1 Título: “É possível distinguir ética e moral na Ethica Nichomachea de Aristóteles?” Autor: Cláudia Maria Barbosa1 / Mestranda (PUC/RJ) Orientadora: Professora Barbara Botter (PUC/RJ) Palavras-chave: ética, moral, filosofia prática, Aristóteles, política Resumo: Muito embora a virtude ética seja descrita de uma única forma em grego – êthikê aretê –, buscaremos trazer indicações de que já havia no corpus aristotélico, e sobretudo na Ética a Nicômaco, diferentes leituras para a expressão, em função do resultado das ações praticadas por indivíduos em situações diversas. Uma primeira leitura, relacionando-a ao que chamaríamos hoje mais comumente de moral, ou seja: a ação em consonância às leis gerais. Já a êthikê, em uma segunda leitura, seria mais identificada com as ações que se dirigem aos casos particulares, em que a lei não se aplica facilmente, mas o homem virtuoso é capaz de encontrar a justa medida (mesotes). Para Aristóteles, este homem virtuoso que pratica a êthikê (em ambos os sentidos descritos) é o que estará mais propenso à felicidade (eudaimonia). Esta percepção se apóia em grande medida na cidade (polis) almejada por Aristóteles. Isto é, veremos que na vida prática dos cidadãos, somente a Política será capaz de orquestrar, através da educação e das leis, esta complexa êthikê. Buscaremos identificar no pensamento de Aristóteles que, para a felicidade do homem e bem-estar da polis, é necessário que se harmonize o trinômio: Política-Ética-Moral. Contemporaneamente, a importância da consolidação da democracia e dos direitos humanos reforça a valorização da ética. Sua aplicação, entretanto, tem tentativa universalizante, muitas vezes sem compreensão das particularidades de cada questão, limitando-se a preconizar o que seja certo ou errado, vida ou morte, bem ou mal. Este trabalho – É possível distinguir ética e moral na Ethica Nichomachea de Aristóteles? - tem o intuito de despertar, a partir da filosofia antiga, e especificamente do pensamento de Aristóteles, para a necessidade de maior fundamentação desta reflexão e da inclusão de elementos estruturantes no debate contemporâneo. 1 Curriculum Vitae : http://lattes.cnpq.br/0750733822648393 2 É possível distinguir ética e moral na Ethica Nichomachea de Aristóteles? Por Claudia Barbosa Para a ciência o verdadeiro é o que não muda, mas no âmbito da Ética não se pode dizer a mesma coisa, não existe uma verdade imutável. O âmbito da Ética, em que Aristóteles fala de uma verdade Ética em que tudo pode mudar, é muito próximo do âmbito da Física. As coisas acontecem na maioria das vezes, mas não sempre. As coisas na Física são corruptíveis, não são necessariamente eternas; com a Ética é a mesmo, depende das circunstâncias2. O conhecimento na Ética e na Física, para Aristóteles, parte das coisas “mais conhecidas para nós” para as coisas “mais conhecidas em si” (os princípios). Na Física, através da experiência da observação; na Ética, através da experiência de vida. Aristóteles parte das particularidades, dos fenômenos – normas e leis da cidade, além da opinião das pessoas. 1. Principais proposições da Ética aristotélica O homem, para Aristóteles é responsável pelas suas ações e é, através delas, que se torna virtuoso, escolhendo a melhor forma de agir em cada situação. E, como considera como condição da ação do homem a liberdade de escolha (proairesis), a responsabilidade pelas suas práticas é dele, sem justificativa externa em caso de práticas não virtuosas. Ainda não existia a palavra responsabilidade para os gregos, então Aristóteles usa a expressão “o que depende de nós” (to eph’ emin) para dizer que o homem é responsável. Trata-se da precedência da ação sobre a disposição, porque a ação depende do homem. Isso torna o homem responsável. Cada ação é sempre aberta aos contrários, pode-se fazer ou não. Essa escolha faz com que se tenha uma certa disposição. E a disposição não está aberta à escolha; a disposição é um hábito. O pensamento sobre a virtude ética em Aristóteles é singular na filosofia clássica e, desde então, é referência na filosofia moral. Trata-se de uma ética da ação (práxis) em que o fim (télos) que impulsiona o homem é o desejo (pathos) em vista da felicidade (eudaimonia). Para Aristóteles não existe Ética sem 2 No terreno das ações não há nada fixo (ta d' en tais praxesi kai ta sumpheronta ouden hestêkos ekhei), no sentido de que as regras morais não são estritas, mas variam segundo as circunstâncias (EN, II, II, 1104a 3-4). 3 Política. De modo que, só é possível a felicidade do homem, se também houver a “felicidade” da pólis. O homem para Aristóteles torna-se virtuoso na medida em que desenvolve o hábito da virtude: “É praticando ações virtuosas que nos tornamos virtuosos”. Além de uma disposição natural, este hábito se dá a partir da educação e da experiência. Neste sentido, a família e, sobretudo, as leis da pólis são extremamente importantes. Entretanto, mais que as leis propriamente ditas, a virtude se dá a partir da sabedoria prática (phronesis). E será este homem prudente (phronimos) que será capaz de ir além das leis, identificando a justa medida (mesotes, meson) diante de situações particulares em que as leis gerais da pólis, ou mesmo as universais (da natureza), não se aplicam. « Em todo sentimento de prazer ou dor, há o muito e o pouco, os quais não são bons, nem um, nem outro; mas, experimentar estas emoções no momento oportuno, na situação e em função das pessoas adequadas, pela razão e da forma que é necessário, é, ao mesmo tempo, meio e excelência - característica que diz respeito precisamente à virtude. » (EN II, 5, 1106 b 16) Mais do que somente a razão, o phronimos precisa contar também com a parte irracional da alma que delibera, que pode “ouvir” a razão, de modo a agir conforme seu desejo e em direção à sua felicidade, mas também contemplar o desejo dos outros, e o bem-estar da pólis. Voltado para o fim bom da pólis, o phronimos tende a escolher os melhores meios, não só para si, mas para cada circunstância (justa medida). O homem virtuoso é o que sente prazer agindo. Isto só é possível se o homem sente prazer em viver na pólis e confia nas leis. Para Aristóteles quem age tem que agir por prazer. Uma pessoa que obedece às leis porque é um dever, e não porque escolhe, não está sendo ética. A virtude ética decide os fins (parte irracional da alma) e a virtude dianoética (parte racional da alma) decide os meios. Para Aristóteles a parte irracional da alma é uma “segunda natureza” que reflete como as pessoas normalmente se comportam, o temperamento. Além da phronesis, o homem virtuoso deverá cultivar a contemplação (sophia, sabedoria teórica) para que seja capaz de encontrar a felicidade ao fim da sua vida. Na polis de Aristóteles, é mais importante ter homens virtuosos do que boas leis, pois a pólis só necessitará ter leis gerais justas para educar, ou seja, para orientar o homem, ao longo da vida, no caminho da virtude. A 4 ética de Aristóteles é voltada para a educação. Antes do princípio, está o exemplo. Para Aristóteles, mais importante do que o mestre diz, é a ação do mestre. 2. Ação e Liberdade A proairesis de Aristóteles é a escolha deliberada que precede a ação do homem. Escolher entre duas possibilidades é deliberação (escolha deliberada – proairesis). E no processo de deliberação é o desejo racional (boulesis) que está trabalhando no interior da decisão do homem. A deliberação escolhe quais são os meios para se chegar ao fim, escolhe o caminho. Mas não é responsável pelo valor do fim. O desejo geral (orexis) é o responsável pelo fim. A proairesis significa deliberar, medir antes de agir. É o ato de ponderar ações na escolha. É em Aristóteles que se relaciona pela primeira vez na filosofia ocidental razão e querer. E, para Aristóteles, necessariamente a virtude ética inclui a escolha deliberada. “Para agir segundo a virtude é preciso que o agente em si tenha uma certa disposição no momento que age. Há três condições para este ato ético: 1) o agente precisa saber o que ele faz (ter consciência que o ato é bom); 2) escolher livremente o ato; 3) realizar o ato com uma disposição de espírito firme e inabalável”. (EN II, 3, 1105 a 27) A escolha livre, deliberada pelo homem, é central na Ética aristotélica. O valor ético de uma ação, para Aristóteles, não é pelo o que é feito, mas pela deliberação de como fazer. A parte mais importante para Aristóteles é o meio (determinado pela proairesis), já que o fim pode ser bom ou mau. 3. As duas “éticas” Muito embora, referindo-se a uma só expressão para a virtude ética – êthikê aretê – podemos separar em duas as definições de Ética apontadas por Aristóteles. Veremos que, muito provavelmente, uma não existirá sem a outra na pólis proposta por ele. Proporemos enunciados para o que seja a « Ética 1 » e « Ética 2 », de modo a ser possível comparar tais conceitos com as passagens de Aristóteles na Ética a Nicômaco. 5 “Ética 1”3: aquela prática associada exclusivamente ao hábito (ethos). Relaciona-se a uma disposição (exis), uma segunda natureza do homem que o auxiliaria a praticar a virtude, sem, necessariamente, ter consciência do que está fazendo. Mas no intuito de educar-se para a ação virtuosa. “Ética 2”: associada à ação (praxis) virtuosa. Ação necessariamente relacionada à liberdade do homem. A “Ética 2” é a ação virtuosa que já não é fruto simplesmente do hábito, mas da escolha deliberada (proairisis) pelo homem. “Há dois tipos de virtude: a intelectual e a ética. A virtude intelectual depende do ensinamento recebido tanto para sua produção quanto seu desenvolvimento; é preciso tempo e experiência. A virtude ética, ao contrário, é produto do hábito, de onde veio inclusive seu nome, como uma leve modificação de ethos4. Nenhuma virtude ética é absorvida por nós naturalmente5, porque nada do que existe por natureza pode ser modificado por hábito (por exemplo, a pedra muitas vezes jogada para cima não modificará a sua tendência natural de queda). Logo, não é nem por natureza e nem contrário a ela que nascem no homem as virtudes, mas a natureza nos deu a capacidade de as receber, e esta capacidade chega à sua maturidade pelo hábito.” (EN, II, 1103 a 13) Nesta passagem Aristóteles refere-se especificamente ao âmbito da «Ética 1». Nesta prática dois elementos são indispensáveis: a disposição e o hábito. E ele deixa claro em seguida que, nas coisas que nos chegam por natureza (os sentidos, por exemplo), a potência antecede o ato; mas nas coisas que provêm do hábito, o ato, ao contrário, precede a potência – disposição (exis)6. Isto é, na «Ética 1» o ato advém da disposição natural ou do hábito. Por outro lado, os elementos da «Ética 2» podem ser vistos nas primeiras linhas da Ética a Nicômaco: “Toda arte e toda investigação e, paralelamente, toda a ação (praxis7) e toda escolha (proairesis8) tendem a um bem.” (EN, I, 1094 a) 3 Talvez, por este conceito, poderíamos denominar a <Ética 1> de moral, a partir do entendimento que contemporaneamente temos da palavra (mores, do latim). Podemos também fazer um paralelo da « Ética 1 » proposta, com a denominação de « pré-Política » sugerida por Arendt. 4 Jogo de palavras feito por Aristóteles substituindo ethos (hábito, costume, uso) por ethiké. Essa aproximação já teria sido feita por Platão. Há uma passagem na Ética a Eudemo Livro II, 2, 1220 a 39-1220 b 7. 5 A virtude não é inata e não há caráter da necessidade que encontramos na física (a queda dos corpos, por exemplo); exige a participação do ser humano, entretanto há de se ter uma disposição natural e os hábitos farão desenvolver a virtude. 6 (EN II, 1103 a 26). 7 A praxis se opõe a poiésis. A ciência poética é a ciência da produção (construção de uma casa, por exemplo) e se propõe à realização da poiésis. Já a ciência prática considera as ações do homem que advém da proairesis (escolha). A práxis é uma atividade que não produz nenhuma obra distinta do agente, e que só tem por fim a ação interior, imanente. 8 Proairesis é a palavra usada propriamente para a escolha racional, deliberada após reflexão, e considera os meios para realizar o objetivo proposto. Não se pode confundir com orexis (desejo), nem bulesis (embora seja escolha racional não necessariamente considera os meios possíveis), nem epitumia (apetite irracional, desejo cego), nem 6 Diferentemente da «Ética 1», a ação proposta nesta passagem exige uma escolha refletida, deliberada. Não é só por hábito que o homem age, mas com consciência da ação. E esta ação tende a um fim, a um bem. E, na passagem seguinte, vemos que se esse bem for o mais perfeito deles, a felicidade (eudaimonia), será necessariamente uma ação virtuosa que caracteriza a «Ética 2» (e não a «Ética 1») proposta. “O Bem se identifica com o fim. Em toda a ação, em toda a escolha, o bem é o fim, pois é em função deste fim que se dá todo o resto. Se os fins são múltiplos, o bem também será. Mas, se o conjunto das ações humanas tem um só fim, este é o bem da nossa atividade geral. (...) Entretanto, o Bem Supremo é alguma coisa de perfeito. O Bem que se identifica com o fim supremo, absoluto (telos). Se houver várias coisas que buscamos, o fim perfeito, o Bem Supremo, será a mais perfeita delas. Chamamos perfeito, no sentido absoluto, o que é sempre desejado em si mesmo, e nunca em função de outra coisa. A felicidade parece ser, no estágio supremo, um fim deste tipo, pois escolhemos sempre a felicidade por si mesma e não por outras coisas. Ao contrário, a honra, o prazer, a inteligência, ou toda virtude, são bens que escolhemos por si mesmos, mas os escolhemos também na busca da felicidade.” (EN 1097 a 20-35) Quem é capaz de praticar a «Ética 2» é o homem prudente (phronimos). A «Ética 1» por sua vez está associada à educação da cidade (pólis). Elemento, na visada aristotélica, muito mais importante do que simplesmente as leis. As leis e normas na pólis, que devem ser justamente elaboradas, são parte desta educação. Esta, para Aristóteles, começa com a família e deve contar também com os sábios sabedoria teórica (sophia) componente indispensável na educação da pólis. A «Ética 2» para Aristóteles só é possível com a Política, sendo o elemento que poderá orquestrar «Ética 1» e «Ética 2» na pólis. O phronimos, aquele que pratica a «Ética 2», é capaz de identificar a justa medida. E se essa se dá via ação deliberada, dar-se-à independente de uma obediência a qualquer norma, podendo ser até mesmo uma prática que contradiz as normas vigentes; se assim for justo para um determinado sujeito e em uma situação específica. Vemos, entretanto, que há grande inter-relação entre «Ética 1» e «Ética 2», na proposição de Aristóteles. Relação essa de certa forma teleológica, na medida que Aristóteles vê a pólis como um ser vivo; que precisa de tempo para educar-se e amadurecer, até a plenitude. Podemos dizer que, na maioria das vezes, é preciso agir incialmente conforme a «Ética 1» para chegar à tumós (coragem, impulsão, que mascara a razão pela impetuosidade). 7 prática da «Ética 2», esta que seria, para Aristóteles, o fim, a ética plena, ação virtuosa que leva à felicidade, ao fim último, ao bem supremo. E por que separar «Ética 1» e «Ética 2», se ambas são êthikê aretê? Muito provavelmente porque há uma unidade necessária no fundamento da Ética aristotélica, constituída de duas faces que se completam e se harmonizam na pólis. É uma êthikê aretê que tem no seu fundamento uma complexidade tal que resultou em rumos inexatos no discurso e na prática ao longo dos últimos 2500 anos. 4. Considerações Finais É possível distinguir ética e moral na Ethica Nicomachea de Aristóteles? Esta é a pergunta a que se propõe este trabalho de pesquisa. Questão que parece ir ao encontro do debate contemporâneo que, embora não particularizado em Aristóteles, busca discutir os benefícios e os malefícios de se ter tratamentos diferentes para o que seja moral e o que seja ético. Para ilustrar o amplo debate, a cena francesa traz opiniões conflitantes que ora justificam a separação dos dois termos, ora a união. Monique Canto-Sperber, Alain Badiou, Luc Ferry, André Comte-Sponville, Paul Ricoeur entre muitos outros. Sebastien Charles, por exemplo, considera9 o homem um ser misturado de sua natureza (leis universais) e sua cultura (leis civis). E que o julgamento singular pode levar ao universal, para além da cultura e das Leis10. A partir de dois fundamentos da moral, um “negativo”, a liberdade, e outro, “positivo”, a igualdade, conclui que a moral é um “jogo dialógico entre homens livres e iguais”. Já Yvon Quinou argumenta11 que a ética é o valor capaz de criticar a moral12. E que reabilitar a moral hoje é separá-la do moralismo13. Ainda trazendo imagens do aquecido debate sobre o tema, há a proposta de Alain Badiou, no seu ensaio-manifesto - L’Éthique -, em que, depois de muito criticar o uso temerário da ética hoje, propõe a “ética da verdade”. Onde vai de encontro à incapacidade do mundo 9 Artigo Sebastien Charles – “Philosopher avec Montaigne: Raison et Morale chez Marcel Conche et André ComteSponville” (Revista La matière et l’esprit – abril de 2005). 10 Sebastien Charles citando A. Comte-Sponville sobre Montaigne no referido artigo. 11 Artigo Yvon Quiniou – “Raison Morale et Normativité Éthique” (Revista La matière et l’esprit – abril de 2005). 12 Yvon Quiniou citando A. Comte-Sponville (Valeur et Verité, PUF, 1994, ch. 8, Moral ou Ethique?) no referido artigo. 13 Yvon Quiniou citando Wittgenstein (Conference sur l’Ethique) no referido artigo. 8 contemporâneo de nomear e querer um Bem14. O que, ao citar Nietzsche, reforça o argumento de que “a humanidade prefere querer o nada, a nada querer”. Em meio a este cenário, o que trazemos nesta pesquisa é que, curiosamente, em um contexto em que uma só palavra designava ética e moral – êthikê aretê -, foi possível identificar diferenças nos resultados de práticas virtuosas, como nos mostra Aristóteles na EN. No contexto da pólis, seria possível identificar a prática da êthikê como sendo a prática da virtude moral, quando se refere à obediência às regras coletivas, encontradas nas leis necessárias para a educação virtuosa. E, por outro lado, poderíamos identificar a prática da êthikê como sendo a prática da virtude ética, quando se refere aos casos particulares (não contidos nas leis vigentes) em que a justa medida é alcançada. Se assim for de fato, o que Aristóteles propõe é a necessidade das duas práticas na pólis. Ou seja, a «Ética 1» (êthikê moral), menos dinâmica, voltada à massa de cidadãos; e a «Ética 2» (êthikê ética), necessariamente em movimento, que ocorrerá nas situações particulares em que a ação - excepcionalmente às leis vigentes – se dá de forma justa. Esta última prática, a “êthikê ética”, será bem vinda na dialética da pólis a partir do conflito com as leis gerais, e levando, possivelmente, à mudança nas regras e, conseqüentemente, nas práticas virtuosas coletivas (“êthikê moral”). Muito embora a análise deste trabalho tenha se concentrado no homem virtuoso da EN, o olhar para o “homem malvado” de Aristóteles parece também trazer contribuições importantes ao debate. As diferenças entre kakia e akrasia, sugerem comportamentos moralmente distintos15. Aquele que age habitualmente e voluntariamente de forma incorreta é o homem perverso, vicioso (kakia). Já o que faz o mal involuntariamente e aleatoriamente (sem hábito) é um homem moralmente fraco (akrasia). Se entendermos assim, podemos talvez dizer, em relação à ética e à moral, que: i) o uso de kakia refere-se ao homem vicioso, malvado, que seria uma situação pouco freqüente, mais rara na humanidade. Tem consciência do ato e intenciona esta segunda natureza escolhida por ele. Este homem não é nem ético, nem moral. É perverso; ii) já a akrasia é 14 “L’éthique designe avant tout l’incapacité, caractéristique du monde contemporain, à nommer et à vouloir um Bien. Il faut même aller plus loin: le règne de l’éthique fait symptôme pour um univers que domine une singulière combinaison de résignation au nécessaire et de volonté purement négative, voire destructrice. C’est cette combinaison qu’il faut designer comme nihilisme. Nietzsche a fort bien montré que l’humanité prefere vouloir le rien plutôt que ne rien vouloir. On réservera le nom de nihilisme à cette volonté ddu néant, qui est comme la doublure d’une necessité aveugle” (Alain Badiou, “L’Éthique, essai sur la conscience du mal”, 2003, ch.III L’Éthique figure du nihilisme’). 15 A partir do trabalho de pesquisa (em andamento) de Barbara Botter (PUC/RJ), intitulado “Riflessioni sul Male Morale in Aristotele e Hannah Arendt”. 9 utilizada para referir-se ao homem moralmente fraco. Situação esta bem mais freqüente, onde há menor consciência do ato. Este homem parece ser, moralmente, muitas vezes aceito; iii) e, por fim, arete, situação tão rara quanto kakia, refere-se ao homem virtuoso, com tendência natural ao bem. É puramente ético, mas, talvez, não necessariamente aceito do ponto de vista moral (tem consciência das condições particulares muitas vezes não vigentes nas leis). No Livro X da EN, a prevalência da Política sobre a Ética e o papel do legislador na pólis parecem denunciar as limitações dessa dinâmica da êthikê (moral e ética) proposta por Aristóteles. A felicidade da pólis só será possível se esse legislador for capaz de gerir essa complexa êthikê, que olha tanto os hábitos coletivos e os modifica (educação), quanto sabe reconhecer as situações particulares em que a lei vigente não é suficiente. Neste sentido, talvez esteja aí - na pólis aristotélica - o sinal dos rumos que tomaria, moderna e contemporaneamente, a êthikê. A necessária prática tanto da “êthikê moral” quanto da “êthikê ética” para atingir o bem da pólis, traduzida na unidade do termo, tomou outros rumos. A êthikê – moral e ética – fragmentou-se ao longo do processo histórico e da gestão política da sociedade. Para além de tomar qualquer partido entre separar ou unir os termos – moral e ética – esta pesquisa em Aristóteles quer levantar novos elementos para o debate. E, concordando de certa forma com Monique Canto-Sperber16, há premência em reunir esforços para fundamentar a discussão, fortalecendo a filosofia moral como importante área do conhecimento. Em meio às faltas e excessos que povoam o século XXI, o difícil encontro da justa medida aristotélica pode iluminar o caminho. 16 No último capítulo do livro “A Inquietude Moral e a vida Humana”, Monique Canto-Sperber expõe a necessidade contemporânea de uma justificação existencial e moral para o bem na vida humana. Possivelmente ela se refira exatamente a estes duas práticas da virtude moral – êthikê aretê - que sinalizamos nesta pesquisa na EN. 10 5. Referências Bibliográficas 5.1 Básica ARISTOTE. Éthique à Eudème. Introduction, traduction, notes et index par Vianney Décarie. Librairie Philosophique J. Vrin, 1997. Paris, France. ARISTOTE. Éthique à Nicomaque. Introduction, traduction, notes et index par J. Tricot. Librairie Philosophique J. Vrin, 1997. Paris, France. ARISTOTE. 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