Discursos da Cerimônia de Posse

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POSSE DO MEMBRO TITULAR
RICARDO JOSÉ LOPES DA
CRUZ
DISCURSOS
DISCURSO DE SAUDAÇÃO
Acadêmica Talita Romero Franco
Excelentíssimo Sr. Presidente da Academia Nacional de Medicina,
Acad. Pietro Novelino,
Autoridades que compõem a Mesa
Senhoras e Senhores Acadêmicos
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Foi com surpresa e alegria que recebi o convite para recepcionar o
Dr. Ricardo Cruz em sua posse nesta Casa. Outros há, talvez, que
agora lhe são mais próximos, porém nosso contato é mais antigo e
data de uma época em que acontecimentos marcantes fixaram em
nossa memória pessoas que deles participaram.
Rememorando
nossas histórias, nos últimos 40 anos, vejo que elas se tocam com
frequência.
Conheci o Dr. Ricardo em 1973 quando se tornou Monitor da Cadeira
de Anatomia da UFRJ mesmo ano em que fui nomeada Auxiliar de
Ensino daquela Cadeira. 1973 foi um ano traumático devido ao
abandono e à posterior demolição do prédio da Faculdade de Medicina
da Praia Vermelha, transferida para o Fundão. O então diretor do
Instituto de Ciências Biomédicas, Prof. Newton Castro, muito jovem
mas muito sensível à depressão que atingia todos os desterrados
daquele lindo prédio, convocou alunos e professores para auxiliarem
na mudança. Ricardo Cruz foi um desses alunos e aquela atividade
frenética talvez o tenha ajudado a suportar o sofrimento pela perda
de seu pai, naquele momento tão importante de sua vida. Integrouse, com empenho, à Anatomia, natural pré-requisito para a Cirurgia
que já se lhe delineava como opção futura. O conhecimento da
Anatomia é o substrato básico do cirurgião. Isto parece óbvio mas
deixou de ser nos dias de hoje quando a disponibilidade de peças
cadavéricas é cada vez mais rara, substituídas por moldes de plástico
e outros artefatos.
Lembro-me nitidamente de sua figura esguia, com cabelos um tanto
longos e muito sério. Estava sempre lá, durante longas horas,
mostrando grande habilidade no preparo das peças e já
desenvolvendo a capacidade didática que se tornaria uma de suas
qualidades marcantes. À época ainda não evidenciava a ironia fina e
o humor agudo que vim a conhecer anos mais tarde.
Quando chegou à Anatomia, Ricardo Cruz já havia passado pelo filtro
de seus múltiplos interesses que incluía uma eventual Psiquiatria,
descartada devido ao pendor cirúrgico. Este é outro ponto de contato
entre nós pois, a princípio, também me interessei pela Psicanálise
antes de enveredar pela Cirurgia Plástica. Sorte nossa e dos
pacientes: nascidos ambos sob o signo de Áries, seremos sempre
mais úteis como protagonistas do que como observadores.
Entretanto, o interesse pelos aspectos emocionais das patologias
cirúrgicas nos fez percorrer alguns grupos Balint, que buscam
entender as repercussões do sofrimento dos pacientes no psiquismo
dos médicos que os atendem. Uma das conferências que proferiu na
Academia intitulava-se “Relação médico-paciente: Balint versus
House” na qual confrontava o grande psicanalista húngaro com o
detetive médico totalmente desprovido de empatia.
Nascido aos 10 de abril de 1954, no Rio de Janeiro, sem a influência
de parentes médicos mais próximos, Ricardo Cruz, aos 13 anos,
sentiu-se muito impressionado com dois fatos: o primeiro foi o
contato benfazejo com o endocrinologista Dr. Jayme Rodrigues a
quem procurou porque queria crescer. E de fato cresceu, não devido
a qualquer medicação pois o Dr. Jayme confessou, mais tarde, que
lhe havia receitado um placebo, certo de que a natureza faria o resto.
Cresceu , no físico e na profissão, por seus próprios méritos mas
deve-se saudar aquele profissional, prematuramente falecido, que
soube tranquilizar o adolescente angustiado além de deixar-lhe a
indelével imagem do que deve ser um Médico e o desejo de imitá-lo.
O segundo fato foi a divulgação do primeiro transplante cardíaco
coordenado pelo Dr. Christian Barnard, em 1967, na Cidade do Cabo,
que foi divulgado em todo o mundo como um milagre resultante da
associação de habilidade manual com progresso tecnológico.
Foi apenas no início do século XX que os cirurgiões deixaram de ser
vistos, pelos outros médicos, como artesãos de segunda classe que
não tinham escrúpulos em sujar as mãos de sangue e fluidos
corporais. A habilidade manual sempre existiu mas foi o progresso
tecnológico que venceu os tabus e fez desenvolver a cirurgia
moderna.
Para o Dr. Ricardo, o interesse pela cirurgia começou, portanto, antes
mesmo de seu ingresso na Faculdade de Medicina da UFRJ, em 1972,
levando-o a 5 anos de dedicação à Anatomia e, depois, ao internato e
à Residência em Cirurgia.
Infelizmente, o Hospital Universitário da UFRJ só foi inaugurado em
1978 e o programa de Residência Médica implantado a seguir. Este
período de transição um tanto conturbado fez com que optasse pela
Residência no Hospital de Ipanema, onde foi aprovado em segundo
lugar. Perdeu a UFRJ. Se lá permanecesse, teria continuado a carreira
universitária e exercido seus pendores didáticos que acabaram sendo
aproveitados em ambientes não universitários.
Ganhou o Hospital
de Ipanema onde Ricardo Cruz soube aproximar-se dos melhores
profissionais de várias áreas que envolviam o segmento cefálico,
objetivo final de seus interesses.
Terminada a Residência em Cirurgia Geral, fez três especializações:
em Cirurgia de Cabeça e Pescoço, com os Drs. Victor Araujo Lima e
Jacob Kligerman, em Cirurgia Plástica com o Prof. Ivo Pitanguy e em
Cirurgia Craniomaxilofacial com o Dr. Edgar Alves Costa. Após toda
esta atividade, ainda ingressou, por concurso, no Instituto Nacional
do Câncer, em 1985, integrando o staff do Serviço de Cabeça e
Pescoço e completou sua formação oncológica.
Foi um tipo de evolução que teria surpreendido Darwin. Em sua
juventude naturalmente amorfa incorporou genes de várias
especialidades, eliminou partes desnecessárias e emergiu como um
profissional de visão abrangente e capacidades estabelecidas e
prontas para serem despertadas quando necessário. Ao contrário de
tantos que, em cada vez maior número, só se interessam pela parte
estética do segmento cefálico , ele optou por tratar da parte pesada
(tumores e fraturas) e reparar as deformidades resultantes de
ressecções ou trauma.
O leigo não percebe que a estética facial depende sobretudo de um
belo esqueleto e de uma boa pele. Ou seja: estrutura e cobertura. As
alterações ósseas faciais, de origem congênita ou traumática podem
ter repercussão muito nociva na autoimagem. Ao contrário, certas
cirurgias e mobilizações de ossos ou do maciço facial como um todo,
podem corrigir alterações graves e trazer beleza a uma face
deformada.
A primeira guerra mundial propiciou o surgimento da Cirurgia Plástica
porque feridos e mutilados graves, que antes morreriam, passaram a
sobreviver graças aos progressos da Medicina. Alguém precisava
cuidar deles e desenvolver procedimentos cirúrgicos que os
tornassem socialmente apresentáveis e funcionalmente aptos. Desde
então, retalhos e enxertos, cada vez mais sofisticados, foram sendo
desenvolvidos com resultados às vezes bastante bons e, outras
vezes, não condizentes com o tempo, o trabalho e o sofrimento
envolvidos
em
sua
confecção.
A
necessidade
impõe
o
desenvolvimento e, no final da década de 1960, nova especialidade
se estruturava: a Cirurgia Craniofacial. Uma das contribuições mais
impressionantes nesta área foi dada pelo Dr. Paul Tessier que haveria
de ser considerado seu expoente máximo e cujos trabalhos foram
decisivos, para o Dr. Ricardo, na escolha da especialidade, tanto que,
em 1988, estagiou, em Paris, no Hôpital Necker - Enfants Malades,
sob a orientação de Daniel Marchac um dos últimos discípulos de
Tessier.
Em 1994, na cidade do México, teve contato, também, com Ortiz
Monastério e Fernando Molina que iniciaram a aplicação da distração
osteogênica ao esqueleto craniofacial e, em 1997, fez novo estágio
sobre fixação interna rígida, em Davos, na Suíça.
Na época atual, traumatismos faciais resultantes de guerras devem
ter diminuído pois, com armas cada vez mais letais, pouco sobra dos
corpos dilacerados. Entretanto, novos fronts surgiram, como o dos
acidentes de trânsito, e neles o Brasil ocupa posição tristemente
relevante.
Um dos atributos fundamentais da pessoa é sua identidade, formada
por tudo aquilo que lhe dá a sensação de ser única, individual,
pertencente a uma espécie mas dela destacada por características
próprias. No estabelecimento desta identidade, a face desempenha o
papel mais importante. Não só me permite saber quem sou eu mas,
também, possibilita que o Outro saiba quem eu sou. O Ser Humano é
um animal social e foi sua capacidade de relacionamento e troca com
seus pares que possibilitou o progresso da espécie.
Desde sempre pessoas esteticamente favorecidas têm se beneficiado
com algumas facilidades não disponíveis para as que não o são.
Dentro de uma faixa de normalidade, outras qualidades podem
compensar ou superar a beleza. Entretanto as alterações faciais
graves, seja de que origem for, transformam o indivíduo em
prisioneiro de si mesmo, incapaz de se expor em sociedade para
evitar a rejeição incontrolável dos que se assustam ao vê-lo.
Sobre estes aspectos, o Dr. Ricardo proferiu algumas conferências,
aqui na Academia, como:
“Trauma de face: o resgate da identidade”
“Transplante de Face: a história de uma cirurgia revolucionária”
“A nova cirurgia ortognática: mudando rostos”.
Não é fácil lidar com deformidades faciais, sobretudo as que se
estabelecem de forma súbita ou inesperada e colocam o paciente em
estado de total desamparo. A empatia e a disponibilidade emocional
do médico são parte importante da terapêutica mas determinam sua
sobrecarga emocional constante e considerável. Só os fortes
sobrevivem. Pois o Dr. Ricardo não só sobreviveu com galhardia
como tem ensinado, a dezenas de profissionais, os segredos desta
arte tão difícil e tão desgastante. Desde 1983 mantém, sem
interrupções, uma atividade de Educação Continuada que reúne, a
cada semana, alunos e professores para discutirem temas de Cirurgia
Maxilofacial. Será um dos programas mais antigos realizados no país,
fora do âmbito universitário. Contribuiu também para a qualificação
de mais de 40 cirurgiões nesta área. Aquela vocação didática, já
manifestada há tanto tempo, não haveria de se perder.
A vários locais Ricardo Cruz levou seu conhecimento e suas
habilidades. Já em 1983, apenas um ano após seu ingresso, por
concurso, no serviço público e de volta ao Hospital de Ipanema, foilhe confiado o Serviço de Cirurgia Maxilo-facial onde permaneceu
durante 20 anos. Simultaneamente, estendeu seu trabalho a outros
locais como o Serviço de Cirurgia Pediátrica do Instituto Fernandes
Figueira ( de 1990 a 2003) e o Setor de Cabeça e Pescoço do
Instituto Nacional do Câncer, durante 6 anos. Em 2003, fundou o
Centro de Atenção Especializada em Cirurgia Cranio-maxilo-facial do
Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia que chefia até hoje.
Nestes 30 anos de atividade profissional, que associaram trabalho
hospitalar com clínica privada, mais de 8000 pacientes foram
operados e cerca de 15000 atendidos. Além deste trabalho
assistencial intenso ocupou-se em outras diferentes áreas,
ministrando
palestras, participando
de
reuniões
científicas,
escrevendo trabalhos e livros. Atua em várias Sociedades médicas
além de ser membro fundador e duas vezes Presidente da Associação
Brasileira de Cirurgia Crânio-Maxilo-Facial. É Membro Efetivo da
Câmara Técnica de Cirurgia Plástica do Cremerj, onde nos
encontramos mais uma vez. Nesta atividade, é com frequência o
relator dos casos pela capacidade de analisar minuciosamente os
aspectos mais relevantes dos litígios quase sempre resultantes de
relação médico-paciente inadequada. A antiga vocação psicanalítica
encontra aí sua válvula de escape.
Nesta última década, desde 2005, uma nova área começa a se
expandir, a dos transplantes de face, e nela a Medicina se exerce
solidária como poucas vezes antes. São cirurgias de alto risco,
técnico, ético, clínico, imunológico, psicológico e médico-legal. Os
cirurgiões envolvidos, de várias especialidades, devem ser da maior
competência, o que pode significar Egos inflados que precisam ser
controlados para que a sinfonia cirúrgica transcorra sem
dissonâncias. A importância da estrutura óssea facial fica evidente
quando se nota, após o transplante, como a face reconstruída fica
parecida com a do receptor como era antes, qualquer que seja o
aspecto do doador. Quando o Brasil ingressar nesta área, um campo
novo e um tanto assustador se abrirá para todos nós.
Talvez algum dia uma impressora 3-D possa construir uma face nova,
igual ou melhor do que a anterior à lesão e sem risco de rejeição. Até
o momento, entretanto, os resultados podem ser muito satisfatórios
para a equipe médica frente à gravidade do problema mas são quase
sempre insatisfatórios para as expectativas dos pacientes e de suas
famílias. Os profissionais envolvidos, além de lidar com as
dificuldades técnicas precisam enfrentar a desestabilização emocional
do paciente e a sua própria. Cirurgiões são narcisistas por dever de
ofício e têm seu ego ferido com resultados decepcionantes. Controlar
sua própria ansiedade para acolher e apaziguar a do paciente é uma
tarefa árdua. Toda cirurgia que atua sobre a autoimagem passa a ser
uma psicanálise cirúrgica.
Voltando a Darwin e ao Dr. Ricardo, vemos que cada parte de seu
longo e complexo aprendizado na juventude teve importância na
formação do brilhante cirurgião e do médico humanista que se
tornou.
Ricardo, seu tempo de provação acaba oficialmente hoje. O rito de
passagem está completo. O dia é de comunhão. Há muito em comum
entre os que pleiteiam ingressar na Academia: o desejo de
ultrapassar a si mesmo, a inquietude de existir, de desbravar, de sair
da média.
Exercer a vida em toda a plenitude e aceitar a morte com serenidade.
Mais do que a imortalidade, busca-se aqui a continuidade, uma
imortalidade generosa que não é pessoal, mas do Ser Humano. A
Academia é quase uma anomalia no contexto brasileiro ou, em
linguagem atual, um ponto fora da curva, este, porém, no bom
sentido. Secular mas sempre inserida em nosso momento cultural e
político, mantendo a tradição mas modernizando-se quando
necessário.. Neste país, que costuma desprezar o passado e destruir
seus símbolos, a Academia é um baluarte e seus membros devem ser
os guardiões de seus muros. Suas portas são sólidas mas se abrem
com alegria para os que são eleitos para honrá-la e defendê-la. Entre
tantas coisas que vão mal no país, a Saúde é uma das mais
prejudicadas e os médicos costumam ser acusados, imerecidamente,
em razão da incompetência alheia. Cada bravo guerreiro ou guerreira
que persiste e se destaca dá uma contribuição importante para
estimular os mais jovens e aliviar o desânimo dos mais velhos.
Sua trajetória de vida tem contribuído de forma exemplar para o
desenvolvimento da especialidade e para sua difusão entre as novas
gerações. Que assim sempre seja por todo o seu tempo.
Seja bem-vindo.
DISCURSO DE POSSE
Ricardo José Lopes da Cruz
Excelentíssimo Prof Dr Pietro Novellino, Presidente da Academia Nacional de
Medicina,
Excelentíssimos Profs Drs Antonio
Aguinaga, Ex-Presidentes dessa Casa
Medina,
Marcos
Moraes
e
Sérgio
Excelentíssimas Academicas e Excelentíssimos Academicos
Ilustres Autoridades que nos honram com a sua presença
Queridos colegas, amigos e familiares
Minhas Senhoras e meu Senhores,
A Academia Nacional de Medicina foi fundada em junho de 1829 e, desde
então, seus membros se reúnem semanalmente, toda quinta-feira, para
discutir assuntos médicos da atualidade, numa sessão que é aberta ao
público. Esta reunião, que acontece de forma ininterrupta, faz da Academia
Nacional de Medicina a mais antiga entidade cultural e científica da América
Latina.
Eu havia entrado na Academia Nacional de Medicina pela primeira vez no
ano de 1982 para assistir à posse do saudoso Academico Salomão Kaiser, a
convite de seu filho, meu querido colega de turma Sérgio Kaiser, e lembro
até hoje com clareza de como fiquei impactado com a imponência do lugar.
Muitos anos depois, em junho de 2009, voltei à Academia Nacional de
Medicina mas desta vez para realizar minha primeira conferencia sobre
trauma de face, tema ao qual me dedico com afinco há mais de 35 anos.
Esta oportunidade me foi concedida através de um honroso convite do então
Presidente da Academia, Prof Marcos Moraes.
Naquele dia, senti-me ainda mais feliz pela oportunidade que tive de
reencontrar
muitos Professores e colegas que sempre foram fonte de inspiração e
incentivo ao longo da minha vida profissional. Foi emocionante enxergar em
muitos dos Academicos presentes os locais que habitei e também os que
fazem parte do dia a dia da minha vida médica. Uma sensação difícil de
descrever...
Sendo uma verdade que “o tempo é algo que não volta atrás”, torna-se uma
grata experiência de vida a possibilidade do reencontro com o passado. O
presente observa o passado, e nesse tipo de viagem, que dá sentido à vida e
pode trazer um terno sentimento de felicidade, buscamos não só o lugar,
mas a nós mesmos. Revisitamos quem fomos, e temos a oportunidade
mágica de relembrar tantos sonhos do início de nossa vida profissional com
a maturidade e a sabedoria do presente.
Afinal, quantos dos nossos sonhos se tornariam realidade?
Minhas idas à Academia Nacional de Medicina tornaram-se um hábito às
quintas-feiras, e nesse período pude assistir com interesse e emoção, ao
ingresso como Membro Titular de vários colegas, até que em junho de 2013,
surgiu a oportunidade para que eu próprio me candidatasse a uma dessas
cobiçadas vagas.
Eu já tinha completado trinta e cinco anos de formado mas, ainda assim,
desejei compreender melhor o porque dessa minha audaciosa pretensão.
Listei então tres motivos:

primeiro porque talvez o julgamento do nosso passado e do nosso
presente possa confirmar o nosso empenho científico, assistencial, ético e
humanístico que honram a vocação médica,

segundo porque acredito que não exista nada mais honroso do que o
reconhecimento do nosso trabalho pelos nossos pares, principalmente se
eles constituem uma elite intelectual e científica da Medicina nacional,

e, finalmente, porque talvez seja esse um dos mais nobres
significados da vida: trabalhar com valores definidos, e com objetivos de
uma vida útil, aquela que visa, em última análise, o bem estar da
sociedade.
Pois hoje, quando já contabilizo mais de uma centena de comparecimentos a
Sessões ordinárias e comemorativas da Academia Nacional de Medicina,
coube a mim essa honra máxima: a de nela ingressar como seu mais novo
Membro Titular, ocupando a cadeira de no. 62.
Essa é uma cadeira de linhagem nobre, pois seu patrono é o Conde Augusto
Brant Paes Leme que tomou posse em outubro de 1900, com apenas 38
anos de idade, e teve como seu discípulo favorito o Academico Augusto
Paulino Soares de Souza (patrono da cadeira no. 39), que destacava no
Mestre Paes Leme os dotes de exímio desenhista, além de competente
anatomista.
Dentre os seus trabalhos de destaque é com indisfarçável interesse e
curiosidade que destaco o que versou sobre Tumores Pulsáteis da Órbita e
foi apresentado no Congresso Médico Internacional de Lisboa. Além de
Catedrático de Anatomia Topográfica e Comparativa da Faculdade de
Medicina da Universidade do Brasil, o Prof Paes Leme era também
Catedrático de Anatomia e Fisiologia Artística da Escola Nacional de Belas
Artes; tendo dirigido a Cadeira de Clínica Cirúrgica da 3 a Enfermaria e,
posteriormente, da 18a Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia.
O Prof Dr Augusto Brant Paes Leme teve em sua homenagem um prêmio
criado e outorgado anualmente pelo Colégio Brasileiro de Cirurgiões, maior
entidade de cirurgiões da América Latina. Este premio foi anunciado quando
de sua posse, após eleito por unanimidade, como Membro Honorário daquela
entidade em abril de 1941. Naquela oportunidade o Presidente do Colégio
era o Academico Ugo Pinheiro Guimarães, outro de seus discípulos, e que
viria, alguns anos mais tarde, a ser Presidente também da Academia
Nacional de Medicina.
Vários outros Ex-Presidentes do Colégio Brasileiro de Cirurgiões seriam
Membros da Academia Nacional de Medicina, dentre os quais destaco em
passado mais recente o Academico Américo Caparica Filho, que infelizmente
nos deixou em dezembro do ano passado; e os Academicos Orlando Marques
Vieira e Samir Rasslan.
Foi no ano de 1884, o jovem médico Augusto Brant Paes Leme apresentou
Tese de Doutorado à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, na presença
de sua Majestade o Imperador D. Pedro II, e além de aprovado com
distinção, foi laureado com a Medalha de Ouro por deliberação unanime da
Congregação da Universidade, com trabalho que versava, curiosamente,
sobre Fraturas Expostas.
O primeiro sucessor da Cadeira 62 foi o Prof Arthur de Carvalho Azevedo,
ilustre especialista em Ginecologia, também da Santa Casa de Misericórdia,
e que curiosamente foi eleito no mesmo dia da minha eleição: 12 de
setembro. Seu sucessor foi o eminente Prof Alcindo Baena, que especializouse em Urologia no ano de 1931. O patrono da cadeira, Prof Paes Leme, era
seu tio-avô. Curiosamente, dentre os trabalhos científicos do Prof Baena no
início da sua vida profissional incluía-se um que muito me interessaria e que
recebeu o título: Das Fraturas do Maxilar Superior, publicado no ano de
1918.
Sucedendo ao Prof Alcindo Baena, ocupou a cadeira de número 62 o ilustre
Prof
Sebastião
Capistrano
Pereira,
Livre
Docente
da
Clínica
Otorrinolaringológica da Faculdade Nacional de Medicina e da Faculdade
Fluminense de Medicina, e que exerceu, por mais de vinte anos, a chefia do
Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Universitário Antonio Pedro, em
Niterói. Seu sucessor foi o Prof Waldir Gonçalves Tostes, especialista em
Ginecologia e estudioso da patologia mamária, que chefiou com brilhantismo
ímpar o Serviço de Ginecologia do Hospital Servidores do Estado a partir do
ano de 1947.
Tenho a felicidade e a honra de agora suceder o Prof Dr Hélio Aguinaga, aqui
presente, e último ocupante dessa cadeira. O Prof Aguinaga nasceu na
cidade de Lençóis Paulistas em São Paulo e ingressou na Faculdade Nacional
de Medicina da então Universidade do Brasil no ano de 1934, onde graduouse em 1939. Fez residência médica por dois anos no Hospital da
Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, onde realizou pós-graduação
não só em Ginecologia e Obstetrícia, mas também em Anatomia Patológica e
em Clínica Médica. De volta ao Brasil, o Prof Aguinaga ingressou em 1942,
como médico do
Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital-Escola São Francisco de
Assis da UFRJ, onde se tornou Chefe da Clínica Ginecológica em 1946, e
Chefe do Serviço de Ginecologia em 1969.
O Academico Hélio Aguinaga fundou e dirigiu o Centro de Pesquisas de
Assistência Integrada à Mulher e à Criança que presta serviços às
populações carentes da cidade do Rio de Janeiro e além de membro, agora
Emérito, da Academia Nacional de Medicina, é fundador e foi o primeiro
Presidente da Associação Brasileira de Entidades de Planejamento Familiar,
sendo ainda membro de várias outras importantes Sociedades médicas.
O Prof Hélio Aguinaga soube servir não só à Medicina, mas também à
literatura tendo recentemente lançado seu décimo sétimo livro. Sua
destacada e harmoniosa vida pessoal, profissional e familiar enche de
orgulho a todos aqueles que tiveram e ainda têem o privilégio do seu
convívio.
O Prof Hélio Aguinaga tornou-se Membro Emérito da Academia Nacional de
Medicina há cerca de um ano.
- É uma honra das mais elevadas sucede-lo, Prof Aguinaga!
Conduziram-me a esse recinto os Academicos: Celso Portela, Eustachio
Portella, Ivo Pitanguy, Jacob Kligerman, Jayme Marsillac e Marcos Moraes; a
quem agradeço por tanta distinção e elevada honra. Gostaria de lhes falar
um pouco sobre cada um dos escolhidos como forma singela não só de
homenageá-los, mas de homenagear à própria Academia em si.
Os Academicos Celso Portela e Marcos Moraes simbolizam minha sólida
formação na Cirurgia Geral. Foram eles que me apresentaram aos princípios
da Cirurgia durante a fase inicial da minha formação, e que me orientaram
durante o convívio de trabalho nas enfermarias do Hospital de Ipanema com
tantos outros mestres dentre os quais os Academicos José Hilário e Octavio
Vaz.
Conheci o Academico Celso Portela, no ano de 1972, quando eu ainda era
bem jovem e cursava o primeiro ano da Faculdade de Medicina, por ter sido
ele médico de meu pai vitimado por grave doença: um câncer de pulmão. Os
Academicos Celso Portela e Jesse Pandolpho Teixeira cuidaram de meu pai
com grande desvelo motivo pelo qual toda minha família nunca esqueceu de
suas presenças em momento tão difícil de nossas vidas.
Com o Academico e Ex-Presidente Marcos Moraes trabalhei também em
clínica privada como seu assistente por um período de quase cinco anos,
juntamente com meu fraternal amigo e colega de turma Mauro Pinho, hoje
destacado especialista em Proctologia. O Prof Marcos Moraes havia recémregressado dos Estados Unidos e, como meu pai havia falecido no ano de
1973, esta oportunidade de trabalho que tive, por ele concedida, em muito
ajudou no sustento de nossa família, já que passei a receber generosa
remuneração nos auxílios cirúrgicos.
O Prof Marcos Moraes sempre foi, e permanece sendo, um pai para mim. Sei
que hoje estou aqui graças ao seu incentivo para que eu me candidatasse à
Academia.
Encerrada minha formação em Cirurgia Geral decidi me dedicar a uma dupla
formação: em Cirurgia Plástica e em Cirurgia de Cabeça e Pescoço.
Como símbolo máximo da minha formação em Cirurgia Plástica, pontifica o
Academico Ivo Pitanguy que me concedeu, no ano de 1979, a oportunidade
de realizar um treinamento exclusivamente em Cirurgia Reconstrutora da
Face dentro do seu Curso de Pós-Graduação Médica em Cirurgia Plástica,
curso este que ele havia iniciado em 1960.
Li com emoção seu livro “Cartas a um jovem cirurgião”, publicado em 2009,
trinta anos depois que o conheci, e onde constato a confirmação de todos
os ensinamentos que o Prof Pitanguy sempre procurou transmitir aos seus
mais de 500 discípulos.
Foi o Prof Pitanguy quem me apresentou ao Dr Edgard Alves Costa, seu
consultor no campo da cirurgia do esqueleto crânio-facial, e com quem
trabalhei por três profícuos anos. Neste período da minha formação, mais de
três mil cirurgias foram realizadas nessa que se tornaria, trinta anos depois,
uma Área de Atuação Médica reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina
e pela Associação Médica Brasileira: a Cirurgia Cranio-maxilo-facial.
O Prof Edgard Costa, aqui presente e sentado com sua esposa em local
destinado aos meus familiares, sempre foi e continua sendo um outro pai
para mim, motivo pelo qual é com sentimento de profunda gratidão por
todos os seus sólidos ensinamentos no campo das anomalias congênitas e
adquiridas da face, que compartilho simbolicamente com ele a cadeira de
no. 62 da Academia Nacional de Medicina.
Como referencia à minha formação em Oncologia, constituíram a Comissão
de Introdução os Academicos Jayme Marsillac e Jacob Kligerman. Agradeço
ao Academico Jayme Marsillac por todo o seu carinho e apoio desde o início
da minha formação no Instituto Nacional de Cancer, onde seu pai, o
Academico e Ex-Presidente Jorge Marsillac, foi o fundador da Seção de
Cirurgia de Cabeça e Pescoço. Tive o privilégio de conviver com os
Professores Jorge e Jayme Marsillac no período de 1982 a 1990, quando
trabalhei no INCA, onde desfrutei também da extraordinária oportunidade de
conviver com os destacados oncologistas e Academicos Hiram Lucas e José
Carlos do Valle.
Foi o Academico Marcos Moraes que me apresentou ao Academico Jacob
Kligerman no ano de 1982 quando confirmei minha intenção de fazer minha
terceira Residencia Médica, agora na especialidade de Cirurgia de Cabeça e
Pescoço, inspiração esta advinda do período em que trabalhei com o Dr
Victor de Araujo Lima, ainda durante minha primeira Residencia Médica em
Cirurgia Geral no Hospital de Ipanema.
Com o Academico Jacob Kligerman trabalhei no Instituto Nacional de Cancer
por nove anos, tendo obtido dele também o privilégio de acompanhá-lo em
sua clínica privada, como seu assistente, por um período de cinco anos,
absorvendo seus ensinamentos éticos e técnicos, até o ano de 1986.
Procurei seguir os passos do Prof Kligerman de maneira tão disciplinada e
próxima que hoje moro na mesma rua e tenho consultório no mesmo prédio
(e no mesmo andar) que ele.
Mais um pai (não percam as contas !...)
Deve ser mesmo próprio da natureza humana, ao se perder um pai com
apenas 17 anos de idade, desejar suprir essa trágica perda com “um monte”
de pais.
E a verdade é que, consciente ou inconscientemente, eu fiz isso...
Finalmente, simbolizando meu enorme interesse pela área do psyque,
gostaria de me referir ao Academico Eustachio Portella. Agradeço ao Prof
Portella por seus ensinamentos de Psicologia Médica no início de minha
graduação; conhecimentos que despertaram em mim o cuidado com o
emocional do paciente e de seus familiares, verdadeiro sentido da prática
médica. A admiração que nutria pelo Prof Portella me fez pensar seriamente
em seguir a Psiquiatria como especialidade médica.
Reitero portanto meus agradecimentos aos Mestres que o destino, tão
generosamente, permitiu-me consultar por mais tempo. O conhecimento
que captei desse estreito convívio impõe que – com indisfarçável orgulho –
eu os considere meus Mentores e pilares da minha formação profissional:
Profs. Drs. Marcos Moraes, Ivo Pitanguy, Edgard Alves Costa e Jacob
Kligerman.
Em seguida, gostaria de agradecer de forma especial à Academica Talita
Franco pelas palavras amáveis com as quais me recebeu nessa noite. A
Profa. Talita acompanha minha vida profissional desde quando ingressei na
então Faculdade Nacional de Medicina da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, sediada no bairro da Urca, no ano de 1972. Foi ela quem me
incentivou no Departamento de Anatomia, a seguir a especialidade de
Cirurgia e me ensinou com detalhes a linda e complexa anatomia da cabeça
e do pescoço.
Foi também, com a Academica Talita Franco que escrevi meu primeiro
trabalho científico publicado. Para mim é motivo de grande felicidade poder
desfrutar de seu convívio ao longo de todos esses anos.
Gostaria também de agradecer à Academica Anna Lydia Pinho do Amaral
que, no ano de 1983, me deu a oportunidade de fundar meu primeiro
Serviço de Cirurgia no Hospital de Ipanema; bem como aos ilustres médicos
que me incentivaram no rumo da clínica privada, desde o primeiro emprego
que obtive, no Hospital Samaritano em 1978. E é nesse sentido que
agradeço novamente ao Academico e Ex-Presidente Marcos Moraes, mas
também aos Drs. Adherbal Maia e Vicente Pires, além dos Academicos
Amarino Carvalho de Oliveira, Luiz Felipe de Queiroz Mattoso e Sérgio
Teixeira da Silva, meu querido primeiro anestesiologista.
Ao Exmo Prof Dr Pietro Novellino, que ocupa pela terceira vez a Presidencia
desta Casa, gostaria de dizer que é uma honra para mim ter recebido de
suas mãos as insígnias da Academia Nacional de Medicina, às quais prometo
honrar.
A família é o bem maior que alguém pode ter. Desde sempre ouvimos os
conselhos de nossos pais e avós, conselhos estes que pretendem nos
orientar pelo caminho do bem em busca da felicidade. Aos meus queridos
pais Selma e Roberto, que sempre me incentivaram a estudar e seguir um
caminho baseado nos princípios de honestidade e integridade pessoal e
profissional, dedico esta conquista. Embora eles não estejam aqui, posso velos na presença de meu irmão Roberto e de minha irmã Maria Teresa a
quem agradeço pelo amor fraterno de uma vida inteira.
Em junho de 1990 a Medicina me apresentou a Denise Loreto, com quem
tive a felicidade de me casar em fevereiro de 1994 já bem próximo dos 40
anos de idade. Graças à sua coragem e determinação, e com o auxílio dos
modernos recursos da Medicina Reprodutiva, tive a felicidade de ter meus
filhos, André e Pedro que, juntamente com Denise, são meus amores
maiores.
Aproveito a oportunidade para agradecer de coração ao Academico Milton
Meier que operou meus dois filhos ainda no período neonatal.
Na segunda metade desse discurso eu desejo falar sobre a Medicina, e isto
poderia ser realizado de várias formas, sob vários ângulos, como muitos dos
meus antecessores o fizeram, cada um deles à sua maneira, mas todos
certamente com raro brilhantismo. A exiguidade do tempo, entretanto, me
obriga a fazer uma escolha, e por este motivo, desejo lhes falar sobre tema
que creio ser do maior interesse não só para os médicos, mas para toda a
sociedade: Medicina e Humanização.
Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística (IBOPE)
no ano de 2005, aponta o médico como o profissional no qual a população
brasileira mais confia. Quanta responsabilidade...
O trabalho do médico reveste-se de inúmeros desafios. Muitas vezes
imaginamos que o combate à doença é a nossa única missão, mas nem
sempre isso é verdade. Trabalhar com a saúde do outro é compreendê-la. E
ter em mente que a saúde não se resume aos aspectos físicos de uma
pessoa.
A mais antiga definição de saúde é considerada, nos dias atuais,
completamente inadequada. Ela se cingia à imagem simplista de que “a
saúde é definida como o estado de ausência de doença”. Uma visão,
convenhamos, absolutamente reducionista do ser humano...
Não seria por outro motivo que o Estatuto da Organização Mundial de Saúde
amplia, no pós-guerra, o conceito de saúde, e passa a definir: “saúde é uma
condição de total bem-estar físico, mental e social”. Ficava, dessa forma,
rejeitada a ideia de que a simples ausência de males físicos caracterizava o
cidadão como portador de um estado saudável, exatamente como Platão,
filósofo da Grécia Antiga já havia advertido: “A cura de inúmeras doenças é
desconhecida dos médicos pois eles ignoram o conjunto, e isto porque uma
parte jamais poderá estar bem, a menos que o todo esteja bem”.
Estudou o assunto, no cenário de seus dias, o psiquiatra e psicanalista
húngaro
Sándor Ferenczi – para muitos, o clínico mais talentoso da escola freudiana.
Além de pessoa que privava da intimidade de Freud, Ferenczi foi pelo Mestre
considerado como o seu discípulo favorito. Na trajetória que o consagrou
como uma das figuras mais eminentes e originais da psicanálise, o húngaro
formou uma legião de seguidores, onde despontavam notáveis como o seu
compatriota Michael Balint.
Os admiradores de Ferenczi puderam, por exemplo, registrar um de seus
ensinamentos apresentado como técnica de intervenção direta ou ativa, no
tratamento dos pacientes por meio de gestos, ternura e afeto. É de Ferenczi
a frase que diz: “Quando a alma sofre, o corpo sente...”
A reflexão de Ferenczi nos remete ao monge católico e professor de Teologia
germânico Martinho Lutero que havia escrito: “Pensamentos soturnos
(sombrios) acarretam males físicos; quando a alma está oprimida, o mesmo
acontece com o corpo”.
Sedimentava-se o conceito de que os médicos e demais profissionais de
saúde deveriam estar atentos a todos os aspectos que envolvem o
tratamento do paciente, mas essa forma de atenção exige amor...
O saudoso Academico Prof Dr Mário Rigatto dizia que “Medicina é um Médico
e um Paciente. É uma relação eminentemente pessoal porque ela é uma
relação de amor. E não há nenhum sentido figurado nessa palavra...”
Ágape é uma palavra grega que define o amor que damos ao outro sem
esperar nada em troca, o amor dito incondicional. Na filosofia grega tal
conceito difere do amor platônico (desejante) e do aristotélico (exigente da
presença), pois o ágape é o único amor no qual a atenção recai totalmente
sobre a pessoa amada – pessoa esta que, em nossa profissão, está
representada pelo paciente e por cada um de seus familiares que,
frequentemente, adoecem junto com ele.
Certa vez o ilustre psicanalista Hélio Pellegrino fez referencia a esse amor ao
escrever: “Quando você resolve tratar, cuidar de uma pessoa, já tomou
partido dela, ou seja, daquilo que você acha que seja sua saúde. Não existe
neutralidade nem distanciamento, o que existe é discrição, silêncio, um
silêncio que significa consentimento. Consentimento com a existência da
pessoa, e isso é uma posição de amor...”.
Cada um de nós, médicos – de especialidades muitas vezes tão diferentes –,
sentimos no exercício das nossas especialidades o peso desse desafio
comum: promover saúde por meio de uma vida profissional útil,
impulsionada pelo amor
ao próximo. É do grande pensador alemão Albert Einstein a frase que diz: “a
única vida que tem sentido é a que se vive para os demais”.
Eu próprio fui alvo desse amor quando, aos 13 anos de
carinhosamente atendido pelo Dr Jayme Rodrigues e
Academico Luiz Cesar Póvoa, que ao sair da consulta, no
Sorocaba onde hoje tenho consultório, virei-me para minha
disse:
idade, fui tão
pelo saudoso
Centro Médico
querida mãe e
- Mãe, eu quero ser médico...
A beleza e a verdadeira riqueza da história da Medicina residem no fato de
que essa evolução – a dos desvelos com a saúde – se espraia para muito
além da compreensão da doença, da precisão do seu diagnóstico ou da
aplicação de um tratamento. A história da Medicina fala do cuidar genuíno, e
do enorme desafio que a sua compreensão holística representa, algo
precocemente ressaltado pelo estudioso grego Hipócrates, Pai da Medicina,
ao enunciar: “Tanto os médicos como os sofistas afirmam que a Medicina
não pode ser compreendida se não se sabe o que é o homem...”
Tive a felicidade de ter vários Mestres na nossa querida Universidade Federal
do Rio de Janeiro que me ensinaram, com desvelo, o valor inestimável da
relação médico-paciente, e dentre eles gostaria de destacar os Profs Drs
Danilo Perestrello, Abram Eksterman, Rodolpho Rocco (paraninfo de minha
turma em 1977), além do ilustre Academico e hoje Professor Emérito,
Adolpho Hoirisch que me concedeu a enorme alegria de também fazer parte
da minha Comissão de Honra.
O saudoso Academico Augusto Paulino Neto, reforça a importância desse
trabalho ao escrever no ano de 2005, no Boletim do Colégio Brasileiro de
Cirurgiões que: “... Os psicológos e os psiquiatras têm um papel muito
importante no seguimento destes pacientes, antes, durante e após a
internação que envolve uma cirurgia. Seu trabalho é realizado não só com o
próprio paciente, mas também com sua família, para que todos possam
participar na ajuda necessária para um melhor resultado não só físico, mas
principalmente psíquico…”
A Medicina tem por finalidade a promoção, preservação e recuperação da
saúde, sendo o seu exercício uma atividade eminentemente humanitária e
social, entretanto, para isso, dependemos não só da formação adequada, do
conhecimento técnico da doença e da experiência que adquirimos ao longo
dos anos, mas também de valores morais e pessoais.
Aristóteles, filósofo grego da Antiguidade, conceitua e investiga
apaixonadamente a ética, deixando-nos o legado que fundamenta essa
ciência do caráter e dos costumes. Dedicando-se à ética, Aristóteles
escreveu conhecida obra dedicada a seu filho Nicômaco, e deu a ela o título:
Ética à Nicômaco.
Ao longo dos dez livros, Aristóteles escreve para seu filho sobre conceitos
que estão relacionados com a felicidade, tais como amizade, amor,
liberdade, justiça e bondade, e salienta a importância do trabalho conjunto
com a famosa frase “uma andorinha só não faz verão”.
Assim como uma andorinha não faz verão por estar sozinha ou praticar voos
isolados, o ser humano isolado não atinge sua perfeição ao praticar atos
nobres sozinho pois ela, a perfeição, deve ser a finalidade comum dos seres
humanos e praticada em conjunto por todos eles. Sendo assim, não basta ao
paciente ter acesso aos vários profissionais de saúde, é preciso que esses
profissionais conversem entre si e definam uma estratégia conjunta de
tratamento. É a isso que se denomina interdisciplinaridade.
Torna-se extremamente importante que se conquiste a confiança do
paciente e de seus familiares em tudo aquilo que está sendo planejado e
executado. Dessa maneira nosso trabalho poderá demonstrar, de forma
inequívoca, responsabilidade, bom senso, técnica apurada e, acima de tudo,
sensibilidade ao sofrimento do paciente.
A delicadeza de um gesto que atende à preocupação do paciente e de seus
familiares enobrece o trabalho do médico, e é por esse motivo que reitero
meu agradecimento a todos os meus mestres, pelos ensinamentos não só
científicos, mas, sobretudo, de ética e compreensão para com o sofrimento
humano.
A doença tem potencial, é claro, para afetar diretamente o comportamento
social e afetivo do indivíduo, comprometendo sua Qualidade de Vida, mas
não nos parece que apenas o sofrimento e a morte pelo câncer devam ser
alvo desse tipo de preocupação nos enfermos. A “morte em vida”,
patrocinada pela desesperança e pela cronicidade de uma doença, pode, da
mesma forma, imobilizar um indivíduo por anos, e fazê-lo prisioneiro de uma
angústia sem fim.
Os médicos devem, portanto, estar prevenidos para combater, de forma
eficaz, esse estado de espírito, capaz de abater não só os pacientes, mas
também a muitos dos seus familiares mais próximos. Trata-se, nesse caso,
de tentar assegurar a essa pessoa não apenas a saúde física ou mental, mas
que ela esteja bem consigo mesma, com as pessoas que a cercam e com a
oportunidade de vida que ainda terá, já que alcançar Qualidade de Vida é,
em última análise, desfrutar de uma existência em equilíbrio.
É com esse objetivo que devemos lembrar que ouvir é uma arte a favor do
ato médico. É um exemplo simples da denominada Medicina Humanizada.
Em seu livro mais famoso, “O Médico, seu Paciente e a Doença”, Michael
Balint recomendou: “Ouçam as histórias dos pacientes. Trate-os como
amigos...”. Balint, em outro de seus textos, adverte: “os grandes médicos
de todos os tempos foram observadores agudos das emoções humanas”. O
médico e seu paciente doente, segundo a fórmula de Michael Balint, são
duas entidades inseparáveis e com relação de reciprocidade, já que em todo
ato médico existe uma questão que envolve a interrelação humana.
É importante, e fundamental, que saibamos controlar as expectativas do
paciente. Administrar tais ansiedades significa, entre outras coisas,
desenvolver habilidades de maneira a jamais faltar com a verdade para com
o paciente e seus parentes. Miguel de Cervantes, romancista, dramaturgo e
poeta castelhano ensinava que “A verdade alivia mais do que machuca. E
estará sempre acima de tudo, como o óleo sobre a água”.
Em seu primeiro best-seller “Quando Nietzsche Chorou” de 1992, Irvin
Yalom, Professor Emérito de Psiquiatria da Universidade de Stanford e
escritor consagrado, construiu um paralelo entre a ficção e a realidade.
Nesta obra o filósofo Friedrich Nietzsche se encontra com o jovem médico
Sigmund Freud, e Yalom redige o seguinte diálogo: “... – suspirou Freud: A
esperança é essencial e quem, a não ser nós, consegue mantê-la? Para mim
é a parte mais difícil da atividade médica. Às vezes tenho sérias dúvidas se
estou à altura da tarefa...”
Na verdade, Freud em sua obra, sempre ressaltou a importância da escuta.
Em um de seus livros podemos encontrar o diálogo:
“ – Titia, fale comigo. Estou com medo do escuro!
- De que adiantaria? Voce não pode ver-me...
- Não importa, se alguém fala a luz vem.”
Escoaram-se mais de 40 anos, antes que a Organização Mundial de Saúde
decidisse incluir o aspecto espiritual no conceito multidimensional de saúde.
Próximo do fim do século 20 entretanto, no ano de 1988, a Organização
Mundial de Saúde aceitou reposicionar-se, com base nas crescentes
evidências de que o conjunto de emoções e convicções de natureza
imaterial, a denominada espiritualidade, implicaria em fator de proteção
humana tanto em questões de ordem médica, quanto em questões de
ordem psicológica – influenciando de forma determinante a recuperação do
paciente e garantindo consolo aos familiares que sofrem.
No contato diário com o paciente não é difícil perceber que o processo de
adoecimento muitas vezes encontra base científica nos estudos da
Psicologia, da Sociologia, da Filosofia e da Teologia, confirmando que a
Medicina deve abranger a vida sob todos os seus aspectos: físico, mental,
social e espiritual.
Embora, tradicionalmente, Ciência e Religião sejam considerados elementos
de uma relação invariavelmente “complicada”, várias publicações atestam
que a maior parte dos médicos acredita que a fé e a esperança têm muita
influência na saúde e recuperação de pessoas enfermas.
“Nada na vida é mais maravilhoso do que a fé...”, dizia o grande médico
canadense William Osler, “misteriosa, indefinível, conhecida apenas por seus
efeitos...” Foi Osler também que observou: “tão importante quanto conhecer
a doença que o homem tem, é conhecer o homem que tem a doença”,
conceito esse reforçado pelo Academico e Ex-Presidente Miguel Couto que
sentenciou: “Não existem doenças, existem doentes...”
As reformas do ensino médico devem reforçar conceitos na formação de
profissionais que aprendam a praticar a arte da Medicina não somente com
habilidades, mas acima de tudo com sabedoria. Torna-se importante,
portanto, na minha opinião, que uma discussão permanente sobre
humanização esteja incluída no programa de formação dos nossos
Residentes, e é por esse motivo que realizamos periodicamente em nosso
Serviço, projeção de filmes selecionados seguida de debates com grande
amplitude holística.
Parece óbvio que a Medicina deve ser exercida dentro desse mais puro
conceito holístico, que é a maneira correta de se ver o paciente. O médico
deve estar ciente de que os aspectos físico e emocional do paciente estão
sempre interligados, e aprimorar sua capacidade de escuta de cada caso
promovendo o encontro sublime entre ciencia e caridade. Só assim ele
conseguirá desenvolver um trabalho que transcenda o viés técnico da
profissão.
Segundo Perestrello, Freud encarregou-se de esclarecer a todos que a
vocação médica associa-se, inevitavelmente, ao ser humano. No livro
“Conversando com o Paciente” seu autor, Brian Bird, alerta: “quem não
gosta de gente, não deve ser médico...”
Convido todos a uma reflexão derradeira.
A filosofia da Grécia Antiga teve como foco o papel da razão e da indagação.
Sócrates, filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga, foi um dos
fundadores da filosofia ocidental e é dele a afirmação de que “a vida sem
reflexão não merece ser vivida”.
Pois bem, nessa viagem pela vida, o sentido dela própria constitui-se em um
dos mais emblemáticos questionamentos filosóficos acerca do propósito e
significado da existência humana. Para muitos o sentido da vida é
demarcado pela “interpretação do relacionamento entre o ser humano e o
seu mundo”, e no mundo do médico destaca-se, obviamente, a Medicina.
Se a Medicina pode ser entendida sob múltiplos aspectos (assistencia,
ensino, pesquisa, gestão, etc.)
vive-la intensamente pode garantir o
encontro, nessa existência, com a felicidade, objetivo comum de qualquer
ser humano.
Medicina tem sido definida, desde a Antiguidade, como a arte e a ciência de
curar. Mais recentemente, despojada de crendices, alusões a divindades e
métodos misteriosos, Medicina passou a ser entendida como a profissão
técnica e humanitária cujos agentes, os médicos, são incumbidos do
diagnóstico das enfermidades e do tratamento dos enfermos.
Na angústia que a enfermidade desperta a quem por ela é atingido, a
presença do médico é um bálsamo que faz renascer a esperança. Aprendi
com meus mestres lições proveitosas, vendo como procediam e procurando
aplicá-las para que, ao longo da vida, pudesse “combater o bom combate”,
aquele que reflete o nobre interesse do médico ao longo de sua vida de
lutas.
Não, não vos falo apenas do interesse profissional, mas também do humano,
aquele que nasce da solidariedade no sofrimento e que não se esgota com a
prescrição do medicamento ou com a prática do ato cirúrgico, mas estendese ao cuidado necessário para aniquilar a angústia.
Eu vos agradeço, Senhoras e Senhores Academicos, a honra de me
receberem como um de vossos pares. E a todos que me ajudaram a
ingressar na Academia, já que essa é uma conquista concedida, a minha
eterna gratidão.
É com entusiasmo e emoção que vivencio o progresso técnico da Medicina
porém nesse dia, que se torna o dia mais importante da minha vida como
médico, gostaria que minhas palavras pudessem ter-nos feito refletir sobre a
premência do resgate da verdadeira Medicina– aquela que precisa evoluir, a
cada dia, na sua dimensão técnica de excelência sim, mas que deve
permanecer, que precisa permanecer, para sempre, profundamente
humana.
Muito obrigado.
DISCURSO DO PRESIDENTE
Acadêmico Pietro Novellino
No dizer do nosso ilustre confrade Carlos Gottschall a eleição para
nossa Academia pode ser entendida como a mais alta distinção
médica conferida a alguém dentro do nosso País, sem outra
explicação que não seja de uma suposta excelência profissional.
Assim, a Academia Nacional de Medicina, a Instituição Científico
Cultural mais antiga do Brasil, prestes a completar 185 anos de
existência, acaba de entronizar na Cadeira de nº 62, o Dr. Ricardo
Cruz, o qual com sua prodigiosa caminhada distinguiu-se
sobremaneira como médico humanista e cirurgião de escól. Seu
Curriculum Vitae tão bem delineado pela Acadêmica Talita Franco
reflete a trajetória da sua vida profissional, coroada de sucessivos
êxitos, merecendo realce sua militância vitoriosa na clínica e na
prática da cirurgia crânio-maxilo facial, formando discípulos e
participando nos eventos científicos mais expressivos tanto nacionais
como internacionais.
Minhas Senhoras e meus Senhores.
Nascemos há quase 185 anos, e durante esse tempo, temos sido
hóspedes ativos da memória médica brasileira sob a guarda daqueles
que em nossa Casa no passado processaram ou os que agora
processam ciência, humanismo e reflexão, acolhendo em seu seio
como Membros Titulares até a presente data 655 (além de ilustres
honorários e correspondentes) que aqui vieram, e fizeram pouso de
suas inteligências, contribuindo com o que de melhor existiu ou existe
em termos de saber científico.
Aqui pretendemos ser todos uns para os outros, procurando sempre
construir a unidade, embora respeitemos a diversidade, “não
deixando que nossas divergências inviabilizem nossas amizades nem
que nossas amizades inviabilizem nossas divergências” como
aconselha a grande pensadora Simone Weil.
Assim Acad. Ricardo Cruz, tenho certeza que Vossa Excelência sentirse-á em franca ressonância com o espírito de nossa Casa
caracterizada pela consonância de ideais, pela grandeza de seus
Membros e pelo amor à Medicina, pois esta é “eterna como a dor da
natureza” no dizer de Mário Alencar ao receber nosso Miguel Couto na
Academia Brasileira de Letras.
Vossa Excelência distinguiu-se sobremaneira entre seus pares com
postura firme, mas sem arrogância ou vaidade. Que continue assim
entre nós, pois no dizer de Dante Pazzanese, fundador do Instituto de
Cardiologia de São Paulo que leva seu nome, “a inveja não nos deixa
reverenciar quem é melhor que a gente, e a vaidade nos faz esquecer
que sempre temos algo a aprender com as pessoas”.
Senhoras e Senhores Acadêmicos
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Na ótica de Goethe “A alegria e o amor são as asas das grandes
ações” e na concepção do nosso eminente Acadêmico Ivo Pitanguy:
“O amor é a estrela desenhada no firmamento que pode ser avistada
de qualquer parte”. E se a Academia Nacional de Medicina se
engalana para receber Vossa Excelência como Membro Titular
Acadêmico Professor Ricardo Cruz, cumpre-me, neste momento,
prestar merecida homenagem a sua companheira inseparável,
Denise, sua musa inspiradora, que Vossa Excelência avistou no
firmamento há 24 anos e incorporou ao seu coração.
Acadêmico Ricardo Cruz,
Esta Casa que hoje o acolhe caracteriza-se pela tradição e inovação,
mas apesar dos Transplantes de Órgãos, da Telemedicina, da
Robótica, da Genômica, e da Proteinômica, hoje incorporados à
Ciência Médica, devemos manter sempre acesa a chama do
humanismo, pois sem relação humana não temos medicina.
Acredito que além da façanha técnica que imortalizou a equipe
médica da cidade de Amiens na França ao realizar, em 27 de
novembro de 2005, o primeiro transplante parcial de face na paciente
Isabelle Dinoire, que perdeu o nariz, os lábios e o queixo ao ser
atacada por um cão, o que mais gratificou àquela equipe de
destacados cirurgiões foi poder recuperar plenamente as funções de
mastigação e locução da paciente num verdadeiro ato não só de
heroísmo, mas principalmente de humanismo.
Acadêmico Ricardo José Lopes da Cruz, sede bem vindo à nossa
Academia, templo da Ciência, da Cultura e da Sabedoria Médica, pois
são sempre bem vindos à nossa Casa aqueles que provaram seu
valor e sua seriedade no exercício da nossa profissão.
Que Vossa Excelência continue a exercer suas atividades com
dignidade, altivez e competência, pois de agora em diante seus êxitos
serão motivo de orgulho para todos nós.
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