A expressão do aspecto de fases no Português: um novo olhar

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Universidade Federal do Rio de Janeiro
A expressão do aspecto de fases no Português:
um novo olhar centrado em construções perifrásticas
Bruna Cupello Araripe Pereira
2016
ii
A expressão do aspecto de fases no Português:
um novo olhar centrado em construções perifrásticas
Bruna Cupello Araripe Pereira
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro como quesito para a obtenção do Título
de Mestre em Letras Vernáculas (Língua
Portuguesa).
Orientador: Professora Doutora Marcia dos
Santos Machado Vieira.
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
iii
FICHA CATALOGRÁFICA
Pereira, Bruna Cupello Araripe
A expressão do aspecto de fases no Português: um novo olhar centrado
em construções perifrásticas / Bruna Cupello Araripe Pereira. – Rio de
Janeiro: UFRJ, 2016.
xvii, 138 f.
Orientadora: Marcia dos Santos Machado Vieira.
Dissertação (mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de
Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2016.
Referências bibliográficas: f. 135 - 138.
1. Abordagem centrada no uso. 2 Aspecto verbal. 3. Auxiliares
inceptivos e terminativos. 4. Construções gramaticais. I. Machado Vieira,
Marcia dos Santos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras. III. A expressão do aspecto de fases no Português: um novo olhar
centrado em construções perifrásticas.
iv
A expressão do aspecto de fases no português:
Um novo olhar centrado em construções perifrásticas
Bruna Cupello Araripe Pereira
Orientadora: Professora Doutora Marcia dos Santos Machado Vieira
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua
Portuguesa).
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Profa. Doutora Marcia dos Santos Machado Vieira
Departamento de Letras Vernáculas (UFRJ) – Orientadora
_________________________________________________
Prof. Doutor Sebastião Carlos Leite Gonçalves
Departamento de Estudos Linguísticos e Literários (UNESP – SJRP)
_________________________________________________
Profa. Doutora Karen Sampaio Braga Alonso
Departamento de Linguística e Filologia (UFRJ)
_________________________________________________
Profa. Doutora Violeta Virginia Rodrigues
Departamento de Letras Vernáculas (UFRJ), Suplente
_________________________________________________
Profa. Doutora Maria Maura Conceição Cezario
Departamento de Linguística e Filologia (UFRJ), Suplente
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
v
Mas é preciso ter força,,
É preciso ter graça,
É preciso ter sonho sempre.
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida...
Milton Nascimento
Não sou nem otimista, nem pessimista. Os
otimistas são ingênuos, e os pessimistas
amargos. Sou um realista esperançoso.
Sou um homem da esperança. Sei que é
para um futuro muito longínquo. Sonho
com o dia em que o sol de Deus vai
espalhar justiça pelo mundo todo.
Ariano Suassuna
vi
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço a Deus, pois, assim como em todos os momentos da minha
vida, nesse em especial, Ele foi a força que me sustentou e a esperança que me alimentou. Cada
sinal que me conduziu até aqui foi graça divina. Que Ele continue iluminando meus passos na
caminhada da vida.
Aos meus pais, Paula e Eduardo, que sempre me incentivaram a estudar, a ser uma boa aluna
e uma pessoa realizada. É o exemplo de vocês que me motiva a trilhar o caminho do bem, o caminho
do trabalho, da realização dos sonhos. Meu pai sempre brinda “Vida longa ao rei”, em todos os
momentos, aprendizado que levo comigo, mesmo nos momentos desafiadores, em que batem o
medo e o desânimo. Minha mãe repete diariamente que tudo é possível àquele que crê. Houve alguns
obstáculos no caminho, sempre haverá, é verdade, mas, vocês me motivam, me fortalecem e
despertam o melhor de mim. São fundamentais em minha vida. Amo vocês. Obrigada por tudo.
Ao meu irmão, Frederico, que sempre me incentivou, ainda que adore menosprezar (de
brincadeira!) minha profissão. Eu sei bem que você se orgulha de mim. Isso é recíproco, sempre
foi. Amo você.
Ao meu namorado, Eric, que esteve presente em minha vida desde o Ensino Fundamental e
acompanhou toda a minha trajetória acadêmica até aqui. Obrigada por estar ao meu lado em todos
os momentos, não só de alegrias, mas também de desânimo. Obrigada por celebrar comigo as
vitórias e por pacientemente aprendermos juntos a lidar com os desafios da vida. Obrigada por ter
tanto orgulho de mim e por me dar ânimo na reta final! Eu te amo.
Aos meus avós, Dalva, Antônio, Celina e Eduardo, pela constante torcida e orações
incessantes, pelo carinho e pela presença em minha vida. Amo vocês.
A todos os familiares e amigos que sempre me incentivaram, entenderam as recusas a
convites e torceram por mim.
À minha querida orientadora, Marcia, que despertou em mim, no 5º período da Faculdade,
o amor pela sintaxe. Suas aulas me inspiraram e me deram a certeza de que eu havia feito a escolha
certa! O convite para a Iniciação Científica foi o começo de tudo. Muito obrigada pelos seus
ensinamentos, reflexões e partilhas, por dividir comigo seu conhecimento e, principalmente, pela
sua paciência e disponibilidade. Obrigada por acreditar em mim!
Às minhas amigas da faculdade, Evelin e Stephanie, que fizeram parte desse sonho ao longo
de sua construção. Nossas trocas, viagens para congressos, conversas e amizade ficarão guardados
no meu coração. Obrigada por toda ajuda e por torcerem por mim!
À Bruna Gois, que me ajudou a ingressar no mundo da iniciação científica, quando a
faculdade atravessou um período grande de greve, em que os encontros presenciais foram
vii
comprometidos. Com ela fiz minha primeira apresentação na JIC, em 2012, e, desde então, sempre
esteve disposta a me ajudar, quando eu precisei. Obrigada pela atenção e pela disponibilidade.
À Pâmela, colega do projeto Predicar, que me ajudou na coleta de dados ao longo do
trabalho.
Aos professores Sebastião Carlos, Karen Sampaio, Violeta e Maria Maura, por terem
aceitado tão gentilmente o convite para participar de minha banca e pela disponibilidade e
comprometimento.
Aos professores da Graduação e do Mestrado, que também me inspiraram, como Silvia
Rodrigues, Mônica Orsini, Violeta, Lúcia Helena, dentre outros.
A outros mestres que passaram por minha vida, ainda na escola, com quem, hoje, já tive a
honra de trabalhar. Homens com grande carga de responsabilidade sobre o meu amor pela Língua
Portuguesa e sobre a paixão por ensinar, contribuindo fortemente para a escolha da minha profissão:
Marcelo Beauclair, Evandro Von Sydow e Renato Vazquez.
A todos os alunos que já passaram por minha vida, por terem me feito sentir no caminho
certo!
Ao CNPq, pelo suporte dado em forma de bolsa durante a realização desta pesquisa.
viii
Esta pesquisa foi desenvolvida com
financiamento do CNPq (02/2014 – 02/2016).
ix
SINOPSE
Mapeamento funcional-cognitivo da rede
de construções perifrásticas de aspecto na
língua
portuguesa,
com
foco
no
fenômeno semântico da marcação das
fases inicial e final de uma situação ou
evento, através da análise de complexos
verbais observados em textos diversos.
x
RESUMO
A EXPRESSÃO DO ASPECTO DE FASES NO PORTUGUÊS:
UM NOVO OLHAR CENTRADO EM CONSTRUÇÕES PERIFRÁSTICAS
Bruna Cupello Araripe Pereira
Orientadora: Professora Doutora Marcia dos Santos Machado Vieira
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte
dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas
(Língua Portuguesa).
O Português é caracterizado por uma variedade sincrônica de estratégias a serviço da
expressão de aspecto. Esta dissertação descreve esse fenômeno focalizando construções com
verbos (semi)gramaticalizados, que marcam as fases inicial e final de um estado de coisas, tais
como:
começar/desatar/passar/pôr-se
a
Vinf
(verbo
no
infinitivo)
e
acabar/deixar/parar/terminar de Vinf, entre outras possibilidades. E, com base no exame de
constructos que atualizam tais construções e que foram identificados em diversas fontes de
textos, estimamos uma rede construcional que exponha interrelações e desdobramentos entre
os padrões detectados.
Na pesquisa, procuramos: (i) averiguar que forma(s) verbal(is) se aciona(m) com
frequência na expressão dos aspectos inceptivo e terminativo e por quais motivações
semânticas, discursivas e/ou pragmáticas, bem como as frequências type e token das
construções perifrásticas; (ii) examinar o grau de gramaticalidade dos recursos verbais
detectados nas perífrases empregadas para expressão de aspecto inceptivo e terminativo e destas
também; (iii) verificar se construções com verbos (semi)auxiliares aspectuais teriam como
característica a multifuncionalidade e as condições desta; (iv) investigar em que medida
elementos do próprio contexto linguístico e/ou diferentes perspectivas de apreensão do evento
em si poderiam acarretar alguma ambiguidade ou fluidez entre sentidos relacionados a essas
noções aspectuais; (v) esboçar uma proposta de rede construcional que dê conta de descrever
as microconstruções com verbos (semi)auxiliares aspectuais relacionadas ao corpus e até prever
a formulação de microconstruções com menor grau de convencionalidade.
Pretendemos – a partir de um enfoque em que procuramos aliar uma abordagem
construcionista (com base em GOLDBERG, 1995 e 2006, e TRAUGOTT E TROUSDALE,
xi
2013, principalmente) a orientações funcionalistas tomadas desde o início desta trajetória como
aporte teórico-metodológico (entre as quais, DIK, 1997) – propiciar um olhar minucioso sobre
pareamentos de forma-sentido com os quais se alcança a expressão do aspecto gramatical na
língua portuguesa, considerando, ainda, a perspectiva do conceptualizador na emissão de
determinadas formas gramaticais e suas implicações para o nível do discurso.
Assim, recorremos à coleta e à busca de dados da expressão de aspecto gramatical, nas
mais diversas fontes, nas modalidades expressivas fala e escrita e nas variedades brasileira e
portuguesa. A amostra de 516 enunciados coletados foi submetida a um estudo qualitativo que
procuramos desenvolver sob uma ótica funcional(-cognitiva). Somam-se a esses dados
enunciados que reunimos, via ferramenta de busca na internet, para lidar com algumas questões
que se impuseram no decorrer da análise do corpus.
Ao fim dessa dissertação, estimamos um esquema construcional e cognitivo subjacente
à compatibilização de verbos os quais, ao longo do tempo, se rotinizaram como marcadores
aspectuais (já canônicos e, ainda, não-canônicos) e, então, gramaticalizaram-se, tornando-se
(semi)auxiliares aspectuais que podem ser acionados a compor o padrão abstrato da construção
de aspecto inceptivo e terminativo em que opera verbo instrumental (V1) : [V1 (semi)auxiliar
aspectual (não)finito + preposição + V2 infinitivo]. Tencionamos, em última instância, fornecer
novos subsídios para a descrição de construções com verbos (semi)auxiliares do Português
centrada em usos linguísticos e, ainda, proceder a uma análise crítica da contribuição que
alcança por conta do referencial teórico-metodológico com que buscamos tratar do tema.
Palavras-chave: Linguística Funcional-Cognitiva; Aspecto verbal; Auxiliares inceptivos e
terminativos; Construções gramaticais.
xii
ABSTRACT
THE EXPRESSION OF PHASAL ASPECT IN PORTUGUESE LANGUAGE:
A NEW PERSPECTIVE FOCUSED ON PERIPHRASTIC CONSTRUCTIONS
Bruna Cupello Araripe Pereira
Orientadora: Professora Doutora Marcia dos Santos Machado Vieira
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte
dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas
(Língua Portuguesa).
Portuguese language is characterized by a variety of syncronic strategies to express
verbal aspect. This master’s thesis aims to describe this phenomenon focusing on constructions
with (semi)grammaticalized verbs in use, which serve for the semantic process of inicial and
final phases of a state of affairs, as: começar/desatar/passar/pôr-se a Vinf (verb in the infinitive
form) e acabar/deixar/parar/terminar de Vinf, among other possibilities. And, based on the
exam of constructs of these constructions which were found in a diversity of sources of texts,
we project a constructional network that exposes interrelations and unfoldings between the
patterns detected.
In this research, we have looked foward to: (i) find out which verbal form(s) appear with
a certain frequency to express inicial and final aspect e for what reasons in terms of semantic,
discourse and pragmatics, as well as the type and token frequency of the periphrastic
constructions; (ii) analyse the level of grammaticalization of both the verbal resources detected
on the periphrasis to express this aspect and the construction itself; (iii) verify if constructions
with (semi)grammaticalized verbs would have the multifunctionality as a characterisitc and
what would be its conditions; (iv) investigate to what extent elements from the linguistic context
itself and/or different perspectives of the event analyzed could cause some level of ambiguity
or a meaning flow related to these aspectual notions; (v) draw a proposal of a constructional
network that would describe microconstructions with (semi)grammaticalized aspectual verbs
related to the corpus and even try to foresee the formulation of microconstructions with a lower
level of convencionality.
xiii
With an approach in which we try to align a constructionist view (GOLDBERG, 1995,
2006 and TRAUGOTT & TROUSDALE, 2013, mainly) with functionalist orientations taken
since the begining of this journey of research as the theoretical-metodological approach (among
others, DIK, 1997, we intend to provide a new perspective to the form-function pairings with
which we reach the expression of the gramatical aspect category in Portuguese language,
considering, furthermore, the perspective of the conceptualizer in the emission of specific
gramatical forms and its consequences to the level of discourse.
This way, we have appealed to the research of data of the gramatical aspect expression,
in many different sources, in both written and oral language and both Brazilian and Portuguese
variants. The samples of 516 utterances was submitted to a qualitative study that we tried to
develop by a functional(-cognitive) perspective. We must add to this data some other utterances
found through a research into the internet to deal with some issues that have emerged in the
course of the analisis.
At the end of this master thesis, we estimate a constructional and cognitive schema
subjacente to the compatibilization of verbs, which with time have become as a routine process
to express aspect and, though, have become grammaticalized, getting to be aspectual
(semi)auxiliars that can be accessed to composse the abstract model of inceptive and
terminative aspect construction in which operates the instrumental verb (V1): [V1 aspectual
(semi)auxiliar (non)finite + preposition + V2 infinitive]. We intend, at last recourse, to provide
new subsidies to the description of constructions with (semi)auxiliar verbs from the Portuguese
language centered in linguistic use, and, furthermore, procede to a critical analisis of the
contribuition it reaches due to the theoretical-metodological referencial with which we cover
the theme.
Keywords: Functional-Cognitive Linguistic; Verbal Aspect; Initial and Final auxiliar verbs;
Grammatical Constructions.
xiv
SUMÁRIO
ÍNDICE DE FIGURAS E TABELAS......................................................................xvii
1
INTRODUÇÃO...........................................................................................................18
2
O QUADRO ATUAL DE DESCRIÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO
PERIFRÁSTICA DE ASPECTO...............................................................................22
2.1 UMA OBSERVAÇÃO INICIAL SOBRE PERÍFRASES VERBAIS.....................22
2.2 O QUE É ASPECTO? .............................................................................................23
2.2.1 Aspecto gramatical e lexical......................................................................25
2.2.2 A relação entre tempo e aspecto................................................................30
2.3 A TIPOLOGIA DE ASPECTO GRAMATICAL NA REVISÃO DA
LITERATURA..............................................................................................................32
2.3.1 Comrie (1976) ..........................................................................................32
2.3.2 Castilho (1968, 2002) ...............................................................................32
2.3.3 Travaglia (1994) .......................................................................................35
2.3.4 Raposo (2013) ..........................................................................................37
2.3.5 Moura Neves (2000) .................................................................................37
2.3.6 Alguns gramáticos....................................................................................38
2.4 A PERSPECTIVA AQUI ADOTADA ...................................................................40
2.5 O PADRÃO SINTÁTICO [V1(não)finito + prep. + V2inf] - A PERÍFRASE
VERBO (SEMI)-AUXILIAR + VERBO AUXILIADO ..............................................41
3
REFERENCIAL TEÓRICO-EXPLICATIVO........................................................44
3.1 O FUNCIONALISMO............................................................................................44
3.2 A ABORDAGEM CONSTRUCIONISTA.............................................................47
3.3 A INFLUÊNCIA COGNITIVISTA........................................................................54
4
ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS............................................................56
4.1 FREQUÊNCIA TOKEN E TYPE.............................................................................56
4.2 FORMA E FUNÇÃO: ICONICIDADE..................................................................56
4.3 CATEGORIZAÇÃO LINGUÍSTICA E PROTOTIPICIDADE.............................58
4.4 PREDICAÇÃO E TRANSITIVIDADE..................................................................61
4.5 SUBJETIFICAÇÃO................................................................................................63
4.6 ANALOGIA............................................................................................................64
4.7 METÁFORA E METONÍMIA................................................................................65
4.8 GRAMATICALIZAÇÃO.......................................................................................68
5
MATERIAIS E METODOLOGIA............................................................................79
xv
5.1 O CORPUS..............................................................................................................79
5.2 OS PARÂMETROS DE ANÁLISE........................................................................81
5.2.1 Os critérios de auxiliaridade selecionados.................................................84
6
DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS.................................................................86
6.1 AS DIFERENTES FORMAS VERBAIS E SUA PRODUTIVIDADE NAS
CONSTRUÇÕES..........................................................................................................86
6.1.1 Começar a + Vinfinitivo............................................................................86
6.1.2 Passar a + Vinfinitivo...............................................................................89
6.1.3 Pôr-se a + Vinfinitivo................................................................................90
6.1.4 Desatar e Desandar a + Vinfinitivo..........................................................91
6.1.5 Acabar e Terminar de + Vinfinitivo..........................................................92
6.1.6 Deixar de + Vinfinitivo.............................................................................94
6.1.7 Parar e cessar de + Vinfinitivo.................................................................95
6.2 O ESTATUTO DE GRAMATICALIDADE DAS FORMAS VERBAIS QUE SE
COMPATIBILIZAM
COM
AS
CONSTRUÇÕES
PERIFRÁSTICAS
EM
ESTUDO.......................................................................................................................96
6.3 A INFLUÊNCIA DE ELEMENTOS NO ENTORNO DA CONSTRUÇÃO........100
6.3.1 Predicação de V2 e número (singular/plural) de seus argumentos............100
6.3.2 Presença de termo circunstante (adjunto adverbial, em geral) e sua
influência.........................................................................................................102
6.3.3 Polaridade negativa.................................................................................105
6.3.4 Traço de animacidade do sujeito.............................................................109
6.3.5 A acionalidade de V2...............................................................................110
6.4 A INFLUÊNCIA DE TRAÇOS DO V1.................................................................116
6.4.1 Traço de cinese e a face cognitiva............................................................116
6.4.2 Flexão de tempo e modo..........................................................................120
7
UMA PROPOSTA DE REPRESENTAÇÃO DA REDE DA CONSTRUÇÃO
PERIFRÁSTICA ASPECTUAL DE FASES..........................................................123
7.1 AS MESOCONSTRUÇÕES DE ASPECTO INCEPTIVO...................................125
7.1.1 Mesoconstrução de início com foco na permansividade da mudança
realizada...........................................................................................................125
7.1.2 Mesoconstrução de início com foco no envolvimento do referentesujeito..............................................................................................................126
7.1.3 Mesoconstrução de início com foco neste ponto e expectativa de
xvi
desenvolvimento..............................................................................................126
7.1.4 Mesoconstrução de início com foco na velocidade e intensidade da
mudança...........................................................................................................127
7.1.5 Mesoconstrução de início com foco na contra-expectativa da
mudança...........................................................................................................127
7.2 AS MESOCONSTRUÇÕES DE ASPECTO TERMINATIVO..............................128
7.2.1 Mesoconstrução de fim com foco na interrupção...................................128
7.2.2 Mesoconstrução de fim com foco no encerramento...............................128
7.2.3 Mesoconstrução de fim com foco na mudança......................................128
7.3 OUTROS PADRÕES CONSTRUCIONAIS...........................................................129
7.3.1 Padrão construcional de aspecto iterativo................................................129
7.3.2 Padrão construcional de início de um macroevento.................................129
7.3.3 Padrão construcional de fim de um macroevento....................................129
7.3.4 Padrão construcional de passado recente.................................................130
7.3.5 Padrão construcional de aspecto continuativo.........................................130
7.4 QUADRO GERAL: MESOCONSTRUÇÕES DE ASPECTO DE FASE INICIAL E
FINAL,
SEUS
SUBESQUEMAS
E
AS
MICROCONSTRUÇÕES
DESTES........................................................................................................................130
8
CONCLUSÃO...........................................................................................................132
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................135
xvii
ÍNDICE DE FIGURAS, QUADROS E DIAGRAMAS
Figuras
Figura 1: Tipologia de Estado de coisas (DIK, 1997)...............................................................28
Figura 2: Tipologia aspectual proposta por Comrie (1976: 25) ................................................30
Figura 3: Tipologia aspectual proposta por Castilho (1968: 48)...............................................31
Figura 4: Tipologia aspectual proposta por Travaglia (1994: 85).............................................33
Figura 5: Esquema da construção bitransitiva (GOLDBERG, 1995: 50)..................................47
Figura 6: Esquema interdependente de passar a e deixar de..................................................93
Figura 7: Linha do tempo (interno) de um evento ou situação................................................125
Quadros
Quadro 1: Critérios de auxiliaridade reunidos na literatura......................................................77
Quadro 2: Perífrases verbais viáveis à expressão de aspecto inceptivo e terminativo............79
Quadro 3: Resultado da testagem dos critérios de auxiliaridade nas construções
inceptivas..................................................................................................................................96
Quadro 4: Resultado da testagem dos critérios de auxiliaridade nas construções
terminativas...............................................................................................................................97
Quadro 5: Distribuição das ocorrências de cada operador aspectual de acordo com a
acionalidade de V2..................................................................................................................109
Quadro 6: Quantidade de construtos relacionados a cada microconstrução detectada:
distribuição por variedade nacional e modalidade expressiva num corpus de 526
perífrases.................................................................................................................................130
Diagramas
Diagrama 1: Representação da Rede de Construção Perifrástica de aspecto inceptivo e
terminativo..............................................................................................................................124
18
1. INTRODUÇÃO
A categoria aspecto é um assunto intrigante e complexo de ser estudado. Pesquisas têm
sido feitas sobre o assunto, mas, ainda assim, há muito o que descrever e analisar quanto à
expressão aspectual da língua portuguesa – principalmente sob a perspectiva construcionista
que orienta esta dissertação –, bem como quanto a sua interação com outras categorias
linguísticas, entre as quais o tempo. O estudo da expressão de aspecto nessa dissertação tem
por objetivo revelar relações, em rede, entre as microconstruções perifrásticas aspectuais de
fase inicial e final do Português instanciadas no uso e trazer uma contribuição para o
entendimento das noções aspectuais no que diz respeito à associação entre a forma gramatical
e a perspectiva semântico-pragmática do falante no ato discursivo.
Com base em uma abordagem funcional-cognitiva centrada em dados do uso, esta
dissertação propõe-se a apresentar resultados de uma pesquisa sobre construções perifrásticas
aspectuais de fase que, embora se tenha iniciado, ainda em nível de iniciação científica, sob
uma ótica basicamente funcionalista, passou a agregar pressupostos e orientações da
perspectiva funcional-cognitiva ao exame teórico-explicativo de predicações que envolvem
recursos verbais (semi)gramaticais os quais servem ao fenômeno semântico da marcação das
fases inicial e final de um estado de coisas, tais como: começar/desatar/passar/pôr-se a Vinf
(verbo no infinitivo) e acabar/deixar/parar/terminar de Vinf, entre outras possibilidades.
Inicialmente, os objetivos que nortearam essa pesquisa estavam focados em torno de
questões relativas às formas verbais disponíveis na língua para marcar a fase inicial ou final de
uma situação ou evento, levando em consideração sua frequência de uso (e por quais
motivações), o nível de gramaticalização sofrido, a verificação do exercício de outras funções
(que não aspecto de fase inicial e final), a influência do contexto linguístico para a seleção de
determinada forma verbal e a verificação do tipo de texto em que se realizaram os dados
detectados, para averiguar a influência do mesmo no uso dessa construção.
Com o desenvolvimento da pesquisa e os estudos realizados durante as disciplinas do
curso de Pós-graduação, os objetivos voltaram-se para a construção perifrástica de aspecto, e
não mais para a forma verbal isoladamente. Desse modo, passaram a compor a lista de
indagações questionamentos como a distribuição das frequências type e token das construções
perifrásticas; o grau de gramaticalidade, esquematicidade e composicionalidade das mesmas; a
atuação de elementos no entorno da construção quando esta se atualiza num enunciado, como
polaridade, flexão de número dos argumentos, presença de adjuntos adverbiais, tempo verbal;
a efetivação de possíveis combinações e/ou restrições entre a forma selecionada para V1 e o
19
tipo de estado de coisas representado por V2 em determinado contexto; e, por fim, a
configuração semântico-estrutural que teria a rede construcional de aspecto no Português, com
foco nas microconstruções com verbos (semi)auxiliares aspectuais marcadores de fase inicial e
final (prevendo aqui também a formulação de instanciações com menor grau de
convencionalidade).
Entre as hipóteses do estudo, tínhamos, em um primeiro momento: (i) a de que elementos
da predicação e do estado de coisas do verbo auxiliado, bem como o grau de gramaticalização
das formas verbais disponíveis, determinariam a mobilização preferencial de certos verbos
(semi)auxiliares aspectuais; (ii) a de que a seleção de formas linguísticas para a marcação das
fases inicial ou final de um evento poderia estar relacionada a diferenças relativas a variedade
e modalidade expressiva; e (iii) a de que haveria diferentes nuances de sentido para cada
instância de uso dos padrões de construção perifrástica aspectual de fase inicial e final.
Posteriormente, com o exame dos dados, somamos a essas as hipóteses de que (iv) que
determinadas microconstruções podem ser polissêmicas, o que põe em jogo o conceito de
variação, sobre o qual não se debruçam estudos funcionalistas e, ainda, de que (v) o estudo dos
auxiliares aspectuais dentro do texto viabilizaria a percepção de como o tipo textual influencia
na escolha dos elementos linguísticos.
E, ainda, a partir da concepção de que estruturas simbólicas (pareamentos de formasignificado/função), importantes à descrição do contínuo léxico-gramática, representam ajustes
de conceptualização aos propósitos expressivos, conformando-se tanto a restrições de
convencionalidade linguística como às exigências de funcionamento da língua, passamos a
assumir que o significado das construções perifrásticas aspectuais também estaria relacionado
a
operações
de
conceptualização,
tais
como
as
baseadas
nos
parâmetros
de:
proeminência/seleção, perspectiva e especificidade (LANGACKER, 2007; VERHAGEN,
2007).
Conceptualization is always the conceptualization of something, a facet of either the
real world we inhabit or a constructed world ultimately grounded in real world
experience. Conceptualization is precisely the act of engaging the world, the
experiential aspect of our interaction with it. Broadly understood, concetpualization
includes perceptual experience, as well as the central control of motor activity and
kinesthetic sensations it induces. It further includes the interlocutors’ apprehension of
the discourse and the interactive context supporting it. (LANGACKER, 2007: 431) 1
1
Conceptualização é sempre a conceptualização de algo, seja uma faceta do mundo que habitamos ou um mundo
construído definitivamente com base em experiências no mundo real. Conceptualização é precisamente o ato
de penetrar o mundo, o aspecto experimental da nossa interação com ele. De maneira geral, conceptualização
inclui experiência perceptual, além do controle central de atividades motoras e sensações cinestésicas que ela
20
Para proceder a uma análise que permitisse verificar os objetivos traçados e confirmar ou
reconfigurar as nossas hipóteses, foram coletados 516 dados de instanciações de construções
com operadores aspectuais inceptivos e terminativos em textos orais e escritos produzidos no
Português Brasileiro e no Português Europeu e veiculados em fontes diversas. Guiou a
constituição dessa amostra o objetivo de alcançar o maior número de instanciações diferentes
(frequência type) possíveis para, ao final do exame dos dados, ser possível estimar uma
representação da rede construcional do aspecto fasal perifrástico, a qual se coadune o mais
fielmente possível com a realidade dinâmica do sistema de construções gramaticais do
Português.
O corpus mencionado foi examinado com base em orientações teóricas e descritivoexplicativas relativas à configuração de predicações e proposições, à aspectualidade mediante
operadores verbais e aos temas da auxiliaridade e da gramaticalização encontradas em Dik
(1997), Heine (1993), Machado Vieira (2004), Lobato (1975), Hopper (1991). Também foi
considerado o esquema temporal de Vendler (1967), no que se refere à classificação de
predicados quanto à sua acionalidade, assim como as teorizações de Castilho (1968) e Travaglia
(1994) sobre categorias como aspecto e tempo e subcategorias implicadas na aspectualidade. O
procedimento de classificação dos empregos detectados baseia-se, em linhas gerais, na
concepção de categorização radial (TAYLOR, 1995), ou seja, em relações de similaridade e
dessemelhança.
Entre as propostas usadas para embasar esta pesquisa, a de Goldberg (1995) é de ordem
mais cognitivista e é revisitada e concebida por autores como Traugott e Trousdale (2013), que
buscam explicar o fenômeno da gramaticalização a partir das restrições construcionais.
Percebe-se, com isso, uma perspectiva mais funcionalista aliada a uma cognitivista, e é neste
espírito de compatibilização teórico-explicativa que decidimos realizar as análises deste
trabalho. O aporte teórico em que esta dissertação se sustenta procura formular um quadro no
qual seja possível propor análises que mostrem a importância das instâncias de uso (i) para a
depreensão de construções perifrásticas marcadoras de aspecto, assim como para (ii) a
adaptação dos elementos que integram os padrões sintáticos observados nesta pesquisa, no que
concerne aos efeitos da gramaticalização.
Com isso, procuramos obter subsídios para responder a questões, como: Quais são os
padrões construcionais com verbos (semi)auxiliares aspectuais de fase do Português? Como
induz. Ela ainda engloba a apreensão do discurso dos interlocutores e o contexto interativo por trás disso.
(LANGACKER, 2007, p. 431)
21
eles estão relacionados em rede? Que possibilidades de conceptualização as construções
perifrásticas estudadas põem em jogo na atividade comunicativa? Quais são as formas verbais
(semi)auxiliares empregadas em Português para perspectivar ou valorizar o início e o fim de
um evento/uma situação, resultando em construtos interrelacionados? Com que frequência cada
forma detectada é acionada? Qual a repercussão dessa frequência sobre o padrão construcional?
Quais são as características das predicações em que ocorrem (semi)auxiliares aspectuais
inceptivos e terminativos? Quais são as possibilidades de categorização dos empregos desses
verbos? Ou seja, com que significados e graus de auxiliarização são empregados no Português?
As opções de formas verbais podem variar a depender do tipo semântico de evento? Há
empregos mais gramaticalizados do que outros? Em caso afirmativo, em que condições? De
que modo as teorizações existentes contribuem e/ou falham na descrição dos verbos aspectuais?
Esta dissertação está organizada em seis capítulos após o da introdução, além das
referências bibliográficas. No capítulo 2 (primeiro após a introdução), há uma descrição mais
aprofundada da categoria verbal aspecto, que conta, inclusive, com explicações relativas a
diferenças entre ela e o aspecto lexical e a categoria tempo, bem como com a apresentação da
tipologia aspectual criada por linguistas e alguns gramáticos. O capitulo 3 é dedicado ao
referencial teórico-explicativo que norteia a nossa investigação, onde fazemos considerações
acerca do enfoque funcionalista adotado, das orientações da Gramática das Construções e da
influência dos estudos cognitivistas que atingem as construções em estudo. O capítulo 4 ocupase de apresentar mais detalhadamente alguns conceitos fundamentais no desdobramento desta
pesquisa. Os materiais utilizados e a metodologia de trabalho adotada são apresentados no
capítulo 5, que contêm informações a respeito do corpus utilizado e das etapas e parâmetros da
análise dos dados. O capítulo 6 concentra a discussão da análise das microconstruções
perifrásticas aspectuais com base na interpretação dos dados linguísticos coletados no corpus e
de outros encontrados mediante ferramenta de pesquisa na internet para uma amostra
complementar. Por último, no capítulo 7, são tecidas as considerações finais relativas ao estudo
desenvolvido, consolidando o intento de contribuição da presente pesquisa e indicando as suas
limitações, bem como outras vias de enfrentamento do tema.
22
2. O QUADRO ATUAL DE DESCRIÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO PERIFRÁSTICA
DE ASPECTO
2.1 UMA OBSERVAÇÃO INICIAL SOBRE PERÍFRASES VERBAIS
Em Português, a categoria aspecto não dispõe de morfologia própria/exclusiva para ser
expressa. Depende de um conjunto complexo de elementos linguísticos (afixos, tempos verbais,
operadores (semi)gramaticais, adjuntos adverbiais, termo(s) sujeito ou complemento(s), entre
outros) e condições de configuração e sentido, bem como da relação e coatuação 2 destes. Ocorre
que, entre os mecanismos disponíveis, sobressai de imediato, numa avaliação superficial dos
textos que produzimos, a utilização de perífrases para expressá-la.
No caso das perífrases verbais, o entendimento geral é o de que, após passar, em alguma
medida, pelo processo de gramaticalização, um verbo se juntaria a uma forma nominal de outro
verbo (aqui, o infinitivo), o auxiliado, conferindo-lhe certas nuances. Em outras palavras, o
verbo chamado auxiliar carregaria as noções de tempo, aspecto e modo e “auxiliaria” um outro
verbo que se apresenta em sua forma infinitiva a carregar tais informações.
Convencionalmente as gramáticas tratam a junção de verbos que formam um só grupo
verbal como locuções verbais, em que são utilizados verbos auxiliares prototípicos (ser, estar,
ter, haver) seguidos de formas nominais para formar conjugações temporais (CUNHA &
CINTRA, 2007). De acordo com Pontes (1973), Said Ali foi um dos primeiros autores a ignorar
a diferenciação entre locução verbal e perífrase, já que, segundo o autor, essa diferenciação está
apenas na nomenclatura, uma vez que perífrases também podem formar conjugações completas.
Interessa-nos, especificamente, a expressão do aspecto de fase inicial e final por meio
de construções perifrásticas, ou seja, aquelas expressões que envolvem V1 marcador
(semi)auxiliar ou quase auxiliar de aspecto. Sabemos que nem todas as construções com verbo
(semi)auxiliar seguido de forma nominal têm o mesmo nível de integração, fato que, inclusive,
nos conduz a/impõe uma reflexão sobre o caráter perifrástico das expressões que identificamos
no corpus. Não obstante, não conhecemos exatamente quais e por que motivo(s). E, até por
isso, justifica-se a descrição detalhada de cada microconstrução prevista pelo padrão
2
O Projeto PREDICAR (Formação e expressão de predicados complexos, ao qual esta pesquisa se vincula no
âmbito do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas), por exemplo, há algum tempo vem tratando
da expressão de perfis aspectuais de predicações definidos por meio de construções perifrásticas constituídas
de certos verbos instrumentais e elementos nominais com determinada configuração morfológica (-ada/adinha,
-(z)inha): dar uma olhada, dar uma espiadinha, dar uma saidinha, fazer uma observaçãozinha, instanciações
de uso de subtipos de construção gramatical com verbo suporte que, em certos contextos de ocorrência, se
mostram a serviço de marcar o caráter não-durativo ou superficial de um evento ou uma situação.
23
construcional perifrástico de aspecto de fases da língua portuguesa que aqui propomos. Dessa
forma, partimos do entendimento que tal categoria dispõe de um aparato de construções
perifrásticas com diferentes níveis de complexidade formal e conceitual, definidos pela
articulação de fatores lexicais, sintáticos, semânticos, discursivos e pragmáticos, tópico que
será mais detalhado na seção (4.6).
2.2 O QUE É ASPECTO?
De acordo com Castilho (2002: 83), “o aspecto verbal é uma propriedade da predicação
que consiste em representar os graus do desenvolvimento do estado de coisas aí codificado, ou
seja, as fases que ele pode compreender, e que integra o campo simbólico (...)”. O autor diz
ainda que “o aspecto é a visão objetiva da relação entre o processo e o estado expressos pelo
verbo e a ideia de duração ou desenvolvimento. É, pois, a representação espacial do processo”
(CASTILHO, 1968: 14).
Como o aspecto é uma categoria verbal que se relaciona com o desenvolvimento interno
do processo, independentemente da sua localização no eixo temporal, decorre ser, portanto,
uma categoria pluridimensional, podendo indicar: a duração (o processo pode ser mais ou
menos durativo, ou até pontual), as fases (o processo pode estar para realizar-se, começar a
realizar-se, continuar a realizar-se, aproximar-se do fim, acabar de realizar-se, entre outras
possibilidades), a colocação (o processo pode situar-se relativamente a processos que lhe são,
ou imediatamente anteriores, ou imediatamente posteriores), a visão (o processo pode ser visto
ou global ou parcialmente), o resultado (o processo pode apresentar um resultado efetivo ou
produtivo), a repetição ou número verbal (o processo pode ser único ou repetido, uma ou várias
vezes), a determinação ou orientação objetiva (o processo indica o seu encaminhamento: do
princípio para o fim e vice-versa, ou indiferente a esta orientação), etc., pois, como diz Eugenio
Coseriu (1980), as dimensões aspectuais são teoricamente numerosas.
Estas e outras dimensões (compreendidas no etc.) podem realizar-se em Português por
meio de processos não-gramaticais e/ou gramaticais. Uns e outros são, por conseguinte, alguns
processos de que as diferentes línguas do mundo dispõem para a expressão dos referidos valores
de natureza aspectual. Os primeiros compreendem as expressões lexical e contextual; e os
segundos, as expressões flexional e perifrástica. As expressões lexical e contextual
(normalmente tidas como realizações não-gramaticais) caracterizam-se, por oposição às
realizações gramaticais (que possuem instrumentos gramaticais próprios, isto é, significantes
cuja função primária é a de marcarem este e/ou aquele valor temporal e aspectual, ou
simplesmente aspectual), por carecerem destes mesmos (ou semelhantes) instrumentos
24
(gramaticais) e expressarem os referidos valores através de semantemas verbais e de afixos
derivativos, por um lado, e de adjuntos adverbiais, por outro lado.
Assim, em Português, no que diz respeito ao processo de expressão lexical, os
semantemas verbais podem denotar uma ideia de duração (ex.: durar, continuar, etc.), de
progressão (ex.: crescer, envelhecer, etc.), de iteração (ex.: repetir, etc.), de incoatividade (ex.:
começar, principiar, etc.), de término (ex.: acabar, terminar, etc.), de ação conclusa (ex.:
entrar, sair, abater, etc.), de ação inconclusa (ex.: admirar, sonhar, falar, etc.), etc., por um
lado; e os afixos (prefixos e sufixos) podem também desempenhar um papel com maior ou
menor significado na expressão destes mesmos ou de outros valores aspectuais: de iteração [ex.:
saltitar (diminutivo verbal) oposto a saltar, etc.], de mudança de estado (ex.: empalidecer,
arrefecer, aquecer, etc.), de repetição simples (ex.; refazer e redizer, opostos a fazer e dizer,
etc.), por outro lado.
A expressão contextual, que está representada, sobretudo, pelos adjuntos adverbiais,
também ocupa uma posição que não é, de modo algum, de se desprezar na realização da
categoria verbal que agora interessa. Assim, nos enunciados "a criança ainda chora”, “a
criança já não chora”, “a criança ainda não chora”, e “a criança já chora", verificamos que
os advérbios sublinhados – perfeitamente substituíveis por estes sintagmas verbais “a criança
continua a chorar”, “a criança deixou de chorar”, “a criança está para chorar” ( = “a criança
talvez vá chorar”) e “a criança começou a chorar”, respectivamente – expressam os seguintes
valores aspectuais: 'fase continuativa', 'fase egressiva', 'fase iminencial' e 'fase inceptiva',
também respectivamente. Para além destes, outros advérbios e locuções adverbiais como
ontem, amanhã, de tarde, à noite, agora, nunca, todos os dias, raramente, etc., estão a serviço
de outros tantos valores aspectuais.
As expressões flexional e perifrástica, processos gramaticais importantes para expressão
da categoria aspecto, são, de longe, os mais sistemáticos e, por isso mesmo, os de maior
rendimento funcional. Porém, e nesta qualidade, a expressão flexional fica bastante aquém da
perifrástica. É que os morfemas da flexão verbal portuguesa têm como função primária
expressar os valores sistemáticos das categorias tempo, modo, pessoa e número (verbais,
naturalmente). Contudo, certos valores aspectuais podem deduzir-se secundariamente ou, até,
aparecerem (isto é: serem expressos) simultaneamente. Devido ao fato de, na conjugação
central, o aspecto estar combinado com o tempo, pensa-se que só as marcas do passado
apresentam regularidade quanto à expressão dos valores aspectuais (ex.: estudou e estudara –
perfectividade / estudava e estudaria – imperfectividade). As restantes marcas (de presente e
de futuro) exprimem um valor aspectual durativo que, de acordo com o caráter aspectual
25
(significação interna) do verbo e também conforme os contextos de ocorrência, pode ser, ou
perfectivo ou imperfectivo.
É, no entanto, a expressão perifrástica que representa a realização ideal da categoria
aspecto em português contemporâneo. E isto, porque se estabelece um forte elo 3 de ligação
entre o verbo auxiliar e o verbo auxiliado (ex.: ponho-me a estudar / pus-me a estudar / punhame a estudar / etc. – fase inceptiva; parou de estudar / parava de estudar / estava parando de
estudar / etc. – fase terminativa).
2.2.1 Aspecto gramatical e aspecto lexical
Conceituações relativas a verbos aspectuais, em linhas gerais, caracterizam-nos como
elementos linguísticos cuja função é a de alterar a "perspectivação" ou a "focalização" dos
eventos, das situações, de modo a acarretar implicações relevantes para o nível da classificação
aspectual das formas verbais com que se combinam (V2), das expressões linguísticas em que
atuam. Assim, os verbos aspectuais, por um lado, interferem nessas expressões; por outro, são
"sensíveis" à classe das “eventualidades” com que se combinam, ao tipo aspectual da situação
em causa.
Para entendermos melhor o que foi dito antes, é preciso esclarecer a diferença entre
aspecto gramatical (foco do estudo dessa dissertação) e aspecto lexical. O primeiro é a
compreensão strictu sensu da categoria aspecto, isto é, são graus de realização da ação,
expressos através de flexões nominais, temporais e perífrases verbais (sendo essas últimas o
mecanismo que interessa a essa dissertação), enquanto aspecto lexical (também chamado de
Aktionsarten, acionalidade ou, ainda, classe aspectual) é a compreensão lato sensu dessa
categoria, que são os modos da ação, sua natureza, expressa lexicalmente.
É certo que o aspecto não possui morfologia própria/exclusiva na língua portuguesa e,
portanto, resulta de uma combinação de diversos recursos linguísticos para ser codificado. A
história da aspectologia demonstra como se deu o reconhecimento dos significados aspectuais
a partir de duas fases: (1) fase léxico-semântica, em que os valores aspectuais se ligam ao
lexema verbal, ou seja, é fase do Aktionsarten (Acionalidade), perspectiva que atribui ao verbo
as noções aspectuais apreendidas em seu significado e abrange um número ilimitado de
possibilidades; e (2) fase semântico-sintática, ou composicional, na qual se examina o aspecto
3
Para afirmar tal relação, baseio-me em testes de atitude realizados bem no ínicio da pesquisa no Projeto
PREDICAR, em outra fase, que não o mestrado ainda, sobre a percepção de aspecto. Usuários da língua
validaram o reconhecimento rápido de perífrases com a funcionalidade de marcar aspecto terminativo.
26
como resultado da combinação da Aktionsart do verbo com a flexão e verbos auxiliares, os
argumentos e adjuntos adverbiais. É nesta segunda fase que estão localizados os estudos de
Castilho (1968), Comrie (1976), Travaglia (1994), os quais são utilizados para nortear esta
pesquisa.
Essa primeira fase, que aponta para uma grande classificação de predicados e que não
envolve diretamente a gramática, é referida por Ilari & Basso (2008) da seguinte maneira:
É ainda próprio do verbo, enquanto unidade lexical, ou do sintagma verbal, incluindo
o verbo e seus complementos, atribuir (ou não) às ações que descreve uma estrutura
interna constituída de “momentos” qualitativamente diferentes (...). A principal
diferença entre as ações, do ponto de vista da Aktionsart, é que algumas ações têm,
como parte própria e previsível, uma conclusão de um certo tipo (...), ao passo que
outras ações não têm um fim previsível (...); outra diferença de Aktionsart, é que
alguns verbos exprimem uma ação pontual ao passo que outros exprimem uma ação
duradoura (...). (ILARI & BASSO, 2008: 166)
O aspecto define-se por exprimir o modo de ser (interno) de um estado de coisas,
descrito através das expressões de uma língua natural, em função da seleção de um predicador,
de quantificação de um intervalo de tempo e de referência à fronteira inicial ou final de um
dado intervalo. Desse modo, não se pode ignorar a contribuição lexical dos predicadores para
o enquadramento específico de aspecto. O termo Aktionsarten é usado para designar as classes
de evento lexicalmente evocadas (somadas a outros fatores situacionais) pelos predicadores.
Essas classes são comumente aferidas através dos critérios de dinamicidade/estaticidade,
duratividade (processualidade) e telicidade.
Ao longo desse estudo, no entanto, optamos por conjugar os critérios acima, que são
propostos por Vendler (1967), com o critério de controle, apontado por Dik (1997), resultando
em um quadro com um número maior de classes acionais possíveis.
Antes de detalharmos o quadro criado ao longo da pesquisa, é importante ressaltarmos
em que consistem esses traços definidores das classes aspectuais. De acordo com Dik (1997),
um evento menos dinâmico, ou seja, mais estático, revela que as entidades envolvidas não
mudam no decorrer do continuum temporal em que o estado de coisas se situa; ou seja, as
entidades devem permanecer inalteradas, como percebemos nos exemplos “A substância estava
vermelha” e “João estava sentado na cadeira de seu pai”. Uma situação mais dinâmica, por
outro lado, comporta-se como um estado de coisas em que se verificam mudanças atribuídas às
entidades envolvidas. Esse dinamismo pode ser recorrente, se nele se captam sucessivas
mudanças ao longo da duração do estado de coisas, ou pode ser uma única mudança gradativa
de um ponto inicial até um final do espaço temporal da situação (“O relógio estava batendo” /
“A substância avermelhou” / João abriu a porta”).
27
O parâmetro da telicidade evidencia se o evento descrito atinge um ponto final de
completude ou não. Um estado de coisas atélico é aquele que pode desenrolar-se
indefinidamente, sem completude, enquanto o mais télico suscita a ideia de uma situação
concluída, identificada por meio de elementos linguísticos explícitos, como a inserção de um
sintagma nominal, por exemplo, ou por outros menos explícitos, como a flexão de número, por
exemplo (“João estava pintando” [- télico] / “João estava pintando um retrato” [+ télico] /
“João estava pintando retratos” [- télico]).
No que diz respeito ao parâmetro da momentaneidade, Dik (1997) diz que um evento
menos momentâneo, ou seja, durativo, é aquele que se prolonga por um determinado espaço de
tempo, enquanto o menos momentâneo, ou seja, o pontual se caracteriza por ocupar somente
um único momento ou ponto do continuum temporal. O autor propõe o uso de verbos
aspectuais, que indicam os pontos inicial, medial e final de uma situação, para testar se um dado
estado de coisas é mais ou menos momentâneo (João começou a / continuou a / terminou de
pintar o retrato. – *João começou a / continuou a / terminou de alcançar cume).
Por fim, um estado de coisas observado sob o parâmetro de controle decodifica a
capacidade ou não de o argumento externo controlar o evento expresso. Dessa forma, o
constituinte sujeito pode atuar sobre o predicado, incidindo sobre ele um processo voluntário
(“João abriu a porta”) ou uma situação involuntária (“A árvore caiu”). Os indícios que revelam
um estado de coisas desse tipo podem ser a animacidade do sujeito e a própria natureza
semântica do predicado, fatores que, no caso de cair, pressupõem um argumento que jamais
controlará a ação.
A proposta de Vendler (1967) é chamada de Esquema Temporal e baseia-se em três
traços, a saber: [+/-dinâmico], [+/-durativo] e [+/-télico], que, em atuação, geram quatro
categorias distintas. São elas: estado [-dinamismo] [+durativo] [-télico]; atividade [+dinâmico]
[+durativo] [-télico]; accomplishment [+dinânimo] [+durativo] [+télico]; e achievement
[+dinâmico] [-durativo] [+télico]. A seguir, recorro a quatro exemplos do próprio autor para
ilustrar as categorias:
Para estados: A amou B durante um intervalo de tempo I, significa que em qualquer
subintervalo de I A amou B. Para atividades: Se A está correndo em um intervalo de
tempo I, em qualquer subintervalo de I, A está correndo. Para “accomplishments”:
Se A desenhou um círculo em um intervalo de tempo I, existe um subintervalo I’ em
que A começou a desenhar o círculo e existe um subintervalo I’’ que é o momento
exato em que A terminou de desenhar o círculo. Para “achievements”: Se A ganhou
uma corrida em um intervalo de tempo I, I é instantâneo. (VENDLER, 1967)
Enquanto isso, a Tipologia do Estado de Coisas de Dik (1997) diz respeito à semântica
interna de uma predicação. O autor nomeia os tipos de estado de coisas com base nos traços
28
que se referem a um verbo [±dinâmico], [± durativo], [± télico] e [± controlado], deixando de
lado o parâmetro experienciador, citado por ele mesmo, mas dispensado porque parece não ser
fundamental para a organização gramatical das línguas. A novidade aqui em relação a Vendler
é o traço controle, e o que faz o estado de coisas ser [+ ou – controlado] é se o referente de seu
primeiro argumento tem o poder de determinar se o estado de coisas vai ocorrer ou não. No
esquema abaixo, é possível entender a distribuição e diferença entre os tipos de estado de coisas
descritos pelo autor.
Situaçao
Evento
[-din]
[+din]
Estado
Posição
[-contr]
[+contr]
Ação
Processo
[+contr]
[-contr]
Accomplishment
Achievement
Mudança
Dinamismo
[+tel]
[-tel]
[+tel]
[-tel]
Figura 1: Tipologia de Estado de coisas (DIK, 1997).
Como se pode ver acima, na teoria de Dik a combinação de valores dos parâmetros
acima gera uma tipologia com dois grandes tipos que se subdividem: situação [-diâmica] e
evento [+dinâmico]. Situação divide-se em estado [+controlado] e posição [-controlado], e
evento divide-se em processo [-controlado] e ação [+controlado]. Estes, por sua vez, por serem
eventos que envolvem mudanças, também se subdividem a partir dos traços de duratividade e
telicidade. Portanto, processo divide-se em dinamismo [-durativo][+télico] e mudança
[+durativo][+télico], e ação subdivide-se em atividade [+durativo][-télico] e “accomplishment”
[+durativo][+télico].
A proposta que embasou a análise dos dados desta pesquisa mescla as categorias
descritas e cria outras duas, uma vez que faltou a Vendler observar o traço controle e faltou a
Dik pensar em outras subcategorias para processo (sem ser télico) e ação (sem ser durativo).
Trabalhamos então, nessa dissertação, as seguintes classes aspectuais: (a) posição [dinamismo] [+controle]; (b) estado [-dinamismo] [-controle] – nestes dois primeiros tipos, há
apenas dois traços envolvidos, porque, quando o traço de dinamicidade é negativo, os traços de
telicidade e duratividade não se aplicam, porque este sempre será positivo e aquele, negativo;
29
(c) atividade [+dinamismo] [+controle] [-télico] [-momentâneo]; (d) accomplishment 4
[+dinamismo] [+controle] [+télico] [-momentâneo]; (e) achievement [+dinamismo]
[+controle] [+télico] [+momentâneo]; (f) processo [+dinamismo] [-controle]
[-télico] [-
momentâneo]; (g) dinamismo [+dinamismo] [-controle] [+télico] [+momentâneo]; (h) e
mudança [+dinamismo] [- controle] [+ télico] [- momentâneo]. Tais classes serão
exemplificadas a seguir, respectivamente, com dados do corpus:
(a) “Onde as matas fazem alguma clareira ou os penedos alguma chapada, D. Inigo para um
pouco, tomando fôlego e põe-se a escutar.” [PE, Lendas e Narrativas, pg.34]
(b) “Se é verdade que uma cláusula da rede social diz que todos os conteúdos partilhados
passam a pertencer à empresa, o jurista lembra que isto está a ser contestado nos tribunais
europeus.” [Publico, PE, notícia, 04.09.12]
(c) “Bem, o busto só enquanto está amamentando, parou de amamentar, volta ao que era
antes.” [NURC-RJ, DID, n° do inquérito 0056]
(d) “(...) eu sei que não é minha, é do meus filho, mas eu tenho o sonho de arrumar lá aonde eu
moro a gente comprou tá terminando de construir ainda, mas eu tenho esse sonho de terminar
de construir a casa.” [PB, entrevista DID, concordância, NIG A 1 M]
(e) “Há quase um ano, aguarda sentença judicial de despejo contra o ‘inquilino’ que deixou de
pagar o aluguel e mora de graça em um bem que não lhe pertence prejudicando o orçamento
de um idoso aposentado.” [PB, O Globo, Cartas de Leitor, Justiça? [A.C.], 13/07/2014, Página 11]
(f) “Ah, decepção porque no dia em que nós chegamos começou a chover e todas as casas na,
na, em Petrolina são feitas de, são feitas de telha-vã, essa tipo colo... colonial em que o urubu,
porque ficam muito secas, pisa, dá aquele pulo pra pousar e quebra a telha.” [NURC-RJ, DID, n°
do inquérito 0144]
(g) “Passado um ano ou dois anos, eu não tenho bem situado isso, mas eu comecei a ver,
começou a despontar uma profissão nova e aí eu estava enfronhado no meio de trabalho já,
comecei a ter uma visão diferente, a visão de economia, de administrador, a visão de
economista, de contabilista. Então foi quando surgiu, foi quando começaram a surgir as
faculdades de Economia, quando começou a surgir o economista.” [PB, entrevista DID, NURCRJ, amostra complementar, n° do inquérito 28]
4
Optamos, aqui, por manter a nomenclatura em inglês por considerarmos que a tradução não faz jus à mesma
ideia. Enquanto accomplishment se aproxima da realização conquistada, achievement está mais próximo da
realização alcançada instantaneamente.
30
(h) “É porque eu só gosto de café e de sopa quente. Então eu não encho a xícara e quando ela
começa a esfriar eu ponho novamente café.” [NURC-RJ, DID, n° do inquérito 0253]
É importante ressaltar que o aspecto lexical se aplica ao verbo, mas, na prática, uma
tipologia verbal deve sempre funcionar sendo levada em consideração a situação, ou seja, sendo
composicional com outros fatores, como seus argumentos, entre outros.
Parece contraditório falar em um significado lexical que não está obrigatoriamente
atrelado ao significado lexical do verbo, e sim a um significado composicional; porém, a
ambiguidade desaparece quando pensamos que este significado lexical pode ser intrínseco a
uma situação, que pode ser referida por verbos, associados ou não a outros elementos,
compondo uma descrição desta situação.
Todas as línguas, por mais diferentes que sejam umas das outras, tendem a representar,
de modo geral, os mesmos fenômenos e situações. Será a maneira de representá-lo(a)s
(morfologia, sintaxe) que irá variar, e não as situações em si. A partir disso, podemos observar
que o mesmo verbo pode referir-se a mais de uma situação, como nos exemplos “Maria
lembrava de sua infância claramente”; “Maria lembrou da senha”; “Maria passou o dia
lembrando dos bons momentos da viagem”. Podemos identificar neles três situações diferentes
e com classes aspectuais diferentes. A primeira é uma posição; a segunda, um achievement; e
a terceira, uma atividade. O verbo é o mesmo, porém, os elementos à sua volta contribuem para
caracterizar situações diferentes, que têm significados temporais inerentes diferentes. Da
mesma maneira, a mesma situação pode ser descrita por verbos diferentes, como em “Maria
percebeu que estava chovendo”; “Maria notou que estava chovendo”; “Maria viu que estava
chovendo”. Portanto, a situação deve ser sempre levada em consideração.
O aspecto trata da gramaticalização das distinções semânticas que os verbos apresentam,
enquanto acionalidade trata da lexicalização destas distinções. Sendo assim, é importante frisar
que estamos falando de dimensões linguísticas interdependentes, porque ambas se apoiam sobre
as mesmas distinções ontológicas.
2.2.2 A relação entre as categorias de aspecto e tempo
Segundo Travaglia (1994), o aspecto é uma categoria verbal ligada ao tempo, pois indica
o espaço temporal ocupado pela situação em seu desenvolvimento marcando a sua duração, isto
31
é, o tempo gasto pela situação em sua realização. 5 Assim, tempo e aspecto constituem conceitos
similares, porém, com uma diferenciação crucial: enquanto o tempo se refere a um tempo
externo, o aspecto localiza a situação conforme seu tempo interno. A situação diz respeito à
“representação linguística de um determinado estado de coisas ou acontecimento do mundo
num contexto espácio-temporal” (RAPOSO, 2013:585).
Dessa forma, é importante esclarecer bem a diferenciação entre as noções de tempo e
aspecto. Segundo Travaglia (1994), por exemplo, enquanto a categoria de tempo é uma
categoria dêitica, já que situa o momento de ocorrência da situação a que nos referimos em
relação ao momento da fala como anterior (passado), simultâneo (presente) ou posterior (futuro)
a esse mesmo momento, o aspecto não é uma categoria dêitica, pois refere-se à situação em si,
indicando algo sobre o grau de desenvolvimento, de realização da situação. É um tempo interno
à situação, enquanto o tempo é externo.
É importante lembrar que essa localização dos eventos num certo recorte cronológico é
sinalizada, conforme Ilari & Basso (2008) destacam, a partir de vários elementos de referência
temporal numa sentença: além dos tempos verbais e verbos auxiliares, formas nominais do
verbo, formas adverbiais (já, há pouco, agorinha mesmo), datas, entre outros elementos que
possam responder a “quando?”. Os referidos autores, bem como Raposo et al. (2013), ressaltam
também a interferência de outros elementos na delimitação aspectual de uma predicação como,
por exemplo: certas operações no predicado e no sujeito, tais como pluralidade, quantificação
e referencialidade.
Para Comrie (1976: 6), o aspecto, como categoria gramatical, pode ser expresso nas
línguas tanto morfológica quanto perifrasticamente. Assim, no Português, por exemplo, a
estrutura morfológica favorece a confusão entre Tempo e Aspecto, visto que as descrições
tradicionais, ao concentrarem-se nas conjugações verbais, ignoram as distinções aspectuais
empregadas perifrasticamente.
O Português dispõe de variadas formas (em tempos distintos) para expressar um mesmo
aspecto imperfectivo, em diferentes nuances, devido à diversidade de combinações, o que
demonstra a flexibilidade de codificação destes sentidos e também a complexidade obtida pela
variedade de integrações conceptuais. Segundo Castilho, com quem concordamos, as perífrases
são mais importantes no Português do que as flexões temporais para o estudo do Aspecto.
5
A esse respeito, pode-se mencionar ainda que se caracteriza o tempo por sua relação com o momento da fala
e o aspecto pela constituição temporal interna do desenrolar do evento.
32
2.3 A TIPOLOGIA ASPECTUAL NA REVISÃO DA LITERATURA
2.3.1 Comrie (1976)
Comrie (1976) analisa as noções aspectuais como concernentes a uma parte da teoria
linguística geral e afirma, portanto, que a análise aspectual deve valer para todas as línguas. O
autor propõe a classificação das oposições aspectuais como apresentado no esquema seguinte.
Figura 2: Tipologia aspectual proposta por Comrie (1976: 25).
Segundo o autor, o imperfectivo pode ser separado em habitual e contínuo. O habitual
é entendido como uma situação estendida num período de tempo não determinado. Já o
contínuo estaria no âmbito das situações delimitadas no tempo. Essa concepção está calcada na
lógica e não na codificação linguística, já que, como o próprio autor argumenta, uma mesma
situação pode ser descrita de diversas formas. O contínuo, como mostrado no esquema acima,
pode ser dividido em não progressivo e progressivo. O progressivo pode ser apreendido a partir
da noção de um aumento crescente, ao passo que o não progressivo não carrega essa noção.
Semelhantemente a esta tipologia proposta por Comrie está a de Bybee (1985), a qual considera
principalmente as oposições perfectivo/imperfectivo e habitual/contínuo para classificar o
aspecto.
Especificamente nos estudos do português brasileiro, autores como Castilho (1968,
2002), Travaglia (1994), entre outros, propõem tipologias aspectuais diferentes, ao passo que
consideram diferentes noções para o tratamento da classe. Passemos às suas tipologias.
2.3.2 Castilho (1968, 2002)
Castilho (1968) define o aspecto como a visão objetiva da relação entre (i) o processo e
o estado expressos pelo verbo e (ii) a ideia de duração ou desenvolvimento, sendo, pois, a
33
representação espacial do processo. Esses dois conceitos relativamente frequentes em outras
descrições sobre o assunto deixam entrever algumas facetas da operação de conceptualização.
Além disso, Castilho (1968) propõe alguns valores e, ligados a eles, aspectos que são
típicos do português. Assim, apresenta valores baseados nas seguintes noções: a) duração; b)
completamento; c) repetição; d) neutralidade (que seria a negação da duração e do
completamento); e os respectivos aspectos: a) imperfectivo; b) perfectivo; c) iterativo; e d)
indeterminado. Se ação verbal indica uma duração, temos o aspecto imperfectivo; se uma ação
cumprida, contrária à noção de duração, o aspecto perfectivo; se uma ação repetida, o aspecto
iterativo. Tal relação está melhor exposta no quadro abaixo:
Figura 3: Tipologia aspectual proposta por Castilho (1968: 48).
Como se observa no quadro, o aspecto imperfectivo é apreendido a partir da noção de
duração e apresenta três matizes: (A) duração de que se conhecem claramente os primeiros
momentos, pressentindo-se o seguimento do processo, ou seja, aspecto imperfectivo inceptivo,
o qual, por sua vez, evidencia a existência de duas noções secundárias encontradas ao lado da
noção geral, (i) a de começo da ação puro e simples (inceptivo propriamente dito), e (ii) a de
começo da ação e conseqüente mudança de estado (inceptivo incoativo); (B) duração de que
não se reconhece o princípio nem o fim, apresentando-se o processo em seu pleno
desenvolvimento, ou seja, aspecto imperfectivo cursivo, que, por sua vez, admite duas
variantes, a de aspecto cursivo propriamente dito e a de aspecto cursivo progressivo, que difere
do primeiro por pôr em revelo um desenvolvimento gradual do processo; e (C) duração de que
se conhece o término, traduzida por aspecto imperfectivo terminativo.
No grupo dos imperfectivos, está todo evento ou situação em que se reconhecem
diferentes fases de desenvolvimento, como vemos em “Ele começou a almoçar” e “Ele
34
terminou de almoçar”, por exemplo. Começou informa que a ação de almoçar está em seu
início, enfoca a fase inicial do evento. Nesse caso, portanto, temos o aspecto imperfectivo.
Terminar, por sua vez, enfoca a fase final do evento de almoçar e temos, portanto, aí o aspecto
imperfectivo. Castilho (2002) afirma que o terminativo é um subgrupo do aspecto imperfectivo
e, considera que esse aspecto “assinala os momentos finais de uma duração, o que só é possível
em perífrases cujo o V1 [primeiro verbo da perífrase] seja acabar de / por, cessar de, deixar
de, terminar de seguido de infinitivo” (Castilho, 2002: 101). Como será visto mais adiante neste
trabalho, o autor inclui uma forma verbal que não indicaria o aspecto citado, bem como esquece
de mencionar outras.
O aspecto perfectivo está relacionado à noção de completamento e implica a indicação
precisa do começo e do fim do processo, sem que se apreenda sua duração. Trata-se de “uma
ação cujo começo coincide com seu desfecho, tornando-se irrelevantes as fases de seu
desenvolvimento [começo, meio e fim]” (Castilho, 2002: 86), como, por exemplo, “Ele fechou
os olhos”, já que o evento de fechar é mostrado como único e indivisível, em sua completude.
Para o autor, então, o perfectivo é um aspecto decorrente da noção aspectual acabada e apresenta
três divisões: (A) o perfectivo pontual, que é aquele representado por um ponto, o perfectivo
por excelência; (B) o perfectivo resultativo, que indica o resultado consequente ao acabamento
de um evento; e (C) o perfectivo cessativo, que decorre da ação expressa pelo verbo, carregando
uma noção de negação que se reporta ao presente.
Já o aspecto iterativo baseia-se na noção de ação repetida e é considerado um coletivo
de ações que podem ser durativas (o que resulta no aspecto iterativo imperfectivo) ou pontuais
(o que dá o aspecto iterativo perfectivo). Para Castilho, este aspecto é, então, intermediário
entre o perfectivo e o imperfectivo. O aspecto indeterminado caracteriza-se por não ser nem
perfectivo nem imperfectivo e é avesso não só à expressão de aspecto, mas também à de tempo.
Vale ressaltar que, segundo o autor, as noções de incoação (mudança de estado), de
progressão, de resultado e de cessamento não são noções aspectuais, embora sirvam para
caracterizar aspectos, uma vez que costumam se aderir a eles. Dessa forma não são noções
definitórias (como duração, completamento e repetição), mas podem agregar valor aos verbos
ao se somarem a outra categoria.
De acordo com o objeto de interesse dessa dissertação, o valor focalizado é o de duração,
e, portanto, ambas as construções em estudo pertencem ao aspecto imperfectivo. Desse modo,
este termo não será mencionado ao longo do trabalho, por considerar-se uma informação
implícita. Os dois tipos de aspecto (imperfectivo) de fases que interessam aqui são: inceptivo e
35
terminativo, sendo este tratado como uma categoria de designação mais genérica que inclui o
terminativo propriamente dito e também o cessativo.
2.3.3 Travaglia (1994)
Travaglia (1994) considera o aspecto
uma categoria verbal de TEMPO, não dêitica, através da qual se marca a duração da
situação e/ou suas fases, sendo que estas podem ser consideradas sob diferentes pontos
de vista a saber: o do desenvolvimento, o do completamento e o da realização da
situação. (TRAVAGLIA, 1994: 44)
O autor concebe 14 tipos diferentes de aspecto, os quais estão apresentados no quadro a
seguir.
Figura 4: Tipologia aspectual proposta por Travaglia (1994: 85).
Da classificação estabelecida por Travaglia, chamamos atenção para o fato de o autor
conceituar a oposição perfectivo/imperfectivo como dependentes das noções “acabado” ou
“não acabado”. Esse ponto de vista parece equivocado, pois demonstra uma confusão
estabelecida entre referência ao ponto terminal de um fato e referência ao fato enunciado como
acabado:
O perfectivo, termo geral da oposição, como todo não-marcado, não admite
subdivisões quanto à sua temporalidade interna. O imperfectivo, verdadeiro
atualizador da categoria como recurso de expressividade no português, admite as
seguintes subdivisões: pode referir o fato como em curso; pode referir uma das fases
constitutivas da temporalidade interna do fato (inicial, intermediária ou final); ou
referir o fato como um estado resultante de um processo anterior. (COSTA, 2002: 33)
36
Além disso, podemos apreender que o autor opõe “duração” a “fases”, mas não explica
essa escolha, já que uma ação durativa admite fases no seu desenvolvimento. Por outro lado, o
autor critica Castilho quanto à sua divisão de perfectivo e imperfectivo, com fases de
desenvolvimento ali dentro, por acreditar que completamento e duração não são noções que se
opõem e, portanto, não seria possível admitir categorias compostas de aspecto – tal como
propõe Castilho (imperfectivo inceptivo, por exemplo) – mas, apesar de, em seu quadro,
apresentar 14 categorias simples de aspecto gramatical, Travaglia considera a aplicação de mais
de um tipo de aspecto para uma situação, podendo acumular até três dessas categorias. Não
seria essa uma forma de expressar mais de um aspecto? Não seria uma espécie de categoria
composta?
É também interessante notar que o autor aqui em questão considera o Aspecto
Indeterminado e o Aspecto não atualizado, não elucidando, porém, essas distinções. Além
disso, parece inadequada também a utilização da nomenclatura “fases de realização”, já que o
aspecto não-começado ou prestes a começar, por exemplo, não se enquadra em nenhum tipo de
realização, bem como nenhum dos aspectos identificados nessa fase. Por fim, e ainda sobre o
aspecto não-começado, Travaglia (1994) se contradiz quando o inclui na lista de sua tipologia
aspectual, já que não aceita como aspecto uma noção que ainda não começou a ter existência.
Outra questão de grande relevância é que, apesar desse autor falar em expressão do
aspecto por perífrases verbais, ao descrever o funcionamento de cada perífrase atualizada na
língua portuguesa, ele afirma que a perífrase não é a responsável pela expressão de aspecto
nenhum, mas sim as flexões temporais e/ou orações adverbiais e adjuntos adverbiais presentes
no seu entorno. Nesse sentido, Travaglia postula um (ou um conjunto de) aspecto(s) para a
situação narrada (que inclui somente o verbo lexical, na posição ocupada por V2 na perífrase),
ignorando a existência do aspecto lexical discutido por outros estudiosos do tema, e outro(s)
para a situação referencial (expressa pelo verbo (semi)auxiliar aspectual, na posição de V1). Se
assim ocorre, por que considera essa estrutura uma perífrase?
Os diferentes posicionamentos dos autores indicam que a tipologia proposta para a
classificação aspectual vai depender do que entendem por Aspecto, Tempo e perífrase. Por um
lado, Castilho (1968, 2002) e Costa (2002) compartilham o posicionamento de que o Tempo
não influencia, por si só, a função aspectual de perífrases. Por outro, Travaglia (1994) propõe
uma série de combinações de noções aspectuais para chegar a uma tipologia, a qual depende do
Tempo em que V1 está conjugado. Nesse sentido o autor admite a noção de duração em
perífrases perfectivas (formadas por verbos no Pretérito Perfeito, por exemplo), contrariando
Castilho.
37
A partir dos comentários de Costa (2002) sobre a confusão estabelecida entre referência
ao ponto terminal de um fato e referência ao fato enunciado como acabado e a partir do nosso
posicionamento de que não há duração em eventos perfectivos, nosso entendimento é de que o
Tempo não interfere na marcação de aspecto. Na realidade, pode haver uma certa influência,
mas, por ora, não afeta a expressão de fase, que é o que está em jogo nessa dissertação. A
categoria Tempo pode acrescentar até outro perfil/contorno aspectual, como, por exemplo, o
iterativo, a depender da flexão temporal, mas nada que seja comprometedor à fase expressa pela
perífrase. Ilustramos tal afirmação nos exemplos abaixo, em que o operador verbal começar
encontra-se no pretério imperfeito do indicativo, acrescentando a noção de iteratividade do
evento em questão:
“Quando Firula começava a falar, o que não acontecia com muita frequência, ele sempre
desatava a tagarelar de um jeito meio bobo.” [PB, Peter Pan, pg. 139];
“Em geral, quando Wendy começava a contar essa história, ele saía da casa ou enfiava os
dedos nos ouvidos; e é possível que, se houvesse feito uma coisa ou outra, eles ainda estivessem
na ilha.” [PB, Peter Pan, pg. 144].
2.3.4 Raposo (2013)
Para Raposo (2013: 1268), os verbos auxiliares e semiauxiliares aspectuais representam
a repetição de um evento ou focalizam os diferentes momentos “internos” de uma situação, ou
seja, as diferentes fases: o seu começo, o seu final, a sua parte intermediária e também a
mudança de uma situação para outra. Ele afirma ainda que todos esses verbos regem, na norma
padrão do Português, a preposição a ou de.
O autor apresenta exemplos de verbos a cada noção aspectual a que faz referência,
citando: (a) a fase intermediária de uma situação (estar a e continuar a); (b) o início de uma
situação durativa – o aspecto ingressivo (começar a); (c) o término de uma situação (acabar
de, deixar de e parar de, com diferentes nuances – todos, porém, com uso da preposição de,
que apresenta valor semântico de afastamento e separação, aplicado metaforicamente ao
término de uma situação); (d) a mudança de situação (ficar a e passar a – esta última pondo em
jogo uma nova situação correspondente a um estado estável ou habitual por parte do referente
sujeito); a repetição (andar a – múltipla em curso, voltar a e tornar a – recomeço).
2.3.5 Moura Neves (2000)
38
Moura Neves (2000: 63 e 64) dispõe 9 noções aspectuais diferentes, dentre as quais se
pode reconhecer um pouco de cada autor mencionado anteriormente até aqui. São elas: (a)
início de um estado de coisas (o que seria o aspecto inceptivo); (b) término ou cessação de um
estado de coisas (paralelamente ao aspecto terminativo); (c) desenvolvimento de um estado de
coisas (referente ao aspecto cursivo); (d) progressão com a ideia de desenvolvimento gradual e
intenso de um estado de coisas (aspecto cursivo progressivo); (e) repetição de um estado de
coisas com ideia de hábito/costume (aspecto habitual); (f) repetição de um estado de coisas com
ideia de frequência (aspecto iterativo); (g) repetição de um estado de coisas sem a ideia de
frequência ou de hábito (aspecto de retomada e um novo início); (h) resultividade de um estado
de coisas dinâmico que se concluiu, atingindo um ponto terminal (aspecto resultativo); e
consecução de um estado de coisas (não previsto pelos outros autores).
2.3.6 Alguns gramáticos
Rocha Lima (2010), em sua gramática, sequer abre espaço para analisar, categorizar ou
ao menos comentar a categoria aspecto. Reflexo do desconhecimento dessa categoria verbal no
nível básico do ensino? Não conheço uma escola sequer que abranja esse tópico em seu
conteúdo programático de sala de aula, priorizando, antes, as categorias de modo e tempo.
Já Cunha e Cintra, em sua gramática (2007: 396 e 397), dentro do capítulo de verbos,
dispõem de duas páginas para tratar sobre “Aspectos”. Primeiramente os autores dizem que
diferentemente das categorias de tempo, modo e voz, o aspecto designa uma categoria
gramatical que manifesta o ponto de vista do qual o locutor considera a ação expressa pelo
verbo, citando Castilho. Dessa forma, a ação pode ser considerada como concluída ou não
concluída. Em Português, eles afirmam ser clara a distinção que se verifica entre as formas
verbais perfeitas e mais-que-perfeitas e as imperfeitas.
Em seguida, eles afirmam que alguns estudiosos costumam expandir o conceito de
aspecto, incluindo nele valores semânticos pertinentes ora ao verbo, ora ao contexto. O que nos
interessa saber é que eles concordam em distinguir três oposições aspectuais: pontual e
durativo; contínuo e descontínuo; e incoativo e conclusivo. Além disso, também é válido para
nosso trabalho ressaltar que, segundo os gramáticos, nas frases “João começou a comer” e
“João acabou de comer”, não há oposição gramatical de aspecto, mas sim lexical, visto que é
o próprio significado dos auxiliares que transmite ao contexto os sentidos incoativo e
conclusivo, respectivamente.
39
Parece-nos haver um equívoco aqui, porque, a partir do momento em que considera os
primeiros verbos dessas frases exemplificadas como auxiliares, há, de certo, algum nível de
oposição aspectual entre eles, já que é a categoria que mais passam a exercer. Além disso, eles
consideram o sentido incoativo sem que haja mudança de estado decorrente do início de algum
evento, o que deveria ser, então, sentido inceptivo propriamente dito.
Por fim, na “Moderna Gramática Portuguesa”, de Bechara (2001), encontramos maior
empenho em tratar dessa categoria. O autor dedica nove páginas a considerações sobre o
aspecto dentro da Parte II (Gramática descritiva e normativa), na seção A de Formas e Funções,
capítulo 6, referente a verbos. O gramático chega a afirmar que “no verbo, em português, há
categorias que sempre estão ligadas: não se separa a “pessoa” do “número” nem o “tempo” do
“modo”; e isto ocorre em grande parte, senão totalmente, com o “tempo” e o “aspecto”. (p. 210)
Bechara abre espaço para as considerações de Eugênio Coseriu sobre as categorias de
tempo e aspecto e, em seguida, apresenta uma clara e coerente proposta para a interpretação do
verbo românico em relação com as categorias de tempo e aspecto, fundamentando-se no sistema
de subcategorias verbais. Para tanto, distingue-as em:
1) Nível de tempo
a. Presente – atual
b. Imperfeito – inatual
2) Perspectiva primária
a. Paralela e cursiva – presente
b. Retrospectiva e complexiva (não cursiva) – passado
c. Prospectiva e complexiva (não cursiva) – futuro
3) Perspectiva secundária
Nas mesmas divisões da primária, em tempo composto.
4) Duração
a. Durativa
b. Pontual
c. Iterativa
5) Repetição
a. Repetição de ação única (semelfactiva)
b. Ação repetida singular
c. Repetição indeterminada
6) Conclusão
a. Terminativa (conclusão subjetiva, atélico)
b. Completiva (conclusão objetiva, télico)
40
7) Resultado
a. Resultativa subjetiva – reação efetiva
b. Resultativa objetiva – produtiva
8) Visão
a. Comitativa
b. Prospectiva
c. Retrospectiva
d. Continuativa
e. Global
9) Fase
a. Iminente (ingressiva)
b. Inceptiva
c. Progressiva
d. Continuativa
e. Regressiva e conclusiva
f. Egressiva
Bechara apresenta, então, uma outra tipologia, diferente das resenhadas até aqui, em que
relaciona o aspecto gramatical ao lexical. No entanto, não nos pautaremos em sua distinção
categorial, uma vez que estamos analisando a categoria do aspecto gramatical.
2.4 A PERSPECTIVA AQUI ADOTADA
Com base na revisão da literatura de aspecto gramatical realizada, é possível dizer que
o objeto de estudo desta dissertação constitui as construções perifrásticas que expressam,
segundo Castilho (1968), o aspecto imperfectivo inceptivo e terminativo, aquelas que seguem
o padrão sintático [V1(não)fin + prep. + V2inf] e cuja semântica está relacionada ao início ou
término de uma ação ou um estado de coisas codificados pelo verbo que ocupa a posição de V2.
Essa construção é constituída por um verbo auxiliar ou em processo de auxiliarização (V1)
normalmente flexionado em tempo, modo e pessoa e um verbo infinitivo (V2). Entre eles, as
preposições a, de e por podem aparecer, sendo a primeira a mais frequente nos dados.
Tem destaque também, na configuração do significado associado às construções usadas
para marcação de aspecto inceptivo ou terminativo, a compatibilização entre significado
construcional e significado lexical, ou seja, o pressuposto de que a significação se constrói em
duas vias (bottom up/top-down): o sentido vem da construção gramatical de aspecto (inceptivo
ou terminativo) e de como ela se combina com determinado verbo para marcar essa noção.
41
Através dos estudos realizados e da coleta de dados, constatamos que diferentes verbos podem
ser usados para pôr em relevo diferentes noções aspectuais, embora construções gramaticais
(GOLDBERG, 1995, 2006) funcionem para impor um tipo particular de designação à
interpretação aspectual de um estado de coisas.
Como construções são pareamentos de forma-significado, pode-se admitir que, por força
semântica da construção, até mesmo verbos que não são canonicamente associados ao conjunto
de auxiliares aspectuais de fase inicial ou final possam ocorrer na construção gramatical a
serviço da marcação de aspecto de fase (como será visto no capítulo 6). Afinal, a interação entre
léxico e gramática é mediada por processos de conceptualização. E como as construções
gramaticais se organizam com base em redes, motivadas por laços de herança (polissêmicos ou
metafóricos) ou relações pragmáticas, supõe-se que há um repertório de (sub)esquemas
construcionais que permitem compreender ou formular expressões linguísticas novas. É nesse
sentido de investigação que se desdobra esta dissertação.
2.5. O PADRÃO SINTÁTICO [V1(não)finito + prep. + V2inf] – A PERÍFRASE VERBO
(SEMI)AUXILIAR + VERBO AUXILIADO
Verbo auxiliar + verbo auxiliado é a estruturação mais básica a partir da qual
suspeitamos/cogitamos o fenômeno linguístico da auxiliaridade. E para este fato, contribui,
como é mais que evidente, o conceito de verbo auxiliar. Por este, entende-se todo o verbo que
incide sobre outro verbo em um mesmo sintagma verbal e/ou, o verbo que serve,
essencialmente, para expressar uma nuance determinada de um conceito verbal. Assim, por
exemplo em “O Antônio tem estudado muito" e “O Antônio vem estudando muito”, verificamos
que o primeiro elemento de cada uma das sequências sublinhadas (tem e vem) funciona como
modificante, pois não expressa uma noção nova, mas tão-só um matiz; ao passo que o segundo
(estudado e estudando) funciona como elemento modificado, porquanto expressa uma noção
nova ou predicativa.
A função modificante é representada, por conseguinte, na classe dos verbos, por um
número finito de variáveis; e a função modificada, ao invés, por um número teoricamente
infinito, isto é, por todos os verbos existentes numa língua funcional e que, sincronicamente
falando, dificilmente podem ser incidentes de outros verbos, por não possuírem, normalmente,
essa capacidade funcional.
Uma outra observação que nos ajuda a clarificar a relação entre verbo auxiliar e verbo
auxiliado prende-se àquilo que se conhece por incidência direta e incidência indireta. O
42
primeiro tipo caracteriza-se pelo fato de o auxiliar incidir diretamente sobre o auxiliado,
moldando-o. Servem de exemplo, entre outros, os enunciados há pouco referidos (como tem
trabalhado e vem trabalhando). Há, porém, outros tipos de construções que, apesar de,
formalmente, serem diferentes, se assemelham às anteriores, funcionalmente. Estamos, neste
caso, diante da incidência indireta. Esta, contrariamente à anterior, caracteriza-se pelo fato de
o verbo auxiliar moldar o auxiliado por meio de uma preposição. Os enunciados “O Manuel
está para escrever à sua amiga”, “O Joaquim começa a trabalhar amanhã”, “No último
conselho de ministros, o Primeiro Ministro acabara por reconhecer perante todos os membros
do executivo quão favorável era a Portugal a atual conjuntura internacional” são apenas
alguns exemplos que podem nos elucidar acerca desse tipo de relação que se estabelece entre
os dois principais verbos que constituem uma perífrase verbal, cujo significado funcional
(gramatical), segundo Carvalho (1979), não deriva da soma dos significados de cada um,
tomados individualmente, mas da conjunção dos dois, holisticamente considerados.
Para além desses dois tipos formais de construções perifrásticas (verdadeiras perífrases
verbais gramaticais), existem alguns complexos verbais, muito semelhantes a esses – e que, por
isso mesmo, correm o risco de confundir-se com eles –, mas que, na realidade, não o são. Assim,
tomando como exemplo “Estou para dizê-lo ao teu pai” e “Venho para dizê-lo ao teu pai” –
em que se registra a presença da preposição para, relacionando os dois verbos das respectivas
frases –, verificamos que – se, por um lado, no segundo exemplo, podemos realizar diferentes
modificações sem mudar o sentido (como “venho aqui para dizê-lo ao teu pai”; “Quis vir para
dizê-lo ao teu pai”; etc.) – por outro lado, já não podemos fazer o mesmo relativamente ao
primeiro exemplo, sem que o conteúdo de estar não se altere (como “Estou aqui para dizê-lo
ao teu pai”; “Quis estar aqui para dizê-lo ao teu pai”; etc.). Neste sentido, é lícito, portanto,
supor uma unidade semântica e funcional em “estou para dizê-lo” e incluir expressões deste
tipo dentro do domínio da auxiliaridade.
O primeiro elemento do padrão sintático em estudo normalmente assume os morfemas
de tempo, modo, pessoa e número, funcionando ele mesmo como um todo morfemático, graças
ao processo (complexo) de gramaticalização a que foi (ou é) submetido (como veremos na seção
4.6). No entanto, a depender do grau de auxiliaridade que se atualiza neste primeiro elemento,
ele pode aparecer em sua forma infinita dentro de um padrão sintático ainda maior, em que atua
sobre ele outro verbo ainda mais gramatical, por exemplo: “Estou para parar de fumar há um
bom tempo, mas não consigo” ou “Ele estava começando a falar quando o telefone tocou”. Já
o segundo elemento (o verbo auxiliado), pelo contrário, nunca se flexiona e só pode aparecer
numa das suas três formas nominais: infinitivo, gerúndio ou particípio.
43
É, também, conveniente frisar que os verbos auxiliares não se combinam de modo
aleatório com as respectivas formas nominais dos verbos auxiliados. Há uma espécie de reação
aspectual dos primeiros para com os segundos, fenômeno que se manifesta na sua combinação
de ocorrências. Isto significa, portanto, que certos auxiliares podem ocorrer com as três formas
nominais do auxiliado (estar, por exemplo, com particípio – passiva de estado – com gerúndio
e com preposição + infinitivo – valores aspectuais de visão e fase), expressando, ora diferentes
modalidades (estar a + infinitivo é diferente de estar para + infinitvo), ora a mesma modalidade
(estar + gerúndio é igual a estar a + infinitivo); outros, porém, só ocorrem com esta ou aquela
forma nominal (ter + particípio – valores aspectual e temporal; ter de + infinitivo – valor modal;
andar + gerúndio ou andar a + infinitivo – valor aspectual; etc.)
Verbo auxiliar + particípio (ex.: ter, haver, ser e estar + particípio), verbo auxiliar +
gerúndio (ex.: ir, vir, estar, andar, etc. + gerúndio), verbo auxiliar + infinitivo (ex.: ir, vir, poder,
etc, + infinitivo) e verbo auxiliar + preposição + infinitivo (ex.: começar a, passar a, estar para,
parar de, terminar de + infinitivo) são os quatro tipos de estruturas perifrásticas que hoje
encontramos efetivamente realizadas em português. Destas construções gramaticais, interessam
a esta dissertação apenas o último tipo.
44
3 REFERENCIAL TEÓRICO-EXPLICATIVO
Este capítulo aborda o campo teórico sobre o qual esta dissertação se funda. O quadro
teórico que será delineado reúne (i) fundamentos gerais do Funcionalismo com a Linguística
Cognitiva, cuja interface se atualiza aqui como Linguística Centrada no Uso. Somam-se alguns
fundamentos da Gramática das Construções, o que permitirá uma abordagem do ponto de vista
construcional para a interpretação dos enunciados em análise.
Para esta pesquisa, além das características mais gerais que regem a configuração de um
sistema cuja base é a relação entre situações de uso e a emergência de construções gramaticais
(BYBEE, 2010, GOLDBERG, 1995), estão envolvidos conceitos sobre a categorizarão de
eventos, o que possibilita uma tipologia de predicados e dos constituintes a eles vinculados
(DIK, 1997), predicação e transitividade, a noção de categorização linguística (TAYLOR,
1995), além de subjetificação (VERHAGEN, 2005) e analogia (FAUCONNIER & TURNER,
2002), propriedades valiosas na abordagem construcionista.
3.1 O FUNCIONALISMO
Diversas propostas funcionalistas desenvolveram-se no decorrer do século XX
prezando, em linhas gerais, pela relação inseparável entre estrutura linguística e aspectos
relacionados ao contexto de uso. Na perspectiva funcionalista, a língua é um instrumento de
comunicação e interação social submetido ao uso, uma vez que fatores históricos, sociais,
discursivos, pragmáticos e cognitivos (como crenças, conhecimento, preconceitos, sentimentos,
entre outros) a influenciam, a moldam. A Gramática Funcional é, então, uma teoria geral sobre
a organização gramatical das línguas naturais que prevê uma relação entre pragmática,
semântica e forma, entre discurso e gramática. Nesse paradigma, os interesses voltam-se, então,
para o funcionamento da língua, numa relação dinâmica com os diversos fatores referidos e,
conjuntamente com a perspectiva construcionista de Traugott e Trausdale (2013), entre
cognição, discurso, gramática e léxico também.
Uma dada forma linguística não tem significado inerente (para a noção “amigo”, por
exemplo, há uma forma no português, outra no inglês e outra em italiano – a forma em si não
tem significado), mas é associada a propriedades de significado previamente ao contexto em
que se atualiza por conta de fatores de ordem social, histórica e cultural, atuantes em conjunto.
Então, existe uma associação a sentido primário ou mais esperado para uma dada forma (por
conta de injunções extralinguísticas, por exemplo). Só que apenas quando se atualiza num dado
contexto linguístico e comunicativo, numa construção, os indícios culturalmente
45
compartilhados que oferece vão se compatibilizar com um sentido (às vezes, de maneira até
inédita) condizente à construção gramatical em jogo, entorno linguístico e à situação
pragmático-discursiva. Por isso, o sentido pode não corresponder diretamente a uma forma,
mas a uma construção em que aquela se insere. Com efeito, análises que buscam traçar algum
tipo de comportamento linguístico devem envolver o papel do usuário, já que é ele o
responsável pela produção e pela interpretação das formas linguísticas; e, por assim se
considerar, é fundamental a articulação entre fatores mais cognitivos, que envolvem
propriedades subjacentes à estrutura linguística, aos usos efetivados pelos usuários em situações
reais de comunicação.
Com essa inegável importância atribuída ao usuário, nota-se que a Linguística Funcional
se articula à Linguística Cognitiva no que concerne à preocupação com o modo como os
usuários produzem significados. A expressão “modelo baseado no uso” (usage-based model),
de autoria de Langacker (1987), é uma tentativa de apresentar os fundamentos de uma
Gramática Cognitiva. O autor centra sua atenção nos usos reais de um sistema linguístico e no
conhecimento de um dado falante sobre esse uso.
Langacker (1987) mostra que uma gramática deve ser baseada numa relação entre
capacidades linguísticas e outras não linguísticas que abarquem questões como perspectivação
e domínios de experiência humana. Nessa teoria, são os processos históricos, aspectos culturais
e a frequência produtiva que geram as construções linguísticas.
Outra observação importante e muito estimada pelas abordagens funcionalistas é a
necessidade da utilização de dados linguísticos reais e não apenas inventados, por meio de
intuições do pesquisador, que sirvam para elucidar suas hipóteses. Se a proposta é desenvolver
um modelo que invista na relação entre uso e sistema linguístico, não há nada mais preciso que
flagrar produções linguísticas reais vinculadas a eventos possíveis e concretos. Só assim é
viável analisar uma situação comunicativa, observando seu contexto, intencionalidade
discursiva e os participantes envolvidos. Nesse sentido, torna-se cada vez mais necessário
vincular a noção de uso aos conceitos de variação e mudança, uma vez que as variantes
linguísticas são consideradas alternativas permitidas pela rede das estruturas da língua e são
utilizadas não apenas sob as restrições internas, como também sob as externas, vinculadas às
instâncias de uso, que são dinâmicas (e, portanto, permitem variação).
Os linguistas também defendem a ideia de que as habilidades produtiva e interpretativa
devem ser tratadas de maneira integrada ao sistema linguístico. Entendendo-se que as instâncias
de uso conduzem a estruturação e o funcionamento do sistema, não seria, então, possível a
separação entre competência e desempenho, pois o que o falante constrói é o que integra sua
46
compreensão de língua. Nessa perspectiva baseada no uso, o estímulo, considerado no
gerativismo como um input externo que levará o indivíduo a selecionar os parâmetros dentro
dos princípios de sua Gramática Universal para chegar à aquisição, é integrado ao modelo com
importância crucial para o desenvolvimento do sistema linguístico daquele que está adquirindo
uma língua.
Uma das ideias básicas das abordagens centradas no uso é a noção de que as estruturas
linguísticas são emergentes e, por assim ser, rejeita-se a proposta de que existe um
compartimento no cérebro em que tais estruturas são armazenadas e são postas em uso a partir
determinados procedimentos operacionais. Dessa forma, as informações são processadas por
meio de associações entre diferentes áreas da cognição humana.
De acordo com a Teoria da Gramática Funcional (DIK, 1997), no uso comunicativo da
língua, estão envolvidas as seguintes capacidades: linguística, epistêmica, lógica, perceptual e
social. Assim, em relação ao usuário da língua natural, a primeira diz respeito à capacidade de
fabricar e compreender expressões em situações comunicativas; a epistêmica possibilitará a
construção, manutenção e a exploração de uma base do conhecimento organizado. Machado
Vieira (2001) afirma, inclusive, que o usuário da língua extrai conhecimentos de expressões
linguísticas que se atualizam no discurso, arquiva esse conhecimento de forma apropriada e o
utiliza na interpretação de outras formas linguísticas em outras situações de comunicação. A
capacidade lógica possibilita ao falante chegar a um determinado (re)conhecimento de uma
forma linguística a partir de regras de raciocínio; a perceptual relaciona-se à utilização de
conhecimentos adquiridos através da percepção no momento da produção e/ou interpretação
das expressões linguísticas; e, por último, a capacidade social vincula-se ao fato de que o
indivíduo tem o conhecimento sobre o que dizer e como dizer a um determinado interlocutor
em uma determinada situação comunicativa, com suas especificidades
e restrições. É
importante salientar que todas essas capacidades estão inter-relacionadas no domínio de uma
língua, que é um instrumento de interação social.
Antes de continuar, é importante explicitar-se o conceito de “função” com o que se vai
trabalhar nesta dissertação, já que o Funcionalismo não economiza no emprego de
“função/funcional” e é de conhecimento geral que o termo dentro dos estudos linguísticos é
plurissignificativo ou vago demais. Não cabe pensar no termo função, dentro dos estudos
funcionalistas, referindo-se estritamente à relação entre os constituintes da oração, ou seja, às
funções sintáticas; função, na perspectiva funcionalista, refere-se, na maioria das vezes, a um
viés semântico e pragmático, “ao papel que a linguagem desempenha na vida dos indivíduos”
(NEVES, 1994: 8).
47
De acordo com Dik (1997), toda gramática, em sua base, possui um caráter funcional,
quando aborda os papéis temáticos e sintáticos desempenhados pelas classes de palavras. O
autor ainda destaca que a função de um item pode ser considerada a partir de sua habilidade
para promover certo fim, que pode ocorrer de diferentes maneiras. E, segundo o autor, a
significação de função das unidades linguísticas abarca os seguintes conceitos: (a) a seleção
pelo usuário da língua do sentido que atenda mais satisfatoriamente a sua intenção, (b) a
interação nos diferentes níveis entre as estruturas e as funções das unidades lexicais e (c) a
transformação das funções potenciais em funções referidas, agindo como um objetivo
realizável.
Fica claro, então, que o objetivo norteador das pesquisas funcionalistas é investigar a
função das formas linguísticas no ato comunicativo, ou seja, observar, descrever e explicar a
relação entre forma e função, e traçar, num viés diacrônico, a associação entre forma a função.
Nesta pesquisa, a trajetória priorizada tem sido a da função para a forma, porque escolhemos,
como ponto de partida, averiguar que pareamentos de forma-sentido emergem no âmbito das
construções perifrásticas da língua portuguesa para exprimir a função do aspecto de fases inicial
e final de um evento, ou seja, quais são as microconstruções gramaticais que servem de base
aos constructos detectados no corpus, para, então, delinearmos padrões construcionais mais
abstratos de expressão de aspecto inceptivo e terminativo até chegarmos ao padrão
construcional mais geral da rede de construção perifrástica de aspecto de fases. Naturalmente,
esse processo de pesquisa de relações entre níveis construcionais mescla movimentos analíticos
ascendentes e descendentes no curso do exame de constructos e da detecção de
microconstruções, subesquemas construcionais (mesoconstruções) e o esquema construcional
mais geral.
3.2 A ABORDAGEM CONSTRUCIONISTA
Goldberg (1995) é um grande marco na reconfiguração da concepção de construção,
termo há muito tempo em estudo na literatura linguística. Na década de 1970, desenvolveramse explanações acerca da falta de sustentabilidade de uma proposta que contemplasse somente
a natureza composicional da língua, já que, assim, os idiomatismos, por exemplo, não
receberiam tratamento adequado e seriam apreciados como exceções da língua. Esses
problemas, apresentados por Fillmore (1979), trouxeram à pauta os processos de construção de
significados de um idioma. O grande objetivo era o de resolver o problema de como dar conta
de sentidos que não são diretamente relacionados às formas que compõem a construção. Lakoff
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(1987), por meio de um estudo sobre redes polissêmicas geradas a partir de redes de semelhança
construcional, demonstra que, na base motivacional de uma construção, está um fator de
natureza cognitiva.
Para Goldberg (1995), o processo de significação desenvolve-se a partir das
experiências humanas; ou seja, os usuários da língua participam de contextos comunicativos
em que precisam ler o mundo, gerando informações que colaboram para a formulação de
sentidos e de construções. O sentido é, assim, construído a partir de cenas, vivências, e não pela
estrutura interna da língua. Quanto às construções, a autora afirma que constituem itens isolados
ou estruturas formadas por dois ou mais itens que apresentam correspondência entre forma e
significado e existem independentemente dos elementos, verbos que as compõem, ou seja,
carregam significado (GOLDBERG, 1995:1). Logo, um mesmo padrão construcional pode
pertencer a estruturas com diferentes verbos, como a construção bitransitiva X CAUSA Y
RECEBER Z, que, normalmente, faz parte das expressões cujos verbos apresentam valor
transferencial: passar, conceder, dar, enviar.
As construções, portanto, são, nessa perspectiva, consideradas unidades básicas da
língua, e o pareamento pode corresponder a níveis de organização linguística distintos – não só
nos níveis lexical e sintático, mas também no morfológico. Isso atesta a visão de que léxico e
sintaxe não são categorias estanques, pois diferem apenas em sua complexidade e se relacionam
em um continuum de construções (cf. GOLDBERG, 1995:7). Apesar de a autora ainda não ter
evidenciado a aplicação do conceito de construção às expressões idiomáticas, afirma que essas
estruturas estão distribuídas no continuum cujos extremos são construções menos complexas
(morfemas e palavras) e mais complexas (construções condicionais ou na voz passiva).
A autora desenvolve, a partir de generalizações sobre a língua inglesa, padrões de
codificação linguística (os esquemas) que refletem cenas básicas de experiência, tais como
transferir algo a alguém, experienciar algo, fazer algo mover-se ou modificar-se. Descreve, por
conseguinte, sentenças simples e básicas do idioma e mostra que os esquemas ajudam a
compreender o processamento e entendimento das expressões linguísticas. Nessa teoria, as
construções gramaticais são, por elas mesmas, entidades teóricas e não derivam de movimentos
sintáticos. Uma construção tem sua autonomia de significado em relação às partes que a
compõem, o que demonstra que o nível lexical não é o único responsável pela manifestação dos
significados e que as construções, por meio de esquemas abstratos, viabilizam determinados
itens, de maneira que possam compor tais construções.
A autora argumenta que os usuários da língua conhecem diversos esquemas e
subesquemas e que tanto falante como ouvinte promovem a inter-relação entre os esquemas e
49
entre diferentes formas linguísticas, o que permite a formação e a compreensão de novas
estruturas da língua. Há, portanto, outra forma de se conceber a língua, qual seja: uma rede de
(sub)esquemas interrelacionados que permite o desenvolvimento de outras redes. A autora
vincula o termo rede ao fato de as dimensões da língua – léxico e gramática – estarem
integradas, formando-se redes de conhecimentos.
Assim, determinados itens, como verbos, por exemplo, podem instanciar uma
construção considerada incomum. Um exemplo como “A menina andou os peões até o meio
do tabuleiro” é satisfatoriamente explicado por uma abordagem construcional, pois, em vez de
se considerar que o verbo andar, que se articula prototipicamente a um único argumento com
papel temático de agente (a menina andava sem rumo), possa comportar-se como transitivo
direto, num esquema “X andar Y”, tal como é previsto numa perspectiva léxico-semântica, na
teoria de Goldberg, andar pode instanciar uma construção transitiva, funcionando como um
operador causativo que envolve um agente (a menina), um tema (os peões) e uma meta (até o
meio do tabuleiro). Assim, é a construção que licencia seus componentes, possibilitando a
interpretação transitivo-causativa e não o contrário.
Essa particularização do modelo de Goldberg em relação à observação da estrutura
argumental dos verbos reinterpreta o modo como se vê a multiplicidade de distribuições
argumentais para um mesmo item verbal. A integração do verbo com a construção pode gerar
usos mais ou menos previstos/comuns. Em alguns casos, a construção pode alterar o esquema
básico de um verbo, que, por sua vez, pode mudar seu significado quando se relaciona a ela.
Para ilustrar as relações entre uma construção e um verbo, a autora desenvolveu matrizes
retangulares em que aspectos semânticos e sintáticos de ambos são considerados. Para tanto,
esclarece que há uma distinção entre os papéis semânticos relacionados ao verbo, papéis
participantes (participant roles) e os argumentos da construção, papéis argumentais (argument
roles). Essa especificação ocorre para mostrar que os verbos apresentam papéis específicos,
enquanto as construções são associadas a papéis mais gerais, como agente, paciente e meta (cf.
GOLDBERG, 1995:43). A seguir, um exemplo de matriz:
Figura 5: Esquema da construção bitransitiva (GOLDBERG, 1995: 50).
50
O verbo é representado pela variável “PRED”. As setas não pontilhadas marcam os
papéis argumentais (semânticos) que obrigatoriamente se fundem aos papéis do verbo. A seta
pontilhada, por sua vez, indica o papel argumental que não se funde obrigatoriamente com o
papel do verbo, ou seja, o recipiente faz parte da construção, mas não é necessariamente
manifestado pelo verbo. Por exemplo, em “A menina desatou a chorar”, o verbo “desatar” não
se refere somente ao fato de a menina ter iniciado o choro, mas à maneira como ela o fez
(rapidamente e de maneira intensa). Na matriz dessa construção, a variável deve ser
especificada como “R: maneira/meio” (means). Quando não há informações sobre como a ação
ocorreu, apenas “fato/evento” (instance) é indicado na variável “R” da matriz (como ocorre em
“A menina começou a chorar”).
Portanto, na abordagem construcionista, a língua é concebida como sendo composta de
pareamentos convencionalizados de forma (propriedades de fonologia, morfologia e sintaxe) e
significado (propriedades semânticas, pragmáticas e discursivo-funcionais). As construções são
entendidas como unidades simbólicas convencionais. São convencionais na medida em que são
compartilhadas entre um grupo de falantes; são signos, porque são associações arbitrárias de
forma e significado convencionalizadas social, cultural e/ou historicamente; são unidades na
medida em que algum aspecto do signo é tão idiossincrático ou tão frequente que o signo está
“entrincheirado” (entrenchment) como um par de forma e significado na mente do usuário da
língua.
Traugott & Trousdale (2013: 3) sintetizam os princípios básicos desta abordagem:
a) a unidade básica da gramática é a construção, que é um par convencional de forma e
significado;
b) a estrutura semântica é mapeada diretamente na superfície da estrutura sintática, sem
derivações;
c) a língua, dentre outros sistemas cognitivos, é uma rede de nós e ligações entre nós;
associações entre alguns desses nós tomam a forma de hierarquias de herança ou relações
taxonômicas;
d) a variação linguística e dialetal pode ser representada de várias formas, incluindo processos
cognitivos de domínio geral e construções de variedade específica;
e) a estrutura da língua é formada pelo uso.
Outro conceito importante nessa abordagem é o processo de construcionalização, que é
regido por três parâmetros, de acordo com Traugott & Trousdale (2013). O primeiro é o de
51
esquematicidade, que consiste numa propriedade de categorização que envolve crucialmente
abstratização. Na perspectiva desses autores, a língua é composta de esquemas linguísticos
abstratos, semanticamente agrupados por estrutura ou conteúdo e todos relacionados numa rede
construcional. Tal parâmetro permite averiguar o continuum de abstratização de uma
construção: quanto mais preenchida, menos esquemática e, portanto, menos abstrata; da mesma
forma, quanto mais espaços vazios houver para serem preenchidos por itens variados, mais
esquemática e abstrata ela é.
Aqui cabe dizer que os esquemas linguísticos (também chamados de construções) são
instanciados por subesquemas (também chamados de mesoconstruções) e, em um nível mais
baixo, microconstruções, que são tipos específicos de esquemas mais abstratos. Em relação ao
nosso objeto de estudo, começar a + Vinf é uma microconstrução de aspecto inceptivo. Esta se
configura mediante um subesquema construcional (ou mesoconstrução de aspecto inceptivo,
nomenclatura adotada nesta dissertação) do esquema (ou padrão construcional mais genérico)
de aspecto verbal perifrástico que, por sua vez, está abaixo de outro padrão construcional ainda
mais genérico e universal, a macroconstrução de complexos verbais com auxiliares.
É importante ressaltar que as microconstruções se instanciam no uso como constructos,
que são tokens empiricamente atestados realizados por um falante com um propósito
comunicativo (TRAUGOTT & TRAUSDALE, 2013: 16). E é nos constructos que reside a
inovação individual e subsequente (possivelmente) convencionalização. A mudança
construcional tem início quando novas associações entre constructos e construções surgem ao
longo do tempo, ou seja, quando há novos usos que não estavam previstos no sistema e,
portanto, não disponíveis para os usuários da língua antes.
O segundo parâmetro é o de produtividade, que é uma propriedade gradiente e refere-se
a esquemas parciais. Diz respeito à extensão (type), ou seja, em que medida eles sancionam
outras microconstruções menos esquemáticas e menos esperadas (o que chamamos, nessa
dissertação, de formas não canônica) e à frequência (token), ou seja, o número de vezes que os
construtos aparecem no uso da língua. Não se pode perder de vista que é a frequência token um
dos fatores-chaves por gerar rotinização e automatização das microconstruções.
Já o terceiro parâmetro é o da composicionalidade, que se refere ao grau de transparência
entre forma e significado. É pensada geralmente em termos tanto semânticos (o significado das
partes e do todo) quanto em relação às propriedades combinatórias do componente sintático da
construção.
52
Nesse modelo, assume-se que as palavras contribuem para o significado das sentenças,
mas não são responsáveis por todo o significado. A diferença do significado do verbo se dá pela
integração do sentido do verbo com o sentido da construção.
Dessa forma, a língua seria uma rede de construções, e a unidade básica da gramática,
da análise gramatical, seria a construção, que, por sua vez, se revela nas experiências
comunicativas por meio (também) de instâncias de uso. Aí está o laço que permite a interface
entre a linguística funcional-cognitiva com a abordagem construcionista, tanto que Langacker
(2007) descreveu a arquitetura de seu modelo de gramática cognitiva como uma rede
construcional. Cada nó da rede representa uma construção e tem, portanto, forma e significado
(em diferentes níveis de complexidade e especificidade), e as relações entre eles podem
acontecer em múltiplas direções entre os traços semânticos, pragmáticos, de funcionamento
discursivo, sintático, morfológico ou fonológico de cada nó.
No que diz respeito à organização linguística das redes construcionais, usamos os
princípios apontados por Goldberg (1995:67) para nos guiar:
I. Princípio da Motivação Maximizada: “Se uma construção A está sintaticamente relacionada
à construção B, então o sistema da construção A é motivado de forma que se relaciona
semanticamente com construção B. Essa motivação é maximizada.”.
Esse princípio refere-se a laços de heranças (polissêmicos ou metafóricos) que são
criados entre as construções. Desenvolvem-se laços metafóricos quando determinado tipo de
construção é derivada de outro tipo de construção. Por exemplo, a construção de aspecto
inceptivo “Pedro começou a falar besteira” (início de um único evento) deriva a construção
“Pedro começou a aula por falar besteira” (início de um macroevento), que, por sua vez, deriva
da construção “A aula começou” (uso do verbo predicador). Os laços polissêmicos, por sua vez,
são criados quando uma construção de sentido central deriva extensões de sentido (por exemplo,
a construção de movimento aspecto inceptivo intenso – “O menino desembestou a xingar o
outro” – tem a nuance semântica derivada da construção de aspecto inceptivo “O menino
começou a xingar o outro”).
II. Princípio da Não Sinonímia: “Se duas construções são sintaticamente distintas, elas devem
ser distintas semântica ou pragmaticamente.”.
Esse princípio foi dividido em:
 Corolário A: “Se duas construções são sintaticamente distintas e semanticamente
sinônimas, então elas não devem ser pragmaticamente sinônimas.”.
Um exemplo de aplicação desse corolário encontra-se na relação semântico-pragmática
entre a microconstrução de aspecto terminativo com acabar de e com terminar de. De todos os
53
dados detectados depreendemos resultados que mostram que ambas são construções
sintaticamente distintas e semanticamente sinônimas (apresentam o mesmo significado básico),
mas são pragmaticamente diferentes, já que, segundo os próprios usuários da língua 6, a forma
acabar seria empregada, mais fácil e rapidamente, em um contexto comunicativo mais informal
do que a outra.
 Corolário B: “Se duas construções são sintaticamente distintas e pragmaticamente
sinônimas, então elas não devem ser semanticamente sinônimas.”.
Construções do tipo “Ele estava com fome” e “Ele não parava de comer” podem evidenciar
esse corolário ao participarem de um contexto situacional em que a intenção apresentada não é
só a de dizer que ele estava com fome, mas que deseja implicitamente continuar comendo para
que se sinta, em algum momento, saciado. Logo, o sentido pragmático é o mesmo, mas são
sintaticamente diferentes e semanticamente também (seus significados básicos são distintos).
III. Princípio da Força Expressiva Maximizada: “O inventário de construções é maximizado
para propósitos comunicativos.”; e
IV. Princípio da Economia Maximizada: “O número de construções distintas é minimizado o
máximo possível, dado o princípio III.”.
O último princípio restringe o terceiro. No terceiro, aplica-se a ideia de que, quanto
maior a necessidade do falante para designar algo, mais construções criará. Isso ocorre com o
surgimento, por exemplo, de neologismos como “twittar” (escrever uma publicação no Twitter)
ou “logar” (entrar na internet) e de expressões idiomáticas como “dar um boot” – quando ocorre
algum problema (O trabalho do fotógrafo deu um boot, pois as fotos saíram desfocadas).
Diferentemente, no último, o número de construções é minimizado, ou seja, em vez de criar
novos itens, o usuário da língua tende a buscar construções que já conhece e ressignificá-las,
evitando novas formas. Percebe-se esse princípio atuando na polissemia das construções, pois
um mesmo verbo pode apresentar distintas extensões de sentido a depender do tipo
construcional em que atua, não sendo necessária a criação de outros itens verbais, por exemplo,
o verbo “baixar”, já de domínio do uso no português, que foi incorporado para referir-se ao ato
de fazer downloads da internet.
Os esquemas apresentados por Goldberg (1995 e 2006) demonstram a preocupação da
autora em depreender um padrão mais geral que colabore para a compreensão da sentença. Por
6
Tal observação pôde ser obtida em um teste de percepções realizado numa pesquisa, no Projeto PREDICAR,
sobre construções perifrásticas de aspecto terminativo, que foi desenvolvida com base em metodologia
experimental e para fins de apresentação de painel da Jornada de Iniciação Científica na UFRJ, de 2014.
54
isso, Ferrari (2011:137) afirma que uma “vantagem do modelo construcional é a economia
semântica”. O verbo isolado não é o enfoque da teoria.
Nesta dissertação, busca-se, com base nas orientações presentes em Goldberg (1995) e
Traugott & Trousdale (2013), a compreensão dos sentidos e da configuração morfossintática
de diversas expressões com verbos aspectuais de fase. Para tanto, tenciona-se detectar os
padrões construcionais a elas veiculados, evidenciando-se que o sentido do verbo usado está
atrelado ao tipo de construção de que participa e que determinadas construções são
polissêmicas.
3.3 A INFLUÊNCIA COGNITIVISTA
A Linguística Cognitiva nasceu de ex-gerativistas em finais da década de 70 e início da
década de 80. É, portanto, relativamente recente, e suas bases foram lançadas em Foundations
of Cognitive Grammar (LANGACKER, 1987). Sua abordagem constitui-se num conjunto de
estudos que têm em comum a proposta da não-modularização da gramática assim como uma
não diferenciação em caráter geral entre os princípios cognitivos linguísticos e outros nãolinguísticos. Assim, dentre as premissas básicas da Linguística Cognitiva, está a ideia de que a
linguagem reflete princípios cognitivos. Dito de outra maneira, os mesmos princípios
operativos que as diversas capacidades cognitivas usam são também usados na linguagem.
Essa premissa prevê continuidade entre a linguagem e a cognição humana, já que a
linguagem passa a ser concebida como o reflexo da experiência do corpo no mundo real. A
cognição humana, por seu turno, busca recursos nas percepções e características da espécie, nas
experiências corporais, físicas e sensório-motoras básicas de que somos capazes para elaborar
esquemas imagéticos – associados às experiências culturais e ao entendimento que o falante
tem de si mesmo e do ambiente.
Um dos principais pressupostos da Linguística Cognitiva é o de que “a estrutura léxicogramatical das línguas naturais em alguma medida reflete a estrutura do pensamento”
(ALMEIDA et al., 2010: 16). Outro aspecto importante é que a Linguística Cognitiva rompe
com a tradição que prevê categorias estanques. Por isso, adota a teoria dos protótipos, que
pressupõe a existência de membros mais centrais para representar uma categoria do que outros.
Além disso, nessa perspectiva, a inclusão em uma categoria é vista como um fenômeno
gradiente.
É ainda relevante para este trabalho destacar que a Semântica Cognitiva prevê dois
grandes tipos de estruturas: (1) esquemas imagéticos, que são esquemas mentais que codificam
55
padrões especiais advindos de experiências sensório-motoras; (2) frames e modelos cognitivos
idealizados (MCI’s) – frames são conjuntos de conhecimentos ou expectativas em relação aos
quais uma palavra deve ser interpretada (a ideia de ficar, por exemplo, que prevê uma
relacionamento sem compromisso e cobranças), enquanto os MCI’s são representações
cognitivas estereotipadas, por exemplo, a ideia de mãe e pai. Dessa forma, depreende-se que o
conhecimento de mundo é muito importante para a Semântica Cognitiva.
Em resumo, segundo a abordagem cognitivista, o significado linguístico é baseado no
uso e na experiência, e a natureza da gramática é dinâmica; por isso, são importantes os
conceitos de protótipos e categorias radiais. Além disso, os sistemas cognitivos não são
autônomos, pois refletem a hipótese de que a experiência sensório-motora e o pensamento
abstrato estão relacionados.
Neste capítulo, delineou-se o quadro teórico que rege esta pesquisa, fundamentada no
Funcionalismo. Essa proposta abarca estudos e análises que tenham em vista a investigação de
construções perifrásticas aspectuais sob o ponto de vista dos processos que levam à formação
dessas construções.
De modo vinculado à Linguística Cognitiva, mediante uma abordagem construcionista,
traçamos como objetivo discutir alguns conceitos muito recorrentes nesta tese, de maneira que
fosse possível avaliar a pertinência deles (Frequência, Iconicidade, Categorização Linguística,
Predicação e Transitividade, Subjetificação, Analogia e Metáfora/Metonímia) para um estudo
integrado entre mudança semântica, gramaticalização e Gramática das Construções. Tais
conceitos serão detalhados no capítulo seguinte.
56
4 ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS
4.1 FREQUÊNCIA TOKEN E TYPE
Bybee (2003) trata do importante papel da frequência para o sistema linguístico, na
medida em que molda um sistema, podendo causar mudanças e, por outro lado, manutenção de
construções. Segundo a autora, a repetição frequente é resultado de fixações de regras que se
tornaram hábitos para os falantes. Assim, a repetição de uma construção pode provocar (i)
enfraquecimento semântico, (ii) mudanças fonético-fonológicas, como redução e fusão; (iii)
autonomia de uma construção, de modo que os itens que a estruturam percam seu significado
isolado; e (iv) a perda de transparência semântica entre a construção gramaticalizada e seus
correspondentes lexicais. A partir dessas propriedades, a autora sugere que níveis baixos de
repetição levam apenas à convencionalização, níveis maiores podem levar ao estabelecimento
de uma nova construção com suas próprias categorias, e níveis de frequência muito altos levam
à gramaticalização de novas construções e (até) ao desenvolvimento de morfemas gramaticais.
Considerando-se tais consequências motivadas pela frequência, Bybee (2003) indica
que há um efeito conservador atuando sobre elementos frequentes e um efeito de autonomia,
incidindo sobre formas complexas, ou estruturas elaboradas morfossintaticamente, fazendo
com que a estrutura se torne independente das formas que a compõem. Esse último efeito é
especialmente relevante para o que se compreende por Gramática das Construções
(GOLDBERG, 1995), uma vez que a repetição frequente e ritualizada de uma dada estrutura
(token) permite, segundo Traugott & Trousdale (2013), a construcionalização dessa instância
de uso, que licenciará os itens que poderão estruturar tal construção gramatical.
Produtividade e frequência são conceitos estritamente relacionados e, por isso, é
importante esclarecer a diferença entre a frequência type (o número de diferentes expressões
que um modelo permite, também referida por extensão, em alguns casos) e a frequência token
(o número de vezes que a mesma expressão ocorre em um texto, é produzida). Portanto, type
refere-se aos subesquemas de uma construção, enquanto token são os construtos, instâncias de
uso empiricamente atestadas em determinada situação comunicativa, ditas por um determinado
falante, com uma determinada intenção comunicativa.
4.2 FORMA E FUNÇÃO: ICONICIDADE
A língua é organizada nos moldes com que o homem experiencia e conceptualiza o
mundo. Na interação verbal, há um dinamismo entre forma e função da língua, ou seja, entre
57
os componentes linguísticos e pragmáticos nos contextos de interação, em decorrência de
pressões diversas. Nosso sistema conceitual é, então, influenciado por um vasto conjunto de
padrões recorrentes de interações, que se baseiam em pareamentos forma-função. A partir
desses conceitos, emerge o Princípio Universal da Iconicidade, que tem sido definido, em
linhas gerais, como a correlação natural e motivada entre forma e função (ou significado).
Segundo esse princípio, a estrutura da língua reflete, em alguma medida, a estrutura do conceito
que ela expressa, o comportamento linguístico possui um propósito comunicativo específico.
Dessa forma, pode haver motivação fonológica, morfológica ou semântica para a relação entre
forma e função.
Por outro lado, na língua, há casos em que não há uma relação clara entre forma e
significado, pois o significado original do elemento linguístico pode ser perdido parcial ou
totalmente: (i) Eu deixei meu filho na escola; (ii) Ela deixou o casaco em casa; (iii) Ele deixou
de ser chato. Os três exemplos com deixar apresentam sentidos diferentes. Em (i), há uma
entidade que percorre uma trajetória télica, apresentando um significado de direção, movimento
com um ponto final, em que outra entidade é abandonada (ainda que temporariamente); em (ii),
deixar indica novamente um abandono de uma entidade, porém, dessa vez, não há trajetória
anterior (e o ato pode ser consciente ou não); já, em (iii), temos em cena uma mudança de
estado, com o sentido de “tornar-se” legal, ou menos chato. Por outro lado, podemos pensar
metaforicamente, pois “tornar-se” indica uma trajetória (não espacial, mas) temporal, que
apresenta em sua essência ideia de movimento de um estado a outro, em que o estado antigo
(ser chato) é também abandonado, deixado para trás, tal como presente na origem do verbo
deixar.
Os usuários da língua podem, então, empregar vocábulos que já existem para produzir
novos sentidos ou para acentuar a carga funcional que outros (já) não revelem 7; com isso, as
formas empregadas assumem vários usos e funções, até porque estes estão na dependência dos
contextos de atualização daquelas. Isto é evidenciado, por exemplo, na produção de uma
expressão idiomática, visto que os usuários da língua atribuem aos componentes da expressão
unidade funcional ou sentido distinto do obtido a partir do significado básico normalmente
associado a seus componentes.
E, dessa possibilidade (dentre outras), advém a questão da variação (de forma ou
sentido), que frequentemente não é objeto de atenção particularmente quando a análise
7
É, por exemplo, o que parece ocorrer com expressões como “dar uma olhada” e “dar uma olhadinha” em
“Você pode dar uma olhada/olhadinha no meu artigo antes de eu o submeter ao periódico?”
58
funcionalista se restringe à identificação de uma relação biunívoca/isomórfica entre forma e
sentido. Nesta pesquisa, tem lugar uma concepção mais branda/relativizada do princípio de
iconicidade e que, concernente à relação entre forma e sentido, se alinha ao que Goldberg
designa de princípio de não-sinonímia (já tratado aqui), até porque o cotejamento de análises
centradas em dados do uso vem revelando que:
Change is the natural state of a living language, and this is the case because variation
characterises languages at all levels of its organization. Speakers use linguistic forms
in different ways, and over time, variants that appeal to other speakers tend to
proliferate. The appeal of a variant may be due to intrinsinc qualities, such as its
usefulness or ease of production or processing, or it may be due to extrinsinc reasons,
such as the social prestige of the speakers that started using it, or the nature of idea it
describes.
(…)
(…) speakers´ knowledge of constructions represents many-to-many mappings that
involve a set of related forms and a set of related meanings. Speakers know that a
construction can be realised formally in a number of different ways, and they know
that the construction has the potential to convey a range of different meanings.
Knowledge structures of this kind are susceptible to change. (HILPERT, 2014: 194195) 8
4.3 CATEGORIZAÇÃO LINGUÍSTICA E PROTOTIPICIDADE
Para uma análise mais efetiva do significado da construção em estudo, o conceito de
categorização também se faz importante, pois constitui o processo pelo qual entidades
semelhantes são agrupadas em classes específicas.
Categorização é o procedimento pelo qual agrupamos elementos similares ou da mesma
espécie em grupos determinados. A categorização é fundamental para a linguística cognitiva,
pois é uma estratégia básica da cognição, conforme explicita Lakoff (1987:9):
Since we understand the world not only in terms of individual things, but also in terms
of categories of things, we tend to atribute a real existence to those categories. We
have categories for biological species, physical substances, artifacts, colors, kinsmen,
8
Mudança é o estado natural de uma língua viva, e este é o caso, porque a variação caracteriza a língua em todos
os seus níveis de organização. Falantes usam formas linguísticas de diversas maneiras e, com o passar do tempo,
variantes que atraem outros falantes tendem a se proliferar. O poder de atração de uma variante pode se justificar
com base em propriedades intrínsecas, como a funcionalidade ou facilidade de produção e processamento, ou
com base em razões extrínsecas, como o prestígio social do falante que a usa, ou a natureza da ideia que ela
descreve. (...) O conhecimento dos falantes sobre as construções representa um mapeamento multidirecional
que envolve um conjunto de formas relacionadas e um conjunto de significados relacionados. Os falantes sabem
que uma construção pode ser realizada formalmente em um número variado de maneiras, e sabem também que
ela tem o potencial de transmitir uma gama de significados diferentes. Estruturas de conhecimento desse tipo
estão sempre suscetíveis a mudança. (HILPERT, 2014: 194-195)
59
and emotions and even categories of sentences, words and meanings. We have
categories for everything we can think about (LAKOFF, 1987:9). 9
Na Linguística Cognitiva, conforme a concepção experiencialista já explicada em
capítulo/seção anterior, a categorização é muito diferente do modo como é concebida na visão
clássica, objetivista, segundo a qual as entidades possuem ou não possuem propriedades
inerentes e, portanto, pertencem ou não pertencem a uma classe específica.
Nesse sentido, uma entidade não está dentro ou fora de uma classe determinada por
possuir ou não uma propriedade supostamente comum a todas as entidades que dela fazem
parte; as entidades se distribuem em classes consideradas não como continentes estanques, com
fronteiras delimitadas, e sim como centros e margens de conjuntos de elementos que partilham
propriedades. Segundo a gramática clássica, existem categorias rígidas e estanques, que são,
contudo, desmistificadas se uma simples análise de dados do uso real da língua for executada.
Em estudos linguísticos mais recentes, defende-se que as categorias apresentam
membros mais prototípicos (chamados de exemplares), outros intermediários e outros mais
periféricos, existindo, assim, um continuum, tão valioso à teoria funcionalista, que se desdobra
numa escala de prototipicidade. Temos, então, as chamadas categorias radiais. Os elementos
pertencem a determinadas categorias de acordo com o contexto, ou seja, o elemento mais
prototípico de uma categoria pode depender do contexto. Tal contexto é a representação de um
evento, e pode ser linguístico ou social.
A Linguística Cognitiva afirma que a categorização linguística se processa, geralmente,
na base de protótipos (exemplares típicos, mais representativos, ou melhor, representações
mentais destas entidades) e que, consequentemente, as categorias linguísticas apresentam uma
estrutura prototípica (baseada em protótipos). Mais precisamente, os vários membros ou
propriedades de uma categoria possuem, geralmente, diferentes graus de saliência (uns são
prototípicos e outros periféricos), agrupam-se, fundamentalmente, por similaridades parciais ou
semelhanças de família, e os limites entre si bem como entre diferentes categorias são,
frequentemente, imprecisos. Esta concepção da categorização é conhecida como Teoria dos
Protótipos.
9
Uma vez que entendemos o mundo não somente em termos de coisas individuais, como também em termos
de categorias de coisas, tendemos a atribuir existência real às categorias. Temos categorias para as espécies
biológicas, substâncias físicas, artefatos, cores, laços de parentesco e emoções e mesmo categorias de
sentenças, palavras e significados. Temos categorias para tudo o que conseguirmos pensar. (LAKOFF,
1987:9).
60
Eleonor Rosch (1973 apud LAKOFF, 1987) postulou a Teoria dos Protótipos, um
modelo de categorização a partir de nossas percepções, de nossos entendimentos acerca dos
fatos, a partir das nossas experiências corpóreas, corporificadas. A categorização com base nos
protótipos mostra que existem, em toda classe, elementos mais representativos e definitórios da
categoria do que outros. Na verdade, a categorização realiza-se como uma representação de
modelos mentais, apreendidos através de nossas experiências motoras e também da cultura na
qual estamos inseridos.
Taylor (1995) sugere que, para uma maior delimitação das diferenças e semelhanças
entre os membros de uma categoria, que possui seus limites fluidos, é necessário focalizar o
nível básico – o núcleo semântico –, especificamente, os níveis mais centrais do nível básico
das categorias.
Com base nessa noção de categoria, o autor propõe um procedimento de categorização
linguística pautado na teoria de protótipos, os quais podem ser definidos como o membro
central ou o conjunto de membros centrais de uma categoria e ainda como a “representação
esquemática do centro conceptual de uma categoria” (TAYLOR, 1995: 59). De acordo com o
autor, a determinação de um protótipo fundamenta-se, basicamente, (i) na freqüência – uma alta
frequência pode ser um sintoma de prototipicidade, mas não sua causa; (ii) na ordem de
aprendizagem – os protótipos estão num ponto mais inicial no que se refere a uma escala de
aprendizagem; e (iii) saliência cognitiva e linguística – certos protótipos possuem tal status por
serem representativos culturalmente e por abarcarem valores semânticos variados.
Nesse processo de categorização, as entidades, que são designadas membros de uma
categoria, conforme sua similaridade com o protótipo, são observadas de modo a detectar o
modo e a razão pelos quais seus atributos se aproximam ou se afastam dos atributos
fundamentais. A relação entre os membros de uma categoria pode ser verificada conforme a
associação de similaridade(s) a um único protótipo (categoria mononucleares – monossemia)
ou a um de diversos protótipos (categorias polinucleares – polissemia).
Ferreira (2010) apresenta os seguintes exemplos para explicar como se dá a
categorização com base em protótipos:
Um exemplo clássico é o da categoria “ave”, que foi importado dos estudos
biológicos para os estudos linguísticos. Um elemento que poderia ser considerado
prototípico para representar tal categoria seria a “andorinha”, ou o “canarinho”, que
trazem a possibilidade de voar, bicos e penas. Já o “pinguim”, o “avestruz” e a
“galinha” não seriam tão bem representativos, pois são espécies não voadoras, ou de
voos limitados, diferenciando-se da maioria das aves que se caracterizam pelo voo.
Um exemplo similar seria a classe dos mamíferos, que engloba tanto “gato”,
“cachorro” e “leão”, como o “homem”, o “ornitorrinco” e a “baleia”. Embora todos
esses animais sejam vertebrados e suas fêmeas produzam leite para alimentar seus
61
filhotes, características definitórias para a classe, os três últimos se distanciam dos
demais por outros aspectos. Por exemplo, no caso do homem, a racionalidade; do
ornitorrinco, por não possuir mamas e ainda ser ovíparo (característica dos peixes,
répteis e aves); e, da baleia, por possuir a pele lisa (sem pelos ou cabelos), viver num
ambiente aquático, se locomover por nadadeiras, como os peixes. (FERREIRA, 2010:
28-29)
Ou seja, para ambas as classes citadas, há entidades que se enquadram mais
perfeitamente na classe, sendo os mais representativos, e há aqueles que não se enquadram tão
bem, mas, nem por isso, deixam de pertencer à classe.
A categoria radial é um grande ganho para os estudos de categorização, e foi, com base
nessa visão, que se desenvolveu a Linguística Cognitiva. Organiza-se em torno de elementos
prototípicos/centrais (mais representativos, que possuem o maior número de propriedades
definitórias para uma classe) e radiais/periféricos (menos prototípicos, mas que pertencem à
categoria).
Como será mostrado mais adiante, foi possível encontrar diversos verbos auxiliares ou
em processo de auxiliarização ocupando a posição de V1(não)fin na construção de aspecto
inceptivo, por exemplo. Encaixam-se nela desde os verbos que mais prototipicamente sinalizam
o significado de início e, com isso, aspecto inceptivo, como começar, iniciar e principiar, até
aqueles que menos prototipicamente atuam nesse sentido, mas que, supõe-se, em razão de um
potencial de compatibilização no pareamento e um processo de convencionalização social,
ganharam contronos para fazê-lo, como cair, danar, deitar, desandar, desatar, desembestar,
disparar, entrar, partir, pegar e romper.
Para total compreensão do processo de categorização linguística, é necessário, ainda, o
desenvolvimento de questões acerca da polissemia, metáfora e da metonímia. Um ponto em
comum entre esses termos, e essencial para o presente estudo, é a ideia de que expansões
semânticas de um determinado membro central podem acontecer por meio de metáfora ou
metonímia, podendo acarretar, ou não, uma rede de relações polissêmicas. Esses conceitos serão
detalhados mais adiante.
4.4 PREDICAÇÃO E TRANSITIVIDADE
Predicação e transitividade são conceitos fundamentais na abordagem funcionalista e,
em especial, para esta dissertação.
Na abordagem funcionalista, a predicação deve ser entendida como um processo de
atribuição sintático-semântica, em que o predicador (verbal ou não-verbal) seleciona o número
62
de argumentos 10 de acordo com o tipo de estado de coisas (DIK, 1997). Dessa forma, atribuise uma propriedade a uma ou mais entidades (“O sol brilha”) ou se estabelece uma relação
entre entidades (“A criança desenhou o sol”). O predicador é o responsável por projetar os
argumentos, aos quais atribui papel semântico, pois é o elemento nuclear. A estrutura
argumental de um verbo decorre de seu significado e da relação entre ele e o contexto em que
ocorre. Por outro lado, há casos em que o predicador não é um verbo, mas um elemento nominal.
Na abordagem construcionista, por sua vez, há papéis participantes, evocados pela semântica
do verbo, e papéis argumentais, evocados pela construção gramatical na base da estruturação
de constructos oracionais, que se associam àqueles papéis semânticos (GOLDBERG, 1995),
conforme delineado no capítulo anterior.
Dik (1997) propõe uma teoria funcional cujo cerne é a organização do discurso,
relacionando-o, em termos descritivos, a uma língua natural, de modo que seja possível explicar
regras pragmático-discursivas e semânticas, além das morfossintáticas e fonológicas,
subjacentes à estruturação linguística. Assim sendo, o autor sugere que um modelo funcionalista
deve levar em conta propriedades não apenas da estrutura linguística, mas, sobretudo, da
interação verbal.
Dik (1997) argumenta que a interação entre predicado e termo(s) configura um estado
de coisas, definido pelo autor como qualquer entidade conceptual. Para a categorização de um
estado de coisas, é necessário perceber a natureza semântica do predicado e dos termos, o que
vai gerar, segundo o autor, uma tipologia de eventos em conformidade com alguns parâmetros
(dinamicidade, telicidade, momentaneidade e controle), conforme já foi exposto na seção 2.2.1.
Cumpre salientar que a tipologia proposta por Dik (1997) serve a esta dissertação como
base apenas para análise dos eventos instanciados nas construções perifrásticas com verbos
aspectuais. No entanto, na seção referente a aspecto lexical (em 2.2.1.), o leitor pôde entender
mais claramente a proposta de tipologia de estados de coisas assumida nesta investigação, que
conjuga essa tipologia com o Esquema Temporal de Vendler, motivada por uma crítica a uma
lacuna do autor em conjugar todos os parâmetros.
Ao falar em predicação e argumentos ou participantes, surge outro conceito importante:
a transitividade. Enquanto é considerada propriedade inerente do verbo pela Gramática
Tradicional, a Linguística Sistêmico-Funcional avalia a transitividade como uma interação de
elementos sintáticos (presença ou ausência de SN complemento), semânticos (papel semântico
10
Aqui, trabalhamos, na linha de Goldberg (1995), com a concepção de que a significação convencionalmente
atribuída a predicador verbal na língua prevê uma estrutura de participantes, que, por sua vez, se compatibiliza
com estruturas gramaticais de predicação que envolvem argumentos.
63
do objeto) e pragmáticos (uso textual do verbo). Dependendo do contexto de uso, um mesmo
verbo pode variar entre uma classificação transitiva ou intransitiva. Na perspectiva funcional, a
transitividade denota a transferência de uma atividade de um agente para um paciente.
As delimitações quanto à transitividade e intransitividade dos verbos não são fixas, pois
há verbos intransitivos que podem ocorrer como transitivos a depender do contexto. Além disso,
o objeto direto pode desempenhar diferentes papéis semânticos: (i) O show começou em ponto;
(ii) Ele começou a correr faz um tempo; (iii) Ih, começou... Em (i), o verbo começar aparece
em uma construção intransitiva, com um complemento circunstancial; em (ii), numa construção
perifrástica aspectual inceptiva; e, em (iii), em uma construção cristalizada, indicando força
interjetiva, reclamação. Tais exemplos ratificam a proposta de que a transitividade é uma
propriedade de toda a construção, e não apenas do verbo. Vejamos outro caso: (iv) A partida
acabou mais cedo; (v) O aluno acabou a tarefa antes do tempo; (vi) Ela saiu assim que acabou
de comer. Em (iv), o verbo acabar aparece em uma construção intransitiva, com um
complemento circunstancial; em (v), numa construção transitiva, com um objeto direto e um
complemento circunstancial; e, em (vi), em uma construção perifrástica aspectual terminativa,
indicando o último momento do evento comer.
Hopper & Thompson (1980) formulam a transitividade como uma noção contínua,
escalar, não categórica, concebida como um complexo de dez parâmetros sintático-semânticos
independentes, que focalizam diferentes ângulos da transferência da ação em uma porção
diferente da oração. Quanto mais traços de alta transitividade uma oração exibe, mais transitiva
ela é; não pode haver transferência sem que pelo menos dois participantes estejam envolvidos.
A transitividade permite a identificação das ações e atividades humanas que são expressas no
discurso e a realidade que é retratada. Essa identificação se dá através dos principais papéis de
transitividade: processos, participantes e circunstâncias (HALLIDAY, 1994).
Os processos são os elementos responsáveis por codificar ações, eventos, estabelecer
relações, exprimir ideias e sentimentos, construir o dizer e o existir; já os participantes são os
elementos envolvidos com os processos (de forma obrigatória ou não, e realizam-se sob a forma
de sintagmas nominais, em geral); por fim, as circunstâncias são as informações adicionais
atribuídas aos diferentes processos (realizando-se sob a forma de sintagmas verbais).
4.5 SUBJETIFICAÇÃO
Uma noção importante para esta pesquisa é a noção de subjetificação. Como elementos
que marcam uma atividade conceptual e contribuem para a modalidade epistêmica, os verbos
usados para preencher construções aspectuais podem exprimir subjetividade.
64
O conceito de subjetividade na linguagem já foi implicitamente discutido na seção de
influência cognitivista, ao se explicitar a concepção experiencialista da linguagem, em que o
significado é resultado de uma construção mental, e a realidade é mediada pelo sujeito
experienciador. Como já foi dito, a língua não pode ser entendida como um código que veicula
significados isentos do ponto de vista do enunciador.
O fenômeno da subjetificação é, em geral, descrito como um processo semânticopragmático mediante o qual significados cada vez mais se configuram a partir de estados
subjetivos ou atitudes do falante/locutor (em relação às proposições), que adiciona significado
ao significado referencial. Assim, um elemento, numa mesma cena, pode ser perspectivado a
partir do locutor (de suas atitudes ou expectativas quanto ao que pretende representar
linguisticamente) e, então, construído subjetivamente, ou a partir de propriedades do estado de
coisas representado, construído objetivamente. Da frequência com que se dá o (re)alinhamento
no eixo objetificação-subjetificação envolvido nas conceptualizações de estados de coisas que
se representam em expressões linguísticas, pode ocorrer um processo de esquematização e
convencionalização de inferências pragmáticas, inicialmente apenas relacionadas a usos
particulares em contextos específicos, na trajetória de expressões relativamente objetivas para
expressões relativamente subjetivas 11. Assim, o fenômeno de extensão/mudança semântica
pode estar associado ao uso que se convencionaliza, no domínio da perspectivização.
Estudiosos da linguística cognitiva, recentemente, incorporaram não apenas o conceito
de subjetificação, que explicita uma relação entre o falante e a situação expressa, mas também
o de intersubjetificação, que seria a inclusão de aspectos relacionados ao ouvinte por parte do
falante.
O que se quer mostrar é que, baseando-se em visões experiencialistas de significado, os
seres humanos são capazes de aprender acerca do mundo “através” dos outros e não apenas por
meio de sua interação pessoal com o meio. A subjetividade está ligada à habilidade de
experienciar a si mesmo e ver os outros como agentes mentais (VERHAGEN, 2005).
4.6 ANALOGIA
Descrita na obra de Fauconnier e Turner (2002), a analogia é uma das habilidades mais
fundamentais da mente humana. Tal habilidade atua no momento em que o falante tem a
necessidade de explicar um determinado elemento a partir da correspondência que pode ser
11
Citem-se, por exemplo, verbos de desejo ou intenção, dos quais se desenvolveram marcadores de tempo futuro.
65
estabelecida com outro elemento já conhecido. Dessa forma, a analogia é um princípio que
facilita a aquisição e o reconhecimento de um novo domínio, uma vez que nos permite fazer
um paralelismo entre elementos de significados distintos. Sua finalidade é verificar e fazer
despontar uma entidade nova no mundo, categorizada de modo mais adequado.
O consenso sugere que pessoas em diferentes situações apresentam diferentes modos de
pensar. Nesse sentido, professores e alunos, por exemplo, pensam diferentemente a respeito de
uma dada situação, assim como a forma de pensar de um especialista é distinta da do leigo, ou
pais em relação aos filhos, adultos em relação a crianças, e assim vai. Essa constatação levanos a dizer, inclusive, que nós temos duas funções de pensamento, uma mais direta e outra mais
idealizada, a que todos processam de forma automática, como, por exemplo, o ato de ler e o de
respirar e a imaginativa, quando, por exemplo, estamos empenhados em criar uma história
fictícia.
O princípio da analogia corresponde a operação mental básica altamente imaginativa,
que vai tratar, precisamente, das questões menos patentes ao nosso pensamento e, como
consequência, à nossa consciência. Fauconnier e Turner (2002:18) apontam que, recentemente,
as ciências linguísticas modernas, onde se inclui a Linguística Cognitiva, têm estudado mais
essa forma de pensamento mais imaginativo, ou seja, analógico, e verificaram que a criança
tem essa habilidade desde bem cedo e, por isso, desde cedo também a opera em todos os níveis
sociais e conceptuais. Os autores destacam serem interessantes a sistematicidade e a
complexidade que envolvem o processo de analogia, que se torna invisível para a consciência,
já que é formado logo no início da vida e, assim, passa despercebido nas situações cotidianas,
por causa das habilidades da nossa consciência de reconhecer e identificar semelhanças e
diferenças.
A analogia, portanto, é um processo que tem o objetivo de construir e reconstruir
espaços inputs, sendo uma associação intuitiva e esquemática realizada pelo sujeito. Podemos
entender, então, que a analogia é uma transferência de inferências que se dá na construção das
cenas ativadas pela língua e, por isso mesmo, é uma habilidade cognitiva que é anterior ao
processamento da mescla conceptual, permite a correlação de elementos individuais.
4.7 METÁFORA E METONÍMIA
Como mencionado na seção (4.3), por meio de processos cognitivos, como a metáfora
e a metonímia, é possível ir além da representação imediata da realidade. A metonímia e a
metáfora constituem processos de expansão semântica. Dessa forma, pode haver uma
composição de novas construções a partir de outras já existentes ou o surgimento de novas
66
construções. Do mesmo modo, pode haver a extensão do uso de construções já existentes para
a expressão de novos conceitos, o que inclui um processo de analogia (aplicando noções de
transferência, metonímia ou metáfora).
A metáfora constitui um processo de mudança de significado, que opera como uma
transferência de um conceito básico e concreto para outro mais abstrato. A metonímia, por sua
vez, constitui uma transferência semântica e designa a mudança que determinada forma sofre
em função do contexto linguístico e pragmático em que está sendo utilizada.
Em expansões semânticas via metáfora, entidades mais abstratas e mais intangíveis
podem ser conceptualizadas, respaldando-se em entidades mais concretas. De acordo com
Taylor, a abordagem tradicional associa a metáfora à ideia de que a combinação de palavras em
frases é uma questão de compatibilidade das especificações dos componentes, sendo essa
compatibilidade formalizada de acordo com as restrições de seleção. Na abordagem cognitiva,
no entanto, o autor apresenta outra perspectiva:
Metáfora é, então, motivada por uma procura pelo entendimento e é caracterizada,
não por uma violação das restrições de seleção, mas pela conceptualização de um
domínio cognitivo em termos de componentes mais usualmente associados a outros
domínios cognitivos. (Taylor, 1995, 132-133).
Metonímia e metáfora caracterizam-se, portanto, por processos de expansão semântica
que podem formar uma estrutura de rede polissêmica. Os membros (periféricos) formados a
partir de tal(is) expansão(ões), com base num protótipo, relacionam-se uns com os outros tendo
em vista as partilhas de atributos e similaridades. Membros centrais (protótipos) e periféricos
constituem uma categoria que pode ser de ordem lexical ou morfossintática.
A partir desses processos, entra em cena o conceito de extensão de usos ou generalização
de contextos, que constitui um dos parâmetros de gramaticalização propostos em Heine &
Kuteva (2007) apud Martelotta (2011). A extensão caracteriza-se pelo desenvolvimento de usos
em novos contextos e constitui um fenômeno gradual. No caso da construção em estudo nesta
dissertação, importa o componente semântico da extensão de uso, que atribui um novo valor a
um elemento, emergindo de novos contextos.
Ao investigar semanticamente os verbos (V1) não-prototípicos (mencionados na seção
4.3) em seus sentidos lexicais, é possível notar que todos eles compartilham a categoria
cognitiva de movimento, e tal fato pode ser analisado por meio da Teoria da Metáfora
Conceptual (cf. LAKOFF, 2006 [1979]). Na perspectiva de Lakoff, as metáforas são concebidas
como mapeamentos entre domínios conceptuais, constituindo-se num dos principais elementos
da cognição humana e, com isso, parte da vida cotidiana. Esse autor, juntamente com Johnson
67
(LAKOFF & JOHNSON, 2002 [1980]), ressalta, ainda, a base corporificada da metáfora, a qual
é considerada, portanto, profundamente dependente da experiência humana no mundo. Tais
linguistas, ao proporem metáforas do tipo “TEMPO É ESPAÇO”, “MUDANÇA É
MOVIMENTO” e “ESTADOS SÃO LUGARES” (LAKOFF, 2006: 211), reafirmam tanto a
base experiencial e concreta dos conceitos abstratos, quanto sua presença nos diversos tipos de
processamentos cognitivos. Isso pode ser visto na construção de aspecto inceptivo, em que os
V1 não-prototípicos, em seus sentidos plenos, referem-se à categoria cognitiva do movimento.
Ainda, a presença da preposição a também corrobora a hipótese da base metafórica
dessa construção. Esse fato indica que a preposição mais frequente, eleita para compor a
construção em análise, aponta para a noção de movimento, a qual, aliada às metáforas descritas
acima, parece desencadear na cognição humana a noção da marcação de fase inicial de
ocorrência de um estado de coisas, ancorada na metáfora de que ações são movimento para um
destino.
Outro parâmetro em jogo é a dessemantização, um processo que consiste em alguma
alteração ou em (relativa) perda de conteúdo por parte das formas linguísticas. Em outras
palavras, as formas ou as construções que se gramaticalizam assumem função
gramatical/procedural, pois se submetem a um processo que envolve (i) perder parte do
significado lexical primário/básico que está relacionado ao mundo externo à língua e que
convencionalmente lhes é associado (embora, o significado de tais formas se atualize, de fato,
apenas no contexto e contexto), e (ii) sofrer extensão de uso/funcionalidade semântica em prol
de especializar-se em marcar sistematicamente um conteúdo interno à língua (um conteúdo
morfossintático, no caso em questão; o domínio conceitual de aspecto de fase): no caso de
verbos, de um verbo com estatuto predicador se desenvolve, entre outras possibilidades, um
verbo com estatuto procedural em certas condições de configuração construcional (num
pareamento V1com contorno aspectual de movimento que opera sobre Vinf – marcador de
aspecto de fase).
A diferença que se estabelece, por exemplo, entre “Ele deixou o trabalho de lado nesse
carnaval” e “Ele deixou de trabalhar, já que era carnaval” nos mostra que, embora a perda de
conteúdo semântico do verbo deixar predicador seja tênue (porque a ideia de abandono que ele
evoca ainda pode ser recuperada no seu uso auxiliar), há, em jogo, a especialização agora do
verbo deixar semiauxiliar em marcar o domínio conceitual de aspecto terminativo (ainda que o
evento possa ser retomado depois do período mencionado) de um evento que vinha
acontecendo.
68
Por constituir uma rede de construções, a gramática de uma língua apresenta alguns
tipos de relação. Para explicar essas relações, Goldberg (1995) utiliza o princípio da herança,
que se refere às construções gramaticais formarem uma rede interligada através de relações de
herança que motivam as propriedades das construções particulares, ou seja, redes se organizam
radialmente em torno de uma construção central/básica.
Goldberg (1995) estabelece quatro tipos de herança:
(i) herança por polissemia – quando uma construção é uma extensão semântica de outra;
(ii) herança por subparte – quando parte de uma construção pode existir independentemente,
em uma construção à parte;
(iii) herança por instanciação – quando uma construção específica instancia outra;
(iv) herança por extensão metafórica – quando uma construção é uma extensão metafórica de
outra, ou seja, o sentido da construção primitiva é projetado para outro domínio na nova
construção.
Esses tipos de heranças possibilitam a determinação das diferenças e das semelhanças
entre construções relacionadas.
4.8 GRAMATICALIZAÇÃO
De acordo com as orientações da Gramática das Construções (GOLDBERG, 1995),
compreendemos que as perífrases aspectuais de fase são geradas a partir de padrões
construcionais que, por sua vez, são produzidos a depender do contexto discursivo de que
participam. Esses padrões influenciam o comportamento dos constituintes das perífrases. Em
alguns casos, o verbo passa por gramaticalização. Compreender esse fenômeno auxilia,
portanto, a análise sintático-semântica das perífrases do corpus.
É durante a interação que os falantes apresentam a necessidade de modificar ou criar
formas linguísticas no intuito de atingirem propósitos comunicativos. Um dos processos os
quais uma forma linguística pode sofrer para apresentar novos usos e novas funções é a
gramaticalização. Para tanto, as formas linguísticas sofrem uma mudança categorial em que
passam da condição de elementos lexicais à condição de elementos gramaticais ou da condição
de elementos gramaticais ao status de formas ainda mais gramaticais (HEINE et alii, 1991).
Existem fatores que possibilitam identificar a gramaticalização: frequência de
ocorrência ou de tipo de construção, alteração semântica, polissemia do termo, redução de
material fônico e redução dos contextos sintáticos em que o item ou construção pode ocorrer.
Além disso, é importante frisar que uma das características básicas do processo de
gramaticalização é o princípio de unidirecionalidade, que afirma que a mudança se dá numa
69
direção específica e não pode ser revertida, ou seja, a passagem de itens menos gramaticais a
mais gramaticais é possível, mas o contrário não ocorre.
Hopper (1991) defende cinco parâmetros que ocorrem no processo de gramaticalização:
estratificação, divergência, especialização, persistência e descategorização. Esses princípios
deixam para trás a pontualidade e objetividade da gramaticalização e acentuam seu caráter
gradual, uma vez que conferem aos elementos analisados o grau de mais ou menos
gramaticalizados:
(i) estratificação: em um domínio funcional amplo, novas camadas estão sempre emergindo e
coexistindo com as antigas.
(ii) divergência: a unidade ou construção lexical que inicia o processo de gramaticalização pode
manter suas propriedades originais, preservando-se como item ou construção autônoma e,
assim, estar sujeita a quaisquer mudanças inerentes a sua classe, inclusive sofrer um novo
processo de gramaticalização.
(iii) especialização: relaciona-se com o estreitamento de opções para se codificar determinada
função, à medida que uma dessas opções começa a ocupar mais espaço porque mais
gramaticalizada.
(iv) persistência: prevê a manutenção de alguns traços semânticos da forma-fonte na forma
gramaticalizada, o que pode ocasionar restrições sintáticas para o uso da forma gramaticalizada.
(v) descategorização: perda, por parte da forma em processo de gramaticalização, dos
marcadores opcionais de categorialidade e de autonomia discursiva. A forma em
gramaticalização tende a perder ou neutralizar as marcas morfológicas e os privilégios sintáticos
que caracterizam as formas plenas (como nomes e verbos), vindo a assumir atributos das
categorias secundárias mais gramaticalizadas (como advérbios, pronomes, preposições,
clíticos, afixos), podendo, em alguns casos, chegar a zero.
Heine et alii (1991) desenvolveram uma cadeia de gramaticalização que ilustra o que
ocorre quando um lexema passa a uma forma gramatical. Observa-se a presença de dois pólos,
que são domínios do processo: um domínio fonte (concreto, tipicamente lexical) e um domínio
alvo (abstrato, gramatical). No processo de transferência conceptual, ocorre o que os autores
denominam “metáfora experimental” (experimental metaphors) – a transferência de um
significado básico, concreto, para outro mais abstrato. A mudança de uma categoria para outra
não se dá de forma automática e, consequentemente, há elementos que ficam na interseção dos
diferentes domínios, ou seja, apresentam traços da categoria fonte e da categoria alvo (princípio
da persistência).
70
Os autores desenvolveram uma escala de abstração metafórica (HEINE et alii, 1991:48),
que segue da categoria mais concreta (pessoa) para mais abstrata (qualidade), e a passagem de
uma categoria para outra é gradual, ocorre em um continuum.
Heine et alii (1991) afirmam que a frequência de uso é outro aspecto que atua no
fenômeno de gramaticalização. Conforme já detalhado na seção (4.1), Bybee (2003) enfoca a
relação entre frequência e gramaticalização. Através do uso, há enfraquecimento semântico
(bleaching ou dessemanticization) dos itens, que passam a ter significados mais gerais e
abstratos. Por conseguinte, ocorre o aumento de frequência de tais elementos. No entanto, a
autora também afirma que a frequência não é apenas resultado da gramaticalização, pois pode
ser considerada motivadora do processo. A alta produtividade de uma forma em
gramaticalização colabora para que essa forma seja empregada de maneira mais coesa (no caso
de mais de uma palavra) e mais automática, o que facilita sua interpretação como um bloco de
processamento. Bybee (2003:605) refere-se à gramaticalização, levando em conta a
importância desse aspecto: “um processo pelo qual uma sequência de palavras ou morfemas
freqüentemente usados se tornam automáticos como uma única unidade de processamento”
(BYBEE, 2003:603).
É importante observar, ainda, que alguns autores, como Bybee (2003), argumentam que
não são os itens lexicais que se gramaticalizam, mas as construções a que pertencem, ou seja,
as construções deixam de ser combinações casuais para serem fixas e regulares na gramática.
Um exemplo seria a construção da língua inglesa “be going”, que deixou de ser interpretada
como construção de finalidade para ser reanalisada como auxiliar de futuro “be going to”.
Compreende-se que algumas construções realmente passam por gramaticalização, como o
exemplo dado e a expressão “vamos lá”, que, em determinados contextos, revela uma noção de
“deslocamento/mudança de intenção” e não mais de “deslocamento de espaço”. Assume-se,
nesta dissertação, a perspectiva de que a gramaticalização não ocorre necessariamente dessa
forma, pois pode atingir apenas um componente da estrutura, como é o caso de verbos
(semi)auxiliares aspectuais que serão analisados nas próximas seções. Entretanto, não se deve
perder de vista o papel da construção nesse processo de mudança categorial. Fundamentandose na Gramática das Construções (GOLDBERG, 1995), cremos que o tipo de padrão
construcional (seu significado e configuração sintática) a que a expressão pertence pode
colaborar para a ocorrência de gramaticalização do item, visto que este não se gramaticaliza por
si só, mas devido a condições ligadas ao seu comportamento em relação ao elemento que a ele
se vincula e a características próprias desse elemento.
71
Fazendo referência aos parâmetros de Lehmann (1995), reportamo-nos especificamente
ao parâmetro da conexidade ou conexão sintagmática, o qual, de acordo com o autor:
é a intimidade com que ele [um signo] é conectado a outro signo, com o qual sustenta
uma relação sintagmática. O grau de conexidade de um signo varia da justaposição
até a fusão, em proporção com o seu grau de gramaticalidade. (LEHMANN, 1995:
147- 148)
A partir dessas considerações, relações sintagmáticas mais frouxas entre o verbo
(semi)auxiliar que ocupar a posição de V1 e o verbo que ocupar a posição de V2inf apontarão
para um menor grau de gramaticalidade das perífrases, enquanto relações mais estreitas
apontarão para um maior grau de gramaticalidade das perífrases.
Segundo Lehmann, um critério sintático bastante viável para se testar a conexidade de
um formativo gramatical é a possibilidade de inserção de material entre ele e a palavra a qual
tende a se atrair. Será maior a gramaticalidade do conjunto que não permitir a inserção de
material em seu interior. Esse critério sintático apontado pelo linguista é equivalente ao critério
da inseparabilidade de Lobato (1975) e Longo & Campos (2002), ao da incidência do
circunstante temporal sobre o grupo e ao da incidência da negativização sobre o grupo, de
Lobato (1975) e de Longo (1990), conforme será visto mais adiante. Isso nos leva a hipotetizar
que os critérios de auxiliaridade talvez sejam bons instrumentos para medir o grau de
gramaticalidade de perífrases, já que, quanto maior o número de critérios de auxiliaridade
atualizados na perífrase, mais coesa e, portanto, mais gramaticalizada ela estará.
A partir do levantamento de estudos sobre auxiliaridade, pudemos perceber grande
divergência acerca da definição de verbo auxiliar, dos critérios adequados para sua
identificação e da determinação da gama de entidades que deveriam receber esse rótulo. A
depender do posicionamento teórico do investigador e dos critérios por ele adotados, haverá um
diferente conceito de auxiliaridade e diferentes elementos linguísticos que comporão essa
classe. Para um grande número de autores, dentre os quais Heine (1993), o uso do termo
auxiliaridade é primariamente associado a uma gama limitada de domínios nocionais, a maioria
deles relacionada aos domínios de tempo, aspecto e modalidade.
A hipótese da gradiência postula que não há limites separando auxiliares de verbos
principais, os quais devem ser vistos na forma de um continuum ou gradiente. Essa posição que
está associada, por um lado, ao paradigma da gramaticalização e, por outro lado, à noção de
continuum ou gradiência (GARCIA, 1967, BOLINGER, 1980, apud HEINE, 1993) é a
defendida por Heine (1993) e a adotada neste trabalho, uma vez que define auxiliar como um
72
item linguístico localizado ao longo de uma cadeia de gramaticalização, que se estende desde
verbo pleno até as flexões gramaticais de tempo, aspecto e modalidade.
É certo que uma das grandes estratégias para lidar com nosso ambiente é a de expressar
ideias mais difíceis de se entender (+ abstratas) em termos de experiências mais acessíveis
imediatamente (+ concretas). Conceitos gramaticais são bastante abstratos: não referem a
objetos físicos; são definidos com referência a suas funções relativas no discurso. Estudos sobre
a gênese de expressões gramaticais sugerem que tais expressões não emergem do nada, antes,
são quase invariavelmente derivadas de conceitos concretos: a morfologia flexional tende a se
desenvolver de estruturas lexicais. Assumindo-se que auxiliares expressam conteúdos
gramaticais tipicamente relacionando o estado temporal (tempo), os contornos temporais
(aspecto) e o tipo de realidade dos conteúdos proposicionais (modalidade), quase
invariavelmente, auxiliares são derivados de expressões concretas que descrevem noções gerais
como:
(a) Locação (estar, ficar, viver, etc)
(b) Movimento (ir, vir, passar, etc)
(c) Atividade (fazer, pegar, continuar, começar, etc)
(d) Desejo (querer, desejar)
(e) Postura (permanecer, pôr-se)
(f) Posse (ter, haver, tomar)
Estes verbos (lexicais) são parte de conceitos mais complexos chamados esquemas de
evento, e o comportamento dos auxiliares pode somente ser considerado com referência a estes
esquemas. Quando falamos sobre auxiliares, nós nos referimos a uma consequência particular
de um processo cognitivo em que conteúdos esquemáticos são empregados para expressão de
conceitos gramaticais abstratos. O maior resultado linguístico desse processo pode ser visto na
emergência de uma cadeia que tem uma estrutura lexical concreta em uma extremidade e uma
estrutura extremamente gramaticalizada em outra extremidade.
Pelo fato de não haver um consenso sobre quais seriam os critérios adequados para
identificar ou medir o grau de auxiliaridade das perífrases, apresentamos, a seguir, critérios
apontados por alguns estudiosos da área (HEINE, 1993; LOBATO, 1975; LONGO, 1990;
LONGO & CAMPOS, 2002; ILARI & BASSO, 2008; e MACHADO VIEIRA, 2004) com o
objetivo de selecionarmos, para utilização em nossa análise, aqueles que são mais recorrentes
entre os autores. Quanto maior o número de critérios de auxiliaridade atualizados na análise de
73
uma perífrase, mais gramaticalizado estará o auxiliar e, portanto, mais conectada e mais coesa
estará a perífrase.
Abaixo, elencamos os critérios de auxiliaridade propostos por diferentes autores.
A) Critérios de auxiliaridade propostos por Heine (1993):
(i) Verbos auxiliares tendem a sustentar expressões por uma pequena gama de domínios
conceituais, especialmente: tempo, modalidade e aspecto;
(ii) Verbos auxiliares formam um conjunto fechado de unidades linguísticas;
(iii) Eles não são nem unidades claramente lexicais, nem claramente gramaticais, e também
podem ocorrer como verbos principais;
(iv) Eles expressam funções gramaticais, mas exibem, ao menos em alguns contextos, uma
morfossintaxe verbal. Em alguns trabalhos eles são definidos como um subconjunto dos verbos;
(v) Embora tenham propriedades verbais, eles mostram um comportamento verbal reduzido:
integram “paradigmas altamente defectivos”; não podem ser apassivizados; não têm formas
imperativas; podem ser independentemente negados;
(vi) Eles não podem ser predicado principal (semântico) da oração;
(vii) Eles têm duas variantes livres, em que uma é a forma plena (como em “Eu estou fazendo”)
e outra a forma reduzida (como em “Eu tô fazendo”), ou uma é um clítico e outra um afixo;
(viii) Eles tendem a não ser enfatizados ou são incapazes de receber contraste enfático;
(ix) Eles tendem a ser cliticizáveis ou necessariamente clíticos;
(x) Eles carregam toda informação morfológica do predicador principal, como flexão de pessoa,
número, tempo/aspecto/modalidade, negação, concordância;
(xi) Enquanto auxiliares são, obrigatoriamente, partes de orações finitas em certas línguas, isso
não necessariamente acontece em orações não-finitas ou imperativas;
(xii) Verbos auxiliares não podem ser regidos por outros auxiliares;
(xiii) Eles não têm significância própria ou não contribuem para o significado da sentença; são
“sinsemânticos” e “sincategoramáticos” para o lexema ao qual se aplicam (tipicamente, verbo
principal);
(xiv) Eles tendem a ocorrer separadamente do verbo principal, podendo fazer limite com outros
elementos;
(xv) Distintamente dos verbos, eles não podem ser nominalizados ou ocorrerem em
combinação.
(xvi) Eles tendem a ocorrer em uma ordem fixa ou em uma posição fixa na oração. Línguas
como o Português, de ordem SVO, tendem a apresentar a ordem Vauxiliar + Vprincipal
74
(xvii) Na presença do auxiliar, o verbo principal tende a aparecer numa forma não finita,
frequentemente carregando em si algum elemento morfológico como uma nominalização,
marca de infinitivo, gerúndio ou particípio. O verbo principal pode ainda estar associado com
alguma morfologia locativa.
B) Critérios de auxiliaridade apresentados por Lobato (1975)
(i) Semântico: a todo auxiliar é atribuída uma perda sêmica, resultado do processo de
gramaticalização do verbo; quanto maior a gramaticalização, mais completa será a perda do
sentido concreto do verbo;
(ii) Unidade significativa: o conjunto em auxiliação forma uma unidade significativa em que o
auxiliar intervém unicamente como elemento gramatical e o auxiliado como lexical;
(iii) Identidade de sujeitos: se realmente se dá na língua o processo de auxiliação, será verdade,
então, que os dois verbos terão um só sujeito;
(iv) Acepção egocêntrica: nenhum auxiliar possui ligação semântica com seu sujeito
gramatical, mas está relacionado com o locutor (sujeito gramatical é diferente de sujeito lógico);
(v) Restrição paradigmática: todo auxiliar é defectivo; não admitem particípio passado e o
imperativo;
(vi) Inseparabilidade: um grupo verbal semanticamente uno e formado de um todo funcional
seria indissociável;
(vii) Impossibilidade de construções completivas (a partir de grupos verbais formados por
auxiliares);
(viii) Prosódico: Vauxiliar + Vauxiliado formam um só grupo fonético, no qual o auxiliar é
uma forma átona e proclítica;
(ix) Frequência de ocorrência: só pode ser considerada auxiliar a unidade verbal muito
frequentemente seguida de infinito, gerúndio ou particípio;
(x) Unidade sintática: o grupo verbal deve formar um único constituinte, um sintagma verbal;
(xi) Incidência do circunstante de tempo: será um sintagma verbal a perífrase que permitir a
incidência do circunstante temporal sobre o grupo verbal e não independentemente sobre V2;
(xii) Apassivação: se há na língua uma classe de auxiliares, esses devem pertencer ao grupo de
verbos suscetíveis de coocorrer com um verbo apassivável, havendo relação de paráfrase entre
as formas ativa e passiva;
(xiii) Integração das sequências verbais: quanto maior a possibilidade de escolha, dentro de
um mesmo paradigma, entre variantes do auxiliante, mais lexicalizada será a unidade.
Categorias gramaticais são passagens obrigatórias que não deixam escolha ao locutor;
75
(xiv) Extensão do campo de aplicação de morfema: só seriam considerados auxiliares os verbos
sem restrição quanto ao sujeito ou quanto ao auxiliado;
(xv) Negativização: uma sequência verbal em auxiliação não pode ser separada por uma
negação, do mesmo modo que uma lexia não pode ser separada por uma adjetivação. Para que
seja uma perífrase a negação tem de incidir sobre o grupo verbal;
(xvi) Pronominalização: consiste em determinar se o auxiliado é ou não substituível por um
pronome. Em caso afirmativo, os dois verbos seriam principais, sendo o infinitivo uma
nominalização;
(xvii) Oposição: todo grupo verbal com auxiliar prototípico contém sua contraparte na forma
simples.
C) Critérios de auxiliaridade apresentados por Longo (1990)
(i) Apassivização: o verbo é auxiliar quando a transformação de uma frase ativa em passiva o
inclui na mudança estrutural, isto é, o argumento sujeito da passiva é sujeito do complexo verbal
como um todo, mantendo-se a equivalência semântica entre as frases;
(ii) Incidência da negação: a negação deve incidir sobre o grupo verbal e não entre ele;
(iii) Incidência de circunstante temporal: o circunstante deve incidir sobre o complexo unitário
Vauxiliar + Vauxiliado;
(iv) Pronominalização: se pudermos substituir a forma nominal por um pronome como o ou
isso, estamos diante de duas orações e não de um caso de auxiliaridade;
(v) Impossibilidade de desdobramento da oração: como os verbos auxiliares não constituem,
por si só, núcleos de sintagmas verbais, formando com a base um grupo indissociável, não
temos auxiliaridade se for possível desmembrar o grupo em dois núcleos de orações;
(vi) Impossibilidade de inserção de mais de um sujeito: a perífrase verbal deve comportar
apenas um sujeito, seja ele simples ou composto;
(vii) Detematização: o auxiliar é um verbo que se detematiza, isto é, perde a propriedade de
atribuir funções semânticas aos elementos nominais com que se combina.
D) Critérios de auxiliaridade propostos por Longo & Campos (2002)
(i) Inseparabilidade: perífrases mais ligadas e, consequentemente mais gramaticalizadas, não
são separadas por nenhum tipo de material interveniente;
(ii) Irreversibilidade: uma perífrase é sempre constituída de verbo auxiliar seguido de uma
forma nominal, e não o inverso;
76
(iii) Recursividade: diz respeito à possibilidade de coocorrência da mesma raiz verbal no verbo
auxiliar e no verbo em auxiliação. Se a recursividade for positiva, a perífrase estará mais
gramaticalizada do que as que não admitem a recursividade.
E) Critérios de auxiliaridade propostos por Ilari & Basso (2008)
(i) O auxiliar e a base verbal precisam ter o mesmo sujeito;
(ii) O auxiliar e a base verbal não podem ser afetados independentemente pela negação;
(iii) A ocorrência de elementos entre V1 e V2 é nula, ou fica limitada a palavras de um tipo
muito particular (por exemplo, pronomes átonos e adjuntos adverbiais);
(iv) O todo formado por V1 e V2 encaixa-se no quadro conjugacional, emparelhando-se com a
forma simples;
(v) V1 sofre esvaziamento semântico, ou seja, V2 passa a atribuir papéis temáticos aos
argumentos;
(vi) V1 não se nominaliza de maneira independente;
(vii) V1 e V2 não entram em operações sintáticas.
F) Critérios de auxiliaridade apresentados por Machado Vieira (2004)
(i) Atuação sobre outro(s) verbo(s) em um só domínio de predicação, ou seja, existe um único
domínio predicativo em que a perífrase constitui uma unidade sintática;
(ii) Alteração semântica de um verbo quando tem sua acepção primária de verbo predicador
alterada, ampliando, assim, sua área de atuação sintático-semântica;
(iii) Desligamento semântico entre verbo auxiliar e sujeito gramatical, já que o verbo auxiliar
não lhe atribuirá papel semântico nem lhe imporá restrições de seleção semântica;
(iv) Fusão semântica com um verbo predicador em uma única predicação, enquanto o V1
desempenha função gramatical, o V2 exerce função lexical;
(v) Impossibilidade de substituição da estrutura sintagmática introduzida pelo verbo predicador
por oração completiva finita;
(vi) Uma só posição sintática de sujeito com um só referente-sujeito para as formas verbais da
unidade complexa;
(vii) Impossibilidade de substituição da estrutura sintagmática introduzida pelo verbo
predicador por uma forma pronominal demonstrativa, especialmente porque há uma tendência
no PB ao apagamento dos clíticos de 3ª pessoa;
(viii) Ocorrência de pronomes átonos complementos em adjacência ao V1, que funciona mais
para V2 no particípio, já que quando este está no gerúndio ou infinitivo (que é o caso do objeto
77
de estudo deste trabalho) há com bastante recorrência a variante pós-complexo verbal – por
isso, este critério não será levado em consideração;
(ix) Impossibilidade de incidência de advérbio de negação sobre o domínio do V2;
(x) Impossibilidade de circunstante temporal (adjunto adverbial de tempo) que afete apenas o
domínio do V2;
(xi) Comportamento em bloco do V1 e V2 diante de transformações sintáticas (como passiva e
interrogativa).
Sintetizamos no quadro a seguir, com base em Gonçalves (2015), os critérios de
auxiliaridade propostos por cada um dos autores mencionados acima, o que ao final totaliza 25
critérios diferentes. Essa diversidade de critérios, em que há apenas um comum a todos os
autores considerados, demonstra o pouco consenso que há em torno desse tema, como há pouco
mencionamos.
Critérios de Auxiliaridade
Inseparabilidade entre V1 e V2 (prosódica, sintática e
semântica)
Detematização de V1 (sem propriedade de predicação)
Incidência da negação sobre a perífrase
Restrição paradigmática de V1 (defectividade)
Frequência alta (Vauxiliar + V. forma nominal)
Sujeito único para V1 e V2
Incidência de circunstante de tempo sobre a perífrase
Impossibilidade de desdobramento da oração
Critério da apassivização de V1
Lobato
(1995)
Longo
(1970)
Heine
(1993)
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
raiz)
Impossibilidade de substituição de V1 por pronome
Posição fixa na perífrase
Participação do complexo tempo, modo e aspecto
Categoria fluida de V1 entre pleno e auxiliar
✓
✓
✓
✓
✓
Ilari &
Basso
(2008)
Machado
Vieira
(2004)
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
Recursividade (coocorrência de V1 com V2 de mesma
Oposição a uma forma simples correspondente
Longo /
Campos
(2002)
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
✓
78
✓
Formas variantes de V1 (plena e reduzida foneticamente)
✓
Impossibilidade de V1 receber contraste enfático
✓
Tendência de V1 a se tornar clítico/afixo
✓
Flexão de V1 em pessoa, número, concordância, etc.
✓
Não regência de V1 por outros auxiliares
✓
V1 e V2 Sinsemânticos e sincategoremáticos
Categoria distinta de verbo principal
Acepção egocêntrica de V1
Impossibilidade de V1 ser complementado por oração
Ausência de restrições semânticas de V1 sobre sujeito e
Vauxiliado
✓
✓
✓
✓
✓
✓
Quadro 1: Critérios de auxiliaridade reunidos na literatura.
A escolha dos critérios que serão aplicados para análise das perífrases estudadas neste
estudo será exposta no próximo capítulo, o qual apresenta a metodologia de análise.
79
5 MATERIAIS E METODOLOGIA
5.1 O CORPUS
Tendo em vista a língua como um instrumento de cognição, comunicação e interação
sócio-discursiva, a delimitação de um fenômeno linguístico como objeto de estudo requer que
sua observação e descrição se baseiem no uso. Para tanto, esta pesquisa contou com um corpus
constituído a partir do levantamento em diversas fontes. Os 516 dados que instanciam
construções com verbos aspectuais inceptivos e terminativos foram coletados em textos orais e
escritos produzidos no Português Brasileiro e no Português Europeu de fontes diversas, tais
como: nos acervos do Projeto Norma Linguística Urbana Culta - RJ (entrevistas DID), do
Projeto Análise Contrastiva de Variedades do Português – VARPORT (notícias e editoriais de
jornais), do Português Fundamental – métodos e documentos, do Centro de Linguística da
Universidade de Lisboa – CLUL (entrevistas DID); em anúncios, editoriais e notícias do século
XXI nos jornais portugueses Diário de Notícias e Público de agora e nos jornais brasileiros O
Globo, O Dia e Jornal do Brasil; em redações de alunos do Ensino Fundamental II; e em textos
literários infantis brasileiros, assim como em lendas e narrativas portuguesas.
A escolha por uma extensa diversidade de fontes para a constituição de amostra de usos
deu-se, ainda em fases iniciais da pesquisa, em prol de reunir o maior número (token) possível
de construtos da língua portuguesa que instanciassem o fenômeno em estudo, bem como
detectar a maior diversidade de microconstruções (diferentes types) que, em seu pareamento,
envolvem o sentido inceptivo e terminativo. Além disso, pretendíamos averiguar possíveis
especificidades de microconstruções a depender de variedade e/ou modalidade. Tal hipótese
não se concretizou, o que não inviabilizou, porém, a exploração do corpus obtido.
A ocorrência dos verbos aspectuais inceptivos e terminativos no corpus formado não
correspondeu a todas as perífrases listadas em obras já consultadas (gramaticais ou acadêmicocientíficas), que, embora não exaustivas, pretendem ilustrar a gama de possibilidades existente.
Dentre as diversas formas viáveis 12 citadas por estudiosos do tema para expressar o aspecto,
12
Há que se dizer, aqui, que as formas COMEÇAR POR + INFINITIVO e COMEÇAR + GERÚNDIO, embora
sejam listadas como marcadoras de aspecto inceptivo em algumas obras consultadas, não o são, conforme será
mais detalhado na seção 6.1.1 adiante, e, por isso, não fazem parte do corpus que, no final das contas, após
triagem desencadeada por um exame inicial, foi efetivamente explorado nesta pesquisa.
80
foram encontradas, conforme mostra a figura abaixo 13, sete de caráter inceptivo e as cinco de
caráter terminativo.
ASPECTO INCEPTIVO
CAIR A + INFINITIVO
Qte
0
ASPECTO TERMINATIVO
Qte
ACABAR DE + INFINITIVO
25
CESSAR DE + INFINITIVO
1
COMEÇAR A + INFINITIVO
286
COMEÇAR POR + INFINITIVO
8
DEIXAR DE + INFINITIVO
85
COMEÇAR + GERÚNDIO
2
PARAR DE + INFINITIVO
40
DAR DE + INFINITIVO
0
TERMINAR DE + INFINITIVO
12
DEITAR A + INFINITIVO
0
DESANDAR A + INFINITIVO
1
DESATAR A + INFINITIVO
5
DESPEJAR A + INFINITIVO
0
ENTRAR A + INFINITIVO
0
PASSAR A + INFINITIVO
44
PEGAR A + INFINITIVO
0
PÔR-SE A + INFINITIVO
17
PRINCIPIAR A + INFINITIVO
0
Quadro 2: Perífrases verbais viáveis à expressão de aspecto inceptivo e terminativo.
Analisando a produtividade (frequência token) das perífrases aspectuais encontradas
nesse corpus, é possível perceber uma grande variação de seus usos. Construções inceptivas
são largamente mais produzidas do que as terminativas (aproximadamente três vezes mais), e
abaixo de cada construção aspectual perifrástica de fase, há particularidades que se refletem em
microconstruções, a serem detalhadas ao longo do próximo capítulo. Além disso, a
manifestação do aspecto via construção gramatical com verbo (semi)gramaticalizado, ao que
indica a amostra coletada, parece (já que houve um equilíbrio nas fontes listadas para a
formação da amostra) ter expressão um pouco mais produtiva na variedade do Português
Brasileiro, com 60% dos dados, do que no Português Europeu (40%). Quanto à modalidade
expressiva, percebeu-se maior expressão dessa construção gramatical de aspecto na escrita
literária (45% dos dados), seguida da oralidade (25%), escrita jornalística (24%) e, por fim,
escrita acadêmica (6%).
13
As perífrases que se encontram riscadas não foram encontradas na coleta; as que estão sem destaque foram
encontradas ao menos uma vez na amostra de dados; e as que estão em negrito são responsáveis pela maioria
dos dados, tendo sido encontradas em grande quantidade.
81
5.2 OS PARÂMETROS DE ANÁLISE
Em prol de alcançar os objetivos traçados e confirmar hipóteses, estabelecemos, como
ponto de partida, alguns aspectos a serem explorados no exame das propriedades envolvidas
nas diversas construções perifrásticas da amostra e, em consequência, na tarefa de lidar com o
pareamento forma-função das construções perifrásticas inceptivas e terminativas da língua
portuguesa que temos como objeto final de descrição.
Dessa forma, no intuito de abranger aspectos relativos às áreas lexical, morfossintática
e semântica, foram traçados dez parâmetros a serem analisados, quais sejam: (i) detectar quais
são as formas verbais usadas, bem como o que apresentam de comum e de diferente; (ii)
observar a frequência token e type de cada forma; (iii) verificar o nível de auxiliaridade das
formas verbais e, posteriormente, das construções que elas formam; (iv) observar o grau de
afetamento do tipo de predicação do Vauxiliado pela forma verbal aspectual na construção, bem
como da flexão de número (singular/plural) de seus referentes sujeito e/ou complemento; (v)
examinar o grau de afetamento da presença de adjunto adverbial (e de que natureza) sobre a
construção; (vi) observar o grau de afetamento do tempo e modo verbais de V1 na construção;
(vii) investigar a interferência da polaridade negativa sobre a construção; (viii) verificar a
atuação do traço de animacidade do sujeito na construção; (ix) averiguar se há traço de cinese
em V1, e, em caso afirmativo, verificar qual é a natureza desse movimento; (x) investigar, por
fim, quais classes aspectuais são expressas por V2 na construção para, então, verificar se há
restrições de compatibilização dessas com alguma forma verbal aspectual (V1).
Ao começarmos a analisar os dados coletados, foi possível perceber que o
preenchimento do slot destinado ao Vauxiliado nas construções perifrásticas de aspecto
inceptivo e terminativo não é exclusividade de verbos predicadores em sua forma infinita. Pelo
contrário, podem ocorrer diferentes formas nesse slot, que comprovam uma compatibilização
entre construções perifrásticas de aspecto e de marcação de outras categorias verbais, como
modalidade e voz (passiva), bem como entre construções perifrásticas de aspecto e construções
de complexo verbais de predicação, como com verbo suporte, verbo relacional. Portanto, é
preciso explicar que, ao longo do texto, sempre que nos referimos a VERBO AUXILIADO NO
INFINITIVO, podem estar em vigor diferentes formas de sua atualização, resultando, algumas
vezes, inclusive, em enunciados que comportam uma perífrase com mais de um Vsemiauxiliar.
No entanto, o foco desta dissertação aborda mais precisamente a construção perifrástica de
aspecto mediante a atuação de um semiauxiliar, sem ignorar, contudo, que esta se compatibiliza
com outras. Por isso, abaixo estão listadas as possibilidades de expressão encontradas.
82
a) predicação com verbo suporte, como nos exemplos:
(1) “A França aumentou os seus contactos com grupos da oposição e na sexta-feira começou a
dar ajuda a comissões locais...” [PE, DN, notícia, 06.09.12];
(2) “Dezenas de líderes se reuniram ontem em frente à oca principal e, uma a uma, começaram
a fazer relatos desesperados da situação em que viveram desde o dia 18 de fevereiro. ” [PB, O
Globo, 13.04.13];
(3) “Quem deixaria de dar campo à ama do prior, e, sobretudo, àquela carranca? ” [PE, Lendas e
Narrativas, pg.439].
(4) “Se você tiver sorte pode ser que, às vezes, quando fechar os olhos, veja uma poça suspensa
na escuridão, sem forma e de lindas águas pálidas; aí, se apertar mais os olhos, a poça começa
a tomar forma e as cores ficam tão vivas que, se você apertar mais um pouco, vão pegar fogo.
” [PB, Peter Pan, pg.117]
b) predicação com outros verbos de comportamento semiauxiliar ou quase auxiliar, como em
“Por falta de tempo, deixei de ir ver meus avós” ou “Assim que chegou, começou a tentar
explorar o ambiente o máximo que pôde”, ou como se pode ver em:
(5) “pelo menos parecida com ela é, lá se é mana, se é a filha não, não sabemos bem, instalouse do outro lado do barco, depois a gaiata começou a, assim, a querer meter conversa e, e nós
demos logo trela à miúda” [PE, entrevista DID, CLUL: Português Fundamental, 0122]
(6) “O nosso processo é diferente, nós pegamos a carne descansada, levamos ela no braseiro,
ela começa a receber o calor, então quando eu meto ela, a haste de ferro com a carne, dentro do
tonel, ela puxa o molho, entende, ela puxa o molho, eu volto ela pro braseiro, ela recebe mais
calor, quando está começando a querer ressecar, eu torno a colocar ela dentro do tonel de
molho.” [NURC-RJ, DID, n° do inquérito 0103]
c) predicação com construção em voz passiva – como se pode ver em Com o tempo, deixou de
ser notado, ou como nos exemplos abaixo:
(7) “Como houve um recurso à decisão da ministra, publicada em junho passado, não há ainda
o trânsito em julgado e a pena não começou a ser cumprida. ” [JB, notícia, 05/09/12]
(8) “Audi com porta-malas com sensor começa a ser vendido por R$ 330 mil” [JB, noticia,
05/09/12]
d) predicações com verbos relacionais – como se pode observar nos diversos exemplos a seguir:
83
(9) “Assim, o ato de disciplinar deixa de ser sinônimo de repreensão e passa a ser um conjunto
de parâmetros elaborados por educadores e alunos para melhorar as atividades, a convivência e
o trabalho com o conhecimento.” [PB, revista nova escola, pg. 26]
(10) “Exatamente... por exemplo, todo mundo...a moda agora é dizer que tudo vai melhorar se
o voto deixar de ser obrigatório...” [PB, entrevista DID, NURC-RJ, n° do inquérito 347]
(11) “agora e nós da classe média? que... que classe... eu sou classe média coisa nenhuma... já
deixei de ser classe média há muito tempo...” [PB, entrevista DID, NURC-RJ, n° do inquérito 18]
(12) “A vida dele mudou lá fora. Não foi aqui. Aqui, o Adriano ainda não era nada. Era uma
grande promessa. Mas começou a ficar importante fora daqui, não tenho dúvida disso.” [Jornal
extra, entrevista,04/09/12]
(13) “A condução começou a ficar difícil, porque até então a gente andava no bonde, cada um
sentadinho no banco, sem ter ninguém na frente. Depois começaram as pessoas a sentarem entre
os bancos, ficarem na frente, dificultando... Você não podia mais ler num bonde.” [PB, entrevista
DID, NURC-RJ, amostra recontato de 90, n° do inquérito 140]
e) predicações com verbos modais, como em “Com que idade você começa a poder sair
sozinha?”, conforme o exemplo abaixo:
(14) “O filme começa a terminar, as imagens, até aí sempre escuras, nocturnas, começam a
poder conviver com a luz, porque as personagens despertam de um sonho febril.” [PE, Publico,
noticia, 06.09.12]
Tal observação também precisa ser feita para o preenchimento do slot de Vauxiliar da
construção de aspecto em estudo, uma vez que há casos em que não temos uma só forma
ocupando essa posição, mas sim, a sua frente, outros verbos auxiliares modais, como “Pode
começar a comemorar, porque você está falando com a mais nova motorista do pedaço”, ou
temporais (para formação de tempo composto ou locuções verbais), fazendo com que o
operador aspectual assuma forma infinita (particípio, gerúndio ou infinitivo), como em “Eu já
tinha acabado de ler o livro quando ela me pediu emprestado”. Isso comprova, mais uma vez,
a capacidade da construção em estudo nesta dissertação de se compatibilizar com outras.
Abaixo seguem alguns exemplos de enunciados em que essa compatibilização ocorre.
(15) “Sem dinheiro para pagar os salários, tinham começado a despedir os empregados.” [PB,
Pai sem terno e gravata, pg. 22];
84
(16) “O nome dela era Jane, e ela estava sempre com uma expressão intrigada, como se no
momento em que chegou ao mundo houvesse começado a fazer perguntas. ” [PB, Peter Pan, pg.
213]
(17) “Tanto tempo, que a carne, o leite, a água, os legumes, podem deixar de alimentar a
barriga da cidade. [PE, notícia, VARPORT, E-P-95-Jn-012]
(18) “O número de meninos da ilha varia, é claro, conforme eles vão morrendo e coisa e tal;
além disso, quando eles parecem estar começando a crescer, o que é contra o regulamento,
Peter faz uma seleção.” [PB, Peter Pan, pg. 84]
5.2.1 Os critérios de auxiliaridade selecionados
Em meio à falta de um consenso entre diversos teóricos em relação, não ao conceito
propriamente dito, mas aos meios que revelam o escopo da auxiliaridade verbal, foram
estabelecidos, para fins de concretizar a análise de dados desta dissertação, dez critérios para
que, através de testagem, tentemos identificar o grau de gramaticalidade de cada tipo de
microconstrução, a depender da forma verbal que preenche o slot de V1 na construção
perifrástica de aspecto fasal em estudo.
Os critérios selecionados, aos quais foram submetidas as formas verbais operadoras de
aspecto de fase inicial e final, estão listados a seguir.
(i) Sujeito único, sujeito da expressão: a perífrase com auxiliar comporta apenas um
sujeito/Arg1, cujos traços semânticos e papel temático são determinados pelo predicador (em
V2 auxiliado), formando, portanto, V1 e V2 uma unidade semântica, funcional, de predicação,
em que V1 opera para conferir ao evento certos contornos, matizes de significação.
(ii) Detematização: o verbo auxiliar é um verbo que se detematiza, ou seja, perde a propriedade
de atribuir papel semântico ou impor restrições ao sujeito gramatical da oração em que a
construção perifrástica de predicação se atualiza, embora mantenha-se relacionado com o
locutor (sujeito lógico), evidenciando, inclusive, sua conceptualização do evento.
(iii) Dessemantização: o verbo auxiliar sofre alguma alteração de conteúdo ou
perda/esvaziamento de um significado primário a que é convencionalmente associado quando
atua como predicador.
(iv) Incidência de circunstante temporal sobre a perífrase: um circunstante temporal deve ter
escopo sobre todo o grupo verbal, e não somente sobre o verbo auxiliado.
85
(v) Incidência de negação: a atuação de um verbo auxiliar não pode ser separada da de seu
auxiliado por um advérbio de negação, pois aquela ocorre sobre o conjunto verbal quando este
revela maior integração semântica e sintática.
(vi) Impossibilidade de desdobramento da oração: como os Vauxiliares não constituem, por si
sós, núcleos de sintagmas verbais, formam com o auxiliado (V2) um grupo indissociável; assim,
não temos auxiliaridade se for possível desmembrar o grupo em dois núcleos de orações.
(vii) Apassivação: o verbo é auxiliar quando a transformação de uma frase ativa em passiva o
inclui na mudança estrutural, isto é, o argumento sujeito da passiva passa a ser sujeito do
complemento verbal como um todo, mantendo-se a equivalência semântica entre as frases.
(viii) Oposições: quanto mais auxiliar for o verbo, maior a possibilidade de a perífrase que ele
compõe se opor a uma forma verbal simples.
(ix) Frequência alta de ocorrência: tende a ser considerada auxiliar a forma verbal que é muito
frequentemente seguida de infinito, gerúndio ou particípio.
(x) Irreversibilidade: segundo este critério, uma perífrase tem posições fixas para seu
preenchimento, sendo sempre constituída de verbo auxiliar (flexionado ou não) seguido de uma
forma nominal de verbo, e não o inverso.
Por fim, informamos que, se houve atualização de um critério de auxiliaridade em
alguma ocorrência com a configuração prototípica (representante) de uma dada
perífrase/microconstrução analisada, então consideramos que sua aplicação àquele tipo de
perífrase se efetiva nos demais construtos que a partir dela se instanciem, independentemente
da frequência com que o critério se aplica em cada instância de uso, constructo do corpus.
Quanto maior o número de critérios atualizados para uma perífrase com um dado tipo de
auxiliar, maior será a gramaticalização da construção perifrástica que ele ajuda a formar.
Discussões acerca da aplicabilidade de cada critério serão feitas especificamente na seção de
análise dos dados.
86
6. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
6.1
AS
DIFERENTES
FORMAS
VERBAIS
E
SUA
PRODUTIVIDADE
NAS
CONSTRUÇÕES
No corpus coletado, houve ocorrências, em maior ou menor número, de construções
com as seguintes formas verbais:
•
inceptivas: começar a, começar de, desatar a, desandar a, passar a, pôr-se a +
Vinfinitivo;
•
terminativas: acabar de, cessar de, deixar de, parar de, terminar de + Vinfinitivo.
Ao analisarmos os dados, constataramos diversas semelhanças entre as construções
encontradas, mas não foi difícil notar diferenças no que diz respeito à atuação das formas
verbais detectadas, que passam a ser detalhadas a partir de agora 14.
6.1.1. Começar a + Vinfinitivo
COMEÇAR A + VERBO AUXILIADO NO INFINITIVO é uma construção altamente
realizada em todas as modalidades e variedades pesquisadas. Manifesta-se, no corpus coletado
(frequência token), em 286 enunciados, como em
(19) “As primeiras associações começam a surgir na república velha. ” [PB, entrevista DID,
NURC-RJ, n° do inquérito 164]. 15
Por outro lado, COMEÇAR DE + VERBO AUXILIADO NO INFINITIVO teve apenas
duas ocorrências e parece ser uma variante do Português Europeu (PE) que, ainda assim, está
em desuso, já que a única fonte em que foi encontrada é do séc. XIX. Confiram-se abaixo os
dois únicos exemplos que temos:
(20) “Cumpria-se tudo à risca: o onagro não corria, voava. Mas o céu começou de toldar-se
com o anoitecer: a escuridão cresceu e desfechou em vento, trovões, chuva e raios. O mancebo
quase caia da sua montada enquanto que o onagro dobrava de velocidade e bufava
violentamente.” [PE, Lendas e Narrativas, pg.27];
(21) “A Soberba, que estava impando, ouvidas as razões da Esperança, travou dela muito rijo
14
Outras formas não detectadas no corpus mas possíveis de acontecer na construção serão comentadas em seção
mais adiante.
15
Encontram-se, entre colchetes, informações relativas a características das fontes de coleta de dados, dispostas
nesta ordem: variedade, gênero textual, acervo/fonte, código de inquérito ou número de página.
87
e, com voz torvada e rosto aceso, começou de bradar que esta dona era sandia, porque
entendera enganar os homens com vaidades de incertos futuros e sustentá-los com fumo. ” [PE,
Lendas e Narrativas, pg.260].
Vale observar que, na busca por dados que pudessem manifestar o pareamento formafunção da construção de aspecto inceptivo e contivessem a forma verbal começar, deparamonos com duas outras construções.
a) COMEÇAR POR + VERBO AUXILIADO NO INFINITIVO, como em:
(22) “fizeste, começaste por fazer farmácia foi?” [PE, entrevista DID, VARPORT, Oc-P-RE-2m-009];
(23) “Nunes começou por estudar harmonia e contraponto na Academia de Amadores de
Música de Lisboa, e depois Filologia Germânica na Universidade de Lisboa.” [PE, Público, notícia,
02.09.12];
(24) “Em declarações aos jornalistas, na Autoridade Nacional de Proteção Civil, em Lisboa, o
primeiro-ministro começou por referir que considera ‘há muito tempo’ que ‘a carga fiscal em
Portugal é muito elevada’, mas sustentou que a situação do país ‘não permite fazer qualquer
alívio da carga fiscal’ nesta altura (...)” [PE, DN, notícia, 05.09.12].
Apesar de aparecer em poucos dados (oito apenas), foi encontrada em nossa coleta
somente no PE, sendo mais produtiva na modalidade escrita do que na oral.
b) COMEÇAR + VERBO AUXILIADO NO GERÚNDIO, como em:
(25) “Como você quiser. Por exemplo, você acabou de almoçar, pode começar dizendo onde
você almoçou e o que que você comeu.” [PB, entrevista DID, NURC-RJ, n° do inquérito 0050];
(26) “Vamos começar falando de casa, né?” [NURC-RJ, DID, n° do inquérito 0101];
(27) “Mas essa sobremesa é fácil, você começa colocando a lata na panela de pressão e depois
de vinte minutos abaixa o fogo e, aí, espera por mais uns quarenta. Ta pronto o doce de leite.”
[NURC-RJ, DID, n° do inquérito 0075].
Esta estrutura ocorreu apenas três vezes e somente na amostra de dados do PB. Ao que
parece, essas duas construções são variantes regionais uma da outra, porém não servem à
expressão do aspecto inceptivo.
Os padrões construcionais relacionados à construção do tipo COMEÇAR PREP + VERBO
AUXILIADO NO INFINITIVO apresentam diferenças: a interpretação, a preposição utilizada
ou a forma nominal do V2 não são meros detalhes na configuração aspectual que ensejam, como
88
pode ser observado a partir da comparação dos exemplos a seguir.
(28) a. É preciso começar por esclarecer que publicidade não é jornalismo.
[PE, editorial, VARPORT, E-P-95-Je-005]
b. É preciso começar esclarecendo que publicidade não é jornalismo.
c. É preciso começar a esclarecer que publicidade não é jornalismo.
(29) a. “A estratégia definida é apropriada”, começou por dizer Vítor Gaspar, na conferência
de imprensa que está a decorrer no Ministério das Finanças, para apresentar os resultados do
quinto exame da troika.
[PE, notícia, Publico de agora, 11.09.12]
b. “A estratégia definida é apropriada”, começou dizendo Vítor Gaspar, na conferência de
imprensa que está a decorrer no Ministério das Finanças, para apresentar os resultados do quinto
exame da troika.
c. A estratégia definida é apropriada”, começou a dizer Vítor Gaspar, (…)
A construção que se manifesta em (a), do tipo COMEÇAR POR + VINFINITIVO, ressalta
que se focaliza o início de uma série de atividades em sequência, de um evento mais amplo. Em
outras palavras, (28a/b) levam a crer que, de diversas atividades dispostas em sequência, a
primeira foi a de esclarecer “que publicidade não é jornalismo”. E outras vieram em seguida.
Também (29a/b) levam a supor que o primeiro de muitos pontos da conferência foi dizer que
“A estratégia definida é apropriada”. E, em seguida, o enunciador passou a outras
considerações 16. Ambos implicam mais de um evento divido em fases que constroem um todo,
em que tem foco a fase inicial, que difere do aspecto inceptivo porque não se focalizam os
momentos iniciais de uma única situação, mas, sim, a primeira atitude para concretizar um
evento maior, um macro-evento. Prova disso são os enunciados em (23) e (27), nos quais é
possível verificar que, logo após a construção COMEÇAR + VGERÚNDIO, se apresenta a
continuação “e depois...”. Isso mostra que o evento expresso pelo verbo auxiliado será apenas
o primeiro de, pelo menos, dois, para realização de algo maior.
Tal interpretação pode vir a ser melhor visualizada se inserirmos explicitamente um
evento entre o operador aspectual e o verbo predicador (que já está implícito), como em “É
preciso começar a reunião por esclarecer que publicidade não é jornalismo...”, o que não seria
16
Percebe-se que há quase sinonímia entre começar + gerúndio e começar + por + infinitivo, conforme os
exemplos abaixo: (i) Começou por varrer a sala. (ii) Começou varrendo a sala. As duas sentenças apresentam
"varrer" como a atividade exercida a princípio e sugerem que outras atividades vieram depois. Entretanto,
entende-se que a segunda sinaliza a perspectivização do estado de coisas com foco na efetividade/realização
do evento “varrer”, ao passo que a primeira não implica, necessariamente, efetividade, informação factiva.
89
possível nas construções em (c), como em “*É preciso começar a reunião a esclarecer que
publicidade não é jornalismo...”. Isso acontece porque as construções em (c), do tipo
COMEÇAR A + INFINITIVO, encaminham a leitura de uma espécie de zoom no início de um
evento ou uma situação qualquer até então inexistente que, a partir desse marco, passa a ter
desdobramento, continuidade. Perífrases desses tipos marcam o evento como se estendendo,
provavelmente, para além do instante inicial na direção do futuro. Com isso, o enunciador, ao
utilizar essas construções, coloca-se de um ponto de vista a partir do qual o único evento
mencionado deveria continuar gradualmente e soaria, no mínimo, estranho que essa
continuidade da situação apresentada não ocorresse.
Naturalmente, o fato de o predicador sobre o qual opera um auxiliar aspectual representar
um evento que aceita ou não descontinuidade (dependendo de sua classe aspectual) interfere no
aspecto expresso numa perífrase. O verbo esclarecer colabora mais do que o verbo dizer para
a interpretação desenvolvida no parágrafo anterior, já que aquele evento permite interrupção e
retomada, e, com este, isso não se dá, pelo menos não do mesmo jeito:
(28) d É preciso começar por esclarecer que publicidade não é jornalismo, mas, antes de
desenvolver esse ponto/esse esclarecimento, vamos conceituar jornalismo...
(29) d “A estratégia definida é apropriada”, começou por dizer Vítor Gaspar, na conferência,
mas, antes de desenvolver esse ponto/esse dito, vamos conceituar estratégia.
Por se tratar de um evento de achievement (télico e pontual) que se apresenta como um
todo indivisível em (29d), uma vez que se começou por dizer algo e houve uma interrupção, a
retomada do evento conta necessariamente com o fato de a afirmativa entre aspas ter sido dita
em sua totalidade. Em outras palavras, uma vez dito, completou-se; no máximo se repete o dito,
ou desenvolve-o. Em (28d), por se tratar de um evento que cessou sem atingir um ponto terminal
indicado por um predicador que lexicalmente envolve/implica o início de um evento (télico e
contínuo) que se desenvolve em prol de um estado/resultado (esclarecer – tornar claro, ficar
claro), uma vez que só se começou por esclarecer algo e houve uma interrupção, a retomada do
evento não conta com o fato de se ter dado, em sua totalidade, o evento de esclarecimento da
diferença entre publicidade e jornalismo. Então, pode-se retomá-lo com o intuito de completálo. Essas questões sobre o tipo de situação expresso por V2 serão detalhadas em uma seção
posterior, dedicada a suas classes aspectuais.
6.1.2 Passar a + Vinfinitivo
90
PASSAR A + VERBO AUXILIADO NO INFINITIVO, por sua vez, também é realizada
em todas as modalidades e variedades (ainda que em menor número no PE), e tem maior
produtividade na modalidade escrita, em ambas as variedades. Apresentou 44 ocorrências no
corpus, como em
(30) “Trabalhadores passam a pagar mais à Segurança Social, empresas menos. ” [PE, notícia,
DN, 07.09.12]
No entanto, há que se fazer uma distinção entre a contribuição das formas verbais começar
e passar para o preenchimento do padrão construcional de aspecto de fase inicial. Enquanto a
primeira contribui para que se expressem os primeiros momentos de uma situação até então
inexistente, a qual pode iniciar-se do zero, a segunda colabora para que se expresse uma troca,
uma mudança de situação. Para ser mais clara, parece-nos que a relação semântica que se põe
em evidência já não é a de início de um evento ou situação pura e simplesmente, mas a de um
processo de mudança que se baseia na seguinte formulação: para passar a X é preciso deixar
de Y. Ilustra essa relação o dado apresentado em (30): se os trabalhadores passaram a pagar
mais, consequentemente deixaram de pagar menos.
Para além dessa face espelhada que une uma construção inceptiva a uma terminativa de
forma tão coesa, há outra nuance diferente. Enquanto, normalmente, a forma verbal começar
leva-nos a esperar a continuidade e o término da situação iniciada, a construção com passar
permite perfeitamente (e usualmente) que se espere a permanência e habitualidade da situação
descrita, sem esta necessariamente encaminhar-se para o fim. Tal diferenciação não é categórica
e será mais detalhada na seção dedicada à classe aspectual de V2.
6.1.3 Pôr-se a + Vinfinitivo
PÔR-SE A + VERBO AUXILIADO NO INFINITIVO aparece no corpus exclusivamente
na modalidade escrita, em ambas as variedades, e com bem menos dados, apenas 17. Essa
forma, a princípio parece não demonstrar distinção da fase inicial expressa por começar quando
em posição de V1 na construção de aspecto inceptivo. No entanto, se pararmos para analisar
com cautela, perceberemos que se trata do início de um evento com a perspectivização voltada
muito mais para o empenho e a determinação da fase inicial pura e simplesmente, e não para a
sua extensão e duratividade, como a forma começar indica. É, ainda, notório que se trata de um
uso mais formal, seja por sua baixa frequência ou por seu contexto de uso (já que foi encontrada
apenas na modalidade escrita, nos gêneros notícia e narrativa, sejam contos infantis ou lendas),
como em
91
(31) “De dia, saía, punha-se a ajudar a estacionar carros nas redondezas.” [PE, notícia, Público
de agora, 05.09.12]
6.1.4 Desatar e Desandar a + Vinfinitivo
DESATAR A + VERBO AUXILIADO NO INFINITIVO e DESANDAR A + VERBO
AUXILIADO NO INFINITIVO são formas menos frequentes e não tipicamente associadas a
essa construção, embora citadas por Castilho (1968) e Travaglia (1994). Este considera-nas,
assim como a outras menos prototípicas que não foram encontradas em nosso corpus, de uso
mais popular. É, no entanto, curioso destacar que se registraram apenas seis ocorrências na
coleta, em ambas as variedades, mas somente na modalidade escrita, em narrativas, como em
(32) “Alguém dormiu na minha cama... e ainda está lá!, murmurou o ursinho, e desatou a
chorar outra vez.” [PB, Cachinhos de ouro e os três ursinhos, pg. 9]
(33) “De barriga cheia, João e Maria desandaram a contar coisas, falando ao mesmo tempo.
E o rei só ouvia pedaços misturados de cada um.” [PB, Passarinho me contou, pg. 26]
Será mesmo “mais popular” seu uso? O que se quer dizer com popular? E o que o levou
a esse tipo de observação? Cabe aqui dizer que a modalidade, bem como a situação
comunicativa (tipo de texto, especialmente para modalidade escrita; ambiente, especialmente
para a modalidade oral) exercem importante papel no controle do registro da língua, que
apresenta um continuum entre formal e informal. Entre os textos narrativos do corpus, temos
tanto narrativas infantis, como Lendas de Alexandre Herculano, não parecendo estarem os
dados todos em um mesmo nível de registro informal, coloquial ou popular.
Há que se considerar uma diferença importante de nuance para a expressão de aspecto
inceptivo através dessas formas verbais. Não se trata apenas de focalizar o primeiro momento
ou os momentos iniciais da situação expressa por V2, mas de ressaltar um começo com
velocidade e intensidade. Essa informação será retomada mais a fundo na seção de traço
cinético do V1.
Além disso, há uma diferença semântica entre as duas formas quando atuam como
verbos predicadores que parece permanecer em seu uso semiauxiliar ou quase auxiliar.
Desandar refere-se a algo que não saiu como o esperado, por exemplo “O creme desandou e
não consegui dar o ponto”. Sendo assim, em seu uso semiauxiliar, traz à tona uma ideia de
contra-expectativa, como se o evento iniciado não fosse esperado e, além disso, tivesse um
contorno negativo – o que se confirma em (33), já que João e Maria falavam excessiva e
92
simultaneamente sem nem permitir que o rei lhes escutasse direito. Por outro lado, desatar
refere-se a soltar algo que está preso, resolver, solucionar problemas, libertar-se e, portanto, não
apresenta contorno negativo, já que realiza, de certo modo, um comportamento dentro das
expectativas de uma normalidade. Sendo assim, podemos entender que, em (32), o ursinho
libertou o choro que guardava em si, colocando-o para fora.
6.1.5 Acabar e Terminar de + Vinfinitivo
Quanto às formas terminativas, ACABAR DE + VERBO AUXILIADO NO INFINITIVO
expressa a fase final de uma situação em sua completude, é a culminação de uma situação com
término previsto ou a conclusão de uma sem essa previsão. Essa foi a perífrase mais encontrada
para expressar a fase final dos eventos, e teve maior produtividade na variedade PB, como se
pode observar em
(34) “depois da gente ter acabado de comer... na última garfada....estava lá a barata dentro do
arroz a la grega...” [PB, entrevista DID, NURC-RJ, n° do inquérito 14]
No entanto, devemos lembrar aqui de dois fatores importantes. O primeiro é que essa
mesma forma de manifestação de construção perifrástica também é utilizada para denotar a
noção temporal de passado recente, com funcionalidade semelhante à de um adjunto adverbial,
como “agorinha” ou “ainda há pouco” ou “nesse instante”, como em
(35) E ainda terá total sigilo, porque o ZipMail conta com sistemas de segurança e uma senha
secreta de acesso que você mesmo escolhe. Com ele sua vida acaba de ficar muito mais fácil.”
[PB, anúncio, VARPORT, E-B-94-Ja-011]
E, quando esse sentido é expresso, não ocorre aspecto terminativo simultaneamente. Na
verdade, em casos como o acima (35), é até o contrário: com o zipmail, sua vida passa a ser
muito mais fácil. É como se pudéssemos parafrasear: sua vida acaba de começar a ficar muito
mais fácil. E quando se junta acabar com começar, é impossível que o primeiro esteja denotando
término, o que temos é o reforço do quão recente é a situação descrita, nesse caso (35),
interessantemente, trata-se de um início! Portanto, muitos dados (mais da metade) foram
descartados, fazendo com que essa forma verbal não tenha sido a mais recorrente na nossa
coleta para expressar o aspecto terminativo, permanecendo apenas com 25 ocorrências.
Além disso, é importante destacar outras duas microconstruções com essa mesma forma
verbal que também não expressam aspecto terminativo, a saber ACABAR + VERBO
93
AUXILIADO NO GERÚNDIO e ACABAR POR + VERBO AUXILIADO NO INFINITIVO,
como em “Depois de tanta insistência, João acabou indo ao cinema” e “Maria acabou por
ficar doente”.
Ambos constructos expressam um resultado final de uma situação maior, uma conclusão
ou consequência a que se chegou. É possível inferir que, no primeiro exemplo, João não estava
com vontade de ir ao cinema, mas a insistência foi tanta, que o venceu pelo cansaço, e o
resultado foi a ida ao cinema. Já no segundo, podemos inferir, por exemplo, que Maria vinha
trabalhando dia e noite, não se alimentava bem, quase não dormia e, então, adoeceu. É
interessante notar que não só essa construção não expressa fase final, como, pelo contrário, é
praticamente a fase inicial da situação ficar doente. No entanto, adoecer não é o tipo de evento
que se divide em fases, pelo menos não em teoria, ou seja, a pessoa pode começar a ter indícios
de que vai adoecer (e até dizer frases como “Estou querendo gripar”), o que configura a fase
pré-inicial, mas normalmente se declara adoecido de uma hora para outra; você dorme bem e
acorda mole, com febre e, então, constata que adoeceu. Por isso, essa construção, na verdade,
revela um aspecto perfectivo pontual ou resultativo (no caso de adoecer).
Há, ainda, uma outra construção com acabar reflexivo (ACABAR-SE DE + VERBO
AUXILIADO NO INFINITIVO) que, por ter sido encontrada no corpus, merece um espaço de
observação, como podemos ver abaixo:
(36) “Água quente, tem que ser bem quente. E quando eu esqueço de co... pôr Dietil, aí não tem
graça. Depois quando me acabei de comer e ainda vou tomar chá com adoçante, com açúcar
não, não adianta nada.” [NURC-RJ, DID, n° do inquérito 0078]
O que está em jogo em construções desse tipo não é a expressão da fase final da situação
expressa por V2, mas, sim, o sentido metafórico da forma verbal acabar. Ou seja, o que se
pretende dizer é que a pessoa atingiu um estado de esgotamento (normalmente físico), acabouse a disposição, a energia, a dignidade, e assim por diante. No caso (36), por exemplo, entendese que a pessoa comeu tanto que se sente acabada, passando mal. Por esse motivo, dados com
essa construção também foram retirados do corpus.
TERMINAR DE + VERBO AUXILIADO NO INFINITIVO é uma construção com
comportamento idêntico a ACABAR DE + VERBO AUXILIADO NO INFINITIVO (quando
essa está a serviço da expressão do aspecto terminativo). E, provavelmente, por isso, foi tão
pouco encontrada em nossa coleta de dados, com apenas 12 ocorrências, como em
(37) “Quando eu terminar de ler, quero saber o que vocês acharam, combinado?” [PB, revista
94
nova escola, pg. 46]
6.1.6 Deixar de + Vinfinitivo
DEIXAR DE + VERBO AUXILIADO NO INFINITIVO, apesar de ser uma construção
produzida em todas as variedades e modalidades, apresenta destaque no PB oral em relação ao
escrito, e boa produtividade em ambas as modalidades do PE. Foi a construção aspectual de
marcação de fase final que se destacou em termos de número de dados (frequência token) e
distribuição por variados contextos de uso (frequência type) com 85 ocorrências no corpus,
como pode ser observado em:
(38) “A sociedade civil deixou, pura e simplesmente, de acreditar na escala local.” [PE, editorial,
Diário de Notícias, 05.09.12]
Ela normalmente indica uma situação que estava em realização e foi interrompida através
da mudança, passagem a outra situação. Isso é consequência de sua face espelhada com a forma
inceptiva PASSAR A + VERBO AUXILIADO NO INFINITIVO, porque deixar de X é,
necessariamente, passar a Y. Em (38), se a sociedade civil deixou de acreditar na escala local,
passou a ser descrente, por exemplo. Podemos melhor entender esse processo interdependente
no esquema da figura abaixo.
Figura 6: Esquema interdependente de passar a e deixar de.
O esquema acima ilustra um recipiente que se preenche e se esvazia, representando
respectivamente as mudanças expressas pelas microconstruções com passar a e deixar de, uma
vez que, no primeiro caso – da esquerda para direita – adere-se alguma situação ou evento
(preenchimento) e, no segundo – da direita para esquerda, se distancia do mesmo
(esvaziamento). Dessa forma, é possível entender que, quando um desses processos ocorre, o
95
caminho inverso é natural e automático. Se o recipiente passa a estar cheio, ele deixa de estar
vazio.
No entanto, devemos estar atentos ao fato de que essa mesma estrutura pode expressar
outros sentidos que não a fase final de uma situação. Um sentido bastante recorrente é o da não
realização da situação expressa por V2, como em:
(39) “mas então ela ficou em casa né? E você deixou de ir ao cinema?” [PB, entrevista DID, NURCRJ, n° do inquérito 17]
Em (39), não há a interpretação de que alguém estava indo ao cinema e deixou de ir, mas,
sim, a compreensão de que se desistiu da ideia de ir ao cinema, ou seja, essa situação nem
chegou a ser realizada. Isso fez com que, num segundo momento de exame de amostras obtidas
para triagem de constructos do português a serviço da expressão de fases inicial e final de um
evento, dados desse tipo fossem desconsiderados da amostra. Como veremos em uma seção
mais adiante, essa e outras interpretações dessa forma verbal estão relacionadas à classe
aspectual de V2 e outros elementos.
6.1.7 Parar e cessar de + Vinfinitivo
Por fim, PARAR DE + INFINITIVO expressa a fase final de uma situação por meio de
sua interrupção, que pode ser abrupta ou gradual, definitiva ou temporária. Responsável por 40
dados da amostra, essa microconstrução teve destaque para a ocorrência no PB oral, como visto
em
(40) “assim que eu entrei na Antártica, eu não queria parar de estudar.” [PB, entrevista DID,
NURC-RJ, n° do inquérito 28].
A microconstrução com CESSAR DE + INFINITIVO tem comportamento semelhante
à com a forma verbal parar e foi encontrada apenas uma vez na coleta de dados, ainda assim
na fonte mais antiga que temos, que são narrativas portuguesas do séc. XIX, como podemos
observar abaixo:
(41) “No momento em que [o sino] cessou de tocar, a ponte levadiça desceu, muitos escudeiros
saíram a recebê-lo entre tochas, e as salas dos paços iluminaram-se.” [PE, Lendas e Narrativas,
pg.27]
96
Ao que parece, um motivo que explicaria a baixa ocorrência dessa forma verbal em
construções aspectuais terminativas, conforme observado numa busca de usos de cessar na
internet, é que normalmente o uso de cessar predicador está vinculado a predicações em que a
perspectiva é a do tema ou referente que se submete à interrupção e não do que controla a
interrupção (e isso reflete em seu uso mais gramaticalizado também), ou seja, normalmente não
se diz que alguém cessa algo, mas sim que algo cessa. Entretanto, não se trata de uma regra,
muito menos de uma estrutura impossível/agramatical. O que queremos observar é que não se
trata de uma escolha usual, ou seja, aparece em um número menor de ocorrências, parecendo
não ser a preferência do usuário da língua.
É importante pontuar que o valor aspectual de acabado associado às situações pospostas
às formas verbais deixar, parar e cessar significa apenas que a situação não está mais em
realização, ou seja, houve uma fase final por meio de cessamento, interrupção, sem, no entanto,
o atingimento de um ponto terminal. Já o valor aspectual de acabado que temos com as
perífrases acabar de + inf ou terminar de + inf expressa a fase final de um ponto de término da
situação expressa por V2.
No entanto, não podemos agrupar de uma forma idêntica, reunindo em uma mesma
categoria, as construções com deixar, parar e cessar. Em alguns casos, elas têm funcionamento
semelhante, mas em outros não, as duas últimas diferem da primeira. Por muitas vezes, a
interrupção feita por parar e cessar pode ser pontual e definitiva, ou durativa, ou seja, acontece
por um período de tempo e, então, a situação é restabelecida, enquanto a situação posposta a
deixar parece ser abandonada; isto é, a interrupção feita por essa forma verbal pode ser pontual
ou gradual, mas a tendência é a de que seja definitiva. Um exemplo do que foi explicado acima
é que é mais natural aos falantes dizer “Ele parou de fumar por 2 meses e depois voltou” do
que “Ele deixou de fumar por dois meses e depois voltou” A segunda frase não é impossível,
muito menos agramatical; apenas parece-nos mais natural o uso da primeira.
6.2 O ESTATUTO DE GRAMATICALIDADE DAS FORMAS VERBAIS QUE SE
COMPATIBILIZAM COM AS CONSTRUÇÕES PERIFRÁSTICAS EM ESTUDO
Com base nos critérios de auxiliaridade estabelecidos (cf. capítulo anterior) para exame
do nível de gramaticalização dos itens verbais que se compatibilizam com as construções
perifrásticas dos tipos registrados no corpus, procedeu-se à investigação do estatuto de cada
forma verbal que preenche o primeiro slot dessas construções destinado à marcação das noções
97
aspectuais de fase do desenvolvimento de um evento aqui focalizadas (V1): V1Aspectual prep.
V2Infinitivo.
Após a análise do grau de auxiliaridade de cada forma verbal a serviço da marcação
aspectual de fase detectada no corpus constituído para esta pesquisa, procedeu-se à
categorização dessas formas verbais, com base na concepção de que as entidades linguísticas
são categorizadas num continuum em razão de seus atributos, havendo umas mais salientes
cognitiva e linguisticamente do que outras. Nesse sentido, prevemos que um conjunto de
determinados atributos, dentre atributos possíveis/viáveis para V1, faça com que itens verbais
que os exibem sejam vinculados a uma configuração mais saliente nesse continuum de
gramaticalização. Esperamos, por outro lado, itens verbais menos exemplares desse conjunto
de atributos. Assim, entendemos que uma categoria, como a de verbos aspectuais (semi ou
quase) auxiliares, representa uma rede de similaridades e dessemelhanças conjugadas que se
relacionam em maior ou menor grau, conforme os atributos que sejam compartilhados pelos
membros dessa rede.
Dessa forma, mediante a observação e a análise dos dados coletados, de acordo com as
respostas aos testes de auxiliaridade realizados com base nos dez critérios estipulados, foi
possível chegar a estes dois quadros:
Critérios
COMEÇAR
DESANDAR
DESATAR
PASSAR
PÔR-SE
1. Sujeito único
1
1
1
1
1
2. Detematização
1
1
1
1
1
3. Dessemantização
0
1
1
1
1
4. Incidência cincunstante temporal
1
1
1
1
1
5. Incidência de negação
0
0
0
0
0
6. Impossibilidade oração
1
1
1
1
1
7. Apassivização
1
1
1
1
1
8. Oposição a forma simples
0
0
0
0
0
9. Frequência alta
1
0
0
1
0
10. Irreversibilidade
1
1
1
1
1
TOTAL:
7
7
7
8
7
Quadro 3: Resultado da testagem dos critérios de auxiliaridade nas construções inceptivas.
98
Critérios
ACABAR
CESSAR
DEIXAR
PARAR
TERMINAR
1. Sujeito único
1
1
1
1
1
2. Detematização
1
1
1
1
1
3. Dessemantização
0
0
1
0
0
4. Incidência cincunstante temporal
1
1
1
1
1
5. Incidência de negação
1
0
0
0
1
6. Impossibilidade oração
1
1
1
1
1
7. Apassivização
1
1
1
1
1
8. Oposição a forma simples
0
0
0
0
0
9. Frequência alta
1
0
1
1
0
10. Irreversibilidade
1
1
1
1
1
TOTAL:
8
6
8
7
7
Quadro 4: Resultado da testagem dos critérios de auxiliaridade nas construções terminativas.
Foi possível notar que todas as formas verbais inceptivas apresentam um nível
intermediário semelhante de auxiliaridade, exceto a forma passar, que mostra mais atributos
associados ao pólo de auxiliaridade verbal. Assim, apesar de, em geral, as formas verbais que
se compatibilizam com a mesoconstrução de aspecto inceptivo não responderem positivamente
a dois critérios de importância intermediária numa espécie de hierarquia formada, podemos
dizer que elas passaram em uma quantidade considerável de testes, o que permite considerá-las
semiauxiliares.
A microconstrução com a forma verbal começar foi disparadamente a mais concretizada
no corpus; sendo a que revela alta frequência token de uso. No entanto, nos colocamos diante
de um problema em relação a seu estatuto de gramaticalidade, se verificarmos que, apesar de
apresentar o mesmo número total de respostas positivas que os outros verbos (desandar,
desatar, pôr-se), é a única que tem resposta negativa no que diz respeito ao critério de alteração
semântica, bem importante nesse esboço de hierarquia traçada. Teríamos, então, uma não
correspondência entre maior frequência e maior grau de gramaticalidade? Há que se considerar,
aqui, que outras formas verbais não detectadas no corpus, mas capazes de preencher o slot de
V1 (conforme será visto em seção mais adiante) – como principiar e iniciar –, traduzem o
mesmo significado da microconstrução com começar, e encontram-se, portanto, no mesmo
ponto que esta em termos do critério de auxiliaridade de dessemantização. Contudo, estão em
pontos bem distantes em termos de frequência: cogita-se, então, que a alta frequência de
começar e a nula ocorrência de principiar ou iniciar é sintoma da prototipicidade de começar
99
na expressão de aspecto inceptivo neutro/pura e simplesmente. Supõe-se, assim, que se um
falante tiver que optar por uma forma para expressar o aspecto inceptivo, certamente fará a
escolha por começar, o que mostra o reconhecimento dessa forma como auxiliar aspectual
inceptivo, já que está no topo da memória de configuração de expressões linguísticas para
comunicação do falante.
Como explicar, então, a persistência semântica de uma forma gramatical? O que ocorre
é que começar não sofre o processo de perda semântica por conta de seu próprio lexema, por
uma convergência perfeita entre o seu significado e o significado expresso por V1 na construção
inceptiva em estudo. Vale ressaltar aqui, inclusive, que, mesmo em atuação como predicador,
esse verbo já apresenta relação com um evento ou situação a desenrolar-se, visto que só
seleciona como argumento interno elementos que, embora nomes, remetem não a indivíduos,
mas a estado de coisas (por relação metafórica), como podemos observar em “*A criança
começou o lápis” e “A criança começou a cobertura do pontilhado”. Assim, embora haja outras
alternativas ao preenchimento de V1, começar atua como a forma mais representativa da
subcategoria aspectual em razão de ser o mais acionado para tal funcionalidade.
Por sua vez, as formas verbais que expressam aspecto terminativo apresentam uma
diferença um pouco maior nos resultados em relação às formas inceptivas. Todas responderam
positivamente a pelo menos metade dos critérios, situação que também lhes confere estatuto,
ao menos, de semiauxiliares, variando de 6 a 8 respostas afirmativas. Dos dois verbos que
poderiam ser considerados mais próximos do pólo de auxiliaridade, por possuirem 8 respostas
positivas aos testes, o acabar, assim como acontece com começar, nega o critério de
dessemantização. Dessa forma, aplicamos aqui a mesma teorização feita para a forma verbal
começar, visto que o significado do lexema de acabar converge perfeitamente com o
significado da construção terminativa em estudo.
A forma verbal terminar, que teve baixo índice de produtividade na coleta (com apenas
12 dados), tem um comportamento não distante do pólo de auxiliaridade, tendo respondido
positivamente a 7 critérios (ainda que o terceiro tenha sido negado, novamente por uma questão
da convergência de significados do lexema e da construção, a exemplo do que acontece com
começar e acabar). No entanto, sua baixa frequência dá indícios de um menor nível de
auxiliaridade em relação a acabar, forma acionada automaticamente pelos usuários da língua,
até, porque, como foi discutido na seção anterior, presta-se a outras funções também. Enquanto
isso, cessar, forma verbal que respondeu positivamente a menos critérios selecionados, foi, de
fato, a construção menos detectada na coleta de dados, com apenas uma ocorrência,
confirmando relação entre frequência e gramaticalidade.
100
É importante ressaltar que, nesta seção, tivemos por objetivo conferir o grau de
gramaticalização das perífrases em potencial de se empregarem para marcar inceptividade ou
terminatividade, mas os critérios de auxiliaridade expostos não são isentos de problemas. Em
trabalhos futuros, pretendemos incluir outros critérios na análise para ver em que medida as
microconstruções, quando concebidas ao longo de um continuum de gramaticalização, podem
apresentar maiores diferenciações do que as detectadas até então.
6.3 A INFLUÊNCIA DE ELEMENTOS NO ENTORNO DA CONSTRUÇÃO
A partir da análise qualitativa dos dados, não há como ignorar certa interação entre
nuances de sentido dos verbos aspectuais e outras categorias linguísticas, como, por exemplo,
os tipos de classe aspectual de V2, a predicação estabelecida por ele, o número de seus
argumentos ou a polaridade negativa que atua sobre a construção.
6.3.1 Predicação de V2 e número (singular/plural) de seus argumentos
Após a verificação atenta dos dados do corpus, podemos dizer que não há restrições
quanto à estrutura de participantes do verbo predicador que completa as construções inceptivas
e terminativas, havendo ocorrências de predicações transitivas e intransitivas com quase todas
as formas verbais encontradas na posição de V1 (e, mesmo quando alguma combinação de um
ou outro tipo de predicador (simples ou complexo) com determinado semiauxiliar aspectual não
havia sido encontrada, uma verificação via internet garantiu a possibilidade de realização da
combinação ausente na amostra coletada).
É interessante observar que há também, na coleta, alguns – e não são poucos – dados com
verbo impessoal e outros em construção passiva. Então, tais buscas levam a crer que, devido à
compatibilidade entre as formas verbais semiauxiliares que preenchem V1 e os mais diversos
tipos de predicação de V2, esta não demonstra ser um fator relevante na concretização das
construções em estudo, nem como restrição, nem como influenciadora de uma outra nuance
semântica, por exemplo.
No entanto, o mesmo não pode ser dito sobre a flexão de número do argumento externo
e do argumento interno de V2. Há inúmeros dados com esses elementos no plural e, por muitas
vezes, isso não muda em nada a construção. Por outro lado, em alguns dados, esse é o fator que
faz toda a diferença. Consideremos os exemplos abaixo:
101
(42) “agora, realmente, por exemplo, outra fruta agora nesta altura, laranjas, tangerinas,
começaram a aparecer...e isso é tudo porque, porque realmente muito mais caro porque são
as revendedeiras já que vendem isso.” [PE, entrevista DID, CLUL: Português Fundamental, 0129];
(43) “Quando eu me mudei, vamos dizer, um bairro de Copacabana... era um bairro mais...
aristocrático, não é. Hoje ele... se democratizou, porque começaram a surgir os apartamento
pequenos, não é, com isso... muita gente pode vir morar em Copacabana, quando antigamente
era mais difícil isso, né.” [PB, entrevista DID, NURC-RJ, amostra recontato de 90, n° do inquérito 071];
(44) “Dali a pouco, o velho pároco começava a tirar de um pé-de-meia uma, duas, três peças
de ouro; foi tirando até setenta; restavam apenas obra de uma dúzia delas.” [PE, Lendas e Narrativas,
pg.344].
Os verbos predicadores dos enunciados acima (aparecer, surgir, despedir e tirar) têm o
traço de duratividade negativo, ou seja, são eventos (porque há dinamismo) não faseáveis,
pontuais, em que o início e o fim da ação se dão em um intervalo de tempo desconsiderável e
indescritível de tão curto. Se assim o são, como podem compor uma construção de aspecto
inceptivo? A princípio, não se compatibilizariam num enunciado com ênfase na noção aspectual
de inceptividade, como em: “*Pedro começou a chegar”. Essa noção somente seria possível
mediante a co-atuação de outros elementos do contexto linguístico, como, por exemplo, a flexão
plural do sujeito, como em: “Pedro e seus amigos começaram a chegar”, ou ainda, “Luzes
começaram a surgir”. Dessa forma, entende-se que foram chegando/surgindo aos poucos, e
não todos juntos.
Em (42), há um sujeito composto cujos núcleos também estão no plural. Esse fato permite
que a leitura do evento ‘aparecer’ tenha início, visto que haverá a aparição gradual de laranjas
e tangerinas. Há quem diga que teremos aqui a leitura de caráter iterativo, porém, devemos
lembrar que não serão exatamente as mesmas laranjas e tangerinas que aparecerão
repetidamente. O enunciado em foco é diferente de outros como Pedro começou a
piscar/pular/buzinar. Aqui, sim, temos iteratividade, visto que as piscadas, pulos ou buzinadas
serão realizações iguais do evento, feito inclusive pelo mesmo agente. O mesmo acontece em
(43), ao dizer que os apartamentos pequenos começaram a surgir; aqui temos surgindo, ao
longo de alguns anos, diversos apartamentos que partilham a característica de serem pequenos.
No entanto, ainda que seja forte a ideia de iteratividade do evento de surgirem apartamentos, o
aspecto inceptivo não está invalidado, porque, mesmo que o evento se repita pela frente, houve
um momento em que esse processo de repetição teve um início.
102
Vale observar que essa estratégia não é a única a permitir essa leitura para um verbo cuja
acionalidade seja de um evento instantâneo, o contexto também pode ser responsável por isso.
Não seria impossível dizer: “Depois de dias de chuva, o sol começou a aparecer nesta manhã
nublada”. O que acontece aqui é que, apesar de o sol ser um único elemento no singular,
entendemos que sua aparição será gradual porque está coberto por nuvens que, aos poucos, vão
sumindo e permitindo a visão completa do astro. Por esse motivo, muitos autores advogam em
favor de classificar as situações e não os verbos isoladamente quanto à acionalidade.
Em (44) temos a mesma discussão de iteratividade em jogo, já que temos um verbo
expressando evento novamente instantâneo, ‘tirar’ (a não ser que sejam somadas outras
informações ao contexto que possam modificar o tempo desse evento; um advérbio como,
devagar, por exemplo). A diferença é que, nesses enunciados, o responsável pela possibilidade
de realização da construção é a flexão plural do complemento verbal ‘uma, duas, três peças de
ouro’.
6.3.2 Presença de termo circunstante (adjunto adverbial, em geral) e sua influência
Pôde-se verificar que, nos enunciados colhidos, ocorrem (não raras vezes) expressões
adverbiais que ora reforçam a significação de inceptividade ou terminatividade associada aos
verbos semiauxiliares em foco, ora são responsáveis por tornar possível, ou ajudar a possibilitar
a realização da construção com V2 cuja acionalidade, a princípio, por algum traço (duratividade
ou telicidade), não permitiria a realização da mesma. Diferentes circunstâncias foram
detectadas, que podem ser de referência temporal pontual; de referência temporal que sinaliza
transcurso de tempo; de referência temporal frequencial que denota iteratividade do evento; ou
ainda de referência locativa ou de modo, como se pode observar nos exemplos a seguir:
(45) “A emenda do Senador Nélson Carneiro (MDB-RJ) que inclui o divórcio na Constituição
para beneficiar desquitados e casais separados começa a ser votada hoje às 9h30m, em
segundo e último turno pelo Congresso Nacional.” [PB, noticia, VARPORT, E-B-94-Jn-004];
(46) “Nova Trento sempre parece que acabou de ser construída na véspera de tão bem tratada
mas, foi-se embora, de maneira assim, bastante violenta...” [PB, entrevista DID, NURC-RJ, n° do
inquérito 133];
(47) “Quando passei pra faculdade, nós tínhamos um grupo de seis, oito alunos que
estudávamos juntos e o único que lia francês era eu. Eu era o tradutor, porque a partir do
103
segundo, terceiro ano é que começaram a aparecer os livros em edições espanholas.” [NURCRJ, DID, n° do inquérito 0075];
(48) “Há certas manhãs em que a cama deixa de ser boa companhia e, quando a gente dá pela
coisa, já está de pé, no meio da rua, longe do quarto.” [PB, O menino marrom, pg. 22];
(49) “Mamãe passou a fazer compras uma vez por mês. Levava uma lista pequena e ficava
horas comparando marcas e preços.” [PB, Pai sem terno e gravata, pg. 26];
(50) “Ela não conhecia nenhum Peter, mas ele estava aqui e ali nas mentes de Joao e Miguel,
enquanto na de Wendy seu nome começou a aparecer rabiscado por todo o lado.” [PB, Peter
Pan, pg 38];
(51) “Peter a agarrou e começou a arrastá-la até a janela.” [PB, Peter Pan, pg. 65];
(52) “Pode acontecer que comecem a surgir em cascata precisões desta ou daquela medida,
com correções ou mitigação social dos seus impactos.” [PE, DN, editorial, 11.09.12].
Em (45) e (46), temos exemplos de enunciados com atuação de adjunto adverbial de
natureza temporal pontual sobre a construção inceptiva e a terminativa, que trazem em V2
eventos que são durativos, ou seja, estendem-se por um período de tempo, dividindo-se em
fases – sejam elas iguais (como é o caso da votação, já que diversos cidadãos políticos irão
votar cada um a seu tempo para se chegar a um resultado) ou diferentes (como é o caso da
construção, que engloba diversas etapas em seu processo). Dessa forma, por se tratar de eventos
faseáveis, a sua compatibilidade com a focalização da fase inicial ou final dos mesmos é total,
e, então, o papel dos adjuntos é só reforçar o momento inicial (“hoje às 9h30m”) e final (“na
véspera”), ou seja, ainda que não estivessem presentes, a construção teria total coerência.
Já em (47) temos um circunstante de referência temporal durativa atuando sobre a
construção inceptiva. É interessante notar que o V2 em questão é “aparecer”, que, como já foi
explorado na seção anterior, é um evento instantâneo e, portanto, não faseável. Assim, o que
lhe permite compor uma construção inceptiva são elementos no entorno da construção; e, no
enunciado em questão, temos dois responsáveis: o primeiro é o argumento externo flexionado
no plural (“os livros”), porque entendemos que foram aparecendo aos poucos, e não todos
juntos, sentido que é reforçado pelo segundo elemento responsável, a presença de um
circunstante durativo (“a partir do segundo, terceiro ano”, que expressa “dali em diante”, ou
seja, é o ponto inicial de um evento que se desdobrará através do tempo).
104
Os enunciados (48) e (49) trazem consigo adjuntos adverbiais temporais de frequência
atuando sobre a construção inceptiva (“passou a fazer compras”) e a terminativa (“deixa de
ser”). No entanto, os circunstantes em questão não têm atuação semelhante, vejamos o porquê.
Fazer compras é um evento que transcorre num percurso de tempo e divide-se em fases e,
portanto, permite uma leitura inceptiva sem o menor problema, por exemplo “Só ontem é que
comecei a fazer as compras para o meu aniversário.” A diferença entre este enunciado e o (49)
é que aqui estamos falando de um compra específica, que tem um término previsto, porque o
aniversário não pode ocorrer sem que as compras tenham sido feitas, então é como se déssemos
um zoom para olhar o evento minuciosamente, perspectiva de dentro. Já em (49), estamos
falando de fazer compras como um evento habitual, sem zoom, com uma perspectiva de fora e,
então, a duratividade do evento passa a ser desconsiderada e ganha espaço a leitura iterativa de
ir ao mercado. A não especificidade das compras junto do circunstante “uma vez por mês”
garantem essa leitura iterativa e habitual. Contudo, vale lembrar que a leitura inceptiva não
some, já que foi naquele momento que a mãe passou a realizar esse evento nesse ritmo
determinado pelo adjunto.
O que acontece em (48) segue um raciocínio um pouco distinto. A construção
terminativa envolve um estado temporário, “ser boa companhia”, que é diferente de um estado
permanente, como “ser alto”. Desse modo, se estamos tratando de um estado temporário, é
previsível que ele tenha diversos inícios e diversos términos. É justamente o que acontece no
enunciado em questão, o circunstante temporal de referência frequencial tem o ritmo não
definido, mas só o fato de estar no plural (“em certas manhãs”) garante que tenhamos a leitura
iterativa da construção “deixa de ser boa companhia”. Isso quer dizer que há dias em que a
cama é boa companhia, mas há outros em que deixa de ser. Como essa realidade se repete por
diversas vezes, é mais forte o caráter iterativo do que o terminativo, ainda que este não se perca
de todo, já que há o abandono de um estado positivo a cada vez que isso ocorre.
Houve também a ocorrência de circunstantes de referência locativa, representada em
(50) e (51). Todavia, não é por partilharem a mesma circunstância que propõem uma
significação semelhante. Em (50) temos novamente o V2 aparecer na construção, e dessa vez,
não temos um argumento externo plural para possibilitar a concretização da focalização na fase
inicial da aparição, o sujeito é singular, “seu nome”. A responsabilidade da compatibilidade da
construção inceptiva com esse evento recai, então, totalmente sobre o adjunto locativo “por
todo lado”, que traz consigo o significado de multiplicação, e, portanto, permite a leitura de que
ela vai começar a ver/descobrir o nome rabiscado diversas vezes em lugares diferentes.
Constata-se mais uma vez a combinação de inceptividade e iteratividade. Já em (51) temos um
105
evento (arrastar) que se estende no tempo e é, portanto, faseável (o que de pronto permite que
se focalize uma das fases, como, por exemplo, o início), mas que transfere quase que
integralmente a responsabilidade da extensão e possível finalização do mesmo para o
circunstante locativo, como é o caso de “até a janela”. Nesse dado, temos, assim, o reforço da
inceptividade de um evento télico, por meio do complemento circunstancial.
Por fim, (52) mostra-nos outra construção inceptiva cujo V2 expressa um evento não
faseável, dessa vez trata-se do verbo “surgir”. Como já foi descrito na seção anterior, o sujeito
flexionado no plural (“precisões desta ou daquela medida”) é o responsável por permitir essa
compatibilização de um evento não faseável com foco na fase inicial – algo que normalmente
não seria esperado – já que se entende que as precisões irão surgir gradualmente, e não todas
juntas. O interessante nesse enunciado é a associação do sujeito-plural com o adjunto adverbial
de modo “em cascata”, que traz consigo justamente a ideia de progressão, gradação do evento
em foco, fato que permite totalmente a perspectivização de seu momento inicial.
Assim dito, é necessário não perder de vista que a construção de sentido é dinâmica e,
portanto, mesmo compatibilizações que, a princípio, parecem incompatíveis podem formar
compor construções através da utilização de outros elementos. Tudo depende de
compatibilização promovida linguisticamente e até pragmática e cognitivamente.
6.3.3 Polaridade negativa
Outro critério relevante percebido na análise dos dados obtidos foi a polaridade atuante
sobre a construção, uma vez que nenhum dado de polaridade negativa foi capaz de efetivar a
leitura inceptiva ou terminativa da perífrase em estudo. Observemos os exemplos abaixo:
(53) “Como houve um recurso à decisão da ministra, publicada em junho passado, não há ainda
o trânsito em julgado e a pena não começou a ser cumprida.” [PB, JB, noticia, 05/09/12]
(54) “Como eu sou esperto!’, pensou Peter imediatamente, fazendo um gesto para que os
meninos não começassem a aplaudi-lo.” [PB, Peter Pan, pg. 184]
(55) “Nos 31 anos de vizinhança, nunca um pleito do tribunal de Fafe, mal influenciado pela
estátua, saiu para as traseiras à bordoada, tal como os aviões não se puseram a despenhar no
Porto ou os enterros a dançar em Campo de Ourique.” [PE, DN, editorial, 06.09.12]
(56) “...então aí eu pergunto por essas características, você sabe, por exemplo “ah essa pessoa
tem essa escolaridade”, você já “ah ela não terminou de estudar”... ou então ela é dessa, dessa
106
classe social... você sabe que é possível alguém perceber isso só pela linguagem.” [PB, entrevista
DID, concordância, NIG A 2 M]
(57) “Está vendo só? O problema é o seguinte...’, só que não acabou de falar. Olhou bem fundo
nos meus olhos e caiu morto, bem na minha frente. Morreu do coração.” [PB, Passarinho me contou,
pg. 15]
Em todos os enunciados acima, o que se tem é a sinalização da fase inicial (53, 54 e 55)
e da fase final (56 e 57), mas não sua realização, ou seja, a polaridade negativa da predicação
suspende o movimento que caracteriza aspecto inceptivo ou terminativo, pelo menos no
momento da enunciação. Na construção do sentido, temos, em enunciados como os acima, uma
conceptualização que põe em jogo a interrupção ou abandono de um evento, quando, através
da atuação da polaridade negativa sobre a construção de aspecto terminativo, este não acaba ou
termina, e há suspensão do movimento de término; quando, em construções de aspecto
inceptivo, vemos o mesmo: a situação (por começar) fica suspensa. Assim, em termos de
constructos da construção aspectual de fase inicial e final, tais estruturas não estão a seu serviço,
porque acabam marcando outro aspecto (cursivo ou não começado).
Há, ainda, mais mudanças causadas pela polaridade quando se trata dos verbos
semiauxiliares deixar e parar na posição de V1 nas construções em foco, visto que nem a
indicação da fase em suspenso ocorre, predominando, em seu lugar, uma nova significação da
predicação. Quando a atuação da polaridade negativa ocorre com a forma verbal deixar,
podemos verificar:
a) o sentido de continuidade da situação;
(58) “Nunes nunca deixou, ao longo de todo o seu trabalho, de perseguir novos modos de
compor.” [PE, Público, notícia, 02.09.12];
(59) “Wall e Wani viram em 1967 como uma molécula extraída da casca de uma árvore – o
teixo – tinha uma potente atividade anti-tumoral em roedores. Desde então a ciência médica
não deixou de investigar sobre este tema e descobriu mais moléculas anti-tumorais nos teixos
(além do paclitaxel, também o docetaxel) e sabe que ambas são extremamente efetivas em
tratamentos contra o cancro.” [PE, Público, Ciência- Ecosfera- 23/07/2014].
Em ambos os enunciados acima, a coatuação da polaridade negativa com um
circunstante temporal de referência durativa faz com que a leitura da construção seja de aspecto
contínuo, e não terminativo. Em (58), Nunes sempre perseguiu, a vida inteira, novos modos de
107
compor, e, em (59), a ciência, a partir daquele momento (ano de 1967), começou a investigar
este tema e não parou mais.
b) o sentido de valorização/afirmação da situação;
(60) “No discurso que fez da sua primeira viagem à Galiza como monarca, em que referiu à
crise económica e à falta de emprego no país, Felipe VI não deixou de recordar com um
"sentimento de profunda dor" as vítimas da tragédia de Angrois.” [PE, Diário de Notícias, Europa –
25/07/2014];
(61) “Como usuária da Novo Rio, não posso deixar de falar do meu espanto com as
benfeitorias feitas para atender os turistas na Copa.” [PB, O Globo, Cartas de Leitor, Rodoviária 19/07/2014, Página 23].
Em enunciados como (60) e (61), normalmente – embora não sempre – em associação
ao verbo poder, com efeito modalizador, temos a leitura de realização da situação expressa por
V2, e não uma realização qualquer, mas em tom de valorização. É possível, por exemplo,
parafrasear a perífrase por “faço questão de X”. Em (60), Felipe VI fez questão de recordar a
dor das vítimas, sendo solidário; em hipótese alguma poderia esquecer de fazê-lo. Em (61), a
leitora faz questão de registrar o seu espanto positivo com as obras da Copa, principalmente
porque dá a entender que, como está espantada com as benfeitorias, antes deveria estar
acreditando apenas em prejuízos que a Copa nos traria e, por isso, não deve ter poupado críticas
negativas às autoridades. Então, é uma maneira de tentar ser justa e se redimir, registrando não
só as críticas negativas, como também a parte positiva.
c) o sentido de efeito discursivo.
(62) “D: o que você acha então da nossa política?
I: vamos começar pela justiça então porque a justiça não deixa de ser uma enorme questão
política né...” [PB, entrevista DID, concordância, NIG A 3 M];
(63) “Defendiam o fim da unicidade sindical, para que vários grêmios pudessem se constituir
na mesma região e disputar livremente o apoio entre os trabalhadores. Por coerência, eram
contrários a todas as contribuições compulsórias, o imposto sindical entre elas. E, não poderia
deixar de ser, atacava, o “Sistema S”, outra criação getulista, um conjunto de entidades
sustentadas por deduções legais nas folhas de pagamento da indústria, do comércio e atividades
rurais.” [PB, O Globo, Editorial, 05/08/2014, Página 14];
108
(64) “Essas daí já não pode se dizer, uma reunião social, são reuniões, a trabalho, são reuniões,
inerentes ora, a nossa função pública né, então, normalmente, conferências, palestras,
seminários isso aí. Não sei se é essa, essa, colocação, mas não deixa de ser né.” [PB, entrevista
DID, NURC-RJ, n° do inquérito 052].
Essa construção “não deixa de ser” ou “não poderia deixar de ser” parece levar à leitura
de um elemento discursivo de interlocução, com a intencionalidade de partilhar com o ouvinte
a responsabilidade a respeito do argumento levantado, verificando seu posicionamento de modo
a querer induzi-lo a concordar com o locutor. Em (63), por exemplo, poderia ter sido dito “E
tinham que ser mesmo, atacava o ‘Sistema S’...”, mas, quando se afirma “tinham que ser”, não
há como voltar atrás, o argumento soa agressivo e é de inteira responsabilidade do locutor. Em
(64), essa partilha fica ainda mais clara porque o locutor diz “Não sei se é essa a colocação
[correta]”, ou seja, ele está na dúvida, mas quer acreditar que está correto e, para se proteger,
abre mão da construção.
Enquanto isso, a única alteração com a forma verbal parar expressa sentido de
continuidade da situação, reforçando um ritmo constante de realização, como podemos ver
abaixo:
(65) “Apesar do caso da estudante ter invadido a opinião pública indiana e dado visibilidade
mundial a estes tipo de crimes, o número de violações sexuais denunciadas à polícia não parou
de aumentar.” [PE, diário de notícias, Globo – 06/08/2014];
(66) “A epidemia de febre hemorrágica no Oeste de África não pára de se agravar: a 27 de
julho contavam-se mais de 1 300 casos (em 909 deles o vírus do Ébola foi confirmado) e 729
mortes (485 devido ao Ébola), indicava hoje a Organização Mundial da Saúde.” [PE, diário de
notícias, Globo- 31/07/2014];
(67) “A pergunta é: por que tantos calotes e destruições monetárias? A resposta é muito simples:
o gasto público não parou de crescer durante todo o século XX e XXI até agora, e por isso o
aumento da pressão fiscal a níveis de confisco é insuficiente para financiá-lo.” [O Globo, Editorial
- 03/08/2014, Página 18];
(68) “E ela ficava cheia porque dizia que eu não parava de falar...” [NURC-RJ, DID, n° do inquérito
0011].
O interessante a destacar nos casos transcritos acima é que, se o sentido da construção
com a atuação da polaridade negativa é de continuidade, o falante poderia optar por dizer, em
109
(65), que, “o número de violações sexuais continuou aumentando”; em (66), “a epidemia
continuou a se agravar”; em (67), “o gasto público continuou crescendo”; e, em (68), “eu
continuava falando”. No entanto, pragmaticamente, não teríamos sinônimos, já que a negação
da construção terminativa com o semiauxiliar parar enfatiza um ritmo intenso peculiar da
continuidade da situação expressa por V2, o que não ocorre na construção de aspecto contínuo.
Em síntese, a polaridade negativa atuando sobre as construções inceptivas e terminativas
anula o aspecto em estudo, na medida em que ilumina o evento sob outro contorno aspectual.
6.3.4 Traço de animacidade do sujeito
A animacidade é um conceito básico para qualquer sistema cognitivo; e percebê-la
resume-se, em linhas gerais, nesta capacidade de distinção: se algo ao redor está vivo (com
anima, com vida) ou não. É interessante notar que essa percepção pode ser considerada como
um epifenômeno da percepção de movimento (SOUZA, 2015: 25-26).
Além disso, a animacidade na linguagem é uma propriedade inerente aos referentes
nominais, que tem sido apontada como um fator de influência para uma gama de fenômenos
gramaticais estudados em várias línguas. No entanto, o traço de animacidade do sujeito da
construção perifrástica em estudo não se revelou um critério de importância na análise, por não
apresentar qualquer tipo de restrição com nenhuma forma semiauxiliar na posição de V1 ou com
a expressão das próprias fases inicial e final.
Uma única observação interessante a fazer é que, em alguns enunciados do corpus,
foram detectados casos de sujeito inanimado, que, embora gramaticalmente flexionados no
singular, possuíam uma noção pluralizada, responsável por tornar possível a focalização na fase
inicial ou final do evento expresso por V2, que, analisado isoladamente, se classifica como não
faseável. Os enunciados a seguir ilustram o exposto.
(69) “Desde moço era careca. O seu cabelo começou a cair quando sofreu uma gripe muito
forte, chamada gripe asiática.” [PB, Pai sem terno e gravata, pg. 33];
(70) Como sempre acontece nas partidas disputadas no Rio Grande do Sul, a catimba começou
a aparecer em grande quantidade a partir dos 13 minutos. [Jornal Extra, notícia, 09/09/12].
“Cabelo” é normalmente associado a um conjunto de fios de pelo que se localizam na
cabeça. Por mais ralo que ele seja, não será composto por um único fio. Dessa forma, é
perfeitamente possível a construção de aspecto inceptivo em (69), com o V2 cair, já que este,
110
tendo como sujeito o elemento citado acima, deixa de ser um evento instantâneo e não faseável
e passa a ser um evento durativo e gradual.
Da mesma forma, em (70), temos como o V2 da construção de aspecto inceptivo o verbo
aparecer, que expressa evento pontual. No entanto, seu sujeito é o termo “catimba”, termo
popular utilizado no Brasil para designar a prática do chamado antijogo, uma estratégia de
defesa para evitar que o adversário consiga desenvolver seu jogo, que pode se desenvolver
através de recuo para o goleiro, chutes fortes para o campo do adversário, número alto de faltas,
demora excessiva para cobrar faltas ou laterais, entre outros. Dessa forma, é um elemento que
permite a interpretação de aparecer e crescer de forma gradual no jogo, até um momento em
que alguma penalidade acontecerá.
6.3.5 A acionalidade de V2
No que diz respeito às classes aspectuais (também chamadas de acionalidade, natureza
semântica, tipo de estado de coisas ou aspecto lexical) do V2, foi possível notar uma certa
influência destas sobre a escolha por determinada forma verbal semiauxiliar marcadora de
aspecto inceptivo ou terminativo. O quadro abaixo indica quantitativamente a ocorrência de
cada operador aspectual com as diferentes naturezas semânticas de V2.
VERBO
Posição
Estado
Atividade
Accomplishment
Achievement
Processo
Dinamismo
Mudança
23
30
125 + 6*
37
17
17 + 6*
17
14
0
0
1
0
0
0
0
0
0
0
1 + 4*
0
0
4*
0
0
2
19
15
3
3
0
1
1
0
0
8 + 2*
6
0
1 + 2*
0
0
0
0
0
23
1
0
0
1
0
0
0
12
0
0
0
0
0
0
1
0
0
0
0
0
2
0
33
3
1
0
1
0
7
38
34
0
2
1
3
0
(Nº dados)
Começar
(286)
Desandar
(1)
Desatar
(5)
Passar
(44)
Pôr-se
(17)
Acabar
(25)
Terminar
(12)
Cessar
(1)
Parar
(40)
Deixar
(85)
Quadro 5: Distribuição das ocorrências de cada operador aspectual de acordo com a acionalidade de V2. 17
17
Os números que contêm um asterisco na tabela, nas colunas de atividade e processo, referem-se aos mesmos
dados, que possuem os predicadores rir e chorar. Foram colocados em ambas as colunas porque há vezes em
111
Ao examinarmos a tabela acima, constatamos que o verbo começar demonstra
compatibilizar-se com predicações envolvendo todas as classes aspectuais de V2, sendo, porém,
mais expressivamente frequente com predicações de ação (atividade e accomplishment). Essa
realidade confirma o forte traço de auxiliaridade que atua sobre este verbo, já que, quanto mais
auxiliar uma forma, menos (ou até nula) restrições de combinação ela impõe. O que ocorre é
que as construções COMEÇAR A + VINF encaminham, em geral, a leitura de início de um só
evento ou uma só situação, até então inexistente, dividido(a) em fases. Há que se considerar,
no entanto, que, quando o infinitivo desta construção é do tipo pontual/momentâneo
(achievement / dinamismo), tal construção implica a leitura de início de um evento ou uma
situação que se repete, ou seja, o sentido de iteratividade: “Pedro começou a piscar”. Essa
construção deve, então, ser analisada de acordo com o tipo de Vinfinitivo que a constitui. Se
for um verbo que não pressupõe uma etapa final, ou seja, verbos atélicos (posição, estado,
atividade e processo), como acreditar/existir/buzinar/trabalhar/chover, ao se imaginarem fases
para essa ação, é possível afirmar que cada intervalo de tempo conterá o mesmo elemento. Ou
seja, o estado de coisas concretizado em cada intervalo de tempo durante o período que essa
situação/evento se estende vai ser o de acreditar/existir/buzinar/trabalhar/chover. No entanto,
se COMEÇAR A + VINF se liga a um verbo télico (accomplishment, achievement, dinamismo
e decurso), a construção terá uma fase inicial (característica de começar) e uma final esperada
(característica dos verbos télicos), mas não será possível garantir que cada fase corresponde a
elementos idênticos do que foi realizado em cada intervalo de tempo intermediário, visto que
haverá uma progressão de fases/etapas para que o evento alcance sua conclusão:
(71) “Os afiados dentes da corrosão geralmente começam a se formar com a oxidação do
óleo.” [PB, anúncio, VARPORT, E-B-93-Ja-033].
Fato é que construções com COMEÇAR marcam o evento como se estendendo na direção
do futuro, para além do momento inicial; porém, sua continuação é vista apenas como possível
(talvez provável), mas não necessariamente real. Assim, outra observação que podemos
destacar é a de que a configuração semântica do verbo predicador promove diferenças
aspectuais até em construções formalmente idênticas. A depender novamente do caráter télico
ou atélico do predicador que ocorre na construção do tipo COMEÇAR A + VINF, pode-se
representar ou não uma implicação de verdade da situação-base envolvida: “Pedro começou a
que controlamos esses eventos e outras em que esse controle nos foge de alcance. E [controle] é justamente o
único traço que diferencia essas duas classes aspectuais.
112
correr” (significa que ele correu) X “Pedro começou a ler um livro” (não significa que ele o
leu, já que pode ter ficado apenas no início dele). Da mesma forma, temos esse contraste com
enunciados do corpus, como em (44) e em:
(72) “Eu comecei a fazer os meus deveres às oito horas...” [PB, redações escolares, pg. 21].
Enquanto em (44) a interrupção do evento não interfere em sua realização, ou seja, ainda
que haja interrupção, podemos constatar que algumas peças terão sido tiradas do pé-de-meia;
em (72), porém, a interrupção pode significar a não completude da tarefa (ainda que alguns
itens possam ter sido feitos), tendo sido, por consequência, a tarefa de casa não realizada.
Ainda, merece um espaço nessa seção a observação de que são outros elementos no
entorno da construção que tornam possível a compatibilização de operadores aspectuais de fase
inicial e final com verbos com traço de duratividade negativo, ou seja, não faseáveis, que é o
caso de achievement e dinamismo. Abrir ou fechar uma porta, por exemplo, parece-nos
pertencer à classe de achievement, por ser um evento que envolve mudanças (dinamismo),
controle do agente, um ponto final (telicidade) e pontualidade (não duratividade). Examinemos,
portanto, o enunciado abaixo:
(73) “Daí a pouco, um donzel, trazendo na mão uma desconforme chave e as rédeas da valente
mula enfiadas no braço, chegou à porta e começou a abri-la.” [PE, Lendas e Narrativas, pg.158]
O contexto da predicação acima leva-nos a crer que havia um nível extremo de
dificuldade para o donzel abrir a porta, já que a chave era desconforme e matinha os braços
segurando as rédeas da mula, tornando esse evento não mais pontual, e sim durativo.
Enquanto isso, o verbo passar, apesar de também não demonstrar restrições em
compatibilizar-se com as diversas classes acionais, exceto por verbos de processo, aparece mais
frequentemente em conjunto com verbos de não ação (estado e posição). A maior diferença
entre essa forma verbal e a de começar é que, enquanto esta encaminha a leitura do evento
iniciado para o desenvolvimento e fim, aquela sequer prevê a finalização do evento expresso
pelo verbo auxiliado da construção, focalizando apenas seu início e desenvolvimento do tipo
permansivo. Isso é o que mais acontece quando se junta a forma verbal passar com verbos de
não ação. Aqui, assim, observemos abaixo:
(74) Milhares de muçulmanos passaram [inesperadamente] a pertencer a um Estado
dominado por cristãos". [PE, Público, editorial, 29.08.12];
113
(75) A partir de 2012, os bancos passaram a ter de comunicar à administração fiscal todos os
movimentos a crédito ou a débito realizados através dos terminais de pagamento automático
(também conhecidos por POS). [PE, DN, notícia, 05.09.12].
Em (74) o fato de milhares de mulçumanos pertencerem agora a um Estado dominado
por cristãos não parece ser temporário. Essa situação teve início agora e entende-se que, daqui
em diante, será assim. O mesmo acontece em (75), já que a obrigação de comunicar à
administração fiscal todos os movimentos realizados nos POS passa a vigorar a partir de
determinado momento para a posteridade.
No entanto, esses não são os únicos tipos de combinação que essa forma verbal permite,
muito menos de interpretação. A segunda classe aspectual que mais ocorreu no corpus com
passar foram verbos de atividade (eventos durativos e atélicos). No entanto, a diferença aqui
em relação ao explicado acima será que, aqui, estaremos falando de um evento que irá se repetir
por diversas vezes num período de tempo também sem previsão de término, tendo seu início
marcado pela construção inceptiva e, associado a ela, um caráter de iteratividade (em que dentro
de cada repetição, haverá início, meio e fim). Observemos os dados a seguir:
(76) “não lhes interessou muito esse contacto, contactámos muito, sobretudo eu, precisamente
para matar aquele isolamento, e aí resolvi passar a ir com o meu marido para o mato e então
visitei aqueles quimbos...” [PE, entrevista DID, CLUL: Português Fundamental, 0308];
(77) “Experimente-o ... e convença-se da sua superioridade! Passe a barbear-se com o mágico
creme de Barbear Eucalol!” [PB, anuncio, VARPORT, E-B-93-Ja-021].
Em (76), entende-se que a partir daquele dia, ela decidiu que toda vez que o marido fosse
para o mato, ela iria com ele, e parece que isso se repetirá por tempo indeterminado, não parece
ter sido uma decisão temporária. Da mesma forma, em (77), o anúncio quer que os homens
usem o creme Eucalol a cada vez que forem se barbear. O que não podemos perder de vista é
que o caráter de iteratividade não exclui o aspecto inceptivo, já que há que ter um início para a
série de repetições.
Pôr-se foi uma forma com mais restrições de combinações, aparecendo somente com
predicadores de ação do tipo durativo, fossem télicos ou atélicos. E essa realidade parece
confirmar a leitura de que essa forma demonstra, na maioria das vezes (embora nem sempre),
um alto grau de envolvimento do referente sujeito, determinação em realizar determinado
evento. Há dinamismo e um mínimo de duratividade quando se põe a fazer algo (declamar
114
poemas, arrumar a casa ou chorar são alguns dos predicadores dos enunciados do corpus).
Para encerrar a descrição dos operadores inceptivos, desandar e desatar, por aparecerem
em número bem reduzido de dados, acabaram por demonstrar boa compatibilização com poucas
classes acionais, embora isso seja apenas uma observação baseada nos poucos enunciados a que
tivemos acesso. Ao que parece, compatibilizam-se bem com verbos de ação durativos e atélicos,
com ou sem controle do agente. Isso ocorre provavelmente porque ambas as formas
encaminham a leitura de um início abrupto e com velocidade do evento expresso por V2, e,
consequentemente, levam a crer que uma hora ou outra, haverá de cessar pelo cansaço. Ilustrase essa hipótese com os enunciados abaixo:
(78) “De barriga cheia, João e Maria desandaram a contar coisas, falando ao mesmo tempo.
E o rei só ouvia pedaços misturados de cada um.” [PB, Passarinho me contou, pg. 26];
(79) “Alguém dormiu a minha cama... e ainda está lá!, murmurou o ursinho, e desatou a chorar
outra vez.” [PB, Cachinhos de ouro e os três ursinhos, pg. 9];
(80) “Quando Firula começava a falar, o que não acontecia com muita frequência, ele sempre
desatava a tagarelar de um jeito meio bobo.” [PB, Peter Pan, pg. 139].
Já os semiauxiliares marcadores de fase final parecem apresentar-se em uma
configuração da construção aspectual com preenchimento mais prototípico do slot de V2, à
medida que a maioria dos enunciados detectados é composta por verbos de atividade ou
accomplishment. É claro que que nenhuma combinação está de fato impedida de ocorrer, já que
o significado se constrói dinamicamente (embora nem sempre todas as possibilidades se
realizem por uma questão de relação cognitiva), mas é possível enxergar construções
tipicamente preenchidas de uma ou outra maneira.
A começar por acabar, vemos que, quase na totalidade dos casos em que aparece, se
combina com verbos do tipo accomplishment, que são eventos durativos e télicos, ou seja,
preveem um final e, portanto, nada mais natural que alcançá-lo. No entanto, há uma ocorrência
com um verbo do tipo achievement (pontual e télico) e outro com decurso (durativo, télico e
sem controle do sujeito). Vamos entendê-las:
(81) “Pois o menino marrom se viu sozinho no meio da rua, antes que o dia acabasse de
amanhecer.” [PB, O menino marrom, pg. 23];
(82) “O autor do atentado, o turco Mohamed Ali Agca, estava a cinco metros do jipe em que
João Paulo percorria a praça. Os tiros foram disparados logo após a primeira volta, quando o
115
Papa acabava de apertar as mãos de algumas das 30 mil pessoas que estavam na praça. [PB,
noticia, VARPORT, E-B-94-Jn-012].
O que ocorre em (81) é perfeitamente comum, pois é o mesmo dos 23 enunciados com
eventos do tipo accomplishment, sendo a única diferença o traço de controle do sujeito, que,
nesse caso, é negativo porque temos um sujeito inanimado, como “dia”. Já em (82), o
predicador apertar expressa de fato uma ação pontual, no entanto, a predicação em questão
possui um complemento verbal flexionado no plural, “as mãos de algumas das 30 mil
pessoas...”. Ora, o que se tem aqui, então, é o término de uma série de apertos de mão, é a fase
final de um evento iterativo.
Ao que parece, não só acabar, mas também terminar, (normalmente) não se
compatibilizam com verbos de estado. Ele *?terminou/acabou de ser feliz – enunciado
estranho. Talvez porque esses verbos carreguem a ideia de fim/término/conclusão, e, por isso,
normalmente formem sentenças com verbos do tipo accomplishment (que são verbos de
atividade e télicos). Assim acontece com terminar, já que, dos doze enunciados com
construções terminativas com essa forma verbal encontrados no corpus, todos eles possuem V2
do tipo accomplishment.
As formas verbais cessar e parar, ao que parece, têm comportamento semelhante devido
à similaridade semântica de interrupção de um evento que apresentam. Ainda que tenha sido
encontrado apenas um dado com cessar, esse dado foi acompanhado de um predicador do tipo
atividade (tocar), mesma classe aspectual que representa a maioria dos verbos auxiliados da
construção terminativa com parar. Se a leitura é de interrupção do evento, um requisito é que
este seja durativo, ou seja, esteja em andamento para ser interrompido, portanto, só deveriam
se compatibilizar com essas formas verbais aqueles que são faseáveis. Não é o que acontece em
apenas dois casos, e, por isso, vamos analisá-los.
(83) “Muitas vezes, Gancho passava a manga do gibão na testa, mas não havia como fazer o
suor parar de brotar.” [PB, Peter Pan, pg. 175];
(84) “D: já teve algum pesadelo com os seus filhos, já aconteceu de alguma vez os seus filhos
te acordarem durante a noite com medo por causa de um pesadelo?
L: já, só o menorzinho ... agora que ele parou de de acordar mas antes, até ano passado mesmo
ele acordava chorando.” [PB, entrevista DID, concordância, NIG A 1 M].
Mais uma vez, a compatibilidade de eventos pontuais (seja de achievement – em (84) –
ou dinamismo – em (83)) com semiauxiliares marcadores de fase só é possível pela atuação de
116
outros elementos no entorno da construção terminativa. Ambos os casos retratados acima estão
sendo expressos com associação da leitura de caráter iterativo dos eventos “brotar” e
“acordar”. Em (83), isso acontece devido à natureza do sujeito, “suor”, que não brota de uma
vez, mas gradualmente, e de vários poros do corpo. Já em (84), o aspecto iterativo deve-se à
cena construída – acordar no meio da madrugada, assustado – em coatuação com o adjunto
adverbial até o ano passado, que denota a frequência do evento no passado.
Por fim, o operador deixar denota não a conclusão ou interrupção de um evento, mas o
abandono de um estado ou atividade e consequente passagem de um estado a outro. Logo,
parece se compatibilizar melhor (porque mais vezes) com eventos de não ação (estado e
posição), e ainda, eventos de ação durativos e atélicos (ou seja, atividade e processo). No
entanto, há enunciados em que o verbo auxiliado por deixar, na construção terminativa, denota
achievement e dinamismo também. Tal fato demonstra que essa forma verbal é a que se
compatibiliza com mais tipos de V2, e isso está diretamente ligado ao fato de ser a forma verbal
terminativa com maior nível de auxiliaridade entre as formas encontradas, ou seja, é mais alto
o nível de perda semântica e, consequente maior a facilidade de combinação com os diversos
tipos de predicadores.
Mostrou-se, então, que os operadores aspectuais não se atualizam aleatoriamente nas
construções perifrásticas em estudo, visto que as combinações detectadas apresentam
peculiaridades – em maior ou menor grau – de acordo com a classe aspectual de V2, de forma
a exibir preenchimentos mais prototípicos de cada microconstrução detectada no corpus.
6.4 A INFLUÊNCIA DE TRAÇOS DO V1
6.4.1 Traço de cinese e a face cognitiva
O exame do significado dos verbos detectados no corpus em posição de V1 da
construção perifrástica de aspecto inceptivo e terminativo, em seu sentido lexical, possibilitou
concluir que todas as formas verbais em uso pressupõem um traço de cinese.
Das formas que possibilitam a concretização da construção de aspecto inceptivo,
começar expressa a ideia de colocar-se em movimento, sair da inércia; passar expressa, por sua
própria raiz, movimento de passagem; desatar indica movimento em favor de libertar-se de
algo e, para isso, pressupõe velocidade; desandar refere-se ao movimento de andar em uma
direção inesperada, sentido contrário ao previsto; e pôr-se significa colocar-se em uma
determinada posição ou condição.
117
Já, entre as formas que viabilizam a realização da construção de aspecto terminativo,
temos acabar e terminar, que expressam o movimento de chegada ao ponto final; parar e
cessar, que indicam interrupção de um movimento em duração; e deixar, que se refere ao
movimento de soltar algo que se prende, distanciar-se disso.
Entende-se, assim, que esse repertório de mesoconstruções a serviço da marcação de
aspecto inceptivo e terminativo que está à disposição dos falantes é a fonte para que estes
compreendam e/ou produzam estruturas linguísticas novas ou que fujam a expectativas forjadas
com base na repetição, nas experiências advindas das situações comunicativas. Procurando-se
examinar essa possibilidade com base na concepção de que as construções têm um significado
próprio e independente da forma verbal que as integre (em V1) e mediante a testagem, nessas
construções, da integração de outros verbos que, até então, não aparecem no levantamento de
dados, reconheceram-se (via ferramenta de pesquisa na internet) possibilidades de
microconstruções, como as abaixo descritas.
Para a marcação de inceptividade, temos:
• botar-se a Vinf, como em “ Garantem assim os ditos “marinhos” um vigia procurador na
ABL, para o improvável caso de algum membro erguer-se do estado semicomatoso e
botar-se
a
elogiar
o
Lula
&
Cia.”,
dado
encontrado
em
[https://tiacarmela.wordpress.com/2011/06/16/figurinhas-ser-udn-e-terceiro-pacotinho/];
• colocar-se a Vinf, como em “Porque nunca obteve sucesso naquilo que era convencional,
colocou-se a tentar fazer o impossível - e conseguiu.”, dado encontrado em
[http://pensador.uol.com.br/frases_de_impacto/7/];
• deslanchar a Vinf, como em “A minha [filha] deslanchou a falar (formando frases) por
volta dos 3 anos.”, dado encontrado em [http://www.e-familynet.com/phpbb/3-anos-e-meio-falatudo-portanto-nao-forma-frases-alguem-t581111.html];
• disparar a Vinf, como em “ Quando perguntado sobre suas qualidades e defeitos, o
candidato
disparou
a
falar
adjetivos
positivos.”,
dado
encontrado
em
[http://www.medplan.com.br/noticias/onze-frases-inusitadas-ditas-em-entrevistas-de-emprego,37955];
• estrear a Vinf, como em “Claro que nem todos se lembram, eu lembro, lembro-me
perfeitamente de quando te estreaste a jogar contra o PSG, e no final da época já tinhas
um lugar garantido no SLB.”, dado encontrado em [http://ficaslbdavidluiz.blogspot.com.br/];
• (a)garrar a Vinf, como em “Eu cumpria uma disenteria, garrava a ter nojo de mim no
meio dos outros.”, dado encontrado no Livro Grande Sertão Veredas, de João Guimarães Rosa;
• iniciar a Vinf, como em “Acendeu o candeeiro, fez suas preces e iniciou a ler a Escritura,
118
mas
um
vento
forte
apagou
o
candeeiro.”,
dado
encontrado
em
[http://www.belasmensagens.com.br/mensagens-deus/page/2];
• lançar-se a Vinf, como em "O maravilhoso da guerra é que cada chefe de assassinos faz
abençoar suas bandeiras e invoca solenemente a Deus antes de lançar-se a exterminar
a seu próximo.", dado encontrado em [http://www.rivalcir.com.br/frases/voltaire.html];
• mover-se a Vinf, como em “No entanto, uma situação sobreveio, e como um alerta moveuse
a
falar
sobre
a
defesa
da
fé.”,
dado
encontrado
em
[http://www.materiasdeteologia.com/2014/03/a-batalha-pela-fe-por-morgana-santos.html];
• principiar a Vinf, como em “Foi então que principiou a sorrir, como um anjo, a sua
inconstante namorada, mas sempre fiel padroeira -a poesia.”, dado encontrado em
[http://www1.folha.uol.com.br/revista/rf2501200402.htm];
• romper a Vinf, como em “Com indignação e cólera crescentes em sua voz, ele rompeu a
fazer
um
discurso
feroz
sobre
o
mundo
(...)”,
dado
encontrado
em
[http://issuu.com/familiadossantos/docs/a_voz_do_fogo_-_alan_moore/211]; e
•
sair a Vinf, como em “ Vossa majestade, os cavalos já estão prontos para sair a cavalgar.”,
dado encontrado em [http://www.tuportugues.com/gramatica/pronombres/personales/cortesia/frases].
E para o realce de aspecto terminativo, embora em menor quantidade, temos:
• desistir de Vinf, como em “Estar sempre insatisfeito, na verdade, é o que faz a gente nunca
desistir de seguir em frente e quem sabe um dia se encontrar nesse mundo.”, dado
encontrado em [http://www.netobarbosa.com/frases-de-desistir];
• findar de Vinf, como em “Como qualquer atitude / também passa a juventude / que nem
findou de chegar”, dado encontrado na canção Terceiro amor, de Francis Hime; e
• largar de Vinf, como em “Larga de ser chata e pare de lamentar da vida.”, dado
encontrado em [https://twitter.com/viciaquotes].
Em prol de explicar a natureza do uso dessas formas verbais por usuários da língua para
compor as construções em estudo nesta dissertação, é preciso recorrer à face cognitiva da
linguagem, na perspectiva da base corporificada que ela possui. Uma importante questão,
discutida por Gibbs e Matlock (2008), pauta-se na possibilidade de as pessoas simularem
movimento na compreensão de fragmentos de linguagem nos quais um movimento físico não
se faz presente – e.g. “pegar um ar”, “comprar uma ideia”, “expulsar o mau humor”. Nesses
119
casos, o movimento é metafórico e, ainda assim, é possível identificar simulações mentais de
movimento corporal na interpretação desses conceitos.
De acordo com os autores, as simulações metafóricas não são abstratas, mas construídas
em termos de como seria a ação corporal na qual se baseiam; ou seja, as pessoas imaginam o
movimento de seus corpos de formas específicas para que assim se realize o entendimento
metafórico dos conceitos abstratos.
De maneira complementar, estudos em Gramática das Construções (GOLDBERG,
1995; 2006) sugerem que as escolhas lexicais – e as categorias cognitivas nelas envolvidas –
para a composição de uma construção não ocorrem de forma arbitrária. Pelo contrário, são
motivadas por relações subjacentes à linguagem. Assim, uma vez que as categorias cognitivas
subjacentes às escolhas lexicais são ancoradas na experiência humana no mundo, é de se esperar
que sejam realizadas escolhas lexicais para compor as construções perifrásticas de aspecto
inceptivo e terminativo com base em relações de analogia à metáfora de movimento já existente
nas formas prototípicas, gerando, deste modo, novos constructos com os verbos não canônicos
listados acima na posição de V1.
A análise do significado mostra que os verbos não canônicos, aqueles não detectados no
corpus, pouco frequentes em razão da não mobilização (ativa) e, então, não atualização na
memória do falante como instrumento/recurso de expressão do aspecto perifrástico em estudo,
pressupõem, em seu sentido lexical, a noção de movimento também. Isso nos leva a crer que,
embora a sua utilização não tenha alta frequência, a possibilidade de acionar esses verbos, de
fato, não é aleatória. Ela é motivada na medida em que os verbos que ocupam a posição de
V1(não)fin têm, em seu âmago, um quesito comum: a categoria de movimento que perpassa seu
sentido.
Além disso, a preposição de ocorrência típica na construção do aspecto inceptivo é a,
que denota, semanticamente, deslocamento em direção a algum lugar. Essa informação reitera
a hipótese de que a escolha do falante não é arbitrária, sendo reforçada pela preposição a. Ela
se une à noção de marcação de movimento do V1 para reforçar a noção do aspecto inceptivo.
Da mesma forma, a preposição típica na construção do aspecto terminativo é de, que pode
indicar o movimento de origem, como “Eu vim de Portugal”. Assim, enunciados que atualizam
a construção perifrástica de aspecto terminativo com de reforçam a noção do que vinha sendo
feito e chegou ao fim.
Assim, há, no Português, verbos que ocorrem com frequência e regularidade nessas
construções e também verbos que, embora sejam raramente empregados, podem ter sua
significação lexical compatibilizada à da construção e, então, prestarem-se, à semelhança dos
120
verbos semiauxiliares mais mobilizados para tanto, à instanciação desta num constructo.
6.4.2. Flexão de tempo e modo
Ao longo desta análise, ao observarmos e descrevermos as microconstruções, pudemos
perceber que há dados de todas elas com V1 preenchido por verbos em variados modos e
tempos, embora a maioria esteja no presente ou pretérito perfeito e imperfeito do indicativo.
Por isso, é importante verificar se essa informação tem alguma implicação na expressão do
aspecto inceptivo ou terminativo.
Através de um olhar atento sobre os enunciados que compõem o corpus, foi possível notar
que algumas formas em que V1 aparece apenas preveem a realização da fase em jogo (seja a
inicial ou final) do evento descrito por V2, que permanece suspenso, de modo não concreto.
Assim, podemos dizer que há restrições quanto ao tempo e modo verbal de V1 para o
preenchimento da construção de aspecto inceptivo e terminativo, já que algumas formas não
são garantia de realização das fases em estudo.
No modo indicativo, a única restrição a ser feita tem relação com a flexão no tempo futuro
do pretérito, já que este expressa uma ação futura que depende de uma condição para acontecer,
ou seja, sua realização é incerta. Observemos os exemplos que se seguem:
(85) “Na União Europeia, Portugal passaria a ser o único país com uma total ausência de
serviço público de rádio e de televisão.” [PE, Diário de Notícias, editorial, 01.09.12];
(86) “[Ladário] entendia que indo pra lá, supunha ele que poderia nascer ali um centro de
resistência que irradiasse para fracionamento dos outros exércitos, e , portanto... aquilo que
parecia consumado... deixaria de ser...quando se consuma realmente, eu diria
institucionalmente ...o golpe...” [PB, entrevista, Roda Viva -almino-afonso-31-03-2014]
Outra restrição que deve ser feita diz respeito às formas que aparecem no modo
subjuntivo, em qualquer um dos três tempos. Isso ocorre porque este modo expressa hipótese,
possibilidade, desejo, mas não realização. Vejamos alguns enunciados que ilustram tal efeito:
(87) “A expectativa é que no segundo semestre comece a melhorar, e vejamos um resultado
pleno só no ano que vem”, acredita.” [JB, noticia, 08/09/12];
(88) “Questionada pela AFP em Bruxelas, a Agência Europeia da Segurança Aérea fez saber
que vai recomendar às companhias europeias, o mais tardar a partir de quarta-feira, que deixem
de voar para Telavive. [PE, publico, notícia Mundo- 22/07/2014];
121
(89) “Inicialmente a adolescente pediu que se parasse de falar sobre o assunto e justificou ter
tirado a fotografia a pensar no seu pai que estudou com ela a época do Holocausto durante
vários anos.” [PE, diário de notícias, Europa - 22/07/2014];
(90) “Bom, a pior coisa do Rio é o tráfego. E estão procurando arrumar, procurando arrumar
como, como é possível, né? Eu tenho a impressão de que quando começar a funcionar o metrô
vai melhorar muito o tráfego, se bem que eu não faria o metrô como eles estão fazendo.” [NURCRJ, DID, n° do inquérito 0255].
Além disso, há também uma última restrição com o modo imperativo afirmativo na
expressão do aspecto inceptivo e terminativo. O que ocorre é que o imperativo indica uma
ordem ou um pedido, mas não garante que estes serão atendidos. Vejamos:
(91) “Esporte e educação caminham juntos. Deem Educação de fato ao povo que futuros atletas
e políticos certamente vão surgir usando como ferramentas dignidade e patriotismo. Parem de
alimentar o complexo de vira-latas.” [PB, O Globo, Cartas de Leitor, 13/07/2014, Página 11];
(92) “Mas o melhor da história vem agora: no dia 22 de abril do ano 2000, o maior título de
capitalização do País vai sortear R$ 500 mil. Então, faça o seu e comece a viajar nos seus
planos, porque, com um prêmio desses, dá até para você proclamar sua independência.” [PB,
anúncio, VARPORT, E-B-94-Ja-013].
Diante da descrição da análise dos dados mediante os parâmetros estabelecidos, foi
possível fazer algumas generalizações a partir dos aspectos examinados que mais importam
para a configuração de rede de construções, etapa que compõe a próxima seção.
Pudemos constatar que há diferentes mesoconstruções disponíveis na língua portuguesa
relacionadas à construção perifrástica de aspecto inceptivo e terminativo, já que se podem
depreender diferentes nuances de sentido dentro da mesma construção aspectual fasal. Essas
mesoconstruções encontram-se em níveis distintos de gramaticalização. Além de as formas
verbais aspectuais responderem de forma não idêntica aos testes/critérios de auxiliaridade,
embora grande parte tenha alto grau de esquematicidade – já que seus slots podem ser
preenchidos por diferentes formas verbais para alcançar um mesmo efeito de sentido – e
produtividade token e type, ainda é possível considerá-las composicionais, à medida que só
ocupam o slot de V1 verbos que, de alguma maneira (pela motivação conceptual da gramática),
indicam, através de seu lexema, o significado de movimento que se quer expressar com a
construção.
122
Assim, constatamos também a emergência de novas microconstruções que atualizam as
mesoconstruções já identificadas para expressão do aspecto fasal em estudo, através do tempo
e da interação entre os falantes da língua. É dos usuários a grande parte da responsabilidade na
manutenção e rotinização de novas instanciações, o que acontece ao longo do tempo. Assim,
pode ser (ou não) que, daqui a algum tempo, as formas verbais não canônicas que encontramos,
via google, ocupando a posição de V1 nas construções em estudo passem a ser mais frequentes
e automatizadas.
No capítulo a seguir, propomos uma representação da configuração da rede da
construção perifrástica aspectual das fases inicial e final, abrangendo todas as possibilidades de
uso das microconstruções detectadas, seja com nuances a serviço do aspecto em foco ou
relacionada a construções perifrásticas vinculadas a outro(s) (sub)tipos de pareamento forma e
função.
123
7 UMA PROPOSTA DE REPRESENTAÇÃO DA REDE DA CONSTRUÇÃO
PERIFRÁSTICA ASPECTUAL DE FASES
A partir da apreciação dos resultados de análise expostos na seção anterior à luz de
orientações do modelo de gramática cognitiva das construções (GOLDBERG, 1995, 2006),
propomos, aqui, que uma descrição pertinente das construções perifrásticas de aspecto
inceptivo e terminativo deve revelar a rede de relações entre elas e suas instanciações de uso:
relações por laços de herança (polissêmicos ou metafóricos).
Formulamos, assim, a hipótese de que os exemplos de perífrases verbais de fase inicial e
fase final analisados até aqui são constructos de microconstruções que integram a rede
polissêmica de aspecto fasal perifrástico, os quais, se supõe, se organizem como descrito a
seguir.
Em Português, conta-se com um esquema de auxiliares que inclui construções modais,
aspectuais, temporais, dentre outras. Nessa cadeia, incluem-se as mesoconstruções de aspecto
perifrástico inceptivo e terminativo, que se organizam em função de dois verbos (V1 e V2) e para
cujo significado colaboram formas verbais (V1) que, em alguma medida, põem em perspectiva
alguma fase de um evento ou estado de coisas (seu limite inicial ou seu limite final) e
predicadores simples ou complexos (V2) 18 que representam o estado de coisas, que se
compatibiliza (ou por si só, ou em razão da atuação de outros elementos em seu entorno) com
a noção de fase da perífrase/microconstrução – noção que, embora definida principalmente por
V1, também o é pela preposição (haja vista perífrases como “largar a V2” e “largar de V2”).
Relacionam-se, então, a esta representação esquemática mais geral: [V1 semiauxiliar aspectual (não)finito
+ preposiçãoa/de + V2
predicador (simples ou composto) no infinitivo]
– uma predicação sob a semântica de
aspecto de fase (inicial/terminativo).
Fato é que, ligadas a essas últimas, existem outras mesoconstruções de nível mais
específico que constituem pareamentos nos quais se iluminam diferentes nuances semânticas
da fase em jogo. Essas, por sua vez, são instanciadas por diversas microconstruções, nas quais
já há o preenchimento de V1 por forma verbal específica. Assim, constitui-se a rede de aspecto
perifrástico, a qual está representada no diagrama a seguir.
18
Vale lembrar que V2 pode ser uma forma verbal simples ou uma forma verbal complexa; neste caso, tem o
potencial de ser constituída por construção gramatical formada por verbo (semi)auxiliar (temporal, modal,
aspectual), suporte, relacional, por exemplo, ou até construção lexical (idiomática).
124
Diagrama 1: Representação da Rede de Construção Perifrástica de aspecto inceptivo e terminativo.
125
Entendemos que construções são pareamentos forma-sentido/função e que sua
representação deve abranger ambas as áreas. No entanto, esse entendimento não aparece
representado no diagrama acima simplesmente por uma questão de espaço. Assim, decidimos
por priorizar o significado/funcionamento das construções na representação em rede, para, em
seguida, aqui no texto, detalhar sua forma. Antes de darmos prosseguimento ao detalhamento,
é importante esclarecer as escolhas feitas na representação acima. Primeiramente, optamos por
representar as construções em círculos, porque acreditamos que as relações estabelecidas entre
elas partilham muitos elementos (de forma ou sentido), havendo, desse modo, uma área de
interseção entre os círculos para representar o compartilhamento de informações e uma área
sem interseção para representar as particularidades instanciadas por uma ou outra
mesoconstrução. A cor azul é a representante da construção de aspecto perifrástico (usada para,
inclusive, outros que não o objeto de estudo desta dissertação, como o aspecto iterativo e
cursivo), e o azul escuro em contorno mais grosso representa apenas a expressão do aspecto de
fases inceptiva e terminativa aqui em estudo. Já a cor vermelha e a linha pontilhada ilustram
construções que, embora relacionadas, não expressam aspecto. É também válido justificar que,
por uma questão de espaço, o termo mesoconstrução está representado por “meso”, no nível em
que se descrevem padrões construcionais intermediários, entre os níveis mais esquemáticos e
abstratos das mesoconstruções de aspecto inceptivo e terminativo e os níveis das construções
individuais (microconstruções) que já contêm V1 especificado.
Em função dos diferentes verbos semiauxiliares que as instanciam, as mesoconstruções
em estudo sinalizam diferentes nuances no eixo objetificação-subjetificação. Assim, a partir do
nosso corpus e da amostra complementar de enunciados com verbos não canônicos coletados
via ferramenta de pesquisa na internet, traçamos um conjunto de cinco mesoconstruções
vinculadas à mesoconstrução de aspecto inceptivo e três mesoconstruções relacionadas à
mesoconstrução de aspecto terminativo, que estão dispostas, da esquerda para direita, de modo
a simbolizar a localização dessas oito mesoconstruções intermediárias em uma linha do tempo,
que se estende de um ponto de início/à esquerda até um ponto final/à direita no intervalo de
desenvolvimento de um estado de coisas. Começaremos a detalhá-las a seguir.
7.1 AS MESOCONSTRUÇÕES DE ASPECTO INCEPTIVO
7.1.1 Mesoconstrução de início com foco na permansividade da mudança realizada
Essa mesoconstrução realça o processo de mudança (e, por isso, ilumina o desdobramento
de incoação mencionado por Castilho, 1968) que implica o início de um estado de coisas e se
126
estabelece como a primeira numa ordem de sucessão relacionada à escala de tempo (interno de
um evento), uma vez que seu significado põe em jogo a passagem do momento de pré-início ao
momento de realização efetivamente do estado de coisas que se focaliza:
Figura 7: Linha do tempo (interno) de um evento ou situação.
A forma em jogo aqui é [V1
semiauxiliar aspectual fase inicial(não)fin
+ a + V2
infinitivo],
mas o
preenchimento do slot de V1 limita-se ao semiauxiliar passar, que é o único capaz de atualizar
essa nuance. Assim, a única microconstrução capaz de instanciar essa mesoconstrução é
[passar + a + V2 infinitivo].
7.1.2 Mesoconstrução de início com foco no envolvimento do referente-sujeito
Diretamente ligada à mesoconstrução em 7.1.1, esta, além de focalizar o processo de
mudança (e, por isso, possui interseção com a primeira), adiciona à perspectivização da
passagem a um evento ou situação uma espécie de presença maior da participação e
envolvimento do referente-sujeito no desenrolar do estado de coisas, realçando a diferença do
estado em que este se coloca comparativamente ao seu estado anterior. A forma aqui em questão
é [V1 semiauxiliar aspectual fase inicial(não)fin + a + V2 infinitivo], e o preenchimento do slot de V1 fica a cargo
dos operadores pôr-se, colocar-se e botar-se. Portanto aqui, já há maior diversidade de
microconstruções para instanciar essa mesoconstrução, a saber: [pôr-se + a + V2 infinitivo],
[colocar-se + a + V2 infinitivo] e [botar-se + a + V2 infinitivo]. Dessas três, a microconstrução
que mais constructos revelou nos textos pesquisados, especialmente nos produzidos na
modalidade escrita, é [pôr-se + a + V2 infinitivo].
7.1.3 Mesoconstrução de início com foco neste ponto e expectativa de desenvolvimento
Essa mesoconstrução parece associada a uma perspectiva mais referencial/objetiva de
representação do estado de coisas a partir de seu início, focalizando precisamente este ponto de
referência e estabelecendo uma expectativa de seu desenvolvimento (e até conclusão) do evento
127
ou situação expressos por V2. Sua forma representa-se por [V1 semiauxiliar aspectual fase inicial + a + V2
infinitivo],
em que o slot de V1 pode ser preenchido pelos verbos começar, iniciar, estrear,
principiar e mover-se, já que todos estes iluminam a nuance de momentaneidade do ponto de
referência inicial do estado de coisas representando por V2. Assim sendo, o repertório de
microconstruções que a instanciam é bem maior: [começar + a + V2 infinitivo], [iniciar + a + V2
infinitivo],
[estrear + a + V2 infinitivo], [principiar + a + V2 infinitivo] e [mover-se + a + V2 infinitivo]. E,
dessas, é [começar + a + V2 infinitivo] a microconstrução que mais instâncias de uso revela no
corpus, nas duas variedades nacionais e nas duas modalidades expressivas. A produtividade
que tem reflete sua convencionalização.
7.1.4 Mesoconstrução de início com foco na velocidade e intensidade da mudança
A mesoconstrução aqui descrita é um tipo de especificidade da exposta em 7.1.3 – e, por
isso, há interseção entre elas –, porque também focaliza a momentaneidade do ponto inicial e o
desenrolar do estado de coisas representando por V2. No entanto, a particularidade aqui presente
é o modo como se inicia este evento ou situação, que é veloz, e como se desenvolve o mesmo,
de maneira intensa. Tal nuance é somente alcançada se o slot de V1 for preenchido por verbos
como desatar, disparar, deslanchar, romper, lançar-se e sair. Cabe dizer aqui que, dentre esses
operadores, há uma gradação semântica de velocidade e intensidade, que corresponde à
ordenação/listagem deles aqui do maior grau (desatar) para o menor (sair). Desse modo,
também é extenso o repertório de microconstruções que instanciam essa mesoconstrução:
[desatar + a + V2 infinitivo], [disparar + a + V2 infinitivo], [deslanchar + a + V2 infinitivo], [romper +
a + V2 infinitivo], [lançar-se + a + V2 infinitivo] e [sair + a + V2 infinitivo].
7.1.5 Mesoconstrução de início com foco na contra-expectativa da mudança
Para concluir o mapeamento das mesoconstruções de aspecto inceptivo, temos esta que
é outra especificidade da descrita em 7.1.3, também representada com interseção, já que, além
de iluminar o ponto de referência inicial do evento ou situação e prever seu desenvolvimento,
confere proeminência ao modo de realização do estado de coisas em questão – e, por isso,
encontra-se bem próxima da mesoconstrução em 7.1.4, que também revela particularidade de
modo, mas não possui interseção, visto que tratam de maneiras distintas do iniciar do evento –
que é de contra-expectativa, ou seja, algo que não era esperado, contendo, portanto, um
contorno negativo. A forma verbal que permite à mesoconstrução iluminar esse sentido ao
preencher o slot de V1 é desandar, devido ao significado primário associado ao seu lexema.
128
Assim, também como acontece com a mesoconstrução descrita em 7.1.1, parece-nos haver
somente uma microconstrução capaz de instanciá-la: [desandar + a + V2 infinitivo].
7.2 AS MESOCONSTRUÇÕES DE ASPECTO TERMINATIVO
7.2.1 Mesoconstrução de fim com foco na interrupção
Essa mesoconstrução realça o ponto final de um estado de coisas a partir do seu não
completamento, ou seja, da sua interrupção. Dessa forma, ilumina também a possibilidade de
retomada do evento ou situação em questão. A forma em jogo aqui é [V1 semiauxiliar aspectual fase
final(não)fin
+ de + V2 infinitivo], e o preenchimento do slot de V1 deve ser feito pelos verbos parar
e cessar para que o sentido em vigor se concretize, gerando, assim, duas microconstruções
ligadas a essa mesoconstrução: [parar + de + V2 infinitivo] e [cessar + de + V2 infinitivo]. E, dessas,
[parar + de + V2 infinitivo] é a microconstrução que mais instâncias de uso revela no corpus, nas
duas variedades nacionais e nas duas modalidades expressivas. A produtividade que tem reflete
sua convencionalização.
7.2.2 Mesoconstrução de fim com foco no encerramento
A mesoconstrução em questão aqui parece associada a uma perspectiva mais objetiva
de representação do estado de coisas, focalizando precisamente o ponto de referência de seu
término, ou seja, de algo que possuía um fim esperado. Para atualizar tal sentido, o slot de V1
da mesma forma em 7.2.1 deve ser preenchido apenas por acabar e terminar, que, por forte
convergência do significado de seus lexemas, permitem essa leitura. Assim, também são duas
as microconstruções capazes de instanciar essa mesoconstrução: [acabar + de + V2
[terminar + de + V2
infinitivo].
infinitivo]
e
Ambas são frequentemente instanciadas no português, embora
haja, no corpus, mais ocorrências (tokens) da primeira.
7.2.3 Mesoconstrução de fim com foco na mudança
Por fim, em correlação à mesoconstrução descrita em 7.1.1, temos esta aqui, que realça
o processo de mudança ou abandono que implica o fim de um estado de coisas e se estabelece
como a última numa ordem de sucessão relacionada à categoria tempo, uma vez que seu
significado põe em jogo a passagem do momento de não-acabado ao momento posterior ao
término efetivo do estado de coisas que se focaliza. A forma em jogo aqui é [V1 semiauxiliar aspectual
fase final(não)fin
+ de + V2 infinitivo], mas o preenchimento do slot de V1 limita-se aos semiauxiliares
129
deixar e largar, únicos capazes de atualizar essa nuance, gerando, então, novamente apenas
duas microconstruções instanciadoras desse padrão construcional: [deixar + de + V2 infinitivo] e
[largar + de + V2 infinitivo].
7.3 OUTROS PADRÕES CONSTRUCIONAIS
7.3.1 Padrão construcional de aspecto iterativo
É preciso descrever a relação de proximidade que muitos enunciados com construção
perifrástica aspectual inceptiva do nosso corpus tiveram com a construção iterativa, mediante
a combinação de outros elementos no entorno da construção ou da compatibilização de um
determinado tipo de classe acional com um operador aspectual inceptivo. Devemos dizer que
todos esses dados nessas construções continuam expressando aspecto inceptivo, mas estão em
situação de fronteira (e não em interseção) com a mesoconstrução de aspecto iterativo, visto
que apontam também para o início de uma sequência de eventos, ou seja, não deixam de
expressar o início. Um exemplo que ilustra essa proximidade é o visto em (49), em que há uma
leitura iterativa e habitual do evento “fazer compras” (uma vez por mês). No entanto, como foi
dito no capítulo 6, a leitura inceptiva permanece presente, já que foi naquele momento que a
mãe passou a realizar esse evento nesse ritmo determinado pelo adjunto.
7.3.2 Padrão construcional de início de um macroevento
Nem toda instanciação da microconstrução [começar + prep. + V2] estará expressando
aspecto inceptivo. Há um outro padrão construcional que está relacionado à mesoconstrução
em 7.1.3, não só pela similaridade (e não igualdade) da forma e do sentido. Trata-se das
microconstruções [começar por + V2 infinitivo] ou [começar + V2 gerúndio], que põem em jogo não
o aspecto inceptivo, mas o início de um macroevento, conforme foi detalhado na seção 6.1.1,
como por exemplo, em “Eu comecei limpando a cozinha e depois fui para o banheiro”. O que
está em questão aqui não é o ponto inicial da limpeza da cozinha, mas o início da faxina que
ocorreu na casa inteira, composta por uma sequência de microeventos (limpar a cozinha, limpar
o banheiro e, provavelmente, outras partes da casa também – que, por sua vez, também têm
seus microeventos: o piso, o fogão, a louça, etc.). Por isso, essa microconstrução está
relacionada também à construção transitiva com começar sendo verbo lexical.
7.3.3 Padrão construcional de fim de um macroevento
130
Nem toda instanciação da microconstrução [acabar + de + V2 infinitivo] estará expressando
aspecto terminativo. Há duas outras construções que estão relacionadas a esta em 7.2.2 pela
similaridade da forma. A primeira, da qual tratamos nesta seção, é formada por acabar por +
Vinfinitivo ou acabar + gerúndio e põe em jogo não o aspecto terminativo, mas o fim de um
macroevento, com uma nuance de consequência, como por exemplo, em “As coisas estavam
ficando difíceis e ele acabou contando/por contar a verdade”. O que está em jogo aqui não é o
ponto final de contar a verdade, mas a finalização da situação difícil que estavam vivendo que
foi conquistada, consequentemente pelo ato de contar a verdade. Por isso, essa microconstrução
está relacionada à construção transitiva com o verbo lexical acabar.
7.3.4 Padrão construcional de passado recente
A segunda microconstrução relacionada também àquela em 7.2.2 não atualiza o término
de nada, mas, sim, a noção temporal de passado recente, como em “Meu pai acabou de sair,
por pouco você não o encontra”. Trata-se aqui de um uso mais circunstancial do verbo, também
gramaticalizado, que tem papel de reforçar o quão recente foi o tempo em que ocorreu o evento
descrito em V2.
7.3.5 Padrão construcional de aspecto continuativo
A mesoconstrução descrita em 7.2.1 faz fronteira com uma mesoconstrução de
significado bem diferente, que é o de continuidade intensa de um evento (pertencente ao aspecto
cursivo/continuativo). Estão conectadas pela forma. O que permite essa aproximação é a
polaridade negativa que atua sobre a construção perifrástica em estudo. Constructos atualizando
a mesma forma (com os operadores verbais parar e cessar) com a polaridade negativa irão
gerar esse sentido, sendo, portanto, um outro pareamento forma-função.
No entanto, há uma diferença pragmática entre “Ele continuava a crescer” e “Ele não
parava de crescer”. Esta última reforça o ritmo intenso do evento descrito por V2, enquanto a
primeira garante apenas a não finalização do estado de coisas. Por isso, tratamos aqui de duas
microconstruções que se aproximam, embora não sejam exatamente iguais.
7.4 QUADRO GERAL: MESOCONSTRUÇÕES DE ASPECTO DE FASE INICIAL E
FINAL, SEUS SUBESQUEMAS E AS MICROCONSTRUÇÕES DESTES
Concluímos a descrição da proposta de representação da rede construcional de aspecto
perifrástico inceptivo e terminativo, expondo todas as relações trabalhadas ao longo dessa
131
dissertação. Para finalizar, esquematizamos uma tabela com a frequência de cada
microconstrução descrita acima e presente no corpus.
PB
CONSTRUÇÕES DE ASPECTO PERIFRÁSTICO
[V1 semiauxiliar aspectual (não)fin (+ prep.) + V2 numa forma nominal ] perífrase
Fala
Escrita
Fala
PE
Escrita
aspectual
MESOCONSTRUÇÃO DE ASPECTO INCEPTIVO
[V1 semiauxiliar aspectual inicial(não)fin + prep. a + V2 predicador (simples ou complexo) no infinitivo]perífrase aspectual de fase inicial
[V1(não)fin + a + V2inf] com foco no início de um estado de coisas e
expectativa de seu desenvolvimento
a) [começar + a + V2inf].
b) [iniciar + a + V2inf].
[V1(não)fin + a + V2inf] de início de um estado de coisas com foco na
contraexpectativa de sua mudança
a) [desandar + a + V2inf].
[V1(não)fin + a + V2inf] de início de um estado de coisas com foco na
velocidade e intensidade de sua mudança
a) [desatar + a + V2inf]
b) [disparar + a + V2inf]
c) [descambar + a + V2inf]
d) [romper + a + V2inf]
e) [lançar-se + a + V2inf]
f) [sair + a + V2inf]
[V1(não)fin + a + V2inf] de início de um estado de coisas com foco na
permansividade da mudança realizada
a) [passar + a + V2inf]
[V1(não)fin + a + V2inf] de início de um estado de coisas com foco no
envolvimento do referente do sujeito
a) [pôr-se + a + V2inf]
b) [colocar-se + a + V2inf]
c) [botar-se + a + V2inf]
87
-
116
-
19
-
64
-
1
0
0
0
0
-
3
-
0
-
2
-
0
27
3
14
0
-
5
-
0
-
12
-
MESOCONSTRUÇÃO DE ASPECTO TERMINATIVO
[V1 semiauxiliar aspectual final(não)fin + prep. de + V2 predicador (simples ou complexo) no infinitivo]perífrase aspectual de fase final
[V1(não)fin + de + V2inf] de fim de um estado de coisas com foco na sua
mudança
a) [deixar + de + V2inf]
b) [largar + de + V2inf]
[V1(não)fin + de + V2inf] de fim de um estado de coisas com foco no seu
21
-
22
-
7
-
35
-
10
8
6
4
0
0
9
0
18
0
14
0
0
0
8
1
encerramento
a) [acabar + de + V2inf]
b) [terminar + de + V2inf]
[V1(não)fin + de + V2inf] de fim de um estado de coisas com foco na sua
interrupção
a) [parar + de + V2inf]
b) [cessar + de + V2inf]
Quadro 6: Quantidade de construtos relacionados a cada microconstrução detectada: distribuição por variedade
nacional e modalidade expressiva num corpus de 526 perífrases.
132
8 CONCLUSÃO
A pesquisa do comportamento sintático e semântico de dois padrões construcionais
(inceptivo e terminativo) da macroconstrução Vsemiauxiliar aspectual(não)fin + prep. + V2 numa forma nominal
no Português aqui empreendida propicia contribuições tanto no âmbito do referencial teóricometodológico, quanto no âmbito da teorização descritivo-explicativa sobre a língua, a partir da
junção de pressupostos dos enfoques funcionalista e construcionista no tratamento de
predicações perífrases verbais a serviço da marcação de aspecto de fase. Acreditamos ter
aprofundado, assim, com base em dados do uso, o que se conhece sobre a construção
perifrástica de aspecto inceptivo e terminativo no Português e sobre suas possibilidades de
configuração morfossintática e semântica.
Em termos de referencial teórico, buscamos descrever e explicar como determinados
fenômenos atingem as estruturas investigadas, quais sejam: a gramaticalização do verbo, a base
corporificada da linguagem e sua influência nos processos metafóricos e de analogia e a escala
de prototipicidade das formas com que se trabalhou. Assim, embora ainda haja muito o que
explorar com base no referencial teórico selecionado, foi com base nele que alcançamos um
novo olhar para as construções perifrásticas de aspecto inceptivo e terminativo, uma vez que as
colocamos sob uma rede de construções e de relações polissêmicas.
Em estudos já realizados, a construção perifrástica de aspecto inceptivo e teminativo é
vista, na maioria das vezes, como um único pareamento de forma-função, que pode ser
atualizado por alguns operadores aspectuais determinados. Isso mostra que não se dá a devida
importância ao papel do slot destinado ao V1, cujo preenchimento, como foi visto, ao longo
desta dissertação, a depender da configuração sintática do contexto em que se insere e do nível
de auxiliaridade da forma que o ocupa, pode acionar diferentes nuances no eixo semântico da
marcação de fase inicial ou final. Nesse sentido, também não costumam ser observadas as
relações que se estabelecem entre essas microconstruções de aspecto, bem como não se
considera que outros verbos, além dos normalmente listados, podem compatibilizar-se nessa
construção. Assim, o conhecimento sobre a construção perifrástica de aspecto fica limitado a
umas poucas observações estruturais, focadas, muitas vezes, na descrição de determinados
verbos, e impede que se percebam outros verbos que podem assumir papel relacional. Por isso,
aqui ganhamos em termos de generalizações, já que nosso recorte é o das construções
gramaticais.
Por outro lado, algumas obras de orientação teórico-descritiva e pesquisas linguísticas
levam em conta a possibilidade de ocorrência de construções não previstas na tradição
gramatical, além de buscarem uma descrição mais aprofundada das construções inceptivas e
133
terminativas, como fazem Bertucci (2010) e Sigiliano (2012). Logo, o presente estudo dialoga
mais de perto com estas obras. De todo modo, significa um avanço também em relação a estas,
na medida em que estabelece padrões meso e microconstrucionais para a construção perifrástica
aspectual, concebendo-a como uma rede de microconstruções que, por sua vez, se relacionam
a (sub)esquemas construcionais mais convencionalizados e generalizantes e procurando
representá-las como pareamentos de forma e significado/funcionalidade.
Os resultados aqui expostos são bastante interessantes no que diz respeito a uma proposta
de descrição gramatical mais atual, com base em abordagens linguísticas recentes (como a
Gramática das Construções), e empiricamente fundamentada. É possível estabelecer uma rede
emergindo de uma macroconstrução geral de perífrases com auxiliares: um dos nós dessa rede
é a macroconstrução perifrástica aspectual, o pareamento forma-sentido mais esquemático e
mais abstrato, que, por sua vez, se desdobra nas mesoconstruções de marcação do aspecto
inceptivo e terminativo (entre outras), às quais se vinculam, em nível menos genérico e abstrato,
a outras mesoconstruções que representam conjuntos de microconstruções os quais pressupõem
pareamentos de formas com funcionalidades mais específicas. As microconstruções desses
conjuntos constituem as construções individuais em potencial de se concretizarem em
constructos nos textos. É a partir da concepção dessa representação em rede que observamos,
comparativamente, as perífrases, os verbos que integram preferencialmente cada subesquema
construcional detectado, bem como as particularidades morfossintáticas, semânticas,
discursivas e/ou pragmáticas destes que, no final das contas, fazem diferentes microconstruções
emergirem.
Esta dissertação ratifica a concepção teórica de que a língua é uma rede de construções
gramaticais e de que a unidade básica da gramática é a construção, pois a construção aspectual
perifrástica em estudo, que constitui um padrão esquemático de forma-sentido na língua,
relaciona-se a padrões construcionais mais específicos, sejam eles os de referência pontual (que
podem revelar expectativa de desenvolvimento, no caso dos inceptivos, ou a interrupção ou
encerramento, no caso dos terminativos) ou os de mudança (que tendem a ser permansivos).
Além disso, verificamos que algumas microconstruções revelam relações, constituindo uma
rede polissêmica, com outros padrões construcionais que estão fora do escopo de aspecto
inceptivo ou terminativo (seja marcando outros aspectos ou outra natureza verbal).
Logo, acreditamos que, em linhas gerais, esta dissertação possa contribuir com: (i) uma
descrição mais efetiva da construção perifrástica aspectual inceptiva e terminativa; (ii) o
(re)conhecimento dessa construção com verbos não previstos pela tradição gramatical; (iii) a
134
percepção dos diferentes sentidos que um mesmo verbo pode implicar a depender da construção
em que esteja inserido.
Embora se tenha traçado um estudo criterioso das construções eleitas para os propósitos
desta investigação, julgamos que é possível investir, ainda, em outras frentes de pesquisa
relacionadas a esta, a começar por uma exploração ainda maior do referencial teóricoexplicativo na descrição e análise dos dados. Para tanto, é preciso começar a traçar novos
desafios de pesquisa no intuito de passar a seguir uma nova investigação.
135
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