CONSTRUÇÃO DE RACIONALIDADES MÉDICAS - HCTE

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CONSTRUÇÃO DE RACIONALIDADES MÉDICAS: HOMEOPATIA E PSICANÁLISE
COMO ESTUDO DE CASO
Conrado Mariano Tarcitano Filho
Doutor em História da Ciência
Pesquisador do Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência (CESIMA), PUC-SP
Pesquisa financiada pela CAPES, Modalidade II
[email protected]
Silvia Waisse
Professora do Programa de Estudos Pós Graduados em História da Ciência/Pesquisadora do
CESIMA, PUC-SP, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
[email protected]
Resumo: Na primeira metade do século XX, a insatisfação de um amplo setor dos
médicos com a visão à base da teoria e prática médicas promoveu o
desenvolvimento de racionalidades alternativas. Essas propostas incluíram a
homeopatia, que passou a ganhar destaque em função da integração dos seus
conceitos fundamentais com abordagens psicodinâmicas, a psicanálise em
particular. No presente estudo, são abordadas as propostas do médico psicanalista e
homeopata René Allendy (1889-1942), na França, e do médico homeopata Tomás
Paschero (1904-1986), na Argentina, assim como a sua repercussão nas ideias e
práticas médicas no período.
Palavras-chave: Psicanálise - Homeopatia; René Allendy; Tomás Paschero
No período de entreguerras, a insatisfação de um amplo setor dos médicos
com os rumos da medicina convencional propiciou o aparecimento de racionalidades
médicas alternativas (WEISZ, 68). Nesse cenário, a homeopatia, que vinha
declinando desde finais do século XIX (WINSTON, 220-3), teve ocasião de ressurgir,
no entanto, reformulada com base na tese de que o processo do adoecimento tem
causas profundamente psicogênicas. Assim, não deve surpreender que fossem
realizadas tentativas para fundamentar os conceitos-chave da homeopatia nas
teorias psicodinâmicas da época, a psicanálise, recentemente formulada, em
particular.
Nesse sentido, duas de tais tentativas chamaram notavelmente a atenção, a
saber, aquela produzida pelo médico homeopata e psicanalista René Félix Eugène
Allendy (1889-1942), na França, e aquela formulada pelo médico homeopata Tomás
Pablo Paschero (1904-1986), na Argentina. O ponto de partida de ambos foi a crítica
à medicina convencional devido a sua extrema preocupação com os diagnósticos
meramente clínicos.
Na França, na década de 1920, cresceram movimentos alternativos
motivados pela insatisfação causada pela intensa pesquisa em anatomia patológica,
pelas experimentações em animais, pelo foco centrado no diagnóstico clínico e a
larga medicalização no país, apesar dos alertas publicados nos jornais médicos
(WEISZ, 69). Isso permitiu que várias alternativas terapêuticas surgissem tais como
a reflexologia, a acupuntura, a chiropaxia e a osteopatia.
Dentre as medicinas alternativas destacou-se a homeopatia o que pode ser
ilustrado pelo fato do professor de terapêutica da Faculdade de Medicina de Paris,
Maurice Loeper abre espaço para que líderes da homeopatia ministrassem aulas em
seu curso, além disso, em seu jornal Progrès Medical, publica artigos a favor da
homeopatia.
Paralelamente,
dispensários,
hospitais,
jornais,
instituições
homeopáticas passam a funcionar na França neste período. Dentre os homeopatas,
destaca-se Allendy, que participou do movimento neohipocratismo, considerado um
dos mais importantes pensadores médicos do período cujo livro sobre os
temperamentos oferece aplicações práticas de higiene e terapêutica(IBID, 82).
Porém é como psicanalista que Allendy propõe uma maneira peculiar de entender e
atuar com a homeopatia.
De acordo com Allendy, a homeopatia oferecia uma saída para o impasse
criado pela medicina convencional, na medida em que ela privilegiava a abordagem
do sujeito doente em sua totalidade, às custas da mera patologia (ALLENDY, 152).
Entretanto, Allendy não considerava a homeopatia como a única, nem a mais
apropriada abordagem médica, mas traçou um paralelo entre ela e a psicanálise,
que, de acordo com ele, era tão benéfica quanto a primeira, na medida em que
também representava o processo saúde-adoecimento-cura como intrínseco ao ser
humano.
Convém observar que Allendy manteria esse paralelismo, sem realizar
qualquer tentativa de síntese, pois considerava que a psicanálise poderia induzir o
mesmo tipo de processo curativo promovido pela homeopatia, isto é, levar a uma
“regularização interior, o que equivaleria admitir, implicitamente, uma tendência
espontânea à cura” (ALLENDY, 155).
Já Paschero considera que o motor por trás da vida humana é
essencialmente psicodinâmico e, em consequência disso, entende que a cura
consiste na promoção de um nível de adaptabilidade ao meio que o sujeito não era
previamente capaz de desenvolver. De acordo com Paschero, embora a doença
fosse gerada por inibições de origem moral (superego), a análise psicológica das
situações conflituosas não bastaria para resolver a doença. Para ele, apenas o
medicamento homeopático, isto é, ultradiluído e aplicado segundo o critério de
semelhança terapêutica, poderia estabelecer o caminho curativo ao desfazer o
bloqueio da energia vital gerador da enfermidade. Desse modo, ao seu ver, nem a
psicanálise nem qualquer outra forma de psicoterapia jamais poderia ter o mesmo
efeito que a homeopatia, que, desse modo, Paschero define como a autêntica
medicina da persona ou “medicina antropológica” (PASCHERO, 1988, 150-1).
Ao contrário, para Allendy a doença é produto do meio externo ou da
interação dele com fatores internos (WEISZ, 73). Portanto, não procurou articular os
conceitos da psicanálise com os da homeopatia, isto é, reelaborar a homeopatia
tradicional sob uma visão psicodinâmica, como fez Paschero. Consequentemente,
embora adquirisse imensa reputação, tanto como homeopata, quanto como
psicanalista, sua abordagem não modificou, essencialmente, a teoria e prática da
medicina e, portanto, não teve repercussão além das fronteiras da França.
Contrariamente, a proposta de Paschero de atrelar os conceitos básicos da
homeopatia a noções psicodinâmicas e a sua reformulação da chamada “lei de cura”
achou eco no mundo inteiro, influenciando a práxis homeopática até o dia de hoje.
Na década de 1930, quando Paschero realizava sua primeira aproximação à
homeopatia, a atenção à saúde, na Argentina, enfrentava as sérias consequências
da crise econômica global derivada da Grande Depressão, assim como problemas
próprios oriundos de um intenso processo imigratório (BELAMARTINO, 73). O
sistema de saúde existente era incapaz de dar conta da volumosa demanda
decorrente de um intenso crescimento populacional. De fato, a população argentina
dobrou entre 1906 e 1935 (IBID, 83).1 Esse processo aconteceu de modo
concomitante à especialização da medicina, da onde, também na Argentina, alguns
médicos passaram a questionar o que consideravam ser uma tendência biologista
1Em decorrência deste aumento populacional, as consultas nos hospitais municipais aumentaram 250% e nas
sociedades de beneficência aproximadamente 300%. Os leitos hospitalares aumentaram mais de 300% nos
hospitais municipais e 125% nas beneficências. As consultas ambulatoriais aumentaram tremendamente: 1.467%
nos hospitais públicos e 1.625% nos de beneficência; Ibid., 83.
reducionista na medicina hegemônica, que priorizava a parte sobre o todo e, assim,
não conseguia resolver os problemas individuais.
Igual ao que ocorria na França, também um amplo setor dos médicos
argentinos passou a reivindicar abordagens médicas integrais. Como exemplo,
mencionamos, apenas o caso do pediatra Florencio Escardó (1904-1992). Escardó
convida Paschero para apresentar um curso de homeopatia na Sala XVII do Hospital
de Niños, onde funcionava a cadeira de Pediatria chefiada por ele. Escardó, na
verdade, queria apresentar ali o conhecimento homeopático, como já fizera com
outras áreas da saúde ausentes do ensino médico convencional, como por exemplo
a hipnologia. Assim, abriu espaço para que Paschero propagasse a homeopatia na
universidade.
Ao mesmo tempo em que a psicanálise começava a se institucionalizar na
Argentina, Paschero, entre vários outros médicos, encontrou na homeopatia o
caminho para centralizar a atenção do médico no ser humano, sem perder de vista
os aspectos clínicos. Através de Escardó, Paschero tem contato com a psicanálise
que começava a se institucionalizar na Argentina. Arnaldo Rascovzky (1904-1995),
que dirigia o serviço de neuropsiquiatria e endocrinologia, após contato com os
textos freudianos, questiona se alguns distúrbios ligados à obesidade e à epilepsia
não estariam relacionados à conflitos familiares (RASCOVSKY, 33). Portanto, é via
Escardó e Rascovsky que Paschero tem seus primeiros contatos com os conceitos
psicanalíticos com os quais construirá suas teorias homeopáticas.
Assim, ele defendia não ser mais possível considerar um doente como um
organismo mecânico, e, consequentemente, a terapêutica não mais poderia basearse em supostos mecanismos fisiopatológicos. Ao contrário, era imprescindível uma
visão total do enfermo, do seu funcionamento integral como pessoa, para pretender
uma compreensão verdadeira da sua enfermidade. Nessa perspectiva, seria
necessário que o paciente fosse considerado em sua dimensão psicofíscia,
relacionando-se a enfermidade com as situações atuais, ao contexto integral de sua
biopatografia (PASCHERO, 152).
A proposta inovadora de Paschero pode ser sintetizada num único conceito, a
“lei de cura”, definida como a trajetória eferente da energia vital. À primeira vista,
pode parecer uma simplificação excessiva, para não dizer obscura. No entanto, um
psicanalista facilmente identificará aí a tese básica de Sigmund Freud (1856-1939),
formulada no desenvolvimento de seu Projeto de Psicologia, que marca a transição
de sua fase neurológica para a psicanalítica. O ponto de partida para
compreendermos a elaboração peculiar feita por Paschero é a noção de “energia
vital”.
Similar à ideia freudiana, segundo Paschero, a energia vital percorre uma
trajetória eferente ou excêntrica, ou “do centro para a periferia, da mente para os
órgãos corporais, dos órgãos mais vitais para os menos, de cima para abaixo. A
descarga eferente de toda atividade energética do organismo é o que Paschero
nomeia “lei de cura”, sendo único o processo vital que subjaz em ambas, saúde e
doença (IBID, 13).
A trajetória saudável (excêntrica) da força vital permite que se cumpram os
“elevados fins da existência” hahnemannianos, reconfigurados por Paschero como
“processo de amadurecimento da personalidade”, (IBID, 2). Ao contrário, o bloqueio,
seja por inibição, supressão ou recalque da descarga eferente da energia vital é a
causa primeira da doença. (IBID, 14-6),
Ao contrário, o bloqueio (inibição, supressão ou recalque) da descarga
eferente da energia vital é a causa primeira da doença. Assim, Paschero, sustenta
que o ser humano não é um animal irracional nem uma máquina biológica.
Apela, então, para os clássicos esquemas topológico e estrutural da psique,
os quais valem a pena revisar brevemente. Enquanto o ego representa o polo
defensivo da personalidade e se submete às exigências da realidade representadas
pelo superego, este, por sua vez, através de seu papel de juiz ou censor, constrói
uma forte consciência moral. A censura imposta pelo superego impede a tomada de
consciência e as realizações dos desejos presentes no id, que, afinal, se constitui
em um grande reservatório de impulsos inconscientes (instintos, pulsões). Assim, o
ego tem que intermediar as demandas do id para satisfação de seus desejos e as
exigências impostas pela realidade, incorporadas pelo superego.
Uma segunda frente de conflito se acrescenta à primeira esfera de conflito
interior, a saber, a adaptação ao meio exterior real. Este é, segundo Paschero, a
fonte genuína da formação de sintomas, que nada mais são que soluções de
compromisso, para as quais o ego lança mão dos clássicos mecanismos de defesa.
Em síntese, a doença é “transgressão do sentido da lei de cura que preside o
desenvolvimento da personalidade” (IBID, 1).
Assim sendo, o desideratum da medicina é compreender as motivações
inconscientes da personalidade, uma vez que o médico só é capaz de curar quando
cosneguir restaurar a desordem espiritual do doente a partir do ponto oculto onde se
geram os fenômenos biológicos e se estabelece o equilíbrio dinâmico da totalidade
psico-orgânica (IBID, 6).
No sentido mais geral, o que se busca, em última instância, é desbloquear a
trajetória eferente da energia vital e, assim, restaurar o funcionamento normal da lei
de cura. De acordo com Paschero, essa operação, só o medicamento homeopático
é capaz de realizar, pois
“[...] o medicamento homeopático desbloqueia os conteúdos
inconscientes recalcados e restaura a lei de cura, isto é, a catexia saudável
das emoções/metabolização adequada das experiências emocionais,
sempre no sentido eferente.”
Assim, pode-se afirmar que a homeopatia construída por Paschero respondia às
necessidades de uma visão integral e humanista na medicina contemporânea a ele e
que, em razão disso, ou seja, porque sua medicina antropológica propunha a
integração dos valores psíquicos e físicos do enfermo, suas teorias propulsionaram a
difusão da homeopatia pelo mundo.
REFERÊNCIAS
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Trad. Louis H. Tafel. São Paulo: GEHSP “Benoit Mure”, 1999. 202 p.
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