Medicina Indígena Percepção e Conhecimento sobre Plantas Medicinais em Comunidades Indígenas de Mato Grosso Elias Januário Germano Guarim Neto Medicina Indígena Percepção e Conhecimento sobre Plantas Medicinais em Comunidades Indígenas de Mato Grosso 1ª Edição Coleção Meio Ambiente, Educação e Cultura Volume 4 Organizador: Fernando Selleri Silva Cuiabá Instituto Merireu 2013 Equipe Editorial Editor: Revisão: Organização: Projeto Gráfico, Diagramação e Capa: Foto da Capa: Elias Januário Elias Januário / Germano Guarim Neto Fernando Selleri Silva Fernando Fernandes Neri Casa Xinguana J35m Januário, Elias. Guarim Neto, Germano Medicina Indígena: Percepção e Conhecimento sobre Plantas Medicinais em Comunidades Indígenas de Mato Grosso / Elias Januário; Germano Guarim Neto. – Cuiabá: Instituto Merireu Editora, 2013. 85 p.: il.; 21 cm. – (Coleção Meio Ambiente, Educação e Cultura, v. 3) ISBN 978-85-66981-03-2 1. Plantas. 2. Conhecimentos tradicionais – comunidade indígena. 3. Etnoconhecimento – indígena. 4. Cosmologia indígena. I. Januário, Elias. II. Guarim Neto, Germano. III. Título. CDU: 581.6:615.8 (=017) Instituto Merireu de Estudo Socioambiental, Pesquisa e Educação Escolar Intercultural Caixa Postal n.º 1003 CEP 78050-973, Cuiabá/MT - Brasil [email protected] / www.merireu.org.br Dedicamos aos povos indígenas de Mato Grosso, que lutam pela preservação da natureza, em particular as plantas medicinais e os etnoconhecimentos, em meio às mudanças significativas impostas pelo contato com a sociedade moderna. AGRADECIMENTOS Aos indígenas do Estado de Mato Grosso. Ao grupo de Pesquisa da Flora, Vegetação e Etnobotânica - FLOVET. À Universidade Federal de Mato Grosso. À Universidade do Estado de Mato Grosso. Ao Instituto de Biociências / Departamento de Botânica e Ecologia da UFMT. À Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior CAPES. Ao Instituto Merireu. Ao Prof. Dr. Waldir José Gaspar. Ao Prof. Evaristo Giacometti Silva. À Prof. Hébia de Paula Monteiro. Ao Prof. Fernando Selleri Silva. À Equipe do Grupo de Estudo Mosaico Intercultural. Aos Professores, Técnicos, Discentes, Bolsistas, Familiares e amigos que, de alguma forma, contribuiu para a realização desse trabalho. PREFÁCIO Este é um daqueles livros especiais que eu gostaria de ter escrito. Não somente por seu caráter acadêmico, fruto de um zeloso trabalho, mas também por seu precioso conteúdo que sintetiza o encontro de saberes entre povos e culturas. Em meio a um degradante processo de destruição dos recursos naturais pelo agronegócio em Mato Grosso, os autores nos estimulam a pensar na urgência de valorização não só dos recursos naturais perdidos, mas nos saberes tradicionais dos povos indígenas que se encontram em igual risco de desaparecerem. Como inédita experiência, este trabalho oportuniza, que os autores, Professores Elias Januário e Germano Guarim Neto, nas entrelinhas do pensamento, deem vozes e visibilidades à grupos étnicos esquecidos através de riquíssimos diálogos. Esta troca ocorre a partir das Licenciaturas Indígenas Interculturais no Estado de Mato Grosso, onde se deu o encontro dos autores com representantes de povos indígenas, educadores e outros pesquisadores, culminando nesta rica publicação, a qual traz em seu bojo, diálogos interculturais, no contexto da integração de saberes tradicionais sobre o uso de plantas medicinais. Recheados de saberes e significados esse diálogo êmico-ético nos leva às raízes culturais da medicina tradicional brasileira, aqui traduzida e valorizada enquanto recurso e prática milenar dos povos indígenas. A sensibilidade e o suporte científico dos pesquisadores envolvidos neste trabalho, e a recíproca complementaridade entre a antropologia e as ciências biológicas faz deste um importante instrumento que permite reconhecer e analisar com maior fidedignidade os conhecimentos tradicionais trazidos a luz da ciência contemporânea, sem que isso desmereça o saber tradicional, pelo contrário, este embasamento científico permite o reconhecimento e a valorização de saberes e práticas dos povos tradicionais no Estado de Mato Grosso. Trata-se, portanto, de fruto maduro: resultado de pesquisas atuais sobre antigos saberes, no contexto de diversas culturas. Considerando a biodiversidade local e os saberes tradicionais dos povos indígenas, este trabalho traduz um raro convite para encontros inusitados e reflexões sobre os caminhos e possibilidades na utilização dos recursos botânicos para fins terapêuticos ao longo do tempo, passado e futuro. Nesta agradável leitura poderemos nos deparar com mundos distintos, reais e imaginários, repletos de racionalidades, crenças, experiências, relatos de curas, virtudes e cuidados em meio à cosmovisões diversas dos ameríndios daqui. Podemos compreender sua relação com seu ambiente, forma de utilização dos recursos naturais e as concepções sobre os cuidados na saúde indígena, saberes construídos ao longo de gerações de cuidados e cuidadores que utilizam racionalmente os recursos dos biomas do Cerrado, Floresta e Pantanal em Mato Grosso. Na diversidade de olhares, os autores e suas vozes “quase esquecidas” nos instigam a mais aprender do que ensinar, mais preservar do que destruir, mais conhecer do que ignorar, mais respeitar a diversidade cultural e admirar o modo sustentável de viver dos povos indígenas a partir da valorização e reconhecimento da especificidade e racionalidade da medicina tradicional indígena no Estado de Mato Grosso e no Brasil. Em Cuiabá (MT), setembro de 2013. Prof. MSc. Reinaldo Gaspar da Mota Mestre em Saúde Coletiva Faculdade de Medicina Universidade Federal de Mato Grosso. SUMÁRIO Considerações Iniciais 15 Desafios: Conhecimento Tradicional e Modernidade 27 Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas 37 Plantas usadas para tratamento medicinal do povo Nafukuá 38 Plantas usadas para tratamentos segundo a medicina tradicional do povo Kurâ (Bakairi) 42 Plantas medicinais usadas pelo Povo Waurá. 45 Plantas medicinais do povo Xavante 49 Conhecimento Indígena e Cosmologia 53 Considerações Finais 63 Referências Bibliográficas 69 Considerações Iniciais Mesmo diante da chegada dos colonizadores europeus no século XV, ainda existem vários povos indígenas habitando o território brasileiro. Cada um com sua cultura, língua, arte, religião, hábitos, tradições, mitos e cosmologia. Atualmente, no Brasil, vivem mais de 400 mil índios, distribuídos em 225 etnias, que perfazem cerca de 0,25 % da população brasileira. Cabe esclarecer que este dado populacional considera tão somente aqueles indígenas que vivem em aldeias, havendo estimativas de que, além destes, existem cerca de duzentos mil vivendo fora das Terras Indígenas, inclusive em áreas urbanas. Estima-se em mais de sessenta referências de índios ainda não contatados, além de existirem grupos que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista. No estado do Mato Grosso existem 42 etnias (Quadro 1), essas comunidades juntas somam uma população de aproximadamente 42 mil habitantes (FUNAI, 2011). 15 Medicina Indígena Quadro 1: Etnias presentes no Estado do Mato Grosso Apiaká Arara Aweti Bakairi Bororo Cinta Larga Enawené-Nawê Hahaintsú Ikpeng Irantxe Juruna Kalapalo Kamayurá Karajá Katitaulú Kayabí Kayapó Kreen-Akarôre Kuikuro Matipu Mehináko Metuktire Munduruku Mynky Nafukuá Nambikwara Naravute Panará Paresi Parintintin Rikbaktsa Suyá Tapayuna Tapirapé Terêna Trumai Umutina Waurá Xavante Chiquitano Yawalapiti Zoró Fonte: FUNAI (2011) A formação de professores indígenas em nível superior em Mato Grosso resultou de discussões iniciadas no ano de 1997, envolvendo vários segmentos da sociedade civil, representantes indígenas, órgãos governamentais e não governamentais que, compondo a Comissão Interinstitucional e Paritária criada pelo Decreto Estadual N. 1.892/97, elaboraram o Projeto de Cursos de Licenciatura Específicos e Diferenciados para a Formação de Professores Indígenas, conhecido, na época, com 3º Grau Indígena (JANUÁRIO, 2002). No ano de 2001 foi realizado o 1º vestibular e o início das aulas no mês de julho, para a 1ª Turma (200 acadêmicos). Em janeiro de 2005 tiveram início as aulas para a 2ª turma do projeto (100 acadêmicos) e, em 2008, iniciou mais uma turma de 50 alunos na graduação e 50 vagas na pós-graduação (especialização) em Educação Escolar Indígena, para os egressos da primeira turma. Em junho de 2006, a 1ª Turma concluiu as atividades do curso, sendo realizada a Colação de Grau e a entrega dos diplomas de licenciados a 186 estudantes indígenas (JANUÁRIO et al., 2009). 16 consistia numa proposta de ensino calcada numa educação específica, diferenciada e intercultural, voltada para a realidade das comunidades indígenas, buscando um diálogo intercultural entre os diversos saberes. Tinha como objetivo formar professores indígenas em serviço para o exercício da docência no Ensino Fundamental e em disciplinas específicas do Ensino Médio nas escolas das aldeias, respeitando a Considerações Iniciais A Formação de Professores Indígenas em Nível Superior cosmovisão e os valores das diferentes etnias. As Licenciaturas Indígenas foram elaboradas na modalidade diferenciada de formação, onde o professor/cursista realizara o seu processo de formação concomitante com o exercício da docência, atendendo assim os preceitos da legislação e a demanda existente pela qualificação e habilitação de profissionais para o trabalho nas escolas de ensino fundamental e médio. Representou uma iniciativa do Governo do Estado de Mato Grosso, concretizada por meio de uma parceria entre a Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso - SEDUC/MT, a Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, a Fundação Nacional do Índio – FUNAI e Secretaria de Ciência e Tecnologia - SECITEC. Conta com o apoio da Prefeitura Municipal de Barra do Bugres/MT, da Fundação Nacional de Saúde – FUNASA, do Ministério da Educação – MEC e de Organizações Não governamentais. A execução do projeto ficou a cargo da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, com sede administrativa instalada no Campus Universitário de Barra do Bugres, onde também foram realizadas as atividades referentes às etapas de aulas presenciais. O projeto inicialmente ofereceu três cursos de licenciatura nas áreas de Ciências Matemáticas e da Natureza, Ciências Sociais e Línguas, Artes e Literaturas. Os cursos foram ministrados pelo 17 Medicina Indígena Programa de Licenciatura Indígena Intercultural reconhecidos pelo Conselho Estadual de Educação de Mato Grosso – CEE/MT, por meio da Portaria nº. 321/04 – CEE/MT, publicada no Diário Oficial do Estado, em 21 de setembro de 2004. Tiveram seu reconhecimento renovado por meio da Portaria nº. 311/05 – CEE/MT, publicada no Diário Oficial do Estado, em 27 de dezembro de 2005. Com duração de 05 anos (1ª Turma: 2001-2006; 2ª Turma: 20052009 e 3ª Turma 2007 – 2012; 4º Turma 2011 – 2015 e 5ª Turma 2012 -1016) e uma carga horária total de 4.025 horas, as Licenciaturas Indígenas foram estruturadas em 10 Etapas de Estudos Presenciais, 10 Etapas de Estudos Cooperados de Ensino e Pesquisa (Etapas Intermediárias), Estágio Curricular Supervisionado e Trabalho de Conclusão de Curso. O público integrante do projeto era composto por professores índios que atuavam nas escolas indígenas do Ensino Fundamental e Médio. Ao todo, até a coleta de dados dessa pesquisa, a formação abrangeu 32 etnias de Mato Grosso: Umutina, Bororo, Xavante, Paresi, Irantxe, Bakairi, Tapirapé, Karajá, Rikbaktsa, Nambikwara, Kayabi, Apiaká, Terena, Ikpeng, Mehinako, Kamaiurá, Juruna, Kuikuro, Kalapalo, Matipu, Trumai, Aweti, Chiquitano, Nafukuá, Panará, Waurá, Yawalapiti, Zoró, Suyá, Munduruku, Cinta Larga e Myky. Ao longo de sua execução foi organizado um setor de arquivo onde se encontram guardados documentos sobre a educação escolar indígena como trabalhos, textos, cartazes, pesquisas, fotos e monografias de diversos projetos desenvolvidos no Estado de Mato Grosso. No decorrer dessa trajetória, que em 2007 completou dez anos, um vasto arcabouço de experiências pôde ser vivenciado pelos diversos atores (acadêmicos, professores, equipe técnica, lideranças indígenas, 18 direta ou indireta com o desenvolvimento deste programa. Estas experiências ao serem sistematizadas servirão de base não somente aos projetos de formação indígena em nível superior que estão em desenvolvimento ou que começam a ser implementados nas várias universidades brasileiras, mas também poderão ser utilizadas como referências nas ações futuras que visam à continuidade da formação Considerações Iniciais lideranças políticas, entre outros) que estiveram envolvidos de forma indígena em nível superior (bacharelados e pós-graduação). O objetivo geral desta pesquisa foi elaborar um texto crítico fundamentado nos pressupostos teórico e metodológico das Ciências Biológicas e da Antropologia - sobre as medicina tradicional praticada pelos povos indígenas de várias etnias de Mato Grosso, bem como o conhecimento e estudo das plantas medicinais mais utilizadas por essas comunidades indígenas na prevenção e cura de doenças, tomando como base os trabalhos existentes acerca do tema na área de Ciências da Natureza, no âmbito da formação específica, diferenciada e intercultural de professores indígenas, em nível superior, das Licenciaturas Indígenas Interculturais, desenvolvida pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT. Entre os objetivos específicos situam-se a possibilidade de analisar e sistematizar as produções dos professores indígenas sobre medicina tradicional e plantas medicinais da área de Ciências da Natureza, destacando as principais questões nos dados apresentados pelos indígenas no que se refere à medicina tradicional, apontando os principais desafios superados e a superar, assim como os impasses e contradições. Também foram sistematizados aspectos relevantes que devem ser considerados ao tratar com plantas medicinais indígenas, na perspectiva de elaborar uma publicação que contenha a experiência das 19 Medicina Indígena comunidades indígenas e seus atores sociais, acerca do conhecimento da medicina tradicional e do manuseio com as plantas medicinais. O interesse pelo tema surgiu pelo fato de eu, Elias, ter acompanhado, na função de Coordenador, todo o processo de elaboração das monografias de graduação e pós-graduação, dos 276 indígenas graduados e 96 indígenas pós-graduados. De modo semelhante Germano Guarim foi docente e orientador de monografias em várias etapas dos cursos. Ao longo de todo o processo de execução das pesquisas foi possibilitada a inserção nos trabalhos dos saberes étnicos, dos processos pedagógicos próprios de ensino e aprendizagem e da participação da comunidade indígena, garantindo na prática, o exercício do diálogo intercultural, possibilitando a ressignificação de conteúdos e metodologias, afastando-se assim da visão universalista e monocultural imprimida às minorias étnicas no processo educacional civilizatório amplamente implementado na história da educação escolar indígena brasileira. A partir dessa proposta intercultural na prática educativa, é que a Licenciatura Indígena Intercultural passou a desenvolver estratégias que têm garantido as discussões dos conhecimentos de caráter geral e específico de cada área de estudo, propiciando o reconhecimento das diferenças, ao mesmo tempo estabelecendo uma postura crítica em relação aos conhecimentos universais por meio da problematização dos conteúdos e da valorização do professor indígena como sujeito nesse processo. O projeto original procurou, a partir de opções curriculares, instrumentalizar o professor índio de modo que ele pudesse buscar os conhecimentos que considerava importante para si e para seu povo, 20 institucionais de formação. Desse modo, a proposta de educação foi uma fase pensada e formulada junto com os professores indígenas, considerando o seu saber e do seu povo como um patrimônio, fazendo com que a ação educativa estivesse em consonância com a concepção educativa do Considerações Iniciais num processo de formação continuada que extrapola os espaços grupo, contribuindo dessa forma para a revitalização e manutenção das práticas culturais de cada povo. As atividades solicitadas conduziam o professor indígena à investigação de diferentes assuntos, entre eles a medicina tradicional, relacionados com o seu povo, promovendo com isso o envolvimento do estudante com a comunidade em que vive. Esse foi, entre outros, um dos pontos altos do trabalho desenvolvido, particularmente nas pesquisas que necessitavam da consulta aos moradores mais velhos da aldeia, porque acaba envolvendo a comunidade com o projeto e consequentemente com a formação do professor. Sobre o manuseio com plantas e a transmissão do conhecimento tradicional foram na época elaborados vários trabalhos de conclusão de curso de graduação e monografias de pós-graduação (latu sensu) de diferentes etnias, que possibilitaram um olhar mais aguçado ao longo deste relatório, da percepção dos indígenas em relação às plantas, em particular aquelas usadas para fins medicinais, bem como se esse conhecimento tem sido ou não transmitido para as novas gerações. Como procedimento metodológico inicialmente realizamos um estudo bibliográfico de obras da área das Ciências Biológicas e da Antropologia que versavam sobre a temática de medicina tradicional e plantas indígenas, para subsidiar as reflexões a serem feitas posteriormente. 21 Medicina Indígena Em seguida procedemos a um levantamento e sistematização no acervo documental e nas pesquisas dos egressos dos cursos, coletando dados considerados relevantes que permitiram discorrer sobre a medicina tradicional indígena e as plantas utilizadas. Para ter acesso e utilização dos documentos e pesquisas dos indígenas egressos dos cursos de Licenciatura Intercultural da UNEMAT, inicialmente elaborei um projeto de pós-doutorado sob orientação do Prof. Dr. Germano Guarim, o qual foi submetido a apreciação do Colegiado das Licenciaturas Indígenas Interculturais, que tinha representantes indígenas como membros, sendo concedida a aprovação para efetivar a pesquisa. O procedimento seguinte foi a realização de entrevistas com representantes indígenas para complementar as informações do levantamento bibliográfico e documental, dirimindo assim possíveis dúvidas acerca do tema. Além de toda essa gama de dados empíricos, foi usada como fonte principal de informação a experiência adquirida há mais de 10 anos no processo de construção e implantação da Licenciatura Indígena Intercultural, desempenhando a função de coordenador, sob orientação do Prof. Dr. Germano Guarim Neto, uma das maiores autoridades em etnobotânica neste país. Segundo Oliveira (1989), apesar das anotações em diários, cadernetas e gravações, o que proporciona os melhores dados é a memória do pesquisador, que vivenciou e que traz de volta do passado, tornando presente as suas reminiscências no ato de escrever. Com toda essa profusão de dados existentes e por ter acompanhado como coordenador a elaboração dessas pesquisas, é que refleti juntamente com o Prof. Dr. Germano, à luz das Ciências 22 o conhecimento sobre plantas medicinais. Pela natureza dos trabalhos, o mesmo foi dividido em duas etapas: a) etapa de campo (levantamento documental e entrevistas), b) etapa voltadas para a sistematização, análise e redação do relatório. Para analisar os dados que foram obtidos sobre a medicina Considerações Iniciais Biológicas e da Antropologia, acerca da medicina tradicional indígena e tradicional indígena e os conhecimentos sobre as plantas medicinais, foi importante dialogarmos com teóricos das Ciências Biológicas e da Antropologia, na perspectiva de problematizar questões pertinentes à percepção dos povos indígenas sobre o entendimento da doença e de como lidar com ela por meio das plantas medicinais. Nas reflexões e formulações das análises foram fundamentais as teorias de pensadores e pesquisadores como Enrique Leff, Vandana Chiva, Cliffor Geertz, Maritza Muñoz, Claude Lévi-Strauss, Marshall Sahlins, Michael W. Apple, Richard Primack, Roger Bastide, Pierre Bordieu, Antonio Diegues, Darcy Ribeiro, Mauricio Bellón, Pierre Verger e Bartolomeu Mèlia. Com estes teóricos de diversas áreas do conhecimento refinamos os conceitos sobre meio ambiente, cultura, tradição, medicina, interculturalidade e identidade, pilares da formulação do entendimento sobre o processo de medicina tradicional e do manuseio com as plantas medicinais. Entretanto, pesquisadores de Mato Grosso como próprio Germano Guarim Neto, Maria Antonia Carniello, Vera Lucia M. S. Guarim, Carolina Joana da Silva, entre outros, deram suporte às análises deste estudo, particularmente na parte das plantas medicinais e a percepção de cada etnia sobre o meio ambiente em que se encontra inserida. 23 Medicina Indígena Indo de encontro a essa perspectiva, onde o presente livro contextualiza o trabalho desenvolvido com a medicina tradicional indígena, optamos em estruturá-lo em três partes. Em se tratando de pesquisa de campo apoiada por trabalhos de conclusão de curso de graduação indígena e monografias de pósgraduados, optamos, no primeiro capítulo por um texto mais descritivo que analítico, sintetizando a importância das plantas medicinais para os povos indígenas e do eventual processo pelo qual estão passando, problematizando a medicina tradicional indígena na conjuntura atual, no confronto com a medicina alopática e nos caminhos e descaminhos da continuidade deste conhecimento nas gerações futuras. Na segunda parte abordamos as principais plantas utilizadas entre os indígenas e a percepção deles em relação a esse conhecimento. Na terceira parte discorremos acerca da medicina tradicional e a relação com as concepções cosmológicas. Na perspectiva de trazer à tona aspectos relevantes da medicina tradicional indígena, elaboramos esse livro e convidamos você a conhecer um pouco do saber tradicional dos povos indígenas de Mato Grosso acerca das plantas e do meio ambiente. No contexto desta produção, conhecimento tradicional indígena é definido como o conjunto de saberes, saber-fazer e costumes a respeito do mundo natural, sobrenatural, transmitido oralmente de pai para filho e as práticas culturais das comunidades tradicionais que vivem em contato direto com a natureza. Conforme Cunha (2009: 364) em relação ao conhecimento tradicional, pode se conferir duas formas: “à experiência direita e também à própria fonte, cada fonte derivando seu valor de verdade na sucessão de elos de autoridade na cadeia de transmissão de conhecimento”. 24 “conhecimento tradicional” ou mesmo “etnociência” têm surgido com frequência na última década, com o objetivo de chamar a atenção para a pluralidade de sistemas de produção de saber no mundo e para a sua importância nos processos de desenvolvimento” (Santos, 2005:32). O emprego da terminologia “tradicional”, de fato, não é Considerações Iniciais “Os termos “conhecimento local”, “conhecimento indígena”, consensual. Souza Santos et al. (2004:56) questionam a definição adotada pelas agências internacionais e instrumentos regulatórios, argumentando que a expressão pressupõe uma forma estática de conhecimento, transmitida sem alterações de geração a geração. Os autores questionam, igualmente, o emprego dos termos “saber local” ou “saber alternativo”, pois a utilização destes adjetivos pressupõe, em seu entender, uma hierarquização das formas de conhecimento em que “é local o que não é cosmopolita e alternativo o que não se enquadra nos cânones da ciência ocidental”. Cunha (1999:15) também ilustra a posição anterior ao propor que o saber local é “uma ciência viva, que experimenta, inova, pesquisa, não um simples repositório de conhecimentos”. Neste trabalho, admitimos o uso das expressões “saber” ou “conhecimento tradicional indígena”, sem atribuir-lhes a conotação de caráter estático. Finalmente, reforçamos o argumento de que conhecimento tradicional é dinâmico e se renova gerando novas informações sobre aperfeiçoamentos e adaptações às condições variáveis. O conceito de conhecimento tradicional é dinâmico, sendo definido pelo processo social pelo qual é adquirido, compartilhado e utilizado, o que é específico a cada cultura indígena. Conforme Santos (2005:53): “a dicotomia saber moderno/ saber tradicional assenta na ideia de que o conhecimento tradicional é prático, coletivo, fortemente implantado no local, refletindo 25 Medicina Indígena 26 experiências exóticas”. Mas se assumir, com faz a epistemologia crítica, que todo conhecimento é situado, é mais correto comparar todos os conhecimentos (incluindo o científico) em função das suas capacidades para a realização de determinadas tarefas em contextos sociais delineados por lógicas particulares (incluindo as que presidem ao conhecimento científico). Desafios: Conhecimento Tradicional e Modernidade Uma problemática recorrente em várias aldeias consiste no pouco interesse dos jovens e consequentemente, no conhecimento superficial das gerações mais novas do fabuloso patrimônio referente a medicina tradicional, conhecida com propriedade apenas pelos mais velhos. Diante desse contexto, é imprescindível o estabelecimento de uma política pública de fortalecimento desse saber que se mostra fadado a desaparecer com a morte dos mais velhos. Entre os fatores que tem contribuído para que os jovens percam o interesse pela medicina tradicional consiste na entrada nas aldeias dos remédios alopáticos, introduzidos pelos órgãos governamentais e não governamentais da área da saúde, fazendo que o medicamento farmacêutico sobreponha-se ao medicamento tradicional. Tem revelado tensa a tentativa de estabelecer uma relação, um diálogo entre os representantes dos órgãos oficiais de saúde e os anciãos, a maioria deles pajé ou xamã, para que possam trabalhar em 27 Medicina Indígena conjunto, unindo os dois conhecimentos no tratamento de um paciente indígena. A medicina tradicional indígena está intimamente ligada com os elementos da natureza, sejam materiais ou espirituais. Dessa forma para coletar uma espécie de folha ou cipó é preciso conhecer a fase da lua correta, pedir licença aos espíritos da mata, ver a posição do sol, saber onde e a quantidade que pode ser retirada. Todo esse conhecimento é passado através da oralidade e da prática para os mais jovens, segundo reforça o depoimento a seguir: Antigamente o povo Xavante usava as plantas medicinais indígenas Xavante, porque ainda não conheciam os medicamentos químicos, utilizavam apenas as ervas indígenas. Isso era vantajoso, pois, evitamos por muito tempo os medicamentos dos não índios que são prejudiciais à saúde. Mas, o que mudou agora na nova geração foi a perda da força da natureza, a juventude não está considerando mais as plantas medicinais indígenas Xavante. Poucas pessoas ainda estão acreditando na força da natureza, principalmente os anciãos que não confiam nos medicamentos químicos. Por isso, estamos buscando revitalizar o uso das plantas medicinais. (Xavante, 2006). É preciso também saber se a planta deve ser utilizada na forma líquida (chá, banho), pasta, defumação, entre outras. Isso é fundamental para que o tratamento tenha resultado satisfatório. Existe também, na medicina tradicional, manipulação de espécies da flora e fauna que previne determinadas doenças, bem como ataques de animais peçonhentos, por meio de ervas que ao serem passadas no corpo afastam cobras, escorpiões e o ataque de outros insetos que podem causar danos a saúde da pessoa, como nos confirma relato do indígena Bakairi: 28 Outro aspecto importante é que a medicina tradicional indígena tem distinção no tratamento de adulto, criança, homens e mulheres. Desafios: Conhecimento Tradicional e Modernidade Temos muitas plantas medicinais na nossa área indígena Santana, que ainda estamos usando para tratar as doenças, temos plantas usadas para as crianças banharem e outras para fazer chá para gripe, vômito, diarréia. Temos também remédios para os adultos que são diferentes dos usados pelas crianças. São mais fortes. Para arranhar, no dia da semana santa, usa-se fumo misturado com raiz doce chamado sekuâ, que serve para picada de cobra. Temos também outro remédio que só é encontrado no mato, chamado pemerâ, que é usado para banhar e para arranhar. Temos também, os remédios para mulheres que estão gestantes, usado apenas quando for necessário, como, por exemplo, quando há suspeita de aborto, usa-se este remédio, que não pode ser quente, deve estar morno. Os pajés ajudam neste momento (Bakairi, 2006). Para cada faixa etária, sexo e clã, a medicação é preparada de uma forma, levando em consideração esses requisitos. O tratamento também requer rigorosas dietas por parte do paciente a serem seguidas para que funcione, ocorrendo inclusive várias sessões de atendimento com a pessoa doente. Uma das possibilidades que tem sido apontada pelos indígenas para começar a amenizar essa questão nas aldeias é utilizar o espaço da escola como um local para difundir o saber tradicional seja por meio da presença dos anciãos nas aulas ou também pela pesquisa e produção de materiais didáticos com esses conhecimentos escritos na língua indígena. O abandono dos jovens do tratamento com a medicina tradicional, feita pelos xamãs e pajés, que ao longo de décadas tem acumulado um amplo conhecimento sobre o tratamento de inúmeras doenças usando os elementos presentes no meio ambiente local tem sido recorrente 29 Medicina Indígena em várias etnias de Mato Grosso, como os Kayabi e os Bakairi, que em entrevistas com os anciãos eles deixaram claro essa ruptura que está acontecendo na transmissão dos conhecimentos sobre a medicina tradicional. Outra situação que contribui para essa realidade presente no contexto das aldeias é o fato das mulheres índias fazerem o seu parto em hospitais das cidades mais próximas, dando já neste momento o início do processo com os medicamentos dos não indígenas e o abandono das tradições indígenas que primavam por uma dieta rigorosa e um tratamento por meio de banhos, infusões, pajelanças e a ingestão de medicamentos feitos pelos próprios índios, como ressalta o depoimento a seguir: Atualmente, usamos mais os remédios químicos para nos tratar porque já conhecemos os remédios das farmácias. Algumas pessoas acham que é melhor do que remédios medicinais tradicionais, mas também temos muitos remédios medicinais que são melhores que os da cidade. Como antigamente as mulheres ganhavam o bebê nas aldeias e agora, ninguém quer mais ter parto na aldeia, mas isso não quer dizer que estamos recusando os nossos remédios medicinais, apenas que temos muitas mudanças de antigamente para hoje. Antes, não existia posto de saúde na aldeia, por isso que a comunidade usava mais os remédios medicinais. Tratavam na aldeia mesmo, não iam para cidade, isso, só se fosse uma doença muito grave que eles procuravam hospital na cidade. De antes para hoje aconteceu muitas mudança, mas, continuamos usando remédios medicinais tradicionais (Bakairi, 2006). É importante deixar claro aqui nossa posição de que não somos contra a presença da medicina não indígena nas aldeias, bem como de medicamentos farmacêuticos, no entanto o que acreditamos ser 30 tradicional, para que este conhecimento seja integrado ao sistema sanitário oficial. A ausência dessa política de valorização da medicina tradicional indígena tem ocasionado interferência inclusive nas práticas culturais de várias etnias, como por exemplo, entre os Bakairi, quando a menina menstruava pela primeira vez, ela ficava reclusa em casa por um longo período onde recebia banhos especiais de ervas, seguia uma rigorosa dieta alimentar e o mais importante, era durante esse período que as mulheres mais velhas da aldeia transmitiam uma série de conhecimentos para a menina que estava virando moça. Atualmente muitas mães levam as filhas ao posto de saúde, onde é medicada e orientada retornando em seguida à vida cotidiana. Desafios: Conhecimento Tradicional e Modernidade o certo é a existência de política pública de valorização da medicina Outro aspecto que deve ser levado em consideração quando se trata deste tema é a mudança na forma de produção agrícola em muitas aldeias, com a inserção das roças mecanizadas que destroem toda a mata ou o cerrado, provocando com isso o desaparecimento de muitas espécies de plantas e animais utilizados na medicina tradicional indígena. O uso de agrotóxicos nas lavouras vizinhas às Terras Indígenas também contribui para esse processo. A respeito desta questão uma senhora Xavante da região de Primavera do Leste afirma que: [...] diminuindo as alternativas de obtenção de alimento, portanto alterando vida material do grupo, afeta consequentemente suas práticas sociais que dependem dessa base material; os índios em muitas aldeias são “forçados” a trabalhar. Criando gado ou plantando para os fazendeiros vizinhos num regime de parceria. Muitas vezes negociando com madeireiras árvores nativas – como antigo escambo ou assumindo o papel de “garimpeiros” sendo desmoralizados diante da sociedade nacional. É essa uma das maneiras que vem sendo utilizada de modo amplo para a 31 Medicina Indígena exploração do trabalho indígena, cuja autonomia fica ameaçada diante da falta de recursos que é colocada para as aldeias pressionando-as de fora para dentro. Na T.I Sangradouro/MT, a preocupação das famílias Xavante com o desmatamento, com as queimadas dentro da respectiva reserva e seu entorno, vem destruindo o patrimônio natural que serve de base material à sua própria sobrevivência e a de seus descendentes. Como em uma agricultura comercial mecanizada e em larga escala recorre-se frequentemente ao uso de insumos químicos e agrotóxicos, técnicas adversas às práticas agrícolas das populações indígenas, ocorre inevitavelmente a poluição das nascentes, lagoas e rios (Senhora Xavante, 2008). Diante do exposto, é fundamental o desenvolvimento de estratégias de articulação entre os sistemas médicos indígenas e o sistema oficial de saúde, contribuindo assim efetivamente para valorização e fortalecimento das medicinas tradicionais indígenas. A facilidade do consumo de remédios alopáticos hoje nas aldeias, em muitos casos sem orientação, tem contribuído para o desuso dos medicamentos tradicionais. É muito importante o estabelecimento de ações que promovam a valorização da medicina tradicional e a efetivação do direito à atenção diferenciada na área da saúde indígena. Podemos perceber claramente essa situação na narrativa desse indígena Nambikwara: As plantas medicinais não devem ser deixar de lado pelo povo Nambikwara, o pajé tem uma função muito importante na nossa cultura, porque preserva todo esse conhecimento e cura várias doenças que dão nas pessoas da aldeia. Segundo os velhos, as plantas medicinais são muito importantes para o nosso povo, temos que saber como utilizá-las e como preparar os remédios. Os remédios da farmácia hoje estão muito fortes na nossa aldeia por causa das doenças diferentes que vão aparecendo, não sabemos a causa, por isso, os remédios que conhecemos 32 Entre os povos indígenas a medicina tradicional é amplamente utilizada, desde o nascimento, mas também nos rituais de passagem, onde a criança ascende a outro status no grupo social em que vive. Nesses momentos são amplamente utilizados as ervas e as rigorosas dietas. Citaremos como exemplo os índios Rikbaksa, que vivem na região de Juína no estado de Mato Grosso, onde o menino ao completar a idade entre 10 a 15 anos fura a orelha para colocar o batoque, fura-se com espinho juntamente com uma folha de tucumã. Os cuidados são Desafios: Conhecimento Tradicional e Modernidade às vezes não combatem as novas doenças. Os agentes de saúde poucos conhecem as plantas medicinais, como se usa, para qual doença serve, por isso, é bom conhecer bem os tipo de plantas e como vai preparar a dose certa, e como deve ser tomada (Nambikwara, 2006). de 1 ou 2 meses, sendo o que faz alargar o furo é o “pauzinho” com a folha de tucumã enrolada e periodicamente retirado para fazer com que o furo fique cada vez mais largo. Neste período o jovem não pode conversar com os meninos nem com as mulheres, para não arrebentar a orelha. A alimentação também é restrita, não pode comer para encher a barriga, não pode comer comida quente, só depois que esfriar. Um velho sábio fica com ele toda a semana, é uma fase especial, quando passa a ser homem adulto. Esse povo faz também uma tatuagem no corpo que requer cuidados tradicionais como tomar chicha de batata roxa e de milho carijó. Depois que a tatuagem estiver sarada é feito chicha de milho cru numa panela pequena e após tomar essa bebida ela deve ser vomitada numa corredeira ou cachoeira, para limpar os males estomacais, como relata o índio Rikbaktsa: 33 Medicina Indígena Antigamente, antes do contato com o homem branco, o meu povo Rikbaktsa usava muitas ervas medicinais para curar as doenças mais fracas e fortes, pois cada erva tem o seu valor quanto à reação química curando o que é mais fácil de curar. Isso levava uma consideração muito grande para o meu povo. Naquela época não tinha doença contagiosa como existe hoje. Vivíamos alegres e felizes. Depois de passar muito tempo quando fomos pacificados pelos homens brancos começaram a aparecer doenças que não tem cura, como DST, AIDS e outras perigosas. Mantemos nossas tradições de usar as ervas em vários momentos, curando doenças mais fracas. Também preservando as nossas ervas e repassando aos mais jovens, para que deem valor as nossas ervas usando sempre na cura das doenças mais fracas, como gripe e dor de cabeça (Rikbaktsa, 2006). Diante destes relatos notamos nitidamente a necessidade de que o sistema de saúde leve em consideração entre os povos indígenas o processo de gestação, parto e pós-parto, além da importância dos sistemas médicos indígenas com suas cosmologias xamânica e os sistemas de parentescos, bem como a corporalidade e a construção da pessoa como parte do tratamento. Entre os índios existem conhecimentos que podem definir inclusive o sexo da criança que o casal pretende ter. Uma espécie de planta que o pajé ou xamã colhe possibilita esse conhecimento, sendo que se ele colher as folhas da parte de baixo da planta e a mulher tomar o chá, a filha será menina, se colher as folhas da parte de cima e fizer o chá a mulher terá um filho do sexo masculino. Um caminho que tem sido apontado para contribuir com o fortalecimento da medicina tradicional indígena tem sido a área da educação, onde os professores estão inserindo nos projetos políticos pedagógicos das escolas a discussão dos conhecimentos tradicionais com a presença dos anciãos. 34 os alunos que tem resultado em materiais didáticos para a escola, representa uma forma de registro e perpetuação desse patrimônio que tem sido passado pela oralidade de geração para geração. Para tanto é preciso preparar essa nova geração de profissionais não indígenas para lidar com as subjetividades, com a diversidade étnica e cultural e principalmente com o diferente. A construção de pontes dialógicas entre esses dois universos socioculturais distintos, os sistemas médicos tradicionais indígenas e a medicina cientifica são fundamentais nos dias atuais, até porque temos muito, muito mesmo o que aprender com a medicina tradicional indígena. Dessa forma, refletindo sobre o contexto das plantas medicinais Desafios: Conhecimento Tradicional e Modernidade Também as pesquisas feitas pelos professores juntamente com no enfoque de diferentes abordagens em terras mato grossenses podemos remeter entre outras, para as contribuições oriundas de Guarim Neto (1987, 1996, 1996a, 2001, 2006), Schimöller (19978) Guarim Neto; Maciel (2008), Guarim Neto; Carvalho (2011) que tratam da diversificação de usos das espécies em ambientes do cerrado, pantanal e floresta. 35 Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas Neste capítulo apresentamos, com base nos dados empíricos coletados pelos indígenas que realizaram cursos de graduação e pósgraduação na Licenciatura Indígena Intercultural da UNEMAT, uma série de plantas usadas para fins medicinais, de diferentes etnias, com o objetivo de revelar a percepção que esses povos têm do meio ambiente em que estão inseridos, bem como os etnoconhecimentos que ainda encontramos nestas comunidades, que estão resistindo, como vimos no capítulo anterior, ao processo de contato que tem proporcionando uma acelerada situação de ressignificação cultural com uma rapidez impressionante, deixando marcas profundas nas gerações mais jovens. Também devemos levar em consideração a riqueza de saberes que estas comunidades indígenas possuem sobre as propriedades medicinais que, conforme Santos et. al. (2010), afirma que o estudo sobre a medicina tradicional ou popular, está cada vez mais merecendo atenção, devido às inúmeras informações que tem possibilitado o uso na profilaxia e tratamento de doenças em várias regiões, uma vez 37 Medicina Indígena que as comunidades indígenas possuem um amplo conhecimento do ecossistema em que estão inseridas. Outro aspecto importante é que as populações indígenas do estado de Mato Grosso estão em toda a sua extensão territorial, fazendo com que tenhamos povos indígenas em diferentes biomas como o cerrado, o pantanal e a floresta amazônica, ampliando assim a possibilidade de terem conhecimento sobre um acervo fabuloso da flora do estado. Como salientamos no início deste relatório, Mato Grosso apresenta uma diversidade de povos que ocupam diferentes regiões, o que consequentemente, seria difícil abordar numa pesquisa todos os povos existentes e as plantas que utilizam. O nosso objetivo aqui foi de apresentarmos aspectos relevantes de alguns povos no que se refere à medicina tradicional, bem como de algumas plantas que são do conhecimento popular e outras que só conseguimos obtê-las na língua indígena. Entretanto o cenário que vamos apresentar possibilita vislumbrar a riqueza de saber relacionados às plantas, e como esse conhecimento está imbricado nas práticas cultuais de cada etnia. Plantas usadas para tratamento medicinal do povo Nafukuá O povo Jaramü (Nafukuá) pertence ao tronco linguístico Karib, vivendo atualmente na região norte da Terra Indígena do Xingu, município de Gaúcha do Norte – Mato Grosso. 38 ampla utilização da medicina tradicional, onde a comunidade extrai da raiz de determinadas plantas a cera e a resina para combater doenças, revelando uma interação harmoniosa com a natureza, de onde colhem os alimentos e as plantas para fazer remédios. As frutas do meio ambiente fazem parte da dieta deste povo. Cultivam roças para terem alimentos ao longo do ano, além da caça e da pesca. O pajé ou curandeiro é a pessoa na aldeia que entra em contato com a dimensão dos espíritos, para saber o que está fazendo mal para a pessoa doente e indicar a planta correta, bem como a forma de utilizar para se libertar da doença. A diarréia é uma enfermidade que ocorre com frequência entre os moradores dessa comunidade, o que fez com que desenvolvessem ao longo dos anos, medicamentos para a cura dessa doença. Na cultura do povo Nafukuá, a diarréia pode ser causada por: A - Quando o homem corta madeira Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas Uma das práticas culturais marcante neste povo consiste na Um indígena que tem filho de até dois anos de idade, não pode fazer artesanato de madeira, como banco e remo, como também não pode cortar árvore de copaíba - ûêgühi etali - que é uma árvore usada na festividade do Kuarup (homenagem da família ao espírito do cacique morto). Caso ocorra, a criança terá diarréia. Outras madeiras por eles denominadas de kanguãkuêgü, kumehupe, tolohügi, ugagati, ututi e tinhah, também fazem mal para o bebê caso o pai faça algum artesanato ou utilize a madeira dessa árvore no preparo da roça. 39 Medicina Indígena B - Quando o pai ou a mãe comem peixes Comer alguns tipos de peixes como: piranha da cabeça vermelha, pirarara, mandi, katsahágu, uguta (cascudo) e itate, causam diarréia na criança recém-nascida ou de até dois anos de idade. Portanto, o pai e a mãe não podem comer o peixe enquanto a criança tiver essa idade, evitando com isso a diarréia e o vômito. O peixe que mais causa diarréia, segundo os Nafukuá, é a pirarara e a piranha de cabeça vermelha. C - Por ingestão de alimento preparado pela mulher durante o período de menstruação Ocorre com qualquer pessoa, quando come alimento que foi preparado pela mulher menstruada. É o tipo de diarréia mais grave. D - Na reclusão Quando a mulher menstrua e fica junto com os meninos, na mesma casa dos jovens, eles podem ter dor de barriga e diarréia. A diarréia que ocorre no rapaz ou na moça quando está na reclusão pode também ser provocada por comida salgada, peixe cozido ou alimento gorduroso. GENGIBRE O gengibre, mesmo sendo uma especiaria proveniente do oriente, atualmente é um remédio usado com muita frequência pela etnia Nafukuá no combate a diarréia. O gengibre é plantado tanto na roça quanto no terreiro da casa, sendo também encontrado no mato. Para preparar o remédio de gengibre, é utilizada a raiz e não a folha. A manipulação desse remédio é executada da seguinte forma: rala-se a raiz de gengibre na cuia com uma pedra, depois faz-se um chá para tomar. Esse remédio é misturado com água e com tupaga 40 português. Para os Nafukuá, durante o tratamento o paciente não pode ingerir qualquer alimento, apenas tomar mingau, como kambüjükü (mingau de água engrossada com polvilho). O chá deve ser tomado durante três dias, dependendo das condições do doente, parando de beber tão logo a diarréia cesse. O gengibre pode ser usado também para outras situações como, quando a pessoa sente cansaço. Então o corpo é arranhado (escarificação) passando gengibre ralado com um pouco de água, na parte do corpo que foi arranhado. Também é usado como remédio para cãibra. Quando a mulher grávida apresenta dificuldade no parto, é comum a grávida tomar o gengibre ralado com água, facilitando assim o trabalho de parto. Outra prática cultural interessante consiste em colocar, pela manhã numa panela de barro, um pouco da cera de abelha com espinhas Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas hotugu, remédio da fruta de uma árvore que não tem tradução para o do peixe (pirarara ou piranha da cabeça vermelha), queimando na brasa até fazer fumaça. Essa fumaça é usada para purificar o corpo da criança. O cipó chamado pelos Nafukuá de kuôgo-hopitsü (barba da pirarara), também é usado como remédio. Quando a pessoa come pirarara e depois o filho sente diarréia e vômito, o tratamento é feito com esse cipó, encontrado na beira dos rios, É utilizado depois de socado com um pedaço de madeira numa panela ou cuia até que fique mole. Em seguida mistura-se água, espreme-se e esfrega sobre a barriga da criança que está passando mal. 41 Medicina Indígena Plantas usadas para tratamentos segundo a medicina tradicional do povo Kurâ (Bakairi) Assim como nas demais etnias, os Bakairi da região do Município de Paranatinga, reconhecem a importância de registrar a sabedoria dos velhos acerca do uso das plantas medicinais. SEKADY (AROEIRA) A parte usada no tratamento é a casca Deve-se extrair sempre o lado voltado para o nascer do sol. Para fazer o preparo é preciso separar a casca fina da casca grossa e depois lavar com água as duas cascas. Em seguida, colocar a casca fina em uma vasilha para ferver por alguns minutos. Após ter fervido, esfriar um pouco para ficar morno e ir despejando a água no local machucado (banho). Feito isso, enfaixa-se o local para a fratura não ficar exposta. Esse procedimento (banho) deve ser feito três vezes ao dia, evitando sair no frio. Também é preciso ficar de repouso e não consumir alimentos muito salgados para não complicar e interferir no tratamento. Já a casca grossa é colocada em pedaços no local fraturado e depois é enfaixado. Só é retirado o curativo quando for fazer outro. TOIAPI (PIÚVA OU IPÊ) É uma planta encontrada nas matas ciliares, em áreas de cerrado ou perto de rios. É uma árvore ornamental cuja floração ocorre na estação seca, época em que perde todas as folhas. As flores duram poucos dias e fornecem alimento para insetos, macacos e aves. A parte 42 sol nasce. Após a extração da casca é feito o mesmo processo da preparação da aroeira. Primeiro deve lavar a casca com água, colocando em seguida em uma vasilha com dois litros de água, levando ao fogo para ferver por uns cinco minutos. Em seguida, deixar esfriar até ficar morna, derramando lentamente (banho) no local machucado. Ao terminar, enfaixa-se o local, fazendo curativos três vezes ao dia e permanecendo em repouso. Não sair em ambiente frio ou com vento, também não deve consumir alimentos muito salgado. Na medida em que a parte da planta extraída for secando, o local também vai cicatrizando. Fazer o curativo diariamente, por aproximadamente uma semana. MATUE (Sem Tradução) É uma planta encontrada no cerrado. O tronco dessa planta Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas usada dessa planta é a casca, que é extraída sempre do lado em que o possui a casca grossa e as folhas são ásperas. Produz frutas amarelas, bem pequenas e de sabor doce. A parte da planta utilizada como medicamento é a casca, que também deve ser extraída do lado que o sol nasce. Depois de extraída é só fazer o preparo que consiste em primeiro lavar a casca colocando em uma vasilha com um pouco de água, levando ao fogo para ferver por alguns minutos. Deixe esfriar até ficar morna. Passar no local machucado e enfaixar. 43 Medicina Indígena TUARA (Sem Tradução) É uma planta também do cerrado. Seu tronco não é muito grosso e as folhas são miúdas. A parte da planta utilizada como medicamento é a casca que, semelhantes as anteriores já descritas, é extraída do lado que o sol nasce. Depois de extraída, lava-se a casca com água e coloca em uma vasilha com água para ferver. Quando fervida, esfria até ficar morna e lava (banho) o local fraturado três vezes ao dia. Não esquecer de enfaixar o local machucado. Todas as vezes que for usar o remédio novamente, devese aquece-lo antes de fazer o curativo. A pessoa deve ficar de repouso e não consumir alimentos salgados. Fazer o preparo diariamente para seu uso. KYADUGI (MANGAVA-BRAVA) É uma planta encontrada no cerrado, sendo a sua casca a parte utilizada para fazer o medicamento, levando em consideração que deve ser extraída do lado que o sol nasce. Não é preciso cortar a árvore, basta tirar a casca grossa (primeira camada de casca) e depois raspar com uma faca a casca fina, coletando assim o material com o qual irá preparar o remédio. Para o preparo deve-se colocar o material retirado em uma vasilha com água, levando ao fogo para ferver por cinco minutos. Espera-se esfriar, coando com um pano limpo e armazena-se em um recipiente para usar diariamente, três vezes ao dia, até o ferimento cicatrizar. 44 dia) como medicamento para ferimentos internos, principalmente no intestino e no estômago. AKI-IWANTAUNLU (LIXEIRINHA) Planta encontrada no cerrado, sendo sua raiz utilizada pelos Bakairi na cura de cortes. A raiz, depois de retirada do solo, deve ser lavada com água, raspada e colocada em uma vasilha com um pouco de água para ferver. Após a fervura, aguarde esfriar para então coar com um pano limpo e acondicionar num recipiente. O tratamento consiste em beber duas colheres de chá, duas vezes ao dia. Também recomenda lavar o local do corte três vezes ao dia, até que o ferimento esteja cicatrizado. Assim como todos os outros medicamentos, o paciente precisa repousar evitando consumir alimentos muito salgados para não interferir no processo de ação (cura) por intermédio do medicamento. Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas Também pode ser ingerido (uma colher de chá duas vezes ao Plantas medicinais usadas pelo Povo Waurá. Os Waurá são uma etnia que habitam há décadas no mesmo local, na Terra Indígena do Xingu, onde nos dias atuais convivem com outros povos como Trumai, Mehinako e Yawalapiti. Mantêm ainda nos dias atuais suas práticas culturais tradicionais como mitos, ritos, pesca, roças, organização social, entre outras. Constroem as casas no formato tradicional das etnias do Xingu. Elaboram artesanatos, com os quais conseguem dinheiro para comprar produtos industrializados nas cidades. 45 Medicina Indígena Conhecem cada estação do ano através de um fantástico calendário que tem como referência as flores, as folhas e frutos verdes e maduros, as estrelas, o canto das aves, as borboletas, entre outros seres e elementos da natureza. As famílias moram em casas separadas. Quando uma mulher grávida dá à luz a uma criança, ela fica reclusa na casa sem fazer nada. Não pode comer peixe e só a mãe dela pode fazer comida para ela, numa dieta a base de aves e macacos. YETULA (MANGABA) Sua utilização é feita tirando um pedaço da raiz que, depois de descascada, é colocada numa vasilha com água para esquentar até o ponto de fervura, quando então é retirada do fogo. Após esfriar, molha um chumaço de algodão e coloca no dente que está doendo. Também costumam retirar a resina do galho da mangaba, usando um copinho feito com uma folha. Após esse procedimento, pinga esse líquido no dente que, segundo os mais idosos, a dor diminui em pouco tempo. A Yetula é um arbusto que produz flores e frutos comestíveis. É encontrada nas capoeiras. Possui as folhas com tonalidades verde e vermelha. 46 Desta planta é recolhida cerca de dez folhas verdes que são esmagadas em uma cuia com água. Espreme-se bastante para fazer um caldo bem grosso e bochechar que a dor diminui. Não é necessário aquecer no fogo e nem misturá-la com outras plantas. Outra forma de uso consiste em pegar galhos inteiros, que são queimados até virar cinza, que é recolhida e colocada na panela, com um pouco de água, levando ao fogo para esquentar, coando em seguida. Esse líquido de cor escura é utilizado na forma de bochecho no decorrer do dia. ULEI-XUMÃ (PLANTA DO CAMPO) Planta nativa do campo, pequena e semelhante à mandioca, com flores de cor amarela. A forma como é utilizada é simples, bastando apenas mastigar a raiz, que solta um líquido viscoso, usado contra cáries e dor nos dentes. Não deve ser consumida junto com outra Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas AYU (ALGODÃO) planta medicinal. MALAHĨXŨ (PLANTA NATIVA) Para obter as propriedades medicinais dessa planta, segundo os índios Waurá, faz-se necessário tirar a casca para, entre a madeira e a casca, obter um líquido fino, incolor, em pouca quantidade, mas de grande potencial anestésico e anti-inflamatório, que deve ser passado com algodão na boca e no dente quando está inflamado. 47 Medicina Indígena WALAPÁ (PLANTA NATIVA DA MATA) Semelhante com a planta anterior, inclusive na forma de usar e no potencial anestésico e anti-inflamatório. Também não deve ser misturada com outras plantas quando estiver sendo usada. Aparenta na forma de uma árvore de porte grande com folhas pequenas. MAPISAKURŨ-KUMÃ (PLANTA DO CAMPO E DO CERRADO) Esta planta segundo os indígenas, possui um efeito analgésico forte que, ao mastigar a sua casca, proporciona o imediato alívio da dor de dente. Não deve ser misturada com outras plantas. É uma planta nativa, pequena, com folhas bem coloridas. Sua denominação não tem tradução para o português. ANATOPE (PLANTA NATIVA DO CAMPO) As propriedades medicinais são eficazes no tratamento da dor de dente, sendo o seu potencial obtido espremendo as folhas desta planta, até que se consiga uma espécie de resina que então é passada no dente que está doendo, aliviando a dor e também a infecção, caso tenha. 48 UIBRÓIWEDE (SUCUPIRA) Amplamente usada no tratamento da diabetes entre os Xavante, consumida na forma de chá, feito com a raiz, a folha e cascas do tronco da árvore, que atinge altura e dimensões consideráveis. ‘RÉ É ‘RÃ (sem tradução) Árvore de médio porte, frutífera, apreciada como alimento pelos pássaros. As flores são cor-de-rosa. Para o diabetes utiliza-se somente a fruta, que é fervida em água e bebida na forma de suco. WEDETEDE (IPÊ) Árvore de grande porte, encontrada no cerrado, sendo a madeira Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas Plantas medicinais do povo Xavante de grande utilidade para os Xavante. Pode ser encontrado com flores amarelas, roxas ou cor de rosa. Quanto mais frio e seco for o inverno, maior será a intensidade da florada do ipê amarelo e roxo, que floresce durante os meses de maio e agosto e perdem totalmente suas folhas. Os frutos amadurecem a partir de meados de setembro ou outubro, sendo consumido como um potencial medicamento para combater o diabetes. Sobre plantas usadas com a finalidade de tratamento do diabetes, vale ressaltar a contribuição recente de Rieder; Guarim Neto (2012), 49 Medicina Indígena que apontam diferentes espécies da flora de Mato Grosso usadas para tal finalidade. UHÖTETEPA Planta amplamente encontrada no cerrado. Os indígenas preparam da seguinte maneira: arrancam as raízes, ralam e deixam no sol para que fiquem bem secas, depois passam o pó direto nas feridas que cicatrizam rapidamente. Não tem tradução para o português. ITSUI’RÉPAQUE (DOURADÃO) Essa planta cujo nome na língua Xavante é itsui’répaque, também encontrada no cerrado, é muito usada no tratamento de feridas. Utilizam também a raiz da planta, só que com esta eles torram no fogo e socam no pilão até virar pó, que é colocado no ferimento, tendo rápida cicatrização. WEDE’UWAHÖ (Não tem tradução) O preparo dessa raiz, também encontrada no cerrado, é um pouco diferente das anteriores: Descasca-se a raiz e em seguida colocase numa vasilha com água fria. Depois de algumas horas, lava-se várias vezes no decorrer do dia a ferida com a água onde a raiz estava de molho. O Efeito de cicatrização é rápido. 50 O remédio preparado com essa planta, também é feito da raiz, que é deixada ao sol para que fique bem seca, levando em seguida ao fogo para ser torrada e moída até virar um pó de cor cinza escuro, que é colocado diretamente sobre a ferida. WETSUIRE (Não tem tradução) No preparo do remédio com essa planta, utiliza-se apenas as folhas, que são colhidas e deixadas ao sol para que fiquem bem secas. O procedimento seguinte consiste na queima das folhas até que vire cinza. Coloca-se o pó diretamente nas feridas. ITSUIHÖIRE (Não tem tradução) O remédio dessa planta também é extraído da raiz, que é torrada e moída, para em seguida, semelhante aos outros, colocada sobre o ferimento. Etnoconhecimento: Plantas Medicinais Utilizadas em Aldeias Indígenas WEDE’UWAHÖIRÃ (Não tem tradução) 51 Conhecimento Indígena e Cosmologia A mídia do século XXI frequentemente apresenta antropólogos debatendo-se para decidir que papel os índios devem desempenhar no cenário nacional. A posição oficial nem sempre coaduna, quer seja com organizações não governamentais ou a opinião pública. Desde a segunda metade do século XIX, a escola positivista (HEMMING, 2004) criou raízes – através da difusão do processo evolutivo em estágios específicos, desde as sociedades primitivas para as maduras – no seio da classe média brasileira. Rapidamente esse pensamento cresceu e se assemelhou a uma teologia, tendo como um dos precursores o explorador e fundador do Serviço de Proteção ao Índio, Marechal Cândido Rondon. As etnias nativas brasileiras – mais especificamente da Amazônia – eram então entendidas indubitavelmente como o primeiro estágio de evolução cultural, externando o ápice do animismo, ou a crença de que qualquer objeto natural podia ter um espírito. Segundo essa filosofia, os indígenas eram incapazes de pensamento racional, apesar 53 Medicina Indígena de concordarem que desse estágio de primitivismo cultural, poder-se-ia alcançar estágios mais avançados de desenvolvimento. Para Reel (2011) pode-se sintetizar a fórmula foi “saltar do animismo ao politeísmo, daí ao monoteísmo e por fim ao racionalismo ilustrado”. O efeito principal dessa filosofia – positivismo – entre os indígenas do Brasil foi a conversão religiosa, mais especificamente ao cristianismo, conforme relata o presidente americano Theodore Roosevelt em visita ao Brasil: “Para os índios sul-americanos, o cristianismo é o primeiro passo para ascender do estado de selvageria. Observa-se que em vários distritos, os homens são divididos em duas grandes classes: cristãos e índios. O índio só é completamente aceito, ou assimilado pela simples civilização circundante, quando ele se torna cristão, podendo, a partir de então se mover como qualquer outra pessoa” (ROOSEVELT, 1914). Em torno de 1930 – com o surgimento do relativismo cultural – os antropólogos brasileiros passaram a apresentar outros termos para designar os “primitivos” e os “selvagens”, alegando que eram designações tendenciosas aplicadas de forma injusta pelos antropólogos europeus. Aliada as novas denominações – de certa forma puramente acadêmicas – novas teorias (Freud, Jung) sugeriam que as culturas indígenas representavam um estágio infantil do desenvolvimento humano. Nessa época, foi fácil correlacionar o sistema de crenças ou religiões das sociedades indígenas com a condição de criancinhas incapazes de distinguir a realidade objetiva, onde Marcelo Gomes complementa: “de sua própria objetividade” (GOMES, 2000). 54 códigos espirituais – que os indígenas mantêm com pessoas imaginárias, entidades religiosas ou animais, natureza e plantas, transmitidas entre gerações através dos anciãos. Não é intenção, neste capítulo, estudar as religiões indígenas, mas sim buscar a correlação, através dos autores como Darcy Ribeiro (1950, 1974), Emile Durkheim (1989), Mircea Eliade (1994) e Roque Laraia (2005) desse sistema de crenças que age em seu mundo interior com a natureza envolvente. A relação afetiva com a “Mãe Terra”, a convivência harmoniosa com a natureza, ou tão harmoniosa quanto lhes é permitida, com Conhecimento Ind[igena e Cosmologia Nessa linha é possível verificar que a relação – através de seus seus saberes transmitidos oralmente, pela palavra e pelo exemplo. O que nesse processo de transmissão conserva-se ou se altera, afinal todo aprendizado é dinâmico, mantém os valores antigos e em algum grau o modifica e incorpora o novo. O aprendizado cotidiano acerca da natureza e da própria relação com o outro passa ao largo de uma cultura formal, o que, sob certos aspectos pode ser uma vantagem para essas culturas assediadas pela força da civilização ou da cultura dominante. Como esse conhecimento é perpassado através de ritos, arraigados crenças num processo dinâmico, a que nenhuma cultura é refratária, talvez nos leve para a questão fundamental que é a magia do mito, onde surge o indivíduo principal de todas as sociedades indígenas, por vezes designado pelos etnólogos pelo termo xamã, caracterizando (a nosso ver nessa ordem) o feiticeiro/médico/homem com seus poderes mágicos. Por traz dos “impostos” Adões e Evas, transcendem espíritos que flutuam por florestas sagradas que fornecem o fluido vital para a cura de doenças, usado em rituais de pajelança – as plantas medicinais. 55 Medicina Indígena Vimos em capítulos anteriores o amplo conhecimento que as comunidades tradicionais, em particular as indígenas, possuem em relação à natureza e a convivência harmoniosa que estabelecem com o meio ambiente com o qual se relacionam, uma mescla entre os fantasmas que podem proteger o pajé e sua etnia ou prejudicar o inimigo. É por meio da oralidade e do aprender fazendo que os saberes dos anciões e dos pais, através de mitos, histórias e contos são ensinados aos jovens a forma como lidar com a natureza, as fases e ciclos, bem como a importância de manter o equilíbrio com o seres da mata. Em nossas experiências com etnias como os Kuikuro, Waurá, Ikpeng, Xavante, entre outras, tivemos a oportunidade de perceber a transmissão de códigos morais através de histórias entre as gerações. A sociedade não índia ao longo das décadas, em decorrência da vida moderna, foi distanciado cada vez mais da natureza, vendo nela um bem de consumo a serviço do capital, consequentemente também foi deixando de valorizar o seu caráter espiritual, os seres sobrenaturais que estão diretamente ligados com a natureza e que orientavam gerações passadas, restando apenas poucos nichos sociais que ainda valorizam esses conhecimentos. Os povos indígenas de maneira geral mantiveram, e muitas comunidades ainda mantêm uma estreita relação espiritual com seres que vivem na natureza em locais tidos por sagrados como rios, pedreiras, cavernas, matas, entre outros. A entrada de forma avassaladora nos últimos anos de missionários impondo as religiões de matriz judaico-cristã em Terras Indígenas tem provocado danos irreparáveis, na medida em que condena as práticas 56 dogmas presentes no evangelho. Essa ação tem provocado uma ruptura nos conhecimentos tradicionais de uma geração para outra, onde os jovens indígenas estão cada vez mais desconhecendo os valores espirituais de seu povo, fragilizando a identidade étnica e cultural de muitas comunidades tradicionais do estado de Mato Grosso. Retomando a questão inicial, a importância da espiritualidade indígena, é fundamental ressaltar que em muitas aldeias os espíritos, sejam da natureza ou de antepassados, são a base para a realização de inúmeras atividades com os ritos, mitos, caça, pesca, extração de matéria Conhecimento Ind[igena e Cosmologia religiosas tradicionais da cultura de cada povo e impõe a prática dos prima para a confecção de adornos, a produção de medicamentos da medicina tradicional, o preparo e a colheita das roças. Todas essas atividades cotidianas estão amplamente interligadas com o mundo dos espíritos. Algumas comunidades indígenas, como ressaltamos anteriormente, tem na realização de suas roças um série de atividades que envolvem a espiritualidade, pois para eles existem os espíritos que cuidam das plantas, que protegem as roças das pragas e fazem com que a produção seja farta. Ao conversarmos com vários indígenas, entendemos o quanto é importante essa relação com os espíritos nos diferentes momentos da vida da pessoa e da comunidade. Ele está presente nos sonhos e no sentido da vida. Também temos que levar em consideração as consequências advindas do não respeito às crenças no universo dos espíritos, como as doenças que aparecem, a falta de alimentos, desastres, brigas, entre outras coisas ruins que acontecem com a comunidade. 57 Medicina Indígena Diante deste contexto, a espiritualidade entre os povos indígenas é parte intrínseca da sua cultura e identidade, fator que em muitas comunidades definem os destinos do grupo. Uma atividade que se aprende muito cedo numa comunidade indígena é cultivar, cuidar e procurar plantas na mata. Preservar a natureza faz parte do aprendizado das crianças à medida que acompanham os adultos nas roças e nos afazeres cotidianos. Aprendem, segundo Beltz e Januário (2013), desde muito cedo a frequentar a roça e a colher os frutos da terra, sagrada para eles, que fornece o alimento para a sobrevivência. Os saberes da natureza são transmitidos desde muito cedo de geração para geração, por meio da oralidade, fazendo com que esses povos passem a ter uma relação diferenciada com o meio ambiente que o circunda. Segundo a explicação de um indígena Aweti, do Parque Indígena do Xingu, o saber sobre a natureza tem sido transmitido para as novas gerações por meio dos anciões, que explicam para os mais jovens o processo todo, os calendários estelares (constelações). Os pais também são responsáveis em ensinarem os filhos sobre come lidar com a natureza. Os saberes que essas comunidades possuem acerca da natureza são tão diversos quanto a humanidade. Da convivência surgem situações de aprendizagem e de conhecimentos. Os saberes nas comunidades tradicionais têm uma importância fundamental na vida social do indivíduo, onde essa diversidade de experiência é compartilhada dando sentido e identidade para a pessoa. 58 verdadeira educação informal, as experiências são compartilhadas e os fenômenos da natureza e do mundo apreendidos pelos indivíduos. Quando nos voltamos para as comunidades tradicionais de Mato Grosso, em especial as indígenas deparamos com um monumental acervo de mitos, ritos crenças que estão passando por um processo acelerado de ressignificação cultural, ou seja, por mudanças e incorporações de novos valores, decorrente do contato com a sociedade não índia, que poderá a médio e longo prazo, produzir efeitos devastadores nos saberes tradicionais dessas comunidades. Diante desse quadro, é importante a pesquisa, o registro e o Conhecimento Ind[igena e Cosmologia Por meio do aprendizado cotidiano acerca da natureza, que é a estabelecimento de políticas públicas de valorização e proteção ao patrimônio imemorial destas comunidades tradicionais, que fazem parte da História de Mato Grosso que, num futuro bem próximo, poderão ter seus conhecimentos tradicionais existindo apenas nos livros didáticos. Na concepção do povo indígena Ikpeng, não se classificam os animais invertebrados da mesma forma como foi estabelecida pelos não indígenas, em famílias, grupos e subgrupos. Para eles tudos são bichos, independente em que ambiente vivem ou onde são encontrados. A classificação Ikpeng é realizada pela semelhança entre os animais ou com base na sua utilização como alimento. Outro aspecto intrigante é a classificação com base na espiritualidade, neste caso feito pelo pajé onde determinados animais invertebrados são protegidos por espíritos, como é o caso das abelhas, das lagartas e das borboletas, que por essa particularidade não podem ser comidos ou pertubados em seu ambiente natural. 59 Medicina Indígena Uma parcela considerável dos animais invertebrados têm mitos de origem, como é o caso da formiga saúva e das abelhas nativas da região, que colocam esses animais numa estreita relação com o mundo cosmológico dos Ikpeng. Esse conhecimento dos animais invertebrados que vivem na natureza, bem como a sua forma de classificação com base em critérios estabelecidos pela comunidade Ikpeng tem sido transmitido ao longo de gerações por meio da oralidade, principalmente nos mitos e rituais realizados nas aldeias, onde os mais velhos, em particular os pajés, ensinam os jovens esse conhecimento tradicional e secular. A relação com a natureza e tudo que nela vivem são a base da manutenção da identidade e das práticas culturais dos povos indígenas, que para a sua manutenção é imprescindível a comunicação e o diálogo entre as diferentes gerações presentes nas comunidades, particularmente com os mais velhos, detentores dos conhecimentos tradicionais e fortemente ligados com os preceitos espirituais presentes nas atividades cotidianas de um povo. A escola representa, a partir desse novo contexto pelo qual passam as comunidades indígenas, um espaço por excelência para ajudar na manutenção das tradições, na medida em que insere em seu projeto político pedagógico a valorização do saber local. O registro escrito nas línguas indígenas dos conhecimentos tradicionais tem sido uma forma que tem começado a dar resultados positivos, especificamente com a produção de materiais didáticos com temas de relevância para o povo indígena. Os Ikpeng têm feito isso com grande primor e sabedoria, registrando na língua indígena os diversos saberes, entre eles os 60 aldeias. A presença de práticas espirituais entre os povos indígenas tem uma estreita relação com a natureza, onde buscam neste contato com o meio ambiente que os rodeiam os ensinamentos dos seres que povoam o universo sobrenatural. Entre os elementos mais importantes está a terra, que abriga as matas, rios, cachoeiras, roças, cavernas e uma infinidade de seres que fazem parte das concepções cosmológicas e dos mitos indígenas. No entanto, nos deparamos no momento atual com uma Conhecimento Ind[igena e Cosmologia espirituais, que são perpetuados e ensinados nas escolas de suas preocupação de grandes dimensões que se trata da redução das Terras Indígenas e dos imensos desmatamentos no entorno das áreas indígenas que vem provocando impactos nos lugares considerados sagrados para muitas comunidades. O desaparecimento de alguns animais também tem sido recorrente em várias regiões, sendo alguns desses animais como a onça, a arara, o gavião, algumas espécies de peixes e insetos, parte integrante do mundo espiritual dos indígenas. Muitas etnias têm seus mitos de origem relacionados a determinados animais. A conservação e preservação do meio ambiente implicam diretamente na sobrevivência de muitas crenças e tradições seculares, que podem desaparecer para sempre se não foram tomados alguns cuidados na preservação do meio ambiente. Outro desafio que as comunidades indígenas estão enfrentando é a falta de interesse dos jovens indígenas em darem continuidade ao ofício de guardião dos conhecimentos espirituais, ou seja, de se tornarem pajés. A tecnologia e as mudanças advindas da modernidade 61 Medicina Indígena que têm entrado nas aldeias, têm feito com que os jovens não queiram passar pelo rigor de ser um pajé ou xamã, uma vez que tem que abrir mão de uma série de atividades cotidianas. Um pajé ou xamã tem que manter uma alimentação diferenciada, fazer rigorosos resguardos e não usar uma série de produtos industrializados como sabonete, perfume, desodorante, entre outros, que atrapalha no desenvolvimento dos sentidos. Também não podem manter relação sexual em determinados períodos, principalmente quanto estão fazendo as curas. É preciso também que seja um profundo conhecedor da medicina tradicional, da maneira em como utilizar as plantas da região na manipulação de banhos, chás, benzeções (OLIVEIRA, 1985) e remédios em geral. O aprendizado de manipulação das plantas requer um longo aprendizado, porque envolve os espíritos que vivem nas matas e são donos de determinadas plantas, sendo necessário saber entrar em contato com esses seres para poder utilizar determinadas plantas. O chefe espiritual também tem que ser conhecedor das diferentes estações do ano e suas mudanças no ecossistema, ou seja, existe a época certa para retirar os produtos da natureza. Também tem que ser uma pessoa que conhece os códigos das estrelas e da lua, pois elas determinam o momento e a forma que se deve proceder com os espíritos num trabalho de cura, oferenda ou proteção. Em meio a todo esse emaranhado de códigos e saberes é que se manifesta a espiritualidade indígena, sendo ela parte fundamental da manutenção da indentidade e da cultura de um povo. A manutenção dessa prática é vital para sobrevivência desses povos enquanto grupos socialmente diferenciados. 62 Considerações Finais Ao longo desta produção e, principalmente, em mais de duas décadas de trabalho junto a comunidades tradicionais do estado de Mato Grosso (ribeirinhos, negros e indígenas) valorizamos o que denominamos de “saberes étnicos” além de considerar o modo como eles se inscrevem nos processos pedagógicos. Ressaltamos, entretanto, mesmo sob pena de parecer excessivamente conservadores, que o respeito à diversidade e as garantias de proteção a essas culturas não são incompatíveis com uma visão universalista que pode e deve permear todo o processo cultural e educacional. Podem essas culturas sobreviver e permanecer refratárias a isso? Poupá-los desse intercâmbio não seria também uma forma de marginalizá-los e torná-los ainda mais vulneráveis? Dando ênfase na valorização da experiência, nas lições dos mais velhos, esta pesquisa apoia-se em depoimentos dos moradores mais antigos, os sobreviventes de um mundo que está deixando de 63 Medicina Indígena existir. Até que ponto as gerações mais novas ainda vão valorizar essas experiências? Considerando que o ser humano é sujeito e objeto do conhecimento, usamos da experiência empírica e da memória, incorporando-as no ato de escrever, como forma de expressão acadêmica. Entretanto consideramos importante também a forma como se inscrevem numa visão de mundo, onde “as concepções cosmológicas de cada povo” alimentadas a um só tempo pela relação simbiótica com a natureza e também pela relação com o outro, abre um leque de percepções e entendimento da relação “ser humano e natureza”. É intrigante a percepção da medicina tradicional indígena, como as novas gerações incorporam isso, afinal elas estão a meio caminho entre a civilização ou cultura de origem e os formidáveis apelos da sociedade moderna. Apontamos com base nos depoimentos dos sujeitos desta pesquisa que os órgãos governamentais, as políticas públicas (que nem sempre passam ao largo de interesses privados bastante poderosos) não valorizam a medicina tradicional e introduzem os remédios alopáticos. Consideramos importante enfatizarmos como essa medicina indígena trata o doente e como procede a sua relação com o ambiente como um todo. O testemunho do Bakairi André é bastante relevante: “chega um momento em que o acesso aos remédios vendidos comercialmente se torna muito mais fácil que a busca dos recursos da medicina tradicional”. 64 necessidade do ritual, que considera as fazes da lua, a posição do sol, entre outros elementos. Cultura oral via-tradição, deve ser entendida como passagem, afinal fora da tradição nenhuma cultura sobrevive, frequentemente o preço da sobrevivência é conviver com ganhos e perdas. Considerações Finais A natureza interage com a cultura material e imaterial, por isso a Defendemos a posição segundo a qual uma política pública levada a cabo por órgãos denominados públicos não deve ser refratária aos valores que estão incorporados numa medicina tradicional que, de resto, é largamente utilizada por sociedades mais “simples” ou até mesmo disseminada em centros urbanos. A própria literatura dá exemplo de personagens que povoam a imaginação de gerações mais antigas: a figura da “vó” benzedeira ou da tia que conhece aquelas ervas ou aquele chá capaz de resolver vários problemas sem apresentar efeitos colaterais. Tratava-se então de uma relação que era alimentada pela confiança na experiência daquelas personagens mais velhas, mais do que no conhecimento douto dos médicos. Quando implantam um sistema sanitário nos moldes urbanos, eles já vão acompanhados de valores, de práticas culturais que se mostram incompatíveis com as heranças passadas pela experiência. O mesmo vale para a inserção de mecanização na agricultura e do uso indiscriminado de agrotóxicos. Como resolver o impasse? Os próprios relatos mostram que novas doenças trazem desafios que não encontram lenitivos na medicina tradicional ou moderna. Os rituais de passagem: em que medida essas sobrevivências podem ser encontradas no comportamento e atitude de jovens 65 Medicina Indígena urbanos. É possível estabelecer um paralelo ou estamos apenas diante de um modismo. Os adornos usados pelos indígenas conservam o mesmo sentido que tinham nas gerações passadas? Ao apresentarmos uma rica e cuidadosa descrição das plantas medicinais e de doenças, bem como do modo como estão entranhadas com as práticas culturais de cada etnia. Às vezes temos a sensação que cada etnia é um mundo! O capítulo que reflete sobre a cosmologia indígena é de extrema relevância, haja vista que os capítulos anteriores, em nosso modo de ver, deságuam neste. É a questão neural que oferece oportunidade para uma análise bastante profunda e rica. Conhecimento e Sustentabilidade são dois termos que também perpassam este estudo, onde procuramos o aprimoramento do conceito e de como fazer com que eles possam ser compreendidos e colocados em prática pelos jovens e gerações futuras. Na conferência mundial Rio + 20, foram recorrentes nos debates esses dois conceitos que, em particular, envolvem as comunidades tradicionais de inúmeros países, pelo fato de serem os integrantes dos grupos sociais e étnicos, que têm conseguido estabelecer uma relação com menos impactos negativos com o meio ambiente local onde estão localizadas. Essa discussão já vem arrastando-se por várias décadas, tendo como um dos marcos teórico a publicação da obra “O Ponto de Mutação” do austríaco Frijof Capra, que destaca a importância das instituições escolares no entendimento e desdobramento desse tema, que só terá resultados numa ação coletiva, que envolva sociedade civil e poder público, como forma de que se possam ter resultados positivos na busca do equilíbrio entre desenvolvimento e preservação ambiental. 66 pelo desenvolvimento tecnológico, conduziu as gerações atuais, particularmente as dos centros urbanos, a um distanciamento dos valores relacionados ao meio ambiente, onde a relação ser humano e natureza passa a ser pautada numa perspectiva de dominação e subordinação. Considerações Finais Ao longo das últimas décadas, a modernidade impulsionada O conhecimento existente nas comunidades tradicionais pode auxiliar a população, de uma maneira geral, no entendimento das causas de problemas socioambientais pelo qual enfrenta o mundo globalizado e tecnológico que estamos inseridos e que tem apresentados sinais de que estamos a caminho de uma catástrofe de dimensões assustadora. Um dos desafios que foi debatido na Conferência Mundial do Rio de Janeiro, consiste no modelo de produção de conhecimento que fundamenta os espaços escolares na atualidade, onde as instituições de caráter científico desconsideram a geração de conhecimento advindo das populações tradicionais, onde o saber é construído ao longo de séculos de experimentações feitas no dia a dia, nas relações cotidianas de seus moradores, produzindo um acervo imemorável de etnoconhecimento que, precisamos nos debruçar sobre ele, para voltarmos a respeitar a natureza na sua forma singular e fundamental para a sobrevivência da humanidade. Os saberes nas comunidades tradicionais têm uma importância fundamental na vida social do indivíduo, onde essa diversidade de experiência é compartilhada dando sentido e identidade para a pessoa. Por meio do aprendizado cotidiano acerca da natureza, que é a verdadeira educação informal, as experiências são compartilhadas e os fenômenos da natureza e do mundo apreendidos pelo indivíduo. 67 Medicina Indígena A escola passa a ser neste contexto um espaço significativo, na medida em que a instituição de ensino insira em seu projeto político pedagógico, atividades de ensino e pesquisa com participação das pessoas que dominam os conhecimentos tradicionais, de maneira que promova a discussão e consolidação dos etnoconhecimentos existentes. Para tanto, precisamos rever conceitos e ideias acerca de desenvolvimento econômico presentes na sociedade atual, para que realmente possamos promover mudanças significativas nos próximos anos. Entretanto, ainda vale considerar muito relevante a relação que estabelece entre sociedades e meio ambiente, neste caso entre povos indígenas, meio ambiente, plantas e plantas medicinais. Esta relação é perpassada por séculos de conhecimento que é transmitido fortemente pela oralidade aos ancestrais e chegam à atualidade com seus desafios, limites e oportunidades. 68 Referências Bibliográficas BELTZ, Leilacir e JANUARIO, Elias. Roças Indígenas em Mato Grosso, Educação Ambiental e Sustentabilidade. Cuiabá: Instituto Merireu Editora, 2013. FUNAI. Disponível em http://www.funai.gov.br/. Acesso em jan/2013. GOMES, Mércio P. The indians of Brazil. Gainesville: University Press of Florida, 2000. GUARIM NETO, Germano. Plantas utilizadas na medicina popular do Estado de Mato Grosso. Brasília: CNPq: Assessoria Editorial, 1987. GUARIM NETO, Germano. Plantas Medicinais do Estado de Mato Grosso. Brasília: ABEAS/UFMT/IB/DB, 1996. GUARIM NETO, Germano. Plantas Medicinais. In.: Educação Ambiental. Cadernos do NERU, nº5, Cuiabá: UFMT, 1996a. 69 Medicina Indígena GUARIM NETO, Germano. O saber tradicional pantaneiro: as plantas medicinais e a educação ambiental. Rev. 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