2030 PROCESSOS COGNITIVOS DE CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS DO VERBO “DAR” João Wandemberg Gonçalves Maciel - UEPB/IESP Considerações iniciais Entre as teorias lingüísticas a que se pode recorrer, para o estudo descritivo/explicativo das construções lexicais complexas constituídas com o verbo “dar” - CLCDs, encontra-se, em posição privilegiada, a teoria denominada de “cognitivismo lingüístico”, nos termos propostos por Lakoff (1987) e Lakoff e Johnson (1980 e 2002). Embora as raízes do cognitivismo tenham suas origens na tradição formalista, atualmente, esses estudos têm abandonado um modelo formal de gramática, passando a engajar-se em uma abordagem de cunho funcionalista. O chamado paradigma cognitivo não envolve um enfoque cognitivo unitário, mas uma variedade de paradigmas, que só tem em comum a ênfase nos fenômenos mentais como agente do comportamento. Inclui a psicologia cognitiva, a lingüística, a filosofia, a inteligência artificial, a neurociência e a antropologia. O importante é que a linguagem é encarada como processo e estratégia de conceptualização e categorização do real e, por conseguinte, a expressão lingüística constitui um reflexo e ainda um elemento estruturado da conceptualização. (VILELA, 2003, p. 183) Antes de se estabelecer uma descrição dos processos de construção de significados metafóricos veiculados por Construções Lexicais Complexas, faz-se necessário procurar investigar qual a base conceptual formadora dessas construções. Tal preocupação se justifica devido ao grande número de ocorrências dessas construções no corpus oral VALPB, principalmente, das que se realizam com os verbos levar, ter, fazer, dar, tomar, bater e passar. Bases Teóricas Para tentar dar início a esse processo de investigação, este estudo tomou um novo rumo teórico-descritivo, tendo em vista que muitas (ou todas as) das construções identificadas têm, também, uma base cognitivo-metafórica, não-dependente do contexto. Tal observação fez com que fosse começado um ensaio de um casamento de uma teoria de base formal com uma teoria funcionalista, de base discursiva, cuja análise é realizada no discurso linguístico. Antes de serem apresentados alguns conceitos dessa teoria, entendida, também, como uma teoria de base funcionalista, tal como é apresentada em Votre (1996) e Salomão (1990), pode-se lembrar que a aparente contradição entre as duas perspectivas de análise deve ser minimizada, se for considerado, como mostra Vasconcellos (1995), que essas duas posições podem ser compatíveis e complementares, caso sejam encaradas com base na seguinte visão: A de que haveria um sistema de princípios formais que regule as estruturas significantes da linguagem e a de que tais estruturas sejam utilizadas pelas diversas línguas (e em parte no desempenho individual) de um modo pelo menos parcialmente coerente e motivado do ponto de vista semântico. (VASCONCELLOS, 1995) É com base nessa possibilidade de compatibilização teórica que, nesse estudo das CLCDs, não serão utilizadas apenas informações teóricas de base formal, mas também as de base discursiva/pragmática. Na visão de Vidal (2003 p. 231-232), Podemos seguir suponiendo que existe uma semántica lingüística, que se ocupa sólo del significado convencionalmente codificado en las expresiones 2031 lingüísticas, y que es totalmente independente de la pragmática. Habrá también una semántica veritativo-condicional, que, partiendo del significado lingüístico y de las explicaturas, pueda caracterizar adecuadamente las condiciones de verdad de un enunciado; esta semántica ya no será autónoma, sino que dependerá tanto de la semántica lingüística como de los mecanismos de inferência pragmática. Por último, existirá la pragmática, que puede traspasar los limites tanto de lo lingüístico, como de lo puramente veritativo-condicional, para adentrarse em los significados implicados conversacionalmente. De este modo, quedan delimitadas tres parcelas diferentes, cada una con un ámbito bien definido; juntas contribuirán a dar una visión completa del significado.1 Corrente teórica que apresenta estudos relativamente recentes (a partir de 1980), o cognitivismo tem como principal característica - embora suas raízes tenham sido formadas dentro da tradição formalista universalista mentalista - o fato de ter, nos atuais estudos, abandonado um modelo formal de gramática, sendo essa, talvez, a principal razão de tal corrente poder engajar-se em uma abordagem de cunho funcionalista. Os principais estudos nessa linha estão centrados nos trabalhos de Lakoff (1987), Johnson (1987), Lakoff e Johnson (1980 e 2002), Sweetser (1990), Salomão (1990) e Vasconcellos (1995). Tratando das questões que envolvem o cognitivismo lingüístico como uma corrente de estudos, também, funcionalista, Vasconcellos (1995) nos informa que A Lingüística Cognitivista é uma corrente teórica de consolidação relativamente recente – dos anos 80 para cá – e ainda pouco conhecida no Brasil enquanto linha de abordagem específica, embora vários adeptos do chamado programa funcionalista também façam referência à sua literatura. Embora essa linguista tenha enquadrado essa linha de estudo na tradição formalista mentalista, não esquece de fazer as devidas ressalvas para tal enquadramento, quando nos dá a seguinte explicação: [...] hoje em dia (a Lingüística Cognitiva) afastou-se bastante de sua fonte, podendo inclusive ser considerada como representante de um paradigma teórico alternativo àquele de que proveio (que persiste na teoria chomskyana e em outras teorias formais da gramática), sobretudo no que concerne à destituição da importância do formalismo em Lingüística (Não no sentido de que recusem o recurso à formalização, da qual fazem uso, embora sem considerá-la teoricamente indispensável, mas no de não acreditarem na natureza formal, arbitrária, dos símbolos de base das representações lingüísticas). Lakoff (1987), ao apresentar as principais características da linguística de base cognitiva, contrapõe, inicialmente, em termos de bases filosóficas, duas linhas de estudo: o chamado realismo objetivista e o chamado realismo experiencial. A primeira estabelece uma relação quase perfeita entre linguagem e conhecimento do mundo, ou seja, a realidade é apreendida a partir de uma maneira única e correta, sem que dependa da experiência e da subjetividade do usuário de uma língua particular. A segunda, embora tenha em comum com o objetivismo a crença na possibilidade de um conhecimento estável sobre o mundo, parte do princípio de que os conceitos não só se desenvolvem com base no organismo humano, mas também a partir da experiência humana, individual e coletiva. Dessa maneira, na primeira, o pensamento, entendido como “razão”, é literal 1 Podemos seguir supondo que existe uma semântica linguística, que se ocupa só do significado convencionalmente codificado nas expressões linguísticas e que é totalmente independente da pragmática. Há também uma semântica verificativo-condicional que, partindo do significado linguístico e das explicações, pode caracterizar as condições verdadeiras de um enunciado. Essa semântica não será autônoma, mas dependerá tanto da semântica linguística como dos mecanismos de inferência pragmática. Por último, existirá a pragmática, que pode ultrapassar os limites tanto do lingüístico quanto do puramente verificativocondicional, para adentrar-se nos significados implicados convencionalmente. Desse modo, ficam delimitadas três parcelas diferentes, cada uma com a esfera bem definida; juntas, contribuirão para dar uma visão completa do significado. 2032 – formado por proposições objetivas que podem ser verdadeiras ou falsas – e atomístico – formado através da combinação de símbolos primitivos, ou seja, a mente é concebida como uma máquina abstrata. Na segunda, o pensamento encontra-se enraizado não só no organismo, mas também na experiência vivenciada pelos indivíduos. De acordo com a interpretação que Vasconcellos (1995) faz de Lakoff (1987), nessa segunda linha dos estudos cognitivistas, [...] o pensamento seria também imaginativo, porque é com a ajuda de processos de mapeamento metafórico e metonímico e de formação de imagens e de transposição de esquemas de imagens, que vão todos muito além da representação literal da realidade, que derivaria os conceitos e relações mais abstratos, não diretamente calcados na experiência. Teria ainda propriedades gestálticas, podendo formar conceitos sem ser pela combinação por meio de regras de primitivos atômicos, e uma estrutura ecológica: a eficiência do processamento cognitivo dependeria da organização geral do sistema conceitual e da relevância do significado dos conceitos envolvidos, do seu lugar no sistema e grau de relacionamento com os demais. O pensamento seria, pois, muito diferente da mera manipulação mecânica de símbolos abstratos. Assim, enquanto para o realismo objetivista corresponde o uso da teoria clássica da categorização, Lakoff (1987) estuda as categorias que existem efetivamente no mundo e que são determinadas por meio de um conjunto de propriedades objetivamente partilhadas pelos seus membros – para o realismo experiencial ou experiencialismo, corresponde uma teoria de categorização que foi denominada por Eleonor Rosh de Teoria dos Protótipos e das Categorias de Nível Básico (apud LAKOFF, 1987, p.39) – pontos de referência cognitivos –, originando-se deste último tipo de categorização as chamadas Categorias Radiais, que utilizaremos como um dos níveis de análise, para determinar os sentidos do verbo “dar” como item lexical pleno e como constituinte de Construções Lexicais Complexas. Investigando o Objeto Ao situar este estudo com o verbo “dar”, no âmbito da cognição social (discursiva, funcionalista), pode-se considerar, seguindo as idéias acerca da categorização de Rosch (1978, p. 28), para quem “os assuntos de categorização com os quais nos ocupamos têm a ver, principalmente, com a explicação das categorias encontradas em uma cultura e codificadas pela língua daquela cultura em um ponto específico do tempo”, que essa abordagem lingüística tem o papel de investigar de que forma as versões (categorizações) mais ou menos estáveis são distribuídas entre os sujeitos cognitivos. Neste estudo particular, tal abordagem tem o papel de fundamentar uma descrição da categoria CLCD, identificando o modo como os indivíduos negociam, discursivamente, os fatos da realidade. Vasconcellos (1995) nos explica, ainda, que o conceito de Categorias Radiais se contrapõe à Teoria Clássica da Categorização porque representa uma alternativa para essa teoria, ou seja, Para a idéia de que categorias sejam determinadas por um conjunto de propriedades coletivamente necessárias para estabelecer o pertenciamento de seus membros e suficientes para distinguir cada categoria das outras. Já pela teoria radial, uma categoria pode ter membros de vários graus de representatividade: seus melhores exemplares, ditos membros prototípicos, apresentariam a maioria das propriedades que a caracterizam, mas, diferentemente do postulado pela teoria clássica, outros membros não precisariam ter todas essas propriedades, e alguns deles poderiam até não possuir nenhuma delas. Tal noção de categorização, na visão de Lakoff (1987), ao contrário da psicologia cognitiva de Rosch, está centrada em uma abordagem sociocognitiva, que permite reorientar o enfoque das categorias, levando em conta seu caráter situado, localmente produzido, contextualmente dependente e linguisticamente organizado. 2033 Nessa perspectiva, a organização do sistema conceitual de base experiencialista, proposta por Lakoff (1987), assenta-se em duas questões fundamentais: a estrutura desses conceitos e a significatividade. Por serem estruturados tanto internamente quanto entre si, a organização do sistema conceitual permite que haja um funcionamento cognitivo. Assim, a partir do estabelecimento do conceito de ICM, um modelo cognitivo idealizado, Lakoff (1987) apresenta as idéias de “encorpamento” – termo traduzido por Vasconcellos (1995), do termo “embodiment” –, estruturas de nível básico, esquemas de imagens e espaços mentais. O “encorpamento” é que garante a base da significatividade e fornece a origem para a estrutura conceitual, através das estruturas pré-conceituais, representadas por estruturas de nível básico – responsáveis pela categorização inicial, principalmente pela organização de partes responsáveis pela constituição de uma imagem gestáltica – e esquemas de imagens – estruturas cognitivas inconscientes, relativamente abstratas e extremamente simples, formadas através ds vivência sinestésica corporal. Entre a conceptualização e o pensamento, estão os “espaços mentais”, ou “espaços representacionais” de natureza unicamente conceitual, onde estão localizadas representações mais específicas de entidades com determinadas propriedades e em dadas relações com outras, processos e eventos etc. Para Lakoff (1987), os modelos cognitivos idealizados (ICMs) são gestalts ideativas’, espécies de esquemas teóricos simplificados por meio dos quais organizamos nossos conhecimentos e criamos e estruturamos espaços mentais. São estruturas simbólicas relativamente complexas, organizadas, sobretudo, segundo a lógica de esquemas de imagens. São ditos idealizados porque não necessariamente correspondem ao mundo objetivo, podendo inclusive ser inconsistentes entre si.2 São quatro os tipos básicos de modelos cognitivos, a saber: “proposicionais” e “esquemáticos”, caracterizados pelo tipo de estrutura que apresentam; “metafóricos” e “metonímicos”, caracterizados pelos princípios de formação que os criam a partir de outros modelos. Vasconcellos (1995), com base em Lakoff (1987), explica-nos que Os modelos proposicionais são os que não fazem uso dos dispositivos imaginativos da cognição. Podem incluir não só estruturas cognitivas tradicionais nas abordagens formalistas, como proposições, feixes de traços e taxonomias, mas também outros tipos de organizações cognitivas, como os frames, scripts e cenários desenvolvidos pelos teóricos da Inteligência Artificial. Os modelos esquemáticos correspondem a um esquema de imagem, ou a alguns esquemas de imagens diferentes relacionados entre si por meio de transformações de esquemas de imagem e representações abstratas de traços básicos de um modelo cognitivo. Os modelos metafóricos resultam do mapeamento de um domínio cognitivo de fonte já conceptualizado e estruturado por um modelo proposicional ou por um esquema de imagem, em um domínio alvo, disso decorrendo a atribuição a este de uma estrutura correspondente à do domínio original. Tal mapeamento seria tipicamente parcial, abrangendo apenas os aspectos do segundo domínio passíveis de serem compreendidos por analogia com os do primeiro. Já no caso dos modelos metonímicos, ocorreria mapeamento entre dois elementos de um elemento conceitual já estruturado por um ICM, passando um deles a valer pelo outro para fins cognitivos (VASCONCELLOS, 1995, p. 184-5). Quando expressões linguísticas estão associadas a um modelo cognitivo, o resultado seria um quinto e especial tipo de ICM, os modelos simbólicos, próprios à linguagem. Para a determinação desses modelos simbólicos, três noções são fundamentais: a de construção central, a de categorias radiais, já citadas anteriormente, a de encadeamento, “rede de nós”, cadeia, e a de motivação ou de princípios gerais de motivação. Em relação às construções centrais, Lakoff (1987, p. 463) refere: 2 Tradução de Vasconcellos (1995, p. 184). 2034 Exhibit a direct and regular relationship between form and meaning, specified by general principles which we will refer to as central principles. Non-central clause structure, and their form-meaning correspondence derive in large part from those wich are more central.3 As estruturas radiais, de acordo com Lakoff (1987, p. 84), são extremamente comuns, fazem parte da gramática de uma língua dada e são estruturadas radialmente porque a ela estão ligadas certo número de subcategorias: [...]a radial structure is one where there is a central case and convencionalized variations on it which cannot be predicted by general rules.4 Como exemplo, podemos citar a categorização que Lakoff (1987, p. 91) faz do item lexical “mãe”: The category mother, as we saw above, is strutured radially with respect to a number of its subcategories: there is a central subcategory, defined by a cluster of converging cognitive models (the birth model, the nurturance model, etc.); in addition, there are noncentral extensions which are not specialized instances of the central subcategory, but rather are variants of it (adoptive mother, birth mother, foster mother, surrogate mother, etc.).5 Salomão (1990) conclui, através da análise de vinte e três construções com o verbo “dar”, que ele se constitui como uma categoria radial cognitiva e gramaticalmente motivada. Para essa linguista, a gramática é conceptualmente motivada, mas não necessariamente transparente. Vasconcellos (1995), em um estudo cognitivista mais crítico do que descritivo, analisa o verbo “passar” em suas diversas acepções apresentadas em dicionários e conclui que este também dá origem a construções radiais. Alves (1998), analisando o verbo “levar” como constituinte de Construções Lexicais Complexas, também apresenta algumas características semânticas desse verbo, caracterizando-o, também, como uma estrutura radial. As diretrizes básicas desses três últimos trabalhos, no que diz respeito à consideração desses itens lexicais verbais, como categorias radiais estão centradas, principalmente, em Lakoff (1987) e Lakoff & Johnson (1980), para quem a idéia de um modelo central que caracterize as estruturas lingüísticas determina as possibilidades de extensão de significado, através das relações que se estabelecem entre esse modelo central e os modelos estendidos. São essas relações que formam as cadeias ou encadeamentos, citadas/os anteriormente, ou seja, o todo da categoria entrelaça-se em uma rede, cujos nós ocupam diversos lugares na estrutura, não deixando, no entanto, de ficarem, direta ou indiretamente, interligados. Com base em Lakoff (1987), Vasconcellos (1995) conceitua as categorias radiais em [...] elos que permitem a extensão da categoria a partir dos membros prototípicos, não têm o caráter de regras gerativas formais, mas, ao contrário, são fornecidos por certos princípios cognitivos gerais de motivação, que explicam 3 Apresentam uma relação direta e regular entre forma e sentido, especificada pelos princípios gerais sobre os quais nos referimos como princípios centrais. Cláusulas estruturais não-centrais e seus sentidos formais correspondentes derivam, em sua maioria, das construções que foram consideradas mais centrais” LAKOFF, G. 1987. Women fire and dangerous things: what categories reweal about the mind. Chicago: The University of Chicago Press. 4 “a estrutura radial ocorre quando há uma variação central e convencionalizada que não pode ser prognosticada por regras gerais”. LAKOFF, G. Women fire and dangerous things: what categories reweal about the mind. Chicago: The University of Chicago Press, 1987. 5 “A categoria mãe, conforme mencionamos anteriormente, é radialmente estruturada no que diz respeito ao número de suas subcategorias: há uma categoria central, definida pela convergência de um grande número de modelos cognitivos (o modelo do parentesco, etc.); há, também, uma extensão não-central, que são instâncias especializadas de uma subcategoria central, mas apropriadamente, são variações dos modelos (mãe adotiva, mãe natural, etc.)”LAKOFF, G. Women fire and dangerous things: what categories reweal about the mind. Chicago: The University of Chicago Press, 1987. 2035 em que os membros derivados são de algum modo semelhantes aos de que se originam. Entre eles avultam princípios de mapeamento metafórico e metonímico e transformações de esquemas de imagem. A partir da apresentação desses conceitos, explicitados por Lakoff (1987), também interpretados por Vasconcellos (1995), Salomão (1990) e Alves (1998), passa-se a considerar que, para uma descrição dos processos de construção metafórica veiculados por Construções Lexicais Complexas, constituídas com o verbo “dar”, faz-se necessário, também, além da identificação da base conceptual, determinar as relações semânticas estabelecidas por esse verbo, ou seja, determinar, em termos sincrônicos, o sentido fonte/básico do verbo “dar” realizado como item lexical pleno, assim como os sentidos derivados do verbo “dar” como constituinte de Construções Lexicais Complexas. Buscando essa direção de análise é que se pode apresentar, com base em uma experiência física direta, a seguinte construção central (sentido básico, pleno, considerado ponto de partida para as construções radiais) para os itens lexicais “dar”: X DAR Y A ALGUÉM - (DOAÇÃO/ENTREGA) Para essa idéia de “experiência física direta” - intuída nessa construção central, X DAR Y A ALGUÉM - Lakoff e Johnson (2002) fazem a seguinte observação: Em outras palavras, o que chamamos de “experiência física direta” não é jamais uma questão de possuir um corpo de um determinado tipo; é uma questão de toda experiência acontecer dentro de uma vasta bagagem de pressuposições culturais. Daí pode ser equivocado falarmos em experiência física direta como se houvesse um conjunto central de experiências imediatas que nós então “interpretaríamos” em termos de nosso sistema conceptual. Suposições, valores e atitudes culturais não são conceitos que acrescentamos à experiência. Seria mais correto dizer que toda a nossa experiência é totalmente cultural e que experienciamos o “mundo” de tal maneira que nossa cultura já está presente na experiência em si. Interpretando Lakoff (1987), Votre (cf. 1994, p. 30) nos lembra que o conceito resultante dessa experiência “física direta” não é, necessariamente, predizível, mas esse conceito se constrói na experiência interativa. Em outras palavras, os nossos sistemas conceituais dependem diretamente da nossa percepção sociofísica. Em resumo, a proposta de Lakoff apresenta as seguintes características: a. A língua pode ser caracterizada através de modelos simbólicos, nos quais se dá uma relação entre informação linguística e modelos cognitivos; b. Os modelos cognitivos podem ser proposicionais, de esquema em imagem, metafóricos e metonímicos; c. A experiência é categorizada em termos prototípicos, e é dessa categorização que resultam as estruturas radiais. Vilela (2003, p. 183), com base em Lakoff (1987), ressalta que o paradigma cognitivista experiencial tem merecido [...] uma atenção especial, para quem a linguagem é uma forma de simbolização de capacidades naturais, entre as quais se destaca a capacidade “pré-conceptual” de conceptualizar a experiência corporizada (embodied mind), a ação sobre o mundo e a capacidade de relacionar analogicamente domínios conceptuais entre si. As nossas capacidades simbólicas (subjectivas, intersubjectivas, mentais e culturais) estão intimamente enraizadas numa base natural experiencial. Fauconnier (1994) assevera que os significados são entendidos como construções mentais que se processam a partir de instruções fornecidas pelos sinais linguísticos – as formas da língua. Entendendo os diferentes níveis de estruturação da gramática como partes integrantes do 2036 conhecimento que os sujeitos têm arquivados na mente, parte-se do pressuposto de que as formas linguísticas não são portadoras de significados, mas guiadas para a construção de significações em domínios mentais. Assim considerando, entende-se que os enunciados produzidos ativam correlações entre as formas linguísticas e as estruturas de conhecimentos de diferentes naturezas arquivados na mente dos indivíduos desde a infância. Tais estruturas passam a estar disponíveis na mente dos indivíduos – como arquivos cognitivos – com o compartilhamento de experiências físicas, psíquicas, sociais, culturais e linguísticas que são processadas pelos indivíduos nas interações que se efetivam nas comunidades às quais se integram. Considerações Finais Além das estruturas permanentes para a construção dos significados, há as chamadas estruturas provisórias – os espaços mentais – propostas por Fauconnier (1994). Esses espaços são estruturas transitórias de organização da representação do pensamento em uma forma linguística. Eles emergem na mente à medida que pensamento e fala progridem, como “arquivos de trabalho” nos quais as formas linguísticas são preorganizadas para serem projetadas nos enunciados. Segundo Fauconnier (1994), os espaços mentais são estruturas mentais instáveis, transitórias, pois se desfazem tão logo a sequência linguística seja atualizada. Na continuidade do discurso, outros espaços emergem, interligados numa rede tão dinâmica quanto complexa, preorganizando a construção dos discursos. Muitas dessas idéias já haviam sido apresentadas e discutidas por Johnson (1987) e Sweetser (1990), também adeptos de um cognitivismo linguístico de base experiencial. Ambos igualam suas teorias à de Lakoff (1987) quando, em seus estudos, fornecem evidências de que o significado mais abstrato tem suas bases derivacionais em um significado sociofísico, portanto, em um significado mais concreto. Dessa maneira, no que diz respeito às categorias prototípicas, a hipótese realista experiencialista propõe que a prototipicidade, embora de certa forma estável, é condicionada pelo ambiente cultural da comunidade linguística onde tais categorias se realizam. Em Lakoff (1987, p. XIV), são atribuídas às categorias, por exemplo, determinadas características: 1) de corporificação: as categorias não são abstratas, são sensíveis às contingências sensório-motrizes dos falantes; 2) de natureza imaginativa: as categorias não têm necessidade de correlação com fenômenos reais, mas pertencem a esquemas imaginativos de base; 3) de propriedades gestálticas (de formas) e não apenas de qualidades; 4) de contextualização situada: a estrutura da categoria é ambientada no contexto; 5) de idealização: as categorias podem ser descritas por modelos cognitivos idealizados, domínios mentais estáveis e locais. Tais domínios são processados metaforicamente, ou seja, a metáfora é considerada uma operação cognitiva fundamental, constitutiva da linguagem e do pensamento. Referências ALVES, Eliane Ferraz. Construções lexicais com o verbo “levar”, 1998. (Tese de Doutorado.Universidade Federal de Pernambuco) (mimeo). FAUCONNIER, Gilles. 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