Medicina Indígena - Hospedagemdesites.Ws

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Medicina Indígena
Percepção e Conhecimento sobre Plantas
Medicinais em Comunidades Indígenas
de Mato Grosso
Elias Januário
Germano Guarim Neto
Medicina Indígena
Percepção e Conhecimento sobre Plantas Medicinais em
Comunidades Indígenas de Mato Grosso
1ª Edição
Coleção Meio Ambiente, Educação e Cultura
Volume 4
Organizador:
Fernando Selleri Silva
Cuiabá
Instituto Merireu
2013
Equipe Editorial
Editor:
Revisão:
Organização:
Projeto Gráfico, Diagramação e Capa:
Foto da Capa:
Elias Januário
Elias Januário / Germano Guarim Neto
Fernando Selleri Silva
Fernando Fernandes Neri
Casa Xinguana
J35m Januário, Elias. Guarim Neto, Germano
Medicina Indígena: Percepção e Conhecimento sobre Plantas
Medicinais em Comunidades Indígenas de Mato Grosso / Elias Januário;
Germano Guarim Neto. – Cuiabá: Instituto Merireu Editora, 2013.
85 p.: il.; 21 cm. – (Coleção Meio Ambiente, Educação e Cultura, v. 3)
ISBN 978-85-66981-03-2
1. Plantas. 2. Conhecimentos tradicionais – comunidade indígena. 3.
Etnoconhecimento – indígena. 4. Cosmologia indígena. I. Januário, Elias.
II. Guarim Neto, Germano. III. Título.
CDU: 581.6:615.8 (=017)
Instituto Merireu de Estudo Socioambiental, Pesquisa
e Educação Escolar Intercultural
Caixa Postal n.º 1003
CEP 78050-973, Cuiabá/MT - Brasil
[email protected] / www.merireu.org.br
Dedicamos aos povos indígenas de
Mato Grosso, que lutam pela preservação
da natureza, em particular as plantas
medicinais e os etnoconhecimentos,
em meio às mudanças significativas
impostas pelo contato com a sociedade
moderna.
AGRADECIMENTOS
Aos indígenas do Estado de Mato Grosso.
Ao grupo de Pesquisa da Flora, Vegetação e Etnobotânica - FLOVET.
À Universidade Federal de Mato Grosso.
À Universidade do Estado de Mato Grosso.
Ao Instituto de Biociências / Departamento de Botânica e Ecologia
da UFMT.
À Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior CAPES.
Ao Instituto Merireu.
Ao Prof. Dr. Waldir José Gaspar.
Ao Prof. Evaristo Giacometti Silva.
À Prof. Hébia de Paula Monteiro.
Ao Prof. Fernando Selleri Silva.
À Equipe do Grupo de Estudo Mosaico Intercultural.
Aos Professores, Técnicos, Discentes, Bolsistas, Familiares e amigos
que, de alguma forma, contribuiu para a realização desse trabalho.
PREFÁCIO
Este é um daqueles livros especiais que eu gostaria de ter escrito.
Não somente por seu caráter acadêmico, fruto de um zeloso trabalho,
mas também por seu precioso conteúdo que sintetiza o encontro de
saberes entre povos e culturas.
Em meio a um degradante processo de destruição dos recursos
naturais pelo agronegócio em Mato Grosso, os autores nos estimulam
a pensar na urgência de valorização não só dos recursos naturais
perdidos, mas nos saberes tradicionais dos povos indígenas que se
encontram em igual risco de desaparecerem.
Como inédita experiência, este trabalho oportuniza, que os
autores, Professores Elias Januário e Germano Guarim Neto, nas
entrelinhas do pensamento, deem vozes e visibilidades à grupos
étnicos esquecidos através de riquíssimos diálogos. Esta troca ocorre
a partir das Licenciaturas Indígenas Interculturais no Estado de Mato
Grosso, onde se deu o encontro dos autores com representantes de
povos indígenas, educadores e outros pesquisadores, culminando
nesta rica publicação, a qual traz em seu bojo, diálogos interculturais,
no contexto da integração de saberes tradicionais sobre o uso de
plantas medicinais.
Recheados de saberes e significados esse diálogo êmico-ético nos
leva às raízes culturais da medicina tradicional brasileira, aqui traduzida
e valorizada enquanto recurso e prática milenar dos povos indígenas.
A sensibilidade e o suporte científico dos pesquisadores
envolvidos neste trabalho, e a recíproca complementaridade entre
a antropologia e as ciências biológicas faz deste um importante
instrumento que permite reconhecer e analisar com maior fidedignidade
os conhecimentos tradicionais trazidos a luz da ciência contemporânea,
sem que isso desmereça o saber tradicional, pelo contrário, este
embasamento científico permite o reconhecimento e a valorização de
saberes e práticas dos povos tradicionais no Estado de Mato Grosso.
Trata-se, portanto, de fruto maduro: resultado de pesquisas atuais
sobre antigos saberes, no contexto de diversas culturas.
Considerando a biodiversidade local e os saberes tradicionais dos
povos indígenas, este trabalho traduz um raro convite para encontros
inusitados e reflexões sobre os caminhos e possibilidades na utilização
dos recursos botânicos para fins terapêuticos ao longo do tempo,
passado e futuro.
Nesta agradável leitura poderemos nos deparar com mundos
distintos, reais e imaginários, repletos de racionalidades, crenças,
experiências, relatos de curas, virtudes e cuidados em meio à
cosmovisões diversas dos ameríndios daqui. Podemos compreender
sua relação com seu ambiente, forma de utilização dos recursos
naturais e as concepções sobre os cuidados na saúde indígena, saberes
construídos ao longo de gerações de cuidados e cuidadores que
utilizam racionalmente os recursos dos biomas do Cerrado, Floresta e
Pantanal em Mato Grosso.
Na diversidade de olhares, os autores e suas vozes “quase
esquecidas” nos instigam a mais aprender do que ensinar, mais
preservar do que destruir, mais conhecer do que ignorar, mais respeitar
a diversidade cultural e admirar o modo sustentável de viver dos povos
indígenas a partir da valorização e reconhecimento da especificidade
e racionalidade da medicina tradicional indígena no Estado de Mato
Grosso e no Brasil.
Em Cuiabá (MT), setembro de 2013.
Prof. MSc. Reinaldo Gaspar da Mota
Mestre em Saúde Coletiva
Faculdade de Medicina
Universidade Federal de Mato Grosso.
SUMÁRIO
Considerações Iniciais
15
Desafios: Conhecimento Tradicional e Modernidade
27
Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas
em Aldeias Indígenas
37
Plantas usadas para tratamento medicinal do povo Nafukuá
38
Plantas usadas para tratamentos segundo a medicina
tradicional do povo Kurâ (Bakairi)
42
Plantas medicinais usadas pelo Povo Waurá.
45
Plantas medicinais do povo Xavante
49
Conhecimento Indígena e Cosmologia
53
Considerações Finais
63
Referências Bibliográficas
69
Considerações Iniciais
Mesmo diante da chegada dos colonizadores europeus no
século XV, ainda existem vários povos indígenas habitando o território
brasileiro. Cada um com sua cultura, língua, arte, religião, hábitos,
tradições, mitos e cosmologia.
Atualmente, no Brasil, vivem mais de 400 mil índios, distribuídos
em 225 etnias, que perfazem cerca de 0,25 % da população brasileira.
Cabe esclarecer que este dado populacional considera tão somente
aqueles indígenas que vivem em aldeias, havendo estimativas de que,
além destes, existem cerca de duzentos mil vivendo fora das Terras
Indígenas, inclusive em áreas urbanas. Estima-se em mais de sessenta
referências de índios ainda não contatados, além de existirem grupos
que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena
junto ao órgão federal indigenista. No estado do Mato Grosso existem
42 etnias (Quadro 1), essas comunidades juntas somam uma população
de aproximadamente 42 mil habitantes (FUNAI, 2011).
15
Medicina Indígena
Quadro 1: Etnias presentes no Estado do Mato Grosso
Apiaká
Arara
Aweti
Bakairi
Bororo
Cinta Larga
Enawené-Nawê
Hahaintsú
Ikpeng
Irantxe
Juruna
Kalapalo
Kamayurá
Karajá
Katitaulú
Kayabí
Kayapó
Kreen-Akarôre
Kuikuro
Matipu
Mehináko
Metuktire
Munduruku
Mynky
Nafukuá
Nambikwara
Naravute
Panará
Paresi
Parintintin
Rikbaktsa
Suyá
Tapayuna
Tapirapé
Terêna
Trumai
Umutina
Waurá
Xavante
Chiquitano
Yawalapiti
Zoró
Fonte: FUNAI (2011)
A formação de professores indígenas em nível superior em Mato
Grosso resultou de discussões iniciadas no ano de 1997, envolvendo
vários segmentos da sociedade civil, representantes indígenas,
órgãos governamentais e não governamentais que, compondo a
Comissão Interinstitucional e Paritária criada pelo Decreto Estadual N.
1.892/97, elaboraram o Projeto de Cursos de Licenciatura Específicos e
Diferenciados para a Formação de Professores Indígenas, conhecido,
na época, com 3º Grau Indígena (JANUÁRIO, 2002).
No ano de 2001 foi realizado o 1º vestibular e o início das aulas
no mês de julho, para a 1ª Turma (200 acadêmicos). Em janeiro de 2005
tiveram início as aulas para a 2ª turma do projeto (100 acadêmicos) e,
em 2008, iniciou mais uma turma de 50 alunos na graduação e 50 vagas
na pós-graduação (especialização) em Educação Escolar Indígena, para
os egressos da primeira turma. Em junho de 2006, a 1ª Turma concluiu
as atividades do curso, sendo realizada a Colação de Grau e a entrega
dos diplomas de licenciados a 186 estudantes indígenas (JANUÁRIO et
al., 2009).
16
consistia numa proposta de ensino calcada numa educação específica,
diferenciada e intercultural, voltada para a realidade das comunidades
indígenas, buscando um diálogo intercultural entre os diversos
saberes. Tinha como objetivo formar professores indígenas em serviço
para o exercício da docência no Ensino Fundamental e em disciplinas
específicas do Ensino Médio nas escolas das aldeias, respeitando a
Considerações Iniciais
A Formação de Professores Indígenas em Nível Superior
cosmovisão e os valores das diferentes etnias.
As Licenciaturas Indígenas foram elaboradas na modalidade
diferenciada de formação, onde o professor/cursista realizara o seu
processo de formação concomitante com o exercício da docência,
atendendo assim os preceitos da legislação e a demanda existente pela
qualificação e habilitação de profissionais para o trabalho nas escolas
de ensino fundamental e médio.
Representou uma iniciativa do Governo do Estado de Mato
Grosso, concretizada por meio de uma parceria entre a Secretaria
de Estado de Educação de Mato Grosso - SEDUC/MT, a Universidade
do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, a Fundação Nacional do Índio
– FUNAI e Secretaria de Ciência e Tecnologia - SECITEC. Conta com o
apoio da Prefeitura Municipal de Barra do Bugres/MT, da Fundação
Nacional de Saúde – FUNASA, do Ministério da Educação – MEC e de
Organizações Não governamentais. A execução do projeto ficou a
cargo da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, com sede
administrativa instalada no Campus Universitário de Barra do Bugres,
onde também foram realizadas as atividades referentes às etapas de
aulas presenciais.
O projeto inicialmente ofereceu três cursos de licenciatura
nas áreas de Ciências Matemáticas e da Natureza, Ciências Sociais
e Línguas, Artes e Literaturas. Os cursos foram ministrados pelo
17
Medicina Indígena
Programa de Licenciatura Indígena Intercultural reconhecidos pelo
Conselho Estadual de Educação de Mato Grosso – CEE/MT, por meio
da Portaria nº. 321/04 – CEE/MT, publicada no Diário Oficial do Estado,
em 21 de setembro de 2004. Tiveram seu reconhecimento renovado
por meio da Portaria nº. 311/05 – CEE/MT, publicada no Diário Oficial do
Estado, em 27 de dezembro de 2005.
Com duração de 05 anos (1ª Turma: 2001-2006; 2ª Turma: 20052009 e 3ª Turma 2007 – 2012; 4º Turma 2011 – 2015 e 5ª Turma 2012 -1016)
e uma carga horária total de 4.025 horas, as Licenciaturas Indígenas
foram estruturadas em 10 Etapas de Estudos Presenciais, 10 Etapas
de Estudos Cooperados de Ensino e Pesquisa (Etapas Intermediárias),
Estágio Curricular Supervisionado e Trabalho de Conclusão de Curso.
O público integrante do projeto era composto por professores
índios que atuavam nas escolas indígenas do Ensino Fundamental
e Médio. Ao todo, até a coleta de dados dessa pesquisa, a formação
abrangeu 32 etnias de Mato Grosso: Umutina, Bororo, Xavante,
Paresi, Irantxe, Bakairi, Tapirapé, Karajá, Rikbaktsa, Nambikwara,
Kayabi, Apiaká, Terena, Ikpeng, Mehinako, Kamaiurá, Juruna, Kuikuro,
Kalapalo, Matipu, Trumai, Aweti, Chiquitano, Nafukuá, Panará, Waurá,
Yawalapiti, Zoró, Suyá, Munduruku, Cinta Larga e Myky.
Ao longo de sua execução foi organizado um setor de arquivo
onde se encontram guardados documentos sobre a educação
escolar indígena como trabalhos, textos, cartazes, pesquisas, fotos e
monografias de diversos projetos desenvolvidos no Estado de Mato
Grosso.
No decorrer dessa trajetória, que em 2007 completou dez anos,
um vasto arcabouço de experiências pôde ser vivenciado pelos diversos
atores (acadêmicos, professores, equipe técnica, lideranças indígenas,
18
direta ou indireta com o desenvolvimento deste programa. Estas
experiências ao serem sistematizadas servirão de base não somente
aos projetos de formação indígena em nível superior que estão em
desenvolvimento ou que começam a ser implementados nas várias
universidades brasileiras, mas também poderão ser utilizadas como
referências nas ações futuras que visam à continuidade da formação
Considerações Iniciais
lideranças políticas, entre outros) que estiveram envolvidos de forma
indígena em nível superior (bacharelados e pós-graduação).
O objetivo geral desta pesquisa foi elaborar um texto crítico fundamentado nos pressupostos teórico e metodológico das Ciências
Biológicas e da Antropologia - sobre as medicina tradicional praticada
pelos povos indígenas de várias etnias de Mato Grosso, bem como
o conhecimento e estudo das plantas medicinais mais utilizadas
por essas comunidades indígenas na prevenção e cura de doenças,
tomando como base os trabalhos existentes acerca do tema na área de
Ciências da Natureza, no âmbito da formação específica, diferenciada
e intercultural de professores indígenas, em nível superior, das
Licenciaturas Indígenas Interculturais, desenvolvida pela Universidade
do Estado de Mato Grosso – UNEMAT.
Entre os objetivos específicos situam-se a possibilidade de
analisar e sistematizar as produções dos professores indígenas sobre
medicina tradicional e plantas medicinais da área de Ciências da
Natureza, destacando as principais questões nos dados apresentados
pelos indígenas no que se refere à medicina tradicional, apontando os
principais desafios superados e a superar, assim como os impasses e
contradições.
Também foram sistematizados aspectos relevantes que devem
ser considerados ao tratar com plantas medicinais indígenas, na
perspectiva de elaborar uma publicação que contenha a experiência das
19
Medicina Indígena
comunidades indígenas e seus atores sociais, acerca do conhecimento
da medicina tradicional e do manuseio com as plantas medicinais.
O interesse pelo tema surgiu pelo fato de eu, Elias, ter
acompanhado, na função de Coordenador, todo o processo de
elaboração das monografias de graduação e pós-graduação, dos
276 indígenas graduados e 96 indígenas pós-graduados. De modo
semelhante Germano Guarim foi docente e orientador de monografias
em várias etapas dos cursos.
Ao longo de todo o processo de execução das pesquisas
foi possibilitada a inserção nos trabalhos dos saberes étnicos, dos
processos pedagógicos próprios de ensino e aprendizagem e da
participação da comunidade indígena, garantindo na prática, o
exercício do diálogo intercultural, possibilitando a ressignificação de
conteúdos e metodologias, afastando-se assim da visão universalista
e monocultural imprimida às minorias étnicas no processo educacional
civilizatório amplamente implementado na história da educação escolar
indígena brasileira.
A partir dessa proposta intercultural na prática educativa, é que
a Licenciatura Indígena Intercultural passou a desenvolver estratégias
que têm garantido as discussões dos conhecimentos de caráter geral e
específico de cada área de estudo, propiciando o reconhecimento das
diferenças, ao mesmo tempo estabelecendo uma postura crítica em
relação aos conhecimentos universais por meio da problematização
dos conteúdos e da valorização do professor indígena como sujeito
nesse processo.
O projeto original procurou, a partir de opções curriculares,
instrumentalizar o professor índio de modo que ele pudesse buscar os
conhecimentos que considerava importante para si e para seu povo,
20
institucionais de formação.
Desse modo, a proposta de educação foi uma fase pensada e
formulada junto com os professores indígenas, considerando o seu
saber e do seu povo como um patrimônio, fazendo com que a ação
educativa estivesse em consonância com a concepção educativa do
Considerações Iniciais
num processo de formação continuada que extrapola os espaços
grupo, contribuindo dessa forma para a revitalização e manutenção
das práticas culturais de cada povo.
As atividades solicitadas conduziam o professor indígena à
investigação de diferentes assuntos, entre eles a medicina tradicional,
relacionados com o seu povo, promovendo com isso o envolvimento
do estudante com a comunidade em que vive. Esse foi, entre outros,
um dos pontos altos do trabalho desenvolvido, particularmente nas
pesquisas que necessitavam da consulta aos moradores mais velhos
da aldeia, porque acaba envolvendo a comunidade com o projeto e
consequentemente com a formação do professor.
Sobre o manuseio com plantas e a transmissão do conhecimento
tradicional foram na época elaborados vários trabalhos de conclusão
de curso de graduação e monografias de pós-graduação (latu sensu) de
diferentes etnias, que possibilitaram um olhar mais aguçado ao longo
deste relatório, da percepção dos indígenas em relação às plantas,
em particular aquelas usadas para fins medicinais, bem como se esse
conhecimento tem sido ou não transmitido para as novas gerações.
Como procedimento metodológico inicialmente realizamos
um estudo bibliográfico de obras da área das Ciências Biológicas e da
Antropologia que versavam sobre a temática de medicina tradicional
e plantas indígenas, para subsidiar as reflexões a serem feitas
posteriormente.
21
Medicina Indígena
Em seguida procedemos a um levantamento e sistematização no
acervo documental e nas pesquisas dos egressos dos cursos, coletando
dados considerados relevantes que permitiram discorrer sobre a
medicina tradicional indígena e as plantas utilizadas.
Para ter acesso e utilização dos documentos e pesquisas
dos indígenas egressos dos cursos de Licenciatura Intercultural da
UNEMAT, inicialmente elaborei um projeto de pós-doutorado sob
orientação do Prof. Dr. Germano Guarim, o qual foi submetido a
apreciação do Colegiado das Licenciaturas Indígenas Interculturais,
que tinha representantes indígenas como membros, sendo concedida
a aprovação para efetivar a pesquisa.
O procedimento seguinte foi a realização de entrevistas com
representantes indígenas para complementar as informações do
levantamento bibliográfico e documental, dirimindo assim possíveis
dúvidas acerca do tema.
Além de toda essa gama de dados empíricos, foi usada como
fonte principal de informação a experiência adquirida há mais de
10 anos no processo de construção e implantação da Licenciatura
Indígena Intercultural, desempenhando a função de coordenador,
sob orientação do Prof. Dr. Germano Guarim Neto, uma das maiores
autoridades em etnobotânica neste país.
Segundo Oliveira (1989), apesar das anotações em diários,
cadernetas e gravações, o que proporciona os melhores dados é a
memória do pesquisador, que vivenciou e que traz de volta do passado,
tornando presente as suas reminiscências no ato de escrever.
Com toda essa profusão de dados existentes e por ter
acompanhado como coordenador a elaboração dessas pesquisas,
é que refleti juntamente com o Prof. Dr. Germano, à luz das Ciências
22
o conhecimento sobre plantas medicinais.
Pela natureza dos trabalhos, o mesmo foi dividido em duas
etapas: a) etapa de campo (levantamento documental e entrevistas),
b) etapa voltadas para a sistematização, análise e redação do relatório.
Para analisar os dados que foram obtidos sobre a medicina
Considerações Iniciais
Biológicas e da Antropologia, acerca da medicina tradicional indígena e
tradicional indígena e os conhecimentos sobre as plantas medicinais,
foi importante dialogarmos com teóricos das Ciências Biológicas e da
Antropologia, na perspectiva de problematizar questões pertinentes à
percepção dos povos indígenas sobre o entendimento da doença e de
como lidar com ela por meio das plantas medicinais.
Nas reflexões e formulações das análises foram fundamentais
as teorias de pensadores e pesquisadores como Enrique Leff, Vandana
Chiva, Cliffor Geertz, Maritza Muñoz, Claude Lévi-Strauss, Marshall
Sahlins, Michael W. Apple, Richard Primack, Roger Bastide, Pierre
Bordieu, Antonio Diegues, Darcy Ribeiro, Mauricio Bellón, Pierre
Verger e Bartolomeu Mèlia. Com estes teóricos de diversas áreas
do conhecimento refinamos os conceitos sobre meio ambiente,
cultura, tradição, medicina, interculturalidade e identidade, pilares da
formulação do entendimento sobre o processo de medicina tradicional
e do manuseio com as plantas medicinais.
Entretanto, pesquisadores de Mato Grosso como próprio
Germano Guarim Neto, Maria Antonia Carniello, Vera Lucia M. S. Guarim,
Carolina Joana da Silva, entre outros, deram suporte às análises deste
estudo, particularmente na parte das plantas medicinais e a percepção
de cada etnia sobre o meio ambiente em que se encontra inserida.
23
Medicina Indígena
Indo de encontro a essa perspectiva, onde o presente livro
contextualiza o trabalho desenvolvido com a medicina tradicional
indígena, optamos em estruturá-lo em três partes.
Em se tratando de pesquisa de campo apoiada por trabalhos
de conclusão de curso de graduação indígena e monografias de pósgraduados, optamos, no primeiro capítulo por um texto mais descritivo
que analítico, sintetizando a importância das plantas medicinais para
os povos indígenas e do eventual processo pelo qual estão passando,
problematizando a medicina tradicional indígena na conjuntura atual,
no confronto com a medicina alopática e nos caminhos e descaminhos
da continuidade deste conhecimento nas gerações futuras.
Na segunda parte abordamos as principais plantas utilizadas entre
os indígenas e a percepção deles em relação a esse conhecimento. Na
terceira parte discorremos acerca da medicina tradicional e a relação
com as concepções cosmológicas.
Na perspectiva de trazer à tona aspectos relevantes da medicina
tradicional indígena, elaboramos esse livro e convidamos você a
conhecer um pouco do saber tradicional dos povos indígenas de Mato
Grosso acerca das plantas e do meio ambiente.
No contexto desta produção, conhecimento tradicional indígena
é definido como o conjunto de saberes, saber-fazer e costumes a
respeito do mundo natural, sobrenatural, transmitido oralmente de
pai para filho e as práticas culturais das comunidades tradicionais que
vivem em contato direto com a natureza. Conforme Cunha (2009: 364)
em relação ao conhecimento tradicional, pode se conferir duas formas:
“à experiência direita e também à própria fonte, cada fonte derivando
seu valor de verdade na sucessão de elos de autoridade na cadeia de
transmissão de conhecimento”.
24
“conhecimento tradicional” ou mesmo “etnociência” têm surgido com
frequência na última década, com o objetivo de chamar a atenção para
a pluralidade de sistemas de produção de saber no mundo e para a sua
importância nos processos de desenvolvimento” (Santos, 2005:32).
O emprego da terminologia “tradicional”, de fato, não é
Considerações Iniciais
“Os termos “conhecimento local”, “conhecimento indígena”,
consensual. Souza Santos et al. (2004:56) questionam a definição
adotada pelas agências internacionais e instrumentos regulatórios,
argumentando que a expressão pressupõe uma forma estática de
conhecimento, transmitida sem alterações de geração a geração. Os
autores questionam, igualmente, o emprego dos termos “saber local”
ou “saber alternativo”, pois a utilização destes adjetivos pressupõe,
em seu entender, uma hierarquização das formas de conhecimento
em que “é local o que não é cosmopolita e alternativo o que não se
enquadra nos cânones da ciência ocidental”. Cunha (1999:15) também
ilustra a posição anterior ao propor que o saber local é “uma ciência
viva, que experimenta, inova, pesquisa, não um simples repositório de
conhecimentos”.
Neste trabalho, admitimos o uso das expressões “saber” ou
“conhecimento tradicional indígena”, sem atribuir-lhes a conotação
de caráter estático. Finalmente, reforçamos o argumento de que
conhecimento tradicional é dinâmico e se renova gerando novas
informações sobre aperfeiçoamentos e adaptações às condições
variáveis. O conceito de conhecimento tradicional é dinâmico, sendo
definido pelo processo social pelo qual é adquirido, compartilhado e
utilizado, o que é específico a cada cultura indígena.
Conforme Santos (2005:53): “a dicotomia saber moderno/
saber tradicional assenta na ideia de que o conhecimento tradicional
é prático, coletivo, fortemente implantado no local, refletindo
25
Medicina Indígena
26
experiências exóticas”. Mas se assumir, com faz a epistemologia
crítica, que todo conhecimento é situado, é mais correto comparar
todos os conhecimentos (incluindo o científico) em função das suas
capacidades para a realização de determinadas tarefas em contextos
sociais delineados por lógicas particulares (incluindo as que presidem
ao conhecimento científico).
Desafios:
Conhecimento Tradicional e
Modernidade
Uma problemática recorrente em várias aldeias consiste no
pouco interesse dos jovens e consequentemente, no conhecimento
superficial das gerações mais novas do fabuloso patrimônio referente
a medicina tradicional, conhecida com propriedade apenas pelos mais
velhos. Diante desse contexto, é imprescindível o estabelecimento
de uma política pública de fortalecimento desse saber que se mostra
fadado a desaparecer com a morte dos mais velhos.
Entre os fatores que tem contribuído para que os jovens percam
o interesse pela medicina tradicional consiste na entrada nas aldeias
dos remédios alopáticos, introduzidos pelos órgãos governamentais e
não governamentais da área da saúde, fazendo que o medicamento
farmacêutico sobreponha-se ao medicamento tradicional.
Tem revelado tensa a tentativa de estabelecer uma relação,
um diálogo entre os representantes dos órgãos oficiais de saúde e os
anciãos, a maioria deles pajé ou xamã, para que possam trabalhar em
27
Medicina Indígena
conjunto, unindo os dois conhecimentos no tratamento de um paciente
indígena.
A medicina tradicional indígena está intimamente ligada com os
elementos da natureza, sejam materiais ou espirituais. Dessa forma para
coletar uma espécie de folha ou cipó é preciso conhecer a fase da lua
correta, pedir licença aos espíritos da mata, ver a posição do sol, saber
onde e a quantidade que pode ser retirada. Todo esse conhecimento é
passado através da oralidade e da prática para os mais jovens, segundo
reforça o depoimento a seguir:
Antigamente o povo Xavante usava as plantas medicinais indígenas Xavante, porque ainda não conheciam os medicamentos
químicos, utilizavam apenas as ervas indígenas. Isso era vantajoso, pois, evitamos por muito tempo os medicamentos dos não
índios que são prejudiciais à saúde. Mas, o que mudou agora na
nova geração foi a perda da força da natureza, a juventude não
está considerando mais as plantas medicinais indígenas Xavante. Poucas pessoas ainda estão acreditando na força da natureza, principalmente os anciãos que não confiam nos medicamentos químicos. Por isso, estamos buscando revitalizar o uso das
plantas medicinais. (Xavante, 2006).
É preciso também saber se a planta deve ser utilizada na forma
líquida (chá, banho), pasta, defumação, entre outras. Isso é fundamental
para que o tratamento tenha resultado satisfatório.
Existe também, na medicina tradicional, manipulação de espécies
da flora e fauna que previne determinadas doenças, bem como ataques
de animais peçonhentos, por meio de ervas que ao serem passadas no
corpo afastam cobras, escorpiões e o ataque de outros insetos que
podem causar danos a saúde da pessoa, como nos confirma relato do
indígena Bakairi:
28
Outro aspecto importante é que a medicina tradicional indígena
tem distinção no tratamento de adulto, criança, homens e mulheres.
Desafios: Conhecimento Tradicional e Modernidade
Temos muitas plantas medicinais na nossa área indígena Santana, que ainda estamos usando para tratar as doenças, temos
plantas usadas para as crianças banharem e outras para fazer
chá para gripe, vômito, diarréia. Temos também remédios para
os adultos que são diferentes dos usados pelas crianças. São
mais fortes. Para arranhar, no dia da semana santa, usa-se fumo
misturado com raiz doce chamado sekuâ, que serve para picada
de cobra. Temos também outro remédio que só é encontrado
no mato, chamado pemerâ, que é usado para banhar e para
arranhar. Temos também, os remédios para mulheres que estão gestantes, usado apenas quando for necessário, como, por
exemplo, quando há suspeita de aborto, usa-se este remédio,
que não pode ser quente, deve estar morno. Os pajés ajudam
neste momento (Bakairi, 2006).
Para cada faixa etária, sexo e clã, a medicação é preparada de uma
forma, levando em consideração esses requisitos.
O tratamento também requer rigorosas dietas por parte do
paciente a serem seguidas para que funcione, ocorrendo inclusive
várias sessões de atendimento com a pessoa doente.
Uma das possibilidades que tem sido apontada pelos indígenas
para começar a amenizar essa questão nas aldeias é utilizar o espaço da
escola como um local para difundir o saber tradicional seja por meio da
presença dos anciãos nas aulas ou também pela pesquisa e produção
de materiais didáticos com esses conhecimentos escritos na língua
indígena.
O abandono dos jovens do tratamento com a medicina tradicional,
feita pelos xamãs e pajés, que ao longo de décadas tem acumulado um
amplo conhecimento sobre o tratamento de inúmeras doenças usando
os elementos presentes no meio ambiente local tem sido recorrente
29
Medicina Indígena
em várias etnias de Mato Grosso, como os Kayabi e os Bakairi, que em
entrevistas com os anciãos eles deixaram claro essa ruptura que está
acontecendo na transmissão dos conhecimentos sobre a medicina
tradicional.
Outra situação que contribui para essa realidade presente no
contexto das aldeias é o fato das mulheres índias fazerem o seu parto
em hospitais das cidades mais próximas, dando já neste momento
o início do processo com os medicamentos dos não indígenas e o
abandono das tradições indígenas que primavam por uma dieta
rigorosa e um tratamento por meio de banhos, infusões, pajelanças e a
ingestão de medicamentos feitos pelos próprios índios, como ressalta
o depoimento a seguir:
Atualmente, usamos mais os remédios químicos para nos tratar porque já conhecemos os remédios das farmácias. Algumas
pessoas acham que é melhor do que remédios medicinais tradicionais, mas também temos muitos remédios medicinais que
são melhores que os da cidade. Como antigamente as mulheres
ganhavam o bebê nas aldeias e agora, ninguém quer mais ter
parto na aldeia, mas isso não quer dizer que estamos recusando os nossos remédios medicinais, apenas que temos muitas
mudanças de antigamente para hoje. Antes, não existia posto
de saúde na aldeia, por isso que a comunidade usava mais os
remédios medicinais. Tratavam na aldeia mesmo, não iam para
cidade, isso, só se fosse uma doença muito grave que eles procuravam hospital na cidade. De antes para hoje aconteceu muitas
mudança, mas, continuamos usando remédios medicinais tradicionais (Bakairi, 2006).
É importante deixar claro aqui nossa posição de que não somos
contra a presença da medicina não indígena nas aldeias, bem como
de medicamentos farmacêuticos, no entanto o que acreditamos ser
30
tradicional, para que este conhecimento seja integrado ao sistema
sanitário oficial.
A ausência dessa política de valorização da medicina tradicional
indígena tem ocasionado interferência inclusive nas práticas culturais
de várias etnias, como por exemplo, entre os Bakairi, quando a menina
menstruava pela primeira vez, ela ficava reclusa em casa por um
longo período onde recebia banhos especiais de ervas, seguia uma
rigorosa dieta alimentar e o mais importante, era durante esse período
que as mulheres mais velhas da aldeia transmitiam uma série de
conhecimentos para a menina que estava virando moça. Atualmente
muitas mães levam as filhas ao posto de saúde, onde é medicada e
orientada retornando em seguida à vida cotidiana.
Desafios: Conhecimento Tradicional e Modernidade
o certo é a existência de política pública de valorização da medicina
Outro aspecto que deve ser levado em consideração quando
se trata deste tema é a mudança na forma de produção agrícola em
muitas aldeias, com a inserção das roças mecanizadas que destroem
toda a mata ou o cerrado, provocando com isso o desaparecimento de
muitas espécies de plantas e animais utilizados na medicina tradicional
indígena. O uso de agrotóxicos nas lavouras vizinhas às Terras Indígenas
também contribui para esse processo. A respeito desta questão uma
senhora Xavante da região de Primavera do Leste afirma que:
[...] diminuindo as alternativas de obtenção de alimento, portanto alterando vida material do grupo, afeta consequentemente
suas práticas sociais que dependem dessa base material; os índios em muitas aldeias são “forçados” a trabalhar. Criando gado
ou plantando para os fazendeiros vizinhos num regime de parceria. Muitas vezes negociando com madeireiras árvores nativas
– como antigo escambo ou assumindo o papel de “garimpeiros”
sendo desmoralizados diante da sociedade nacional. É essa uma
das maneiras que vem sendo utilizada de modo amplo para a
31
Medicina Indígena
exploração do trabalho indígena, cuja autonomia fica ameaçada
diante da falta de recursos que é colocada para as aldeias pressionando-as de fora para dentro. Na T.I Sangradouro/MT, a preocupação das famílias Xavante com o desmatamento, com as
queimadas dentro da respectiva reserva e seu entorno, vem destruindo o patrimônio natural que serve de base material à sua
própria sobrevivência e a de seus descendentes. Como em uma
agricultura comercial mecanizada e em larga escala recorre-se
frequentemente ao uso de insumos químicos e agrotóxicos, técnicas adversas às práticas agrícolas das populações indígenas,
ocorre inevitavelmente a poluição das nascentes, lagoas e rios
(Senhora Xavante, 2008).
Diante do exposto, é fundamental o desenvolvimento de
estratégias de articulação entre os sistemas médicos indígenas e
o sistema oficial de saúde, contribuindo assim efetivamente para
valorização e fortalecimento das medicinas tradicionais indígenas.
A facilidade do consumo de remédios alopáticos hoje nas aldeias,
em muitos casos sem orientação, tem contribuído para o desuso dos
medicamentos tradicionais. É muito importante o estabelecimento
de ações que promovam a valorização da medicina tradicional e a
efetivação do direito à atenção diferenciada na área da saúde indígena.
Podemos perceber claramente essa situação na narrativa desse
indígena Nambikwara:
As plantas medicinais não devem ser deixar de lado pelo povo
Nambikwara, o pajé tem uma função muito importante na nossa
cultura, porque preserva todo esse conhecimento e cura várias
doenças que dão nas pessoas da aldeia. Segundo os velhos, as
plantas medicinais são muito importantes para o nosso povo,
temos que saber como utilizá-las e como preparar os remédios.
Os remédios da farmácia hoje estão muito fortes na nossa
aldeia por causa das doenças diferentes que vão aparecendo,
não sabemos a causa, por isso, os remédios que conhecemos
32
Entre os povos indígenas a medicina tradicional é amplamente
utilizada, desde o nascimento, mas também nos rituais de passagem,
onde a criança ascende a outro status no grupo social em que vive.
Nesses momentos são amplamente utilizados as ervas e as rigorosas
dietas.
Citaremos como exemplo os índios Rikbaksa, que vivem na região
de Juína no estado de Mato Grosso, onde o menino ao completar a
idade entre 10 a 15 anos fura a orelha para colocar o batoque, fura-se
com espinho juntamente com uma folha de tucumã. Os cuidados são
Desafios: Conhecimento Tradicional e Modernidade
às vezes não combatem as novas doenças. Os agentes de saúde
poucos conhecem as plantas medicinais, como se usa, para qual
doença serve, por isso, é bom conhecer bem os tipo de plantas
e como vai preparar a dose certa, e como deve ser tomada
(Nambikwara, 2006).
de 1 ou 2 meses, sendo o que faz alargar o furo é o “pauzinho” com a
folha de tucumã enrolada e periodicamente retirado para fazer com
que o furo fique cada vez mais largo.
Neste período o jovem não pode conversar com os meninos nem
com as mulheres, para não arrebentar a orelha. A alimentação também
é restrita, não pode comer para encher a barriga, não pode comer
comida quente, só depois que esfriar. Um velho sábio fica com ele toda
a semana, é uma fase especial, quando passa a ser homem adulto.
Esse povo faz também uma tatuagem no corpo que requer
cuidados tradicionais como tomar chicha de batata roxa e de milho
carijó. Depois que a tatuagem estiver sarada é feito chicha de milho cru
numa panela pequena e após tomar essa bebida ela deve ser vomitada
numa corredeira ou cachoeira, para limpar os males estomacais, como
relata o índio Rikbaktsa:
33
Medicina Indígena
Antigamente, antes do contato com o homem branco, o meu
povo Rikbaktsa usava muitas ervas medicinais para curar as doenças mais fracas e fortes, pois cada erva tem o seu valor quanto
à reação química curando o que é mais fácil de curar. Isso levava uma consideração muito grande para o meu povo. Naquela
época não tinha doença contagiosa como existe hoje. Vivíamos
alegres e felizes. Depois de passar muito tempo quando fomos
pacificados pelos homens brancos começaram a aparecer doenças que não tem cura, como DST, AIDS e outras perigosas. Mantemos nossas tradições de usar as ervas em vários momentos,
curando doenças mais fracas. Também preservando as nossas
ervas e repassando aos mais jovens, para que deem valor as nossas ervas usando sempre na cura das doenças mais fracas, como
gripe e dor de cabeça (Rikbaktsa, 2006).
Diante destes relatos notamos nitidamente a necessidade de
que o sistema de saúde leve em consideração entre os povos indígenas
o processo de gestação, parto e pós-parto, além da importância dos
sistemas médicos indígenas com suas cosmologias xamânica e os
sistemas de parentescos, bem como a corporalidade e a construção da
pessoa como parte do tratamento.
Entre os índios existem conhecimentos que podem definir
inclusive o sexo da criança que o casal pretende ter. Uma espécie de
planta que o pajé ou xamã colhe possibilita esse conhecimento, sendo
que se ele colher as folhas da parte de baixo da planta e a mulher tomar
o chá, a filha será menina, se colher as folhas da parte de cima e fizer o
chá a mulher terá um filho do sexo masculino.
Um caminho que tem sido apontado para contribuir com o
fortalecimento da medicina tradicional indígena tem sido a área da
educação, onde os professores estão inserindo nos projetos políticos
pedagógicos das escolas a discussão dos conhecimentos tradicionais
com a presença dos anciãos.
34
os alunos que tem resultado em materiais didáticos para a escola,
representa uma forma de registro e perpetuação desse patrimônio que
tem sido passado pela oralidade de geração para geração.
Para tanto é preciso preparar essa nova geração de profissionais
não indígenas para lidar com as subjetividades, com a diversidade
étnica e cultural e principalmente com o diferente.
A construção de pontes dialógicas entre esses dois universos
socioculturais distintos, os sistemas médicos tradicionais indígenas
e a medicina cientifica são fundamentais nos dias atuais, até porque
temos muito, muito mesmo o que aprender com a medicina tradicional
indígena.
Dessa forma, refletindo sobre o contexto das plantas medicinais
Desafios: Conhecimento Tradicional e Modernidade
Também as pesquisas feitas pelos professores juntamente com
no enfoque de diferentes abordagens em terras mato grossenses
podemos remeter entre outras, para as contribuições oriundas de
Guarim Neto (1987, 1996, 1996a, 2001, 2006), Schimöller (19978) Guarim
Neto; Maciel (2008), Guarim Neto; Carvalho (2011) que tratam da
diversificação de usos das espécies em ambientes do cerrado, pantanal
e floresta.
35
Etnoconhecimento:
Plantas Medicinais Utilizadas em
Aldeias Indígenas
Neste capítulo apresentamos, com base nos dados empíricos
coletados pelos indígenas que realizaram cursos de graduação e pósgraduação na Licenciatura Indígena Intercultural da UNEMAT, uma
série de plantas usadas para fins medicinais, de diferentes etnias, com o
objetivo de revelar a percepção que esses povos têm do meio ambiente
em que estão inseridos, bem como os etnoconhecimentos que ainda
encontramos nestas comunidades, que estão resistindo, como vimos
no capítulo anterior, ao processo de contato que tem proporcionando
uma acelerada situação de ressignificação cultural com uma rapidez
impressionante, deixando marcas profundas nas gerações mais jovens.
Também devemos levar em consideração a riqueza de saberes
que estas comunidades indígenas possuem sobre as propriedades
medicinais que, conforme Santos et. al. (2010), afirma que o estudo
sobre a medicina tradicional ou popular, está cada vez mais merecendo
atenção, devido às inúmeras informações que tem possibilitado o uso
na profilaxia e tratamento de doenças em várias regiões, uma vez
37
Medicina Indígena
que as comunidades indígenas possuem um amplo conhecimento do
ecossistema em que estão inseridas.
Outro aspecto importante é que as populações indígenas do
estado de Mato Grosso estão em toda a sua extensão territorial,
fazendo com que tenhamos povos indígenas em diferentes biomas
como o cerrado, o pantanal e a floresta amazônica, ampliando assim
a possibilidade de terem conhecimento sobre um acervo fabuloso da
flora do estado.
Como salientamos no início deste relatório, Mato Grosso
apresenta uma diversidade de povos que ocupam diferentes regiões,
o que consequentemente, seria difícil abordar numa pesquisa todos os
povos existentes e as plantas que utilizam.
O nosso objetivo aqui foi de apresentarmos aspectos relevantes
de alguns povos no que se refere à medicina tradicional, bem como
de algumas plantas que são do conhecimento popular e outras que só
conseguimos obtê-las na língua indígena.
Entretanto o cenário que vamos apresentar possibilita vislumbrar
a riqueza de saber relacionados às plantas, e como esse conhecimento
está imbricado nas práticas cultuais de cada etnia.
Plantas usadas para tratamento medicinal do povo
Nafukuá
O povo Jaramü (Nafukuá) pertence ao tronco linguístico Karib,
vivendo atualmente na região norte da Terra Indígena do Xingu,
município de Gaúcha do Norte – Mato Grosso.
38
ampla utilização da medicina tradicional, onde a comunidade extrai da
raiz de determinadas plantas a cera e a resina para combater doenças,
revelando uma interação harmoniosa com a natureza, de onde colhem
os alimentos e as plantas para fazer remédios.
As frutas do meio ambiente fazem parte da dieta deste povo.
Cultivam roças para terem alimentos ao longo do ano, além da caça e
da pesca.
O pajé ou curandeiro é a pessoa na aldeia que entra em contato
com a dimensão dos espíritos, para saber o que está fazendo mal para a
pessoa doente e indicar a planta correta, bem como a forma de utilizar
para se libertar da doença.
A diarréia é uma enfermidade que ocorre com frequência entre
os moradores dessa comunidade, o que fez com que desenvolvessem
ao longo dos anos, medicamentos para a cura dessa doença. Na cultura
do povo Nafukuá, a diarréia pode ser causada por:
A - Quando o homem corta madeira
Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas
Uma das práticas culturais marcante neste povo consiste na
Um indígena que tem filho de até dois anos de idade, não pode
fazer artesanato de madeira, como banco e remo, como também não
pode cortar árvore de copaíba - ûêgühi etali - que é uma árvore usada
na festividade do Kuarup (homenagem da família ao espírito do cacique
morto).
Caso ocorra, a criança terá diarréia. Outras madeiras por eles
denominadas de kanguãkuêgü, kumehupe, tolohügi, ugagati, ututi e
tinhah, também fazem mal para o bebê caso o pai faça algum artesanato
ou utilize a madeira dessa árvore no preparo da roça.
39
Medicina Indígena
B - Quando o pai ou a mãe comem peixes
Comer alguns tipos de peixes como: piranha da cabeça vermelha,
pirarara, mandi, katsahágu, uguta (cascudo) e itate, causam diarréia na
criança recém-nascida ou de até dois anos de idade. Portanto, o pai e
a mãe não podem comer o peixe enquanto a criança tiver essa idade,
evitando com isso a diarréia e o vômito. O peixe que mais causa diarréia,
segundo os Nafukuá, é a pirarara e a piranha de cabeça vermelha.
C - Por ingestão de alimento preparado pela mulher durante o
período de menstruação
Ocorre com qualquer pessoa, quando come alimento que foi
preparado pela mulher menstruada. É o tipo de diarréia mais grave.
D - Na reclusão
Quando a mulher menstrua e fica junto com os meninos, na
mesma casa dos jovens, eles podem ter dor de barriga e diarréia.
A diarréia que ocorre no rapaz ou na moça quando está na
reclusão pode também ser provocada por comida salgada, peixe cozido
ou alimento gorduroso.
GENGIBRE
O gengibre, mesmo sendo uma especiaria proveniente do
oriente, atualmente é um remédio usado com muita frequência pela
etnia Nafukuá no combate a diarréia. O gengibre é plantado tanto na
roça quanto no terreiro da casa, sendo também encontrado no mato.
Para preparar o remédio de gengibre, é utilizada a raiz e não a folha.
A manipulação desse remédio é executada da seguinte forma:
rala-se a raiz de gengibre na cuia com uma pedra, depois faz-se um
chá para tomar. Esse remédio é misturado com água e com tupaga
40
português.
Para os Nafukuá, durante o tratamento o paciente não pode
ingerir qualquer alimento, apenas tomar mingau, como kambüjükü
(mingau de água engrossada com polvilho). O chá deve ser tomado
durante três dias, dependendo das condições do doente, parando de
beber tão logo a diarréia cesse.
O gengibre pode ser usado também para outras situações
como, quando a pessoa sente cansaço. Então o corpo é arranhado
(escarificação) passando gengibre ralado com um pouco de água, na
parte do corpo que foi arranhado. Também é usado como remédio
para cãibra.
Quando a mulher grávida apresenta dificuldade no parto, é
comum a grávida tomar o gengibre ralado com água, facilitando assim
o trabalho de parto.
Outra prática cultural interessante consiste em colocar, pela
manhã numa panela de barro, um pouco da cera de abelha com espinhas
Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas
hotugu, remédio da fruta de uma árvore que não tem tradução para o
do peixe (pirarara ou piranha da cabeça vermelha), queimando na
brasa até fazer fumaça. Essa fumaça é usada para purificar o corpo da
criança.
O cipó chamado pelos Nafukuá de kuôgo-hopitsü (barba da
pirarara), também é usado como remédio. Quando a pessoa come
pirarara e depois o filho sente diarréia e vômito, o tratamento é
feito com esse cipó, encontrado na beira dos rios, É utilizado depois
de socado com um pedaço de madeira numa panela ou cuia até que
fique mole. Em seguida mistura-se água, espreme-se e esfrega sobre a
barriga da criança que está passando mal.
41
Medicina Indígena
Plantas usadas para tratamentos segundo a
medicina tradicional do povo Kurâ (Bakairi)
Assim como nas demais etnias, os Bakairi da região do Município
de Paranatinga, reconhecem a importância de registrar a sabedoria dos
velhos acerca do uso das plantas medicinais.
SEKADY (AROEIRA)
A parte usada no tratamento é a casca Deve-se extrair sempre
o lado voltado para o nascer do sol. Para fazer o preparo é preciso
separar a casca fina da casca grossa e depois lavar com água as duas
cascas. Em seguida, colocar a casca fina em uma vasilha para ferver por
alguns minutos. Após ter fervido, esfriar um pouco para ficar morno e ir
despejando a água no local machucado (banho). Feito isso, enfaixa-se o
local para a fratura não ficar exposta.
Esse procedimento (banho) deve ser feito três vezes ao dia,
evitando sair no frio. Também é preciso ficar de repouso e não consumir
alimentos muito salgados para não complicar e interferir no tratamento.
Já a casca grossa é colocada em pedaços no local fraturado e depois é
enfaixado. Só é retirado o curativo quando for fazer outro.
TOIAPI (PIÚVA OU IPÊ)
É uma planta encontrada nas matas ciliares, em áreas de cerrado
ou perto de rios. É uma árvore ornamental cuja floração ocorre na
estação seca, época em que perde todas as folhas. As flores duram
poucos dias e fornecem alimento para insetos, macacos e aves. A parte
42
sol nasce.
Após a extração da casca é feito o mesmo processo da preparação
da aroeira. Primeiro deve lavar a casca com água, colocando em seguida
em uma vasilha com dois litros de água, levando ao fogo para ferver
por uns cinco minutos. Em seguida, deixar esfriar até ficar morna,
derramando lentamente (banho) no local machucado.
Ao terminar, enfaixa-se o local, fazendo curativos três vezes ao
dia e permanecendo em repouso. Não sair em ambiente frio ou com
vento, também não deve consumir alimentos muito salgado.
Na medida em que a parte da planta extraída for secando,
o local também vai cicatrizando. Fazer o curativo diariamente, por
aproximadamente uma semana.
MATUE (Sem Tradução)
É uma planta encontrada no cerrado. O tronco dessa planta
Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas
usada dessa planta é a casca, que é extraída sempre do lado em que o
possui a casca grossa e as folhas são ásperas. Produz frutas amarelas,
bem pequenas e de sabor doce. A parte da planta utilizada como
medicamento é a casca, que também deve ser extraída do lado que o
sol nasce.
Depois de extraída é só fazer o preparo que consiste em primeiro
lavar a casca colocando em uma vasilha com um pouco de água, levando
ao fogo para ferver por alguns minutos. Deixe esfriar até ficar morna.
Passar no local machucado e enfaixar.
43
Medicina Indígena
TUARA (Sem Tradução)
É uma planta também do cerrado. Seu tronco não é muito grosso
e as folhas são miúdas. A parte da planta utilizada como medicamento
é a casca que, semelhantes as anteriores já descritas, é extraída do lado
que o sol nasce. Depois de extraída, lava-se a casca com água e coloca
em uma vasilha com água para ferver.
Quando fervida, esfria até ficar morna e lava (banho) o
local fraturado três vezes ao dia. Não esquecer de enfaixar o local
machucado. Todas as vezes que for usar o remédio novamente, devese aquece-lo antes de fazer o curativo. A pessoa deve ficar de repouso
e não consumir alimentos salgados. Fazer o preparo diariamente para
seu uso.
KYADUGI (MANGAVA-BRAVA)
É uma planta encontrada no cerrado, sendo a sua casca a parte
utilizada para fazer o medicamento, levando em consideração que
deve ser extraída do lado que o sol nasce. Não é preciso cortar a árvore,
basta tirar a casca grossa (primeira camada de casca) e depois raspar
com uma faca a casca fina, coletando assim o material com o qual irá
preparar o remédio.
Para o preparo deve-se colocar o material retirado em uma vasilha
com água, levando ao fogo para ferver por cinco minutos. Espera-se
esfriar, coando com um pano limpo e armazena-se em um recipiente
para usar diariamente, três vezes ao dia, até o ferimento cicatrizar.
44
dia) como medicamento para ferimentos internos, principalmente no
intestino e no estômago.
AKI-IWANTAUNLU (LIXEIRINHA)
Planta encontrada no cerrado, sendo sua raiz utilizada pelos
Bakairi na cura de cortes. A raiz, depois de retirada do solo, deve ser
lavada com água, raspada e colocada em uma vasilha com um pouco de
água para ferver. Após a fervura, aguarde esfriar para então coar com
um pano limpo e acondicionar num recipiente.
O tratamento consiste em beber duas colheres de chá, duas
vezes ao dia. Também recomenda lavar o local do corte três vezes ao
dia, até que o ferimento esteja cicatrizado.
Assim como todos os outros medicamentos, o paciente precisa
repousar evitando consumir alimentos muito salgados para não
interferir no processo de ação (cura) por intermédio do medicamento.
Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas
Também pode ser ingerido (uma colher de chá duas vezes ao
Plantas medicinais usadas pelo Povo Waurá.
Os Waurá são uma etnia que habitam há décadas no mesmo
local, na Terra Indígena do Xingu, onde nos dias atuais convivem com
outros povos como Trumai, Mehinako e Yawalapiti.
Mantêm ainda nos dias atuais suas práticas culturais tradicionais
como mitos, ritos, pesca, roças, organização social, entre outras.
Constroem as casas no formato tradicional das etnias do Xingu.
Elaboram artesanatos, com os quais conseguem dinheiro para comprar
produtos industrializados nas cidades.
45
Medicina Indígena
Conhecem cada estação do ano através de um fantástico
calendário que tem como referência as flores, as folhas e frutos verdes
e maduros, as estrelas, o canto das aves, as borboletas, entre outros
seres e elementos da natureza.
As famílias moram em casas separadas. Quando uma mulher
grávida dá à luz a uma criança, ela fica reclusa na casa sem fazer nada.
Não pode comer peixe e só a mãe dela pode fazer comida para ela,
numa dieta a base de aves e macacos.
YETULA (MANGABA)
Sua utilização é feita tirando um pedaço da raiz que, depois de
descascada, é colocada numa vasilha com água para esquentar até o
ponto de fervura, quando então é retirada do fogo.
Após esfriar, molha um chumaço de algodão e coloca no dente
que está doendo.
Também costumam retirar a resina do galho da mangaba, usando
um copinho feito com uma folha.
Após esse procedimento, pinga esse líquido no dente que,
segundo os mais idosos, a dor diminui em pouco tempo.
A Yetula é um arbusto que produz flores e frutos comestíveis.
É encontrada nas capoeiras. Possui as folhas com tonalidades verde e
vermelha.
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Desta planta é recolhida cerca de dez folhas verdes que são
esmagadas em uma cuia com água. Espreme-se bastante para fazer
um caldo bem grosso e bochechar que a dor diminui. Não é necessário
aquecer no fogo e nem misturá-la com outras plantas.
Outra forma de uso consiste em pegar galhos inteiros, que
são queimados até virar cinza, que é recolhida e colocada na panela,
com um pouco de água, levando ao fogo para esquentar, coando em
seguida. Esse líquido de cor escura é utilizado na forma de bochecho
no decorrer do dia.
ULEI-XUMÃ (PLANTA DO CAMPO)
Planta nativa do campo, pequena e semelhante à mandioca, com
flores de cor amarela. A forma como é utilizada é simples, bastando
apenas mastigar a raiz, que solta um líquido viscoso, usado contra
cáries e dor nos dentes. Não deve ser consumida junto com outra
Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas
AYU (ALGODÃO)
planta medicinal.
MALAHĨXŨ (PLANTA NATIVA)
Para obter as propriedades medicinais dessa planta, segundo os
índios Waurá, faz-se necessário tirar a casca para, entre a madeira e
a casca, obter um líquido fino, incolor, em pouca quantidade, mas de
grande potencial anestésico e anti-inflamatório, que deve ser passado
com algodão na boca e no dente quando está inflamado.
47
Medicina Indígena
WALAPÁ (PLANTA NATIVA DA MATA)
Semelhante com a planta anterior, inclusive na forma de usar
e no potencial anestésico e anti-inflamatório. Também não deve ser
misturada com outras plantas quando estiver sendo usada. Aparenta
na forma de uma árvore de porte grande com folhas pequenas.
MAPISAKURŨ-KUMÃ (PLANTA DO CAMPO E DO CERRADO)
Esta planta segundo os indígenas, possui um efeito analgésico
forte que, ao mastigar a sua casca, proporciona o imediato alívio da dor
de dente. Não deve ser misturada com outras plantas. É uma planta
nativa, pequena, com folhas bem coloridas. Sua denominação não tem
tradução para o português.
ANATOPE (PLANTA NATIVA DO CAMPO)
As propriedades medicinais são eficazes no tratamento da dor
de dente, sendo o seu potencial obtido espremendo as folhas desta
planta, até que se consiga uma espécie de resina que então é passada
no dente que está doendo, aliviando a dor e também a infecção, caso
tenha.
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UIBRÓIWEDE (SUCUPIRA)
Amplamente usada no tratamento da diabetes entre os Xavante,
consumida na forma de chá, feito com a raiz, a folha e cascas do tronco
da árvore, que atinge altura e dimensões consideráveis.
‘RÉ É ‘RÃ (sem tradução)
Árvore de médio porte, frutífera, apreciada como alimento pelos
pássaros. As flores são cor-de-rosa. Para o diabetes utiliza-se somente
a fruta, que é fervida em água e bebida na forma de suco.
WEDETEDE (IPÊ)
Árvore de grande porte, encontrada no cerrado, sendo a madeira
Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas
Plantas medicinais do povo Xavante
de grande utilidade para os Xavante. Pode ser encontrado com flores
amarelas, roxas ou cor de rosa. Quanto mais frio e seco for o inverno,
maior será a intensidade da florada do ipê amarelo e roxo, que floresce
durante os meses de maio e agosto e perdem totalmente suas folhas.
Os frutos amadurecem a partir de meados de setembro ou outubro,
sendo consumido como um potencial medicamento para combater o
diabetes.
Sobre plantas usadas com a finalidade de tratamento do diabetes,
vale ressaltar a contribuição recente de Rieder; Guarim Neto (2012),
49
Medicina Indígena
que apontam diferentes espécies da flora de Mato Grosso usadas para
tal finalidade.
UHÖTETEPA
Planta amplamente encontrada no cerrado. Os indígenas
preparam da seguinte maneira: arrancam as raízes, ralam e deixam no
sol para que fiquem bem secas, depois passam o pó direto nas feridas
que cicatrizam rapidamente. Não tem tradução para o português.
ITSUI’RÉPAQUE (DOURADÃO)
Essa planta cujo nome na língua Xavante é itsui’répaque, também
encontrada no cerrado, é muito usada no tratamento de feridas.
Utilizam também a raiz da planta, só que com esta eles torram no fogo
e socam no pilão até virar pó, que é colocado no ferimento, tendo
rápida cicatrização.
WEDE’UWAHÖ (Não tem tradução)
O preparo dessa raiz, também encontrada no cerrado, é um
pouco diferente das anteriores: Descasca-se a raiz e em seguida colocase numa vasilha com água fria. Depois de algumas horas, lava-se várias
vezes no decorrer do dia a ferida com a água onde a raiz estava de
molho. O Efeito de cicatrização é rápido.
50
O remédio preparado com essa planta, também é feito da raiz,
que é deixada ao sol para que fique bem seca, levando em seguida ao
fogo para ser torrada e moída até virar um pó de cor cinza escuro, que
é colocado diretamente sobre a ferida.
WETSUIRE (Não tem tradução)
No preparo do remédio com essa planta, utiliza-se apenas as
folhas, que são colhidas e deixadas ao sol para que fiquem bem secas.
O procedimento seguinte consiste na queima das folhas até que vire
cinza. Coloca-se o pó diretamente nas feridas.
ITSUIHÖIRE (Não tem tradução)
O remédio dessa planta também é extraído da raiz, que é torrada
e moída, para em seguida, semelhante aos outros, colocada sobre o
ferimento.
Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas
WEDE’UWAHÖIRÃ (Não tem tradução)
51
Conhecimento Indígena
e Cosmologia
A mídia do século XXI frequentemente apresenta antropólogos
debatendo-se para decidir que papel os índios devem desempenhar
no cenário nacional. A posição oficial nem sempre coaduna, quer seja
com organizações não governamentais ou a opinião pública. Desde a
segunda metade do século XIX, a escola positivista (HEMMING, 2004)
criou raízes – através da difusão do processo evolutivo em estágios
específicos, desde as sociedades primitivas para as maduras – no seio
da classe média brasileira. Rapidamente esse pensamento cresceu
e se assemelhou a uma teologia, tendo como um dos precursores o
explorador e fundador do Serviço de Proteção ao Índio, Marechal
Cândido Rondon.
As etnias nativas brasileiras – mais especificamente da Amazônia
– eram então entendidas indubitavelmente como o primeiro estágio
de evolução cultural, externando o ápice do animismo, ou a crença
de que qualquer objeto natural podia ter um espírito. Segundo essa
filosofia, os indígenas eram incapazes de pensamento racional, apesar
53
Medicina Indígena
de concordarem que desse estágio de primitivismo cultural, poder-se-ia
alcançar estágios mais avançados de desenvolvimento.
Para Reel (2011) pode-se sintetizar a fórmula foi “saltar do
animismo ao politeísmo, daí ao monoteísmo e por fim ao racionalismo
ilustrado”.
O efeito principal dessa filosofia – positivismo – entre os
indígenas do Brasil foi a conversão religiosa, mais especificamente
ao cristianismo, conforme relata o presidente americano Theodore
Roosevelt em visita ao Brasil:
“Para os índios sul-americanos, o cristianismo é o primeiro passo
para ascender do estado de selvageria. Observa-se que em vários distritos, os homens são divididos em duas grandes classes:
cristãos e índios. O índio só é completamente aceito, ou assimilado pela simples civilização circundante, quando ele se torna cristão, podendo, a partir de então se mover como qualquer outra
pessoa” (ROOSEVELT, 1914).
Em torno de 1930 – com o surgimento do relativismo cultural
– os antropólogos brasileiros passaram a apresentar outros termos
para designar os “primitivos” e os “selvagens”, alegando que
eram designações tendenciosas aplicadas de forma injusta pelos
antropólogos europeus. Aliada as novas denominações – de certa
forma puramente acadêmicas – novas teorias (Freud, Jung) sugeriam
que as culturas indígenas representavam um estágio infantil do
desenvolvimento humano.
Nessa época, foi fácil correlacionar o sistema de crenças ou
religiões das sociedades indígenas com a condição de criancinhas
incapazes de distinguir a realidade objetiva, onde Marcelo Gomes
complementa: “de sua própria objetividade” (GOMES, 2000).
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códigos espirituais – que os indígenas mantêm com pessoas imaginárias,
entidades religiosas ou animais, natureza e plantas, transmitidas entre
gerações através dos anciãos.
Não é intenção, neste capítulo, estudar as religiões indígenas,
mas sim buscar a correlação, através dos autores como Darcy Ribeiro
(1950, 1974), Emile Durkheim (1989), Mircea Eliade (1994) e Roque
Laraia (2005) desse sistema de crenças que age em seu mundo interior
com a natureza envolvente.
A relação afetiva com a “Mãe Terra”, a convivência harmoniosa
com a natureza, ou tão harmoniosa quanto lhes é permitida, com
Conhecimento Ind[igena e Cosmologia
Nessa linha é possível verificar que a relação – através de seus
seus saberes transmitidos oralmente, pela palavra e pelo exemplo.
O que nesse processo de transmissão conserva-se ou se altera, afinal
todo aprendizado é dinâmico, mantém os valores antigos e em algum
grau o modifica e incorpora o novo. O aprendizado cotidiano acerca
da natureza e da própria relação com o outro passa ao largo de uma
cultura formal, o que, sob certos aspectos pode ser uma vantagem
para essas culturas assediadas pela força da civilização ou da cultura
dominante.
Como esse conhecimento é perpassado através de ritos,
arraigados crenças num processo dinâmico, a que nenhuma cultura é
refratária, talvez nos leve para a questão fundamental que é a magia do
mito, onde surge o indivíduo principal de todas as sociedades indígenas,
por vezes designado pelos etnólogos pelo termo xamã, caracterizando
(a nosso ver nessa ordem) o feiticeiro/médico/homem com seus
poderes mágicos. Por traz dos “impostos” Adões e Evas, transcendem
espíritos que flutuam por florestas sagradas que fornecem o fluido
vital para a cura de doenças, usado em rituais de pajelança – as plantas
medicinais.
55
Medicina Indígena
Vimos em capítulos anteriores o amplo conhecimento que
as comunidades tradicionais, em particular as indígenas, possuem
em relação à natureza e a convivência harmoniosa que estabelecem
com o meio ambiente com o qual se relacionam, uma mescla entre
os fantasmas que podem proteger o pajé e sua etnia ou prejudicar o
inimigo.
É por meio da oralidade e do aprender fazendo que os saberes
dos anciões e dos pais, através de mitos, histórias e contos são
ensinados aos jovens a forma como lidar com a natureza, as fases e
ciclos, bem como a importância de manter o equilíbrio com o seres da
mata. Em nossas experiências com etnias como os Kuikuro, Waurá,
Ikpeng, Xavante, entre outras, tivemos a oportunidade de perceber a
transmissão de códigos morais através de histórias entre as gerações.
A sociedade não índia ao longo das décadas, em decorrência da
vida moderna, foi distanciado cada vez mais da natureza, vendo nela
um bem de consumo a serviço do capital, consequentemente também
foi deixando de valorizar o seu caráter espiritual, os seres sobrenaturais
que estão diretamente ligados com a natureza e que orientavam
gerações passadas, restando apenas poucos nichos sociais que ainda
valorizam esses conhecimentos.
Os povos indígenas de maneira geral mantiveram, e muitas
comunidades ainda mantêm uma estreita relação espiritual com
seres que vivem na natureza em locais tidos por sagrados como rios,
pedreiras, cavernas, matas, entre outros.
A entrada de forma avassaladora nos últimos anos de missionários
impondo as religiões de matriz judaico-cristã em Terras Indígenas tem
provocado danos irreparáveis, na medida em que condena as práticas
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dogmas presentes no evangelho.
Essa ação tem provocado uma ruptura nos conhecimentos
tradicionais de uma geração para outra, onde os jovens indígenas
estão cada vez mais desconhecendo os valores espirituais de seu povo,
fragilizando a identidade étnica e cultural de muitas comunidades
tradicionais do estado de Mato Grosso.
Retomando a questão inicial, a importância da espiritualidade
indígena, é fundamental ressaltar que em muitas aldeias os espíritos,
sejam da natureza ou de antepassados, são a base para a realização de
inúmeras atividades com os ritos, mitos, caça, pesca, extração de matéria
Conhecimento Ind[igena e Cosmologia
religiosas tradicionais da cultura de cada povo e impõe a prática dos
prima para a confecção de adornos, a produção de medicamentos da
medicina tradicional, o preparo e a colheita das roças. Todas essas
atividades cotidianas estão amplamente interligadas com o mundo dos
espíritos.
Algumas
comunidades
indígenas,
como
ressaltamos
anteriormente, tem na realização de suas roças um série de atividades
que envolvem a espiritualidade, pois para eles existem os espíritos que
cuidam das plantas, que protegem as roças das pragas e fazem com
que a produção seja farta.
Ao conversarmos com vários indígenas, entendemos o quanto
é importante essa relação com os espíritos nos diferentes momentos
da vida da pessoa e da comunidade. Ele está presente nos sonhos e no
sentido da vida.
Também temos que levar em consideração as consequências
advindas do não respeito às crenças no universo dos espíritos, como
as doenças que aparecem, a falta de alimentos, desastres, brigas, entre
outras coisas ruins que acontecem com a comunidade.
57
Medicina Indígena
Diante deste contexto, a espiritualidade entre os povos indígenas
é parte intrínseca da sua cultura e identidade, fator que em muitas
comunidades definem os destinos do grupo.
Uma atividade que se aprende muito cedo numa comunidade
indígena é cultivar, cuidar e procurar plantas na mata. Preservar
a natureza faz parte do aprendizado das crianças à medida que
acompanham os adultos nas roças e nos afazeres cotidianos.
Aprendem, segundo Beltz e Januário (2013), desde muito cedo a
frequentar a roça e a colher os frutos da terra, sagrada para eles, que
fornece o alimento para a sobrevivência.
Os saberes da natureza são transmitidos desde muito cedo de
geração para geração, por meio da oralidade, fazendo com que esses
povos passem a ter uma relação diferenciada com o meio ambiente
que o circunda.
Segundo a explicação de um indígena Aweti, do Parque Indígena
do Xingu, o saber sobre a natureza tem sido transmitido para as novas
gerações por meio dos anciões, que explicam para os mais jovens
o processo todo, os calendários estelares (constelações). Os pais
também são responsáveis em ensinarem os filhos sobre come lidar
com a natureza.
Os saberes que essas comunidades possuem acerca da natureza
são tão diversos quanto a humanidade. Da convivência surgem
situações de aprendizagem e de conhecimentos.
Os saberes nas comunidades tradicionais têm uma importância
fundamental na vida social do indivíduo, onde essa diversidade de
experiência é compartilhada dando sentido e identidade para a pessoa.
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verdadeira educação informal, as experiências são compartilhadas e os
fenômenos da natureza e do mundo apreendidos pelos indivíduos.
Quando nos voltamos para as comunidades tradicionais de Mato
Grosso, em especial as indígenas deparamos com um monumental
acervo de mitos, ritos crenças que estão passando por um processo
acelerado de ressignificação cultural, ou seja, por mudanças e
incorporações de novos valores, decorrente do contato com a
sociedade não índia, que poderá a médio e longo prazo, produzir efeitos
devastadores nos saberes tradicionais dessas comunidades.
Diante desse quadro, é importante a pesquisa, o registro e o
Conhecimento Ind[igena e Cosmologia
Por meio do aprendizado cotidiano acerca da natureza, que é a
estabelecimento de políticas públicas de valorização e proteção ao
patrimônio imemorial destas comunidades tradicionais, que fazem
parte da História de Mato Grosso que, num futuro bem próximo,
poderão ter seus conhecimentos tradicionais existindo apenas nos
livros didáticos.
Na concepção do povo indígena Ikpeng, não se classificam os
animais invertebrados da mesma forma como foi estabelecida pelos não
indígenas, em famílias, grupos e subgrupos. Para eles tudos são bichos,
independente em que ambiente vivem ou onde são encontrados.
A classificação Ikpeng é realizada pela semelhança entre os
animais ou com base na sua utilização como alimento.
Outro aspecto intrigante é a classificação com base na
espiritualidade, neste caso feito pelo pajé onde determinados animais
invertebrados são protegidos por espíritos, como é o caso das abelhas,
das lagartas e das borboletas, que por essa particularidade não podem
ser comidos ou pertubados em seu ambiente natural.
59
Medicina Indígena
Uma parcela considerável dos animais invertebrados têm mitos
de origem, como é o caso da formiga saúva e das abelhas nativas da
região, que colocam esses animais numa estreita relação com o mundo
cosmológico dos Ikpeng.
Esse conhecimento dos animais invertebrados que vivem na
natureza, bem como a sua forma de classificação com base em critérios
estabelecidos pela comunidade Ikpeng tem sido transmitido ao longo
de gerações por meio da oralidade, principalmente nos mitos e rituais
realizados nas aldeias, onde os mais velhos, em particular os pajés,
ensinam os jovens esse conhecimento tradicional e secular.
A relação com a natureza e tudo que nela vivem são a base
da manutenção da identidade e das práticas culturais dos povos
indígenas, que para a sua manutenção é imprescindível a comunicação
e o diálogo entre as diferentes gerações presentes nas comunidades,
particularmente com os mais velhos, detentores dos conhecimentos
tradicionais e fortemente ligados com os preceitos espirituais presentes
nas atividades cotidianas de um povo.
A escola representa, a partir desse novo contexto pelo qual
passam as comunidades indígenas, um espaço por excelência para
ajudar na manutenção das tradições, na medida em que insere em seu
projeto político pedagógico a valorização do saber local.
O registro escrito nas línguas indígenas dos conhecimentos
tradicionais tem sido uma forma que tem começado a dar resultados
positivos, especificamente com a produção de materiais didáticos com
temas de relevância para o povo indígena.
Os Ikpeng têm feito isso com grande primor e sabedoria,
registrando na língua indígena os diversos saberes, entre eles os
60
aldeias.
A presença de práticas espirituais entre os povos indígenas tem
uma estreita relação com a natureza, onde buscam neste contato
com o meio ambiente que os rodeiam os ensinamentos dos seres que
povoam o universo sobrenatural.
Entre os elementos mais importantes está a terra, que abriga as
matas, rios, cachoeiras, roças, cavernas e uma infinidade de seres que
fazem parte das concepções cosmológicas e dos mitos indígenas.
No entanto, nos deparamos no momento atual com uma
Conhecimento Ind[igena e Cosmologia
espirituais, que são perpetuados e ensinados nas escolas de suas
preocupação de grandes dimensões que se trata da redução das
Terras Indígenas e dos imensos desmatamentos no entorno das áreas
indígenas que vem provocando impactos nos lugares considerados
sagrados para muitas comunidades.
O desaparecimento de alguns animais também tem sido
recorrente em várias regiões, sendo alguns desses animais como a
onça, a arara, o gavião, algumas espécies de peixes e insetos, parte
integrante do mundo espiritual dos indígenas. Muitas etnias têm seus
mitos de origem relacionados a determinados animais.
A conservação e preservação do meio ambiente implicam
diretamente na sobrevivência de muitas crenças e tradições seculares,
que podem desaparecer para sempre se não foram tomados alguns
cuidados na preservação do meio ambiente.
Outro desafio que as comunidades indígenas estão enfrentando
é a falta de interesse dos jovens indígenas em darem continuidade
ao ofício de guardião dos conhecimentos espirituais, ou seja, de se
tornarem pajés. A tecnologia e as mudanças advindas da modernidade
61
Medicina Indígena
que têm entrado nas aldeias, têm feito com que os jovens não queiram
passar pelo rigor de ser um pajé ou xamã, uma vez que tem que abrir
mão de uma série de atividades cotidianas.
Um pajé ou xamã tem que manter uma alimentação diferenciada,
fazer rigorosos resguardos e não usar uma série de produtos
industrializados como sabonete, perfume, desodorante, entre outros,
que atrapalha no desenvolvimento dos sentidos. Também não podem
manter relação sexual em determinados períodos, principalmente
quanto estão fazendo as curas.
É preciso também que seja um profundo conhecedor da medicina
tradicional, da maneira em como utilizar as plantas da região na
manipulação de banhos, chás, benzeções (OLIVEIRA, 1985) e remédios
em geral. O aprendizado de manipulação das plantas requer um longo
aprendizado, porque envolve os espíritos que vivem nas matas e são
donos de determinadas plantas, sendo necessário saber entrar em
contato com esses seres para poder utilizar determinadas plantas.
O chefe espiritual também tem que ser conhecedor das
diferentes estações do ano e suas mudanças no ecossistema, ou seja,
existe a época certa para retirar os produtos da natureza.
Também tem que ser uma pessoa que conhece os códigos das
estrelas e da lua, pois elas determinam o momento e a forma que se
deve proceder com os espíritos num trabalho de cura, oferenda ou
proteção. Em meio a todo esse emaranhado de códigos e saberes é que
se manifesta a espiritualidade indígena, sendo ela parte fundamental
da manutenção da indentidade e da cultura de um povo. A manutenção
dessa prática é vital para sobrevivência desses povos enquanto grupos
socialmente diferenciados.
62
Considerações Finais
Ao longo desta produção e, principalmente, em mais de duas
décadas de trabalho junto a comunidades tradicionais do estado de
Mato Grosso (ribeirinhos, negros e indígenas) valorizamos o que
denominamos de “saberes étnicos” além de considerar o modo como
eles se inscrevem nos processos pedagógicos.
Ressaltamos, entretanto, mesmo sob pena de parecer
excessivamente conservadores, que o respeito à diversidade e as
garantias de proteção a essas culturas não são incompatíveis com uma
visão universalista que pode e deve permear todo o processo cultural
e educacional.
Podem essas culturas sobreviver e permanecer refratárias a
isso? Poupá-los desse intercâmbio não seria também uma forma de
marginalizá-los e torná-los ainda mais vulneráveis?
Dando ênfase na valorização da experiência, nas lições dos
mais velhos, esta pesquisa apoia-se em depoimentos dos moradores
mais antigos, os sobreviventes de um mundo que está deixando de
63
Medicina Indígena
existir. Até que ponto as gerações mais novas ainda vão valorizar essas
experiências?
Considerando que o ser humano é sujeito e objeto do
conhecimento, usamos da experiência empírica e da memória,
incorporando-as no ato de escrever, como forma de expressão
acadêmica.
Entretanto consideramos importante também a forma como se
inscrevem numa visão de mundo, onde “as concepções cosmológicas
de cada povo” alimentadas a um só tempo pela relação simbiótica
com a natureza e também pela relação com o outro, abre um leque de
percepções e entendimento da relação “ser humano e natureza”.
É intrigante a percepção da medicina tradicional indígena, como
as novas gerações incorporam isso, afinal elas estão a meio caminho
entre a civilização ou cultura de origem e os formidáveis apelos da
sociedade moderna.
Apontamos com base nos depoimentos dos sujeitos desta
pesquisa que os órgãos governamentais, as políticas públicas (que nem
sempre passam ao largo de interesses privados bastante poderosos)
não valorizam a medicina tradicional e introduzem os remédios
alopáticos.
Consideramos importante enfatizarmos como essa medicina
indígena trata o doente e como procede a sua relação com o ambiente
como um todo.
O testemunho do Bakairi André é bastante relevante: “chega um
momento em que o acesso aos remédios vendidos comercialmente se
torna muito mais fácil que a busca dos recursos da medicina tradicional”.
64
necessidade do ritual, que considera as fazes da lua, a posição do sol,
entre outros elementos.
Cultura oral via-tradição, deve ser entendida como passagem,
afinal fora da tradição nenhuma cultura sobrevive, frequentemente o
preço da sobrevivência é conviver com ganhos e perdas.
Considerações Finais
A natureza interage com a cultura material e imaterial, por isso a
Defendemos a posição segundo a qual uma política pública
levada a cabo por órgãos denominados públicos não deve ser refratária
aos valores que estão incorporados numa medicina tradicional que, de
resto, é largamente utilizada por sociedades mais “simples” ou até
mesmo disseminada em centros urbanos.
A própria literatura dá exemplo de personagens que povoam a
imaginação de gerações mais antigas: a figura da “vó” benzedeira ou
da tia que conhece aquelas ervas ou aquele chá capaz de resolver vários
problemas sem apresentar efeitos colaterais. Tratava-se então de uma
relação que era alimentada pela confiança na experiência daquelas
personagens mais velhas, mais do que no conhecimento douto dos
médicos.
Quando implantam um sistema sanitário nos moldes urbanos,
eles já vão acompanhados de valores, de práticas culturais que se
mostram incompatíveis com as heranças passadas pela experiência.
O mesmo vale para a inserção de mecanização na agricultura e
do uso indiscriminado de agrotóxicos. Como resolver o impasse? Os
próprios relatos mostram que novas doenças trazem desafios que não
encontram lenitivos na medicina tradicional ou moderna.
Os rituais de passagem: em que medida essas sobrevivências
podem ser encontradas no comportamento e atitude de jovens
65
Medicina Indígena
urbanos. É possível estabelecer um paralelo ou estamos apenas diante
de um modismo. Os adornos usados pelos indígenas conservam o
mesmo sentido que tinham nas gerações passadas?
Ao apresentarmos uma rica e cuidadosa descrição das plantas
medicinais e de doenças, bem como do modo como estão entranhadas
com as práticas culturais de cada etnia. Às vezes temos a sensação que
cada etnia é um mundo!
O capítulo que reflete sobre a cosmologia indígena é de extrema
relevância, haja vista que os capítulos anteriores, em nosso modo de
ver, deságuam neste. É a questão neural que oferece oportunidade
para uma análise bastante profunda e rica.
Conhecimento e Sustentabilidade são dois termos que também
perpassam este estudo, onde procuramos o aprimoramento do
conceito e de como fazer com que eles possam ser compreendidos e
colocados em prática pelos jovens e gerações futuras.
Na conferência mundial Rio + 20, foram recorrentes nos debates
esses dois conceitos que, em particular, envolvem as comunidades
tradicionais de inúmeros países, pelo fato de serem os integrantes dos
grupos sociais e étnicos, que têm conseguido estabelecer uma relação
com menos impactos negativos com o meio ambiente local onde estão
localizadas.
Essa discussão já vem arrastando-se por várias décadas, tendo
como um dos marcos teórico a publicação da obra “O Ponto de
Mutação” do austríaco Frijof Capra, que destaca a importância das
instituições escolares no entendimento e desdobramento desse tema,
que só terá resultados numa ação coletiva, que envolva sociedade civil
e poder público, como forma de que se possam ter resultados positivos
na busca do equilíbrio entre desenvolvimento e preservação ambiental.
66
pelo desenvolvimento tecnológico, conduziu as gerações atuais,
particularmente as dos centros urbanos, a um distanciamento dos
valores relacionados ao meio ambiente, onde a relação ser humano
e natureza passa a ser pautada numa perspectiva de dominação e
subordinação.
Considerações Finais
Ao longo das últimas décadas, a modernidade impulsionada
O conhecimento existente nas comunidades tradicionais pode
auxiliar a população, de uma maneira geral, no entendimento das causas
de problemas socioambientais pelo qual enfrenta o mundo globalizado
e tecnológico que estamos inseridos e que tem apresentados sinais de
que estamos a caminho de uma catástrofe de dimensões assustadora.
Um dos desafios que foi debatido na Conferência Mundial do
Rio de Janeiro, consiste no modelo de produção de conhecimento que
fundamenta os espaços escolares na atualidade, onde as instituições
de caráter científico desconsideram a geração de conhecimento
advindo das populações tradicionais, onde o saber é construído ao
longo de séculos de experimentações feitas no dia a dia, nas relações
cotidianas de seus moradores, produzindo um acervo imemorável
de etnoconhecimento que, precisamos nos debruçar sobre ele, para
voltarmos a respeitar a natureza na sua forma singular e fundamental
para a sobrevivência da humanidade.
Os saberes nas comunidades tradicionais têm uma importância
fundamental na vida social do indivíduo, onde essa diversidade de
experiência é compartilhada dando sentido e identidade para a
pessoa. Por meio do aprendizado cotidiano acerca da natureza, que é a
verdadeira educação informal, as experiências são compartilhadas e os
fenômenos da natureza e do mundo apreendidos pelo indivíduo.
67
Medicina Indígena
A escola passa a ser neste contexto um espaço significativo, na
medida em que a instituição de ensino insira em seu projeto político
pedagógico, atividades de ensino e pesquisa com participação das
pessoas que dominam os conhecimentos tradicionais, de maneira
que promova a discussão e consolidação dos etnoconhecimentos
existentes.
Para tanto, precisamos rever conceitos e ideias acerca de
desenvolvimento econômico presentes na sociedade atual, para que
realmente possamos promover mudanças significativas nos próximos
anos.
Entretanto, ainda vale considerar muito relevante a relação que
estabelece entre sociedades e meio ambiente, neste caso entre povos
indígenas, meio ambiente, plantas e plantas medicinais. Esta relação é
perpassada por séculos de conhecimento que é transmitido fortemente
pela oralidade aos ancestrais e chegam à atualidade com seus desafios,
limites e oportunidades.
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