SILVEIRA 2003 - A ordem visual segundo Francastel

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Projeto: Cidadão em Rede: De Consumidor a Produtor de Informação sobre o Território
Convênio de Cooperação Tecnológica Prodeb/UFBA
Período: jul 2011/jan 2013
Título: Teoria da Imagem
Fonte: SILVEIRA, Renato. A ordem visual (Uma introdução à teoria da imagem de Pierre Francastel). IN:
VALVERDE, Monclar (org.). As formas do sentido: estudos em estética da comunicação. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003.
Francastel concebeu sua sociologia da arte como teoria aberta em progressão, dinâmica, apta a receber as
mais diversas influências pertinentes. Sua postura era a de quem crescera intelectualmente na
Universidade de Estrasburgo e na École Pratique da Sorbonne, voltadas para a experimentação, em luta
aberta contra o fechado poder universitário dos historiadores tradicionais.
Essa postura antidogmática, que propiciaria um enriquecimento inusitado na abordagem do fato social, tem
sido creditada principalmente aos historiadores da escola dos Annales.
O movimento da Nova História começou com Marc Bloch e Lucien Febvre na década de 1920, na
Universidade de Estrasburgo, na capital da Alsácia. Depois da Primeira Guerra Mundial, quando os
franceses recuperaram a província dos alemães, importantes investimentos foram feitos para dotar
Estrasburgo de uma grande universidade, que reimplantasse a cultura e os valores franceses na região
perdida para os alemães na guerra franco-prussiana de 1870. Foram atraídos para Estrasburgo intelectuais
reconhecidos em todas as áreas, com destaque para medicina, filosofia, filologia, direito e as ciências
sociais, tornando a Universidade de Estrasburgo um centro de excelência, internacionalmente reconhecido.
De Estrasburgo foi trazida [para a École Pratique des Hautes Études] uma base teórico-metodológica que
daria bons frutos em seguida: o conceito de “mentalidade coletiva” ou de “estrutura mental”, relação
necessária entre os modos de pensar e sentir com os modos de produzir, em um contexto social dado; o
princípio da dependência relativa dos diversos sistemas que compõem um todo social; a noção de que as
representações são uma totalidade orgânica; a convicção de que a pesquisa não deve criar limites rígidos
nem se fecharem em nenhuma doutrina.
Os novos historiadores recriminavam aos marxistas uma postura doutrinária. Rejeitavam também a rigidez
da separação entre base e superestrutura. A Nova História ficou devendo a Marx e Engels algo muito
importante: o conceito de causalidade estrutural, um rico modelo teórico para se pensar o movimento do
contexto.
Frequentador dos ateliês dos artistas de vanguarda da Escola Parisiense no pós-guerra, Francastel encarou
a arte não apenas como atividade privilegiada do espírito, mas também como ofício, como portadora de
tradições técnicas e modos de fazer. Desembaraçou-se assim da incômoda localização da imagem na
“superestrutura”, demonstrando que há um modo de produção simbólico, artístico, com suas instituições de
base específicas e seus canais de circulação.
Francastel assinalou num texto de 1948: “Toda ação do homem sobre a matéria comporta uma parte de
atividade livre e criadora, em função da qual os valores plásticos associam-se a todas as tarefas utilitárias”
(Espace génétique et espace plastique). Mas apenas uma parte, pois o pensamento instaura uma dialética
entre o real e o percebido, que pressupõe um aparelho perceptor, aparecendo um terceiro termo: o
imaginário no caso do pensamento figurativo, ou o conceitual, no pensamento discursivo.
O pensamento é comprometido simultaneamente com as leis do espírito e o movimento físico do mundo:
aprendemos estruturas parciais no mundo exterior, combinando-as a aspectos limitados de nossa
experiência.
O que faz todo o charme do pensamento, seja ele figurativo ou verbal, é justamente sua capacidade
de fabricar conjuntos convencionais, que não têm obrigatoriamente realidade na experiência
operatória, mas que nos ajudam a manipular certas noções. (Problemas de Sociologia da Arte,
Zahar, 1967).
Os criadores e os observadores, quaisquer que sejam, agem necessariamente dentro de configurações
sempre já dadas, ao mesmo tempo sociais e mentais, herdam procedimentos, saberes estabilizados,
Resumo
Maria Célia Furtado Rocha
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Período: jul 2011/jan 2013
Título: Teoria da Imagem
Fonte: SILVEIRA, Renato. A ordem visual (Uma introdução à teoria da imagem de Pierre Francastel). IN:
VALVERDE, Monclar (org.). As formas do sentido: estudos em estética da comunicação. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003.
tradições técnicas e intelectuais. A obra de arte é sincrética, ela acumula valores e intenções, preenche
necessidades imaginárias e fabuladoras; a obra de arte também é o resultado de uma mão-de-obra, é um
objeto produzido dentro de uma organização, segundo certas tradições técnicas e circula por canas
institucionalmente estabelecidos.
O ser humano encontra-se em um universo infinito de sinais naturais e artificiais; seleciona alguns,
eventualmente sonha com outros, e produz uma imagem que é um objeto material construído segundo
certas regras: a atividade do artista situa-se simultaneamente no plano das atividades materiais e no plano
da imaginação. O estudo da imagem produzida não pode portanto ignorar nem o aspecto material nem o
aspecto figurativo da obra.
Se a obra de arte serve como meio de comunicação e expressão, ela nunca pode ser considerada algo
supérfluo. Como todas as linguagens, a arte organiza e descreve o campo perceptivo. Esta organização é
ativa e implica não apenas o reconhecimento, mas a criação de valores, a organização do campo
socializado da percepção.
Francastel diz que “a arte é construção, um poder de ordenar e prefigurar”. Os seres humanos “não
acrescentam intelecto a estruturas independentes do seu pensamento”.
A função figurativa é uma categoria do pensamento tão completa quanto outras, e igualmente capaz
de elaboração direta… sem necessidade de transferência e de relação com os sistemas verbais. A
função figurativa constitui uma categoria do pensamento imediatamente ligada à ação. (La realité
figurative, 1965)
A abordagem teórica do universo figurativo deve levar em consideração não apenas o processo de
reprodução, como também o processo de criação, de construção de modelos.
Francastel também bateu muito na tecla: a arte nunca está em contradição com a técnica, uma não é capaz
de criar sem a outra. A arte é criada dentro de um processo simultaneamente intelectual e manual, ela tem
uma dupla natureza, figurativa e operativa. Se a estética tem um lado técnico, dialeticamente a técnica
também tem um lado estético.
As técnicas desempenham um papel decisivo. Toda técnica comporta uma parte de habilidade, de escolha
dos meios, de gosto e de estilo. “Desde que o técnico superior cria não apenas o objeto mas uma forma, ele
age como artista, isto é, como criador não somente de conceitos ou de objetos mas de esquemas de
pensamento” (Sociologie de l'art e problématique de l'imaginaire, 1965).
Na prática, o artista nunca lança mão de um inventário de formas prontas, imutáveis, recortadas diretamente
na realidade exterior. A arte não reproduz em um sistema formal destacado das suas significações, ela
desencadeia um processo de representação dialético entre o mundo real, o percebido e o imaginário. Como
Francastel afirma, pensar ou figurar não é transcrever ou exprimir, mas sempre integrar em um sistema, a
um só tempo, material e imaginário, elementos cuja justaposição cria novos objetos suscetíveis de
reconhecimento, de reunião e de interpretação.
Francastel buscou fatos experimentalmente comprovados na psicologia e na fisiologia da percepção.
Apoiou-se nas teses da Gestalt, do psicólogo Guillaume e nas pesquisas realizadas pelo Instituto Francês
de Filmologia na década de 1950 para traçar o seguinte quadro: a imagem exterior percebida pelo olho
humano vai diretamente ao cérebro, sem mediação da linguagem verbal. No entanto a retina não registra
nenhuma percepção em estado puro, pois sua menor articulação possível é combinátória; ela já traduz.
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Maria Célia Furtado Rocha
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Fonte: SILVEIRA, Renato. A ordem visual (Uma introdução à teoria da imagem de Pierre Francastel). IN:
VALVERDE, Monclar (org.). As formas do sentido: estudos em estética da comunicação. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003.
As imagens percebidas são imediatamente integradas a conjuntos que fazem sentido: na problemática de
Francastel, a percepção visual é ativa e combinatória, é simultaneamente uma operação natural e cultural.
(A imagem registra eventos que escapam inevitavelmente aos demais meios de informação e expressão.)
A ordem visual manipula, numa apresentação simultânea, cores, grafismos, luzes, relevos e espaços. “Um
sistema figurativo... não pode ser abordado numa perspectiva puramente analítica... A forma figurativa...
integra, de maneira constelante, elementos diversos por sua origem e seu grau de realidade” (La figure e le
lieu, 1967).
A imagem, por outro lado, conota crenças, poderes, saberes e utopias. O signo plástico é portanto mais
móvel e mais efêmero, servindo de suporte a diferentes séries de manifestações, ao passo que o signo
verbal é formado de elementos mais fixos, unívocos.
A imagem plástica é portanto parte de um sistema de significações figurativas de que toda sociedade
sempre já dispõe, e que determina valores e fixa sentidos. A produção de imagens tem como função social
básica realizar formas transmissíveis, operacionais para o intelecto, tal como os demais sistemas de
significação.
A significação propriamente plástica só tem lugar quando um material extraído da percepção visual, ou da
memória, e um esquema convencional de pensamento se fundem. A organização do campo figurativo tem
regras. A imagem produzida, diz Francastel, é um “lugar” materialmente e imaginariamente constituído,
composto de elementos dispersos vindos das mais variadas fontes de informação, homogeneizados por
uma certa orientação do pensamento.
Criação e destruição do espaço renascentista
Os novos artistas durante o Quattrocento fundamentalmente criaram um novo sistema mental de
representações: “Os pioneiros do Renascimento não descobriram e utilizaram uma lei comum e permanente
da natureza e do espírito humano. Eles adaptaram sua arte a um certo estado do saber matemático do seu
tempo” (Peinture et societé. Naissance et destruction d'un espace plastique. De la Renaissance au
Cubisme, 1965).
As novas possibilidades de especulação sobre as relações óticas dos seres humanos com o universo na
verdade inseriram-se em um processo de significação, desenvolveram ou atualizaram técnicas de
representação do espaço, da luz e do objeto. Os artistas do Renascimento criaram um instrumento
intelectual através do qual orientaram o olhar e com o apoio do qual agiam, e com ele realizaram operações
de reconstrução.
O sistema figurativo do Renascimento é uma técnica de representação do espaço, mas também um modo
de integração das sensações e uma nova avaliação dos valores ligados ao nascimento e ao declínio de
uma civilização. O que conta efetivamente não é o “grau e verdade” da representação, mas o grau de
coesão e de generalidade do sistema.
Os espetáculos urbanos e as representações teatrais, manifestações portanto já codificadas pela cultura
urbana medieval, forneceram todo um acervo de signos. Francastel mostrou que a vedutta, paisagem
urbana ou rural que começou a aparecer no fundo dos painéis desde os tempos de Giotto, estava longe de
ser inspirada em um contato direto com a natureza: tinha muito mais a ver com o pano de fundo do palco
dos teatros, nos quais se inspirava.
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Maria Célia Furtado Rocha
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VALVERDE, Monclar (org.). As formas do sentido: estudos em estética da comunicação. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003.
Os objetos figurativos encontrados nas obras do primeiro Renascimento: rochedos, montanhas, árvores,
bem como carros alegóricos, navios, templos, castelos e tronos, todas essas figuras e outras mais foram
apropriadas a partir do repertório do universo cênico tradicional, das tragédias, dos dramas e das comédias,
bem como dos festivais religiosos e cívicos, elementos da imensa rede de objetos figurativos de que toda
civilização dispõe.
Por outro lado, os casarios pintados em muitos “panos de fundo” presentes nas obras pictóricas deste
período eram representações estereotipadas da praça pública usadas na cena teatral, retratando ruas
largas e amplas praças, um urbanismo moderno que ainda não era conhecido. “A arquitetura do
Renascimento foi pintada antes de ser construída”. O Renascimento foi, portanto, antes de mais nada, uma
“obra da imaginação, dos ofícios e da vida” (Peinture et societé. Naissance et destruction d'un espace
plastique. De la Renaissance au Cubisme, 1965).
Quanto ao espaço plástico, o século XV ainda utiliza, na criação da imagem bidimensional, soluções
ecléticas – a perspectiva hierárquica (a figura mais importante em tamanho maior) e a perspectiva linear (a
figura maior é a mais próxima). A nova regra que estava se impondo, que Francastel chama “composição
sintética” ou “restritiva” tem a ver com a unificação ilusionista dos lugares que torna homogêneos o tempo, a
luz e o espaço. O século XV foi uma época de experimentação que se orientou para uma seleção de
métodos e uma fusão de sistemas.
Francastel se opõe à hipótese de que foram os tratados teóricos a criar uma doutrina. “Foi o ensino
acadêmico que difundiu, depois do século XVI, a ideia de que a pintura era ensinada de maneira teórica”.
O novo espaço materializou-se como expressão de uma nova mentalidade, de uma nova conduta, vivida no
plano conceitual como a passagem da teoria medieval das essências (o mundo como reflexo do
pensamento divino e a terra como espaço imóvel no centro do universo) à concepção de que o mundo é
uma realidade em si e os homens estão entregues à própria sorte.
A nova ordem figurativa, diz Francastel, utilizou alguns dos recursos “quase eternos” da pintura, porém os
absorvem no contexto da época, em um momento de grande dinamismo.
Com o advento da sociedade industrial, pouco a pouco, a noção de espaço figurativo foi se alterando,
surgindo uma nova noção descomprometida com a encenação de ritos e episódios históricos, mais ligada,
segundo Francastel, a um fenômeno de consciência, de visão interior e análise das sensações - valores
opostos àqueles predominantes nas sociedades saídas do Renascimento de objetividade e estabilidade.
Para o Renascimento, o espaço era numérico, ortogonal, topográfico, unitário e estático; hoje ele é
qualitativo, curvo, aberto, segmentado e dinâmico.
Os valores que interessam aos artistas atuais – ritmo, velocidade, deformações, plasticidade, mutações,
transferências – coincidem com as formas gerais da atividade física e intelectual do nosso tempo. Não
representamos mais figurações óticas, no sentido euclidiano no termo, mas sensações. Nossa concepção
espacial é mais baseada na análise dos nossos reflexos; é uma figuração “psicofisiológica”, tátil e poética:
“avançamos atualmente na direção de um espaço afetado pelas dimensões polissensoriais de nossas
experiências íntimas” (Peinture et societé. Naissance et destruction d'un espace plastique. De la
Renaissance au Cubisme, 1965).
***
Após sua morte, Pierre Francastel foi lançado no ostracismo. Entretanto sua “sociologia da arte” colocou as
bases de uma teoria da imagem que permanece válida e instigante.
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Maria Célia Furtado Rocha
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