasto para manipular a portinhola pode ser considerado desprezível.
Assim, a transferência de calor de A para B violaria a 2a lei. A intenção de Maxwell
não era criar um paradoxo, mas apenas enfatizar o caráter estatístico da 2a lei.
Entretanto, durante quase um século, foi tratado como um paradoxo, e foram feitas
inúmeras tentativas (erradas!) para exorcizar o demônio.
O Gás Unimolecular de Szilard
1
2
V2
3
dV
V
V1
W = ∫ p dV = kT ∫
V1
4
V2
 V2 
= kTln   = kTln 2
 V1 
∆Q W
∆S =
=
= k ln 2
T
T
1. O demônio insere uma partição no ponto médio do recipiente, que contém uma só molécula.
2. O demônio detecta de que lado está a molécula e instala o pistão ligado ao peso.
3. Expansão isotérmica do gás unimolecular ao volume inicial. Calor kT ln 2 é extraído do meio.
4. O pistão é removido. O sistema voltou ao estado inicial e o ciclo pode ser repetido.
Efeito global do ciclo: conversão do calor ΔQ = kT ln 2 extraído do ambiente em trabalho,
armazenado no peso levantado. Repetição ilimitada do ciclo permite conversão ilimitada de calor
de um único reservatório térmico em trabalho, violando a 2a lei (moto contínuo de 2a espécie).
Szilard propôs que há um aumento compensatório de entropia originário do processo de
detecção para localizar de que lado está a molécula. Essa não é a explicação correta.
L. Szilard, Z. Physik 53, 840 (1929).
Simulação experimental do demônio de Szilard.1
S. Toyabe et al., Nature Physics 6, 988 (2010)
Determinar se a molécula está à esquerda ou à direita  1 Bit de informação ΔI = k ln2
Uma nanopartícula está num banho térmico sujeita a um potencial
em escada,com degraus de altura ≈ kT. Embora com flutuações,
a tendência é que desça, mas ela é observada continuamente:
quando salta para cima, o demônio bloqueia o degrau de baixo
(feedback = portinhola), obrigando-a a subir.
A informação sobre localização é
convertida em energia livre de subida.
Informação é uma grandeza física!
No arranjo experimental, a partícula é um
dímero suspenso por um ponto, sujeito a
flutuações rotacionais. A ele se aplica um
torque por um campo elétrico oscilante de
polarização elíptica, definindo uma senóide
inclinada (‘escada’ em preto), cuja fase
pode ser invertida (curva vermelha).
Simulação experimental do demônio de Szilard.2
A posição angular da partícula é observada em t = 0.
Se estiver na região ‘S’, inverte-se o potencial em
t = ε (o que corresponde à introdução do bloqueio
= portinhola). Caso contrário, nada se faz, até t = τ
= 1 período, após o que o ciclo é repetido. Se ε é
grande, a partícula já terá caído de um degrau, mas
se ε é pequeno ela é elevada para o degrau de cima.
O resultado confima que para ε pequeno a partícula
‘sobe’ (rotação unidirecional contínua), convertendo
Informação em energia livre, ao passo que para ε
grande tende em média a cair.
Vídeo: orientação da
partícula
O demônio exorcisado: o Princípio de Landauer
Landauer, R. Irreversibility and heat generation in the computing process. IBM J.Res. Develop. 5, 183–191 (1961).
Landauer rejeitou a sugestão de Szilard de que o aumento ∆ S de entropia que
salva a 2a lei ocorre quando o demônio adquire informação sobre de que lado está
a partícula. Como num computador, a aquisição de informação pode ser tornada
reversível. Irreversível é o ato de apagar a informação (memória do demônio). Ele
mostra que, pela 2a lei,
Princípio de Landauer:
Apagar 1 bit de informação requer um aumento de entropia ∆ S ≥ k ln 2
Verificação experimental
A. Bérut et al., Nature 483, 187 (08/03/2012). Só agora comprovada!
Uma microesfera de sílica imersa num fluido é capturada por
um feixe de laser (pinça ótica) cujo foco é alternado entre duas
posições diferentes, criando um duplo poço de potencial para
simular 1 bit de informação (esquerda ou direita, a). Se a barreira
é baixa (b), a particula pode localizar-se à esquerda = posição 0.
Aplicando uma força para inclinar o potencial, ela pode ser
forçada (c, d, e) a saltar para a direita = posição 1. Se já estava
em 1, lá permanece. Isso equivale a apagar a memória (f).
Para minimizar a produção
de entropia, o processo
deve ser quase-estático.
Medindo o calor gerado
em função do tempo de
execução do processo,
observa-se que ele tende
a um limite dado pelo
Princípio de Landauer.
Física e Biologia
Nada na biologia faz sentido se não for visto à luz da evolução.
Theodosius Dobzhanski (1973)
Os organismos vivos têm um programa: “Crescei e muliplicai-vos”
Genesis 9:7
O “átomo de H” da biologia?
Crick: Uma célula é como a caixa de costura da Vovó
Como Funciona a Vida?
Schrödinger (1947): Gene como cristal aperiódico —› biopolímero.
Von Neumann (1948/9): Autômato auto-reprodutor. Teoria dos jogos.
Turing (1952): Morfogênese e mecanismo de reação-difusão.
Watson & Crick (1953): Dupla hélice: o segredo da vida?
Parte dele (GENÓTIPO):
1. Programa (software) = genoma. Além do DNA: (revolução!) o RNA.
2. Capacidade de replicação, com mutações (raras!) seleção natural
3. Pareamento de bases: A – T (U), G – C
4. O código genético: tripletos —› aminoácidos. Ex.: CUG —› Leucina
Mas (FENÓTIPO):
5. Crescimento, Metabolismo: cadeia de reações químicas: sistema
aberto longe do equilíbrio, alimenta-se de ordem (“negentropia”)
resultante da interação com o ambiente. Fonte:  O Sol. Combustível:
hidrólise do ATP —› ADP + Pi
Catálise: Enzimas (muito específicas) aceleram as reações por muitas
ordens de grandeza.
6. Auto-organização (Homeostase): um organismo vivo é um sistema
complexo adaptativo. (Mínimo: centenas de genes; milhares de reações).
A Revolução do RNA
Antes:
•
Crick: “Dogma Central”: Info: DNA —› mRNA —› Proteina
•
Gene  sequência linear do DNA que codifica uma única proteina
•
ncRNA = RNA não-codificante —› DNA“Lixo” (~97% do genoma humano!)
Agora:
•
O “Dogma Central” é violado (já pelos prions). Herança epigenética (≠Lamarck).
•
DNA “Lixo” é transcrito em novos tipos de RNA: ncRNA; muitos deles formam
redes que têm um papel crucial na regulação da expressão gênica.
•
O número de nossos genes codidicantes é só 2 a 3X o dos vermes, mas nossa
diferença de complexidade resulta dos mecanismos de regulação.
O DNA contém os instrumentos da orquestra e alguns temas musicais;
RNA’s funcionam como regentes. Podem combinar e entrelaçar, de muitas
→
formas ≠s, porções ao longo do DNA, para produzir “genes”
diferentes.
O controle é exercido, p/ ex., por RNA’s de dupla fita ou micro-RNA’s e
via mecanismos de interferência ou silenciamento gênico (Nobel 2006).
Esta revolução (últimos 5 anos) é comparável à da Mecânica Quântica
na física (RNA - a ‘matéria escura da biologia’).
Resultados recentes fortaleceram muito a hipótese do “Mundo do RNA” da
origem da vida (RNA desempenha o duplo papel de “programa” e “enzima”).
Ribonucleotídeos ativados foram produzidos em laboratório em condições prébióticas plausíveis.
Conclusão: A REGULAÇÃO desempenha o PAPEL CENTRAL na célula.
A Pirâmide da Vida
Organismo –
Espécie –> Biosfera
Clima
Analogia: subrotinas de programas
ou peças intercambiáveis
Analogia: circuitos
de feedack, etc
G enoma → Transcri p toma → Prote oma → Me tab o loma
Duas abordagens complementares
De Baixo para Cima (reducionista):
BIOLOGIA MOLECULAR DA CÉLULA
De Cima para Baixo (sistêmica):
BIOLOGIA MODULAR DA CÉLULA
Ambas necessárias, em combinação.
1º – Molecular: partindo do PROTEOMA
Proteínas
Principais atores da célula. Funções múltiplas :
Estrutura: citoesqueleto.
Catálise: enzimas.
Motilidade, Forças : proteínas motoras.
Defesa: anticorpos, reparação.
Regulação: hormônios.
Transporte: canais iônicos.
Comunicação: transdução de sinais.
Controle: controle do ciclo celular .
São macromoléculas, polímeros de 20 aminoácidos, ~ 300 unidades.
~20300 proteínas possíveis, ~105 usadas nas células –seleção natural.
A função de uma proteína é determinada pela sua forma (geometria!).
As proteínas se dobram
espontaneamente
até chegar à forma correta.
O que são proteínas motoras?
São máquinas moleculares maravilhosas, que convertem diretamente
energia química em trabalho mecânico
Atuam nas células em: catálise, transporte de cargas, geração de energia,
replicação do DNA, transcrição, divisão celular, motilidade, transdução,…
Como podem ser tão inteligentes?
As Proteínas são Demônios de Maxwell
Jacques Monod, Le Hasard et la Nécéssité (1970)
Movimento Browniano
1827: o botânico Robert Brown observou num microscópio uma suspensão de
grãos de pólen dançando na água e pensou que eram “moléculas elementares
dos corpos orgânicos” - a força vital. Depois de observações com grãos de
poeira, mudou de idéia. Mas a primeira idéia era correta: a vida, tal como a
conhecemos, não poderia existir sem o movimento Browniano!
A Catraca Browniana
Um demônio de Maxwell automático (Feynman Lectures, apud Smoluchowski 1912)
ε ≡ energia para engatar/soltar um dente
p1 ≡ probab. de avanço = exp ( – ε kT1 )
p2 ≡ probab. de retrocesso = exp ( – ε kT2 )
O motor só funciona se T1 > T2 ;
obedece à 2a lei.
Com carga: torque L, rotação para cada dente:
■ ε → ε + trabalho L
■A velocidade angular de rotação
é proporcional
■a p1 – p2; Para T1 = T2,
■
Uma catraca browniana retifica as flutuações
brownianas, gerando unidirecionalidade. As proteínas
motoras funcionam retificando flutuações Brownianas!
O Motor de Polimerização
Polimerização de filamentos de actina (a partir de monômeros em
solução) pode propulsionar um objeto pelo mecanismo da catraca
browniana. A difusão gera um interstício. Inserção nele de novos
monômeros e tensão elástica assim gerada (B) empurram o objeto.
Aplicação à Listeria
Simulação teórica
≈ 30 cpu–anos num só computador!
Alberts & Odell, PLoS Biol 2 (12) e412 (2004)
Como se medem as forças e deslocamentos de moléculas?
Forças luminosas: Ponte Física-Biologia
A pressão da radiação: proposta por Kepler
para explicar por que as caudas dos cometas
se afastam do Sol
Além de empurrar, a luz também pode puxar?
Star Trek
Feixe atrator
Isso requer as
forças de gradiente
de um feixe
fortemente focalizado
Pinças Óticas
A. Ashkin (1978)
Medem forças até centenas de pN e deslocamentos de nm: escala da célula
O Laboratório de Pinças Óticas da UFRJ
Calibração das Pinças Óticas
Tipicamente, são capturadas microesferas transparentes (vidro, plástico) de raio
bem conhecido, empregadas como transdutoras de forças. Isso permitiu pela
primeira vez obter informações quantitativas precisas sobre interações básicas
na biologia celular, ao nível de molécula única– cuja explicação desafia os físicos
Objeto
ligado
↑
A constante de mole tem de ser calibrada!
Isso era feito de forma indireta, por comparação com forças de atrito
(Stokes). A equipe do LPO/UFRJ, em colaboração com a UFMG, conseguiu
pela primeira vez fazer uma calibração absoluta, em termos das
características do laser, da microesfera e do microscópio.
Aplicação a Proteínas Motoras do Citoesqueleto
Transporte de cargas ao longo do citoesqueleto
Força: ~ 5 pN
Passo: ~ 8 nm
Energia por passo: ~ 10 kT
(hidrólise de ATP)
cinesina
Microtúbulo
Filamento de Actina
O citoesqueleto
Cinesina caminhando
Catraca Browniana : busca difusiva do sítio
seguinte
Svoboda, K et al. Nature 365, 721 (1993).
Miosina V caminha sobre flamentos de actina
N. Kodera et al, Nature 468 (2010) 72, AFM movies
Flutuações brownianas
M. L. Walker et al., Nature 405 (2000) 807
Proteínas Motoras Giratórias
Motor flagelar bacteriano
FoF1 ATPase
O “motor da vida”
Fornece energia para todos os organismos
vivos. Reversível: Eficiência > 80%!
Paul Boyer & John Walker: Prêmio Nobel de Química 1997
Boyer: Catálise Rotatória do ATP
Proteína Motora FoF1
H. Noji et al., Nature 386 (1997) 299
A catraca da Fo
Transição Alostérica
2 conformações possíveis de uma proteína com energias livres ≠s : x1 é + estável.
B.
Depois de se agregar, um ligante impede interação entre as garras em x1, mas não em x2,
que se torna a conformação mais estável. A proteína faz uma transição da forma x1  x2.
A.
Catraca de 2 Estados
Energia livre
Difusão Browniana
Deslocamento unidirecional
modelo tipo“Sísifo”
Impulsionado por hidrólise de ATP ou gradiente iônico (ciclo mecanoquímico)
Pode ser descrito por equações acopladas de reação-difusão
Alternativa: modelos estocásticos discretos de cinética química
F. Jülicher, A. Ajdari and J. Prost, Rev. Mod. Phys. 69 (997) 1269
A. Kolomeisky and M. Fisher, Ann. Rev. Phys. Chem. 58 (2007) 675
Ciclo Químico
Hidrólise do ATP (~100% do peso/dia!)
M = proteína motora
Catraca da Cinesina
O Dogma Central da Biologia Molecular
DNA Helicase
Separa as 2 fitas de DNA preparando a replicação na divisão celular
DNA: separação por helicase
≈ 1000 pares de bases/seg
Bianco et al. Nature 409 (2001) 374
RNA POLIMERASE
Da Transcrição à Tradução
What a piece of work is a man!
Hamlet, Act II, Sc.ii
There is grandeur in this view of life, with its several powers,
having been originally breathed into a few forms or into one;
and that, whilst this planet has gone cycling on according to
the fixed law of gravity, from so simple a beginning endless
forms most beautiful and most wonderful have been, and are
being, evolved.
Darwin, The Origin of Species
Conclusão: Caos, Ordem e Vida
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Caos: Plus ça change, plus c’est la même chose.
Ordem: Sub specie aeternitatis (relógio).
Life: Plus ça change, plus c’est différent!
Organisms vivos empregam dois tipos de informação (ordem) na sua
evolução dinâmica , na fronteira ordem/caos: a proximidade dela permite
combinar robustez com adaptação. A seleção natural requer:
(I) Reprodução rápida em condições ótimas;
(ii) Sobreviver a (raras) condições extremas.
Dois tipos de ordem:
1) Armazenada no genoma;
2) Armazenada nas molécules de que se alimentam (origem: o Sol  ).
O caos (gerando fluctuações) tem um papel importante, quando combinado
com a seleção natural :
1) Nas mutações do genoma;
2) Na retificação, pelas proteínas, das flutuações brownianas favoráveis: o
mecanismo do demônio de Maxwell.
Boltzmann almejava tornar-se “o Darwin da matéria”. O mecanismo da
catraca browniana pode ser visto como “seleção natural das flutuações
favoráveis”.
A Física tem muito a contribuir para a Biologia e vice-versa
Lab Team: LPO-UFRJ
Marcos Farina, Yareni Ayala, Rafael Dutra, Vivaldo Moura Neto, Nathan Bessa Viana, HMN, Bruno Pontes. P. A. Maia Neto
Fim
Obrigado!
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