POSSE DO MEMBRO TITULAR RICARDO JOSÉ LOPES DA CRUZ DISCURSOS DISCURSO DE SAUDAÇÃO Acadêmica Talita Romero Franco Excelentíssimo Sr. Presidente da Academia Nacional de Medicina, Acad. Pietro Novelino, Autoridades que compõem a Mesa Senhoras e Senhores Acadêmicos Minhas Senhoras e Meus Senhores Foi com surpresa e alegria que recebi o convite para recepcionar o Dr. Ricardo Cruz em sua posse nesta Casa. Outros há, talvez, que agora lhe são mais próximos, porém nosso contato é mais antigo e data de uma época em que acontecimentos marcantes fixaram em nossa memória pessoas que deles participaram. Rememorando nossas histórias, nos últimos 40 anos, vejo que elas se tocam com frequência. Conheci o Dr. Ricardo em 1973 quando se tornou Monitor da Cadeira de Anatomia da UFRJ mesmo ano em que fui nomeada Auxiliar de Ensino daquela Cadeira. 1973 foi um ano traumático devido ao abandono e à posterior demolição do prédio da Faculdade de Medicina da Praia Vermelha, transferida para o Fundão. O então diretor do Instituto de Ciências Biomédicas, Prof. Newton Castro, muito jovem mas muito sensível à depressão que atingia todos os desterrados daquele lindo prédio, convocou alunos e professores para auxiliarem na mudança. Ricardo Cruz foi um desses alunos e aquela atividade frenética talvez o tenha ajudado a suportar o sofrimento pela perda de seu pai, naquele momento tão importante de sua vida. Integrouse, com empenho, à Anatomia, natural pré-requisito para a Cirurgia que já se lhe delineava como opção futura. O conhecimento da Anatomia é o substrato básico do cirurgião. Isto parece óbvio mas deixou de ser nos dias de hoje quando a disponibilidade de peças cadavéricas é cada vez mais rara, substituídas por moldes de plástico e outros artefatos. Lembro-me nitidamente de sua figura esguia, com cabelos um tanto longos e muito sério. Estava sempre lá, durante longas horas, mostrando grande habilidade no preparo das peças e já desenvolvendo a capacidade didática que se tornaria uma de suas qualidades marcantes. À época ainda não evidenciava a ironia fina e o humor agudo que vim a conhecer anos mais tarde. Quando chegou à Anatomia, Ricardo Cruz já havia passado pelo filtro de seus múltiplos interesses que incluía uma eventual Psiquiatria, descartada devido ao pendor cirúrgico. Este é outro ponto de contato entre nós pois, a princípio, também me interessei pela Psicanálise antes de enveredar pela Cirurgia Plástica. Sorte nossa e dos pacientes: nascidos ambos sob o signo de Áries, seremos sempre mais úteis como protagonistas do que como observadores. Entretanto, o interesse pelos aspectos emocionais das patologias cirúrgicas nos fez percorrer alguns grupos Balint, que buscam entender as repercussões do sofrimento dos pacientes no psiquismo dos médicos que os atendem. Uma das conferências que proferiu na Academia intitulava-se “Relação médico-paciente: Balint versus House” na qual confrontava o grande psicanalista húngaro com o detetive médico totalmente desprovido de empatia. Nascido aos 10 de abril de 1954, no Rio de Janeiro, sem a influência de parentes médicos mais próximos, Ricardo Cruz, aos 13 anos, sentiu-se muito impressionado com dois fatos: o primeiro foi o contato benfazejo com o endocrinologista Dr. Jayme Rodrigues a quem procurou porque queria crescer. E de fato cresceu, não devido a qualquer medicação pois o Dr. Jayme confessou, mais tarde, que lhe havia receitado um placebo, certo de que a natureza faria o resto. Cresceu , no físico e na profissão, por seus próprios méritos mas deve-se saudar aquele profissional, prematuramente falecido, que soube tranquilizar o adolescente angustiado além de deixar-lhe a indelével imagem do que deve ser um Médico e o desejo de imitá-lo. O segundo fato foi a divulgação do primeiro transplante cardíaco coordenado pelo Dr. Christian Barnard, em 1967, na Cidade do Cabo, que foi divulgado em todo o mundo como um milagre resultante da associação de habilidade manual com progresso tecnológico. Foi apenas no início do século XX que os cirurgiões deixaram de ser vistos, pelos outros médicos, como artesãos de segunda classe que não tinham escrúpulos em sujar as mãos de sangue e fluidos corporais. A habilidade manual sempre existiu mas foi o progresso tecnológico que venceu os tabus e fez desenvolver a cirurgia moderna. Para o Dr. Ricardo, o interesse pela cirurgia começou, portanto, antes mesmo de seu ingresso na Faculdade de Medicina da UFRJ, em 1972, levando-o a 5 anos de dedicação à Anatomia e, depois, ao internato e à Residência em Cirurgia. Infelizmente, o Hospital Universitário da UFRJ só foi inaugurado em 1978 e o programa de Residência Médica implantado a seguir. Este período de transição um tanto conturbado fez com que optasse pela Residência no Hospital de Ipanema, onde foi aprovado em segundo lugar. Perdeu a UFRJ. Se lá permanecesse, teria continuado a carreira universitária e exercido seus pendores didáticos que acabaram sendo aproveitados em ambientes não universitários. Ganhou o Hospital de Ipanema onde Ricardo Cruz soube aproximar-se dos melhores profissionais de várias áreas que envolviam o segmento cefálico, objetivo final de seus interesses. Terminada a Residência em Cirurgia Geral, fez três especializações: em Cirurgia de Cabeça e Pescoço, com os Drs. Victor Araujo Lima e Jacob Kligerman, em Cirurgia Plástica com o Prof. Ivo Pitanguy e em Cirurgia Craniomaxilofacial com o Dr. Edgar Alves Costa. Após toda esta atividade, ainda ingressou, por concurso, no Instituto Nacional do Câncer, em 1985, integrando o staff do Serviço de Cabeça e Pescoço e completou sua formação oncológica. Foi um tipo de evolução que teria surpreendido Darwin. Em sua juventude naturalmente amorfa incorporou genes de várias especialidades, eliminou partes desnecessárias e emergiu como um profissional de visão abrangente e capacidades estabelecidas e prontas para serem despertadas quando necessário. Ao contrário de tantos que, em cada vez maior número, só se interessam pela parte estética do segmento cefálico , ele optou por tratar da parte pesada (tumores e fraturas) e reparar as deformidades resultantes de ressecções ou trauma. O leigo não percebe que a estética facial depende sobretudo de um belo esqueleto e de uma boa pele. Ou seja: estrutura e cobertura. As alterações ósseas faciais, de origem congênita ou traumática podem ter repercussão muito nociva na autoimagem. Ao contrário, certas cirurgias e mobilizações de ossos ou do maciço facial como um todo, podem corrigir alterações graves e trazer beleza a uma face deformada. A primeira guerra mundial propiciou o surgimento da Cirurgia Plástica porque feridos e mutilados graves, que antes morreriam, passaram a sobreviver graças aos progressos da Medicina. Alguém precisava cuidar deles e desenvolver procedimentos cirúrgicos que os tornassem socialmente apresentáveis e funcionalmente aptos. Desde então, retalhos e enxertos, cada vez mais sofisticados, foram sendo desenvolvidos com resultados às vezes bastante bons e, outras vezes, não condizentes com o tempo, o trabalho e o sofrimento envolvidos em sua confecção. A necessidade impõe o desenvolvimento e, no final da década de 1960, nova especialidade se estruturava: a Cirurgia Craniofacial. Uma das contribuições mais impressionantes nesta área foi dada pelo Dr. Paul Tessier que haveria de ser considerado seu expoente máximo e cujos trabalhos foram decisivos, para o Dr. Ricardo, na escolha da especialidade, tanto que, em 1988, estagiou, em Paris, no Hôpital Necker - Enfants Malades, sob a orientação de Daniel Marchac um dos últimos discípulos de Tessier. Em 1994, na cidade do México, teve contato, também, com Ortiz Monastério e Fernando Molina que iniciaram a aplicação da distração osteogênica ao esqueleto craniofacial e, em 1997, fez novo estágio sobre fixação interna rígida, em Davos, na Suíça. Na época atual, traumatismos faciais resultantes de guerras devem ter diminuído pois, com armas cada vez mais letais, pouco sobra dos corpos dilacerados. Entretanto, novos fronts surgiram, como o dos acidentes de trânsito, e neles o Brasil ocupa posição tristemente relevante. Um dos atributos fundamentais da pessoa é sua identidade, formada por tudo aquilo que lhe dá a sensação de ser única, individual, pertencente a uma espécie mas dela destacada por características próprias. No estabelecimento desta identidade, a face desempenha o papel mais importante. Não só me permite saber quem sou eu mas, também, possibilita que o Outro saiba quem eu sou. O Ser Humano é um animal social e foi sua capacidade de relacionamento e troca com seus pares que possibilitou o progresso da espécie. Desde sempre pessoas esteticamente favorecidas têm se beneficiado com algumas facilidades não disponíveis para as que não o são. Dentro de uma faixa de normalidade, outras qualidades podem compensar ou superar a beleza. Entretanto as alterações faciais graves, seja de que origem for, transformam o indivíduo em prisioneiro de si mesmo, incapaz de se expor em sociedade para evitar a rejeição incontrolável dos que se assustam ao vê-lo. Sobre estes aspectos, o Dr. Ricardo proferiu algumas conferências, aqui na Academia, como: “Trauma de face: o resgate da identidade” “Transplante de Face: a história de uma cirurgia revolucionária” “A nova cirurgia ortognática: mudando rostos”. Não é fácil lidar com deformidades faciais, sobretudo as que se estabelecem de forma súbita ou inesperada e colocam o paciente em estado de total desamparo. A empatia e a disponibilidade emocional do médico são parte importante da terapêutica mas determinam sua sobrecarga emocional constante e considerável. Só os fortes sobrevivem. Pois o Dr. Ricardo não só sobreviveu com galhardia como tem ensinado, a dezenas de profissionais, os segredos desta arte tão difícil e tão desgastante. Desde 1983 mantém, sem interrupções, uma atividade de Educação Continuada que reúne, a cada semana, alunos e professores para discutirem temas de Cirurgia Maxilofacial. Será um dos programas mais antigos realizados no país, fora do âmbito universitário. Contribuiu também para a qualificação de mais de 40 cirurgiões nesta área. Aquela vocação didática, já manifestada há tanto tempo, não haveria de se perder. A vários locais Ricardo Cruz levou seu conhecimento e suas habilidades. Já em 1983, apenas um ano após seu ingresso, por concurso, no serviço público e de volta ao Hospital de Ipanema, foilhe confiado o Serviço de Cirurgia Maxilo-facial onde permaneceu durante 20 anos. Simultaneamente, estendeu seu trabalho a outros locais como o Serviço de Cirurgia Pediátrica do Instituto Fernandes Figueira ( de 1990 a 2003) e o Setor de Cabeça e Pescoço do Instituto Nacional do Câncer, durante 6 anos. Em 2003, fundou o Centro de Atenção Especializada em Cirurgia Cranio-maxilo-facial do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia que chefia até hoje. Nestes 30 anos de atividade profissional, que associaram trabalho hospitalar com clínica privada, mais de 8000 pacientes foram operados e cerca de 15000 atendidos. Além deste trabalho assistencial intenso ocupou-se em outras diferentes áreas, ministrando palestras, participando de reuniões científicas, escrevendo trabalhos e livros. Atua em várias Sociedades médicas além de ser membro fundador e duas vezes Presidente da Associação Brasileira de Cirurgia Crânio-Maxilo-Facial. É Membro Efetivo da Câmara Técnica de Cirurgia Plástica do Cremerj, onde nos encontramos mais uma vez. Nesta atividade, é com frequência o relator dos casos pela capacidade de analisar minuciosamente os aspectos mais relevantes dos litígios quase sempre resultantes de relação médico-paciente inadequada. A antiga vocação psicanalítica encontra aí sua válvula de escape. Nesta última década, desde 2005, uma nova área começa a se expandir, a dos transplantes de face, e nela a Medicina se exerce solidária como poucas vezes antes. São cirurgias de alto risco, técnico, ético, clínico, imunológico, psicológico e médico-legal. Os cirurgiões envolvidos, de várias especialidades, devem ser da maior competência, o que pode significar Egos inflados que precisam ser controlados para que a sinfonia cirúrgica transcorra sem dissonâncias. A importância da estrutura óssea facial fica evidente quando se nota, após o transplante, como a face reconstruída fica parecida com a do receptor como era antes, qualquer que seja o aspecto do doador. Quando o Brasil ingressar nesta área, um campo novo e um tanto assustador se abrirá para todos nós. Talvez algum dia uma impressora 3-D possa construir uma face nova, igual ou melhor do que a anterior à lesão e sem risco de rejeição. Até o momento, entretanto, os resultados podem ser muito satisfatórios para a equipe médica frente à gravidade do problema mas são quase sempre insatisfatórios para as expectativas dos pacientes e de suas famílias. Os profissionais envolvidos, além de lidar com as dificuldades técnicas precisam enfrentar a desestabilização emocional do paciente e a sua própria. Cirurgiões são narcisistas por dever de ofício e têm seu ego ferido com resultados decepcionantes. Controlar sua própria ansiedade para acolher e apaziguar a do paciente é uma tarefa árdua. Toda cirurgia que atua sobre a autoimagem passa a ser uma psicanálise cirúrgica. Voltando a Darwin e ao Dr. Ricardo, vemos que cada parte de seu longo e complexo aprendizado na juventude teve importância na formação do brilhante cirurgião e do médico humanista que se tornou. Ricardo, seu tempo de provação acaba oficialmente hoje. O rito de passagem está completo. O dia é de comunhão. Há muito em comum entre os que pleiteiam ingressar na Academia: o desejo de ultrapassar a si mesmo, a inquietude de existir, de desbravar, de sair da média. Exercer a vida em toda a plenitude e aceitar a morte com serenidade. Mais do que a imortalidade, busca-se aqui a continuidade, uma imortalidade generosa que não é pessoal, mas do Ser Humano. A Academia é quase uma anomalia no contexto brasileiro ou, em linguagem atual, um ponto fora da curva, este, porém, no bom sentido. Secular mas sempre inserida em nosso momento cultural e político, mantendo a tradição mas modernizando-se quando necessário.. Neste país, que costuma desprezar o passado e destruir seus símbolos, a Academia é um baluarte e seus membros devem ser os guardiões de seus muros. Suas portas são sólidas mas se abrem com alegria para os que são eleitos para honrá-la e defendê-la. Entre tantas coisas que vão mal no país, a Saúde é uma das mais prejudicadas e os médicos costumam ser acusados, imerecidamente, em razão da incompetência alheia. Cada bravo guerreiro ou guerreira que persiste e se destaca dá uma contribuição importante para estimular os mais jovens e aliviar o desânimo dos mais velhos. Sua trajetória de vida tem contribuído de forma exemplar para o desenvolvimento da especialidade e para sua difusão entre as novas gerações. Que assim sempre seja por todo o seu tempo. Seja bem-vindo. DISCURSO DE POSSE Ricardo José Lopes da Cruz Excelentíssimo Prof Dr Pietro Novellino, Presidente da Academia Nacional de Medicina, Excelentíssimos Profs Drs Antonio Aguinaga, Ex-Presidentes dessa Casa Medina, Marcos Moraes e Sérgio Excelentíssimas Academicas e Excelentíssimos Academicos Ilustres Autoridades que nos honram com a sua presença Queridos colegas, amigos e familiares Minhas Senhoras e meu Senhores, A Academia Nacional de Medicina foi fundada em junho de 1829 e, desde então, seus membros se reúnem semanalmente, toda quinta-feira, para discutir assuntos médicos da atualidade, numa sessão que é aberta ao público. Esta reunião, que acontece de forma ininterrupta, faz da Academia Nacional de Medicina a mais antiga entidade cultural e científica da América Latina. Eu havia entrado na Academia Nacional de Medicina pela primeira vez no ano de 1982 para assistir à posse do saudoso Academico Salomão Kaiser, a convite de seu filho, meu querido colega de turma Sérgio Kaiser, e lembro até hoje com clareza de como fiquei impactado com a imponência do lugar. Muitos anos depois, em junho de 2009, voltei à Academia Nacional de Medicina mas desta vez para realizar minha primeira conferencia sobre trauma de face, tema ao qual me dedico com afinco há mais de 35 anos. Esta oportunidade me foi concedida através de um honroso convite do então Presidente da Academia, Prof Marcos Moraes. Naquele dia, senti-me ainda mais feliz pela oportunidade que tive de reencontrar muitos Professores e colegas que sempre foram fonte de inspiração e incentivo ao longo da minha vida profissional. Foi emocionante enxergar em muitos dos Academicos presentes os locais que habitei e também os que fazem parte do dia a dia da minha vida médica. Uma sensação difícil de descrever... Sendo uma verdade que “o tempo é algo que não volta atrás”, torna-se uma grata experiência de vida a possibilidade do reencontro com o passado. O presente observa o passado, e nesse tipo de viagem, que dá sentido à vida e pode trazer um terno sentimento de felicidade, buscamos não só o lugar, mas a nós mesmos. Revisitamos quem fomos, e temos a oportunidade mágica de relembrar tantos sonhos do início de nossa vida profissional com a maturidade e a sabedoria do presente. Afinal, quantos dos nossos sonhos se tornariam realidade? Minhas idas à Academia Nacional de Medicina tornaram-se um hábito às quintas-feiras, e nesse período pude assistir com interesse e emoção, ao ingresso como Membro Titular de vários colegas, até que em junho de 2013, surgiu a oportunidade para que eu próprio me candidatasse a uma dessas cobiçadas vagas. Eu já tinha completado trinta e cinco anos de formado mas, ainda assim, desejei compreender melhor o porque dessa minha audaciosa pretensão. Listei então tres motivos: primeiro porque talvez o julgamento do nosso passado e do nosso presente possa confirmar o nosso empenho científico, assistencial, ético e humanístico que honram a vocação médica, segundo porque acredito que não exista nada mais honroso do que o reconhecimento do nosso trabalho pelos nossos pares, principalmente se eles constituem uma elite intelectual e científica da Medicina nacional, e, finalmente, porque talvez seja esse um dos mais nobres significados da vida: trabalhar com valores definidos, e com objetivos de uma vida útil, aquela que visa, em última análise, o bem estar da sociedade. Pois hoje, quando já contabilizo mais de uma centena de comparecimentos a Sessões ordinárias e comemorativas da Academia Nacional de Medicina, coube a mim essa honra máxima: a de nela ingressar como seu mais novo Membro Titular, ocupando a cadeira de no. 62. Essa é uma cadeira de linhagem nobre, pois seu patrono é o Conde Augusto Brant Paes Leme que tomou posse em outubro de 1900, com apenas 38 anos de idade, e teve como seu discípulo favorito o Academico Augusto Paulino Soares de Souza (patrono da cadeira no. 39), que destacava no Mestre Paes Leme os dotes de exímio desenhista, além de competente anatomista. Dentre os seus trabalhos de destaque é com indisfarçável interesse e curiosidade que destaco o que versou sobre Tumores Pulsáteis da Órbita e foi apresentado no Congresso Médico Internacional de Lisboa. Além de Catedrático de Anatomia Topográfica e Comparativa da Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, o Prof Paes Leme era também Catedrático de Anatomia e Fisiologia Artística da Escola Nacional de Belas Artes; tendo dirigido a Cadeira de Clínica Cirúrgica da 3 a Enfermaria e, posteriormente, da 18a Enfermaria da Santa Casa de Misericórdia. O Prof Dr Augusto Brant Paes Leme teve em sua homenagem um prêmio criado e outorgado anualmente pelo Colégio Brasileiro de Cirurgiões, maior entidade de cirurgiões da América Latina. Este premio foi anunciado quando de sua posse, após eleito por unanimidade, como Membro Honorário daquela entidade em abril de 1941. Naquela oportunidade o Presidente do Colégio era o Academico Ugo Pinheiro Guimarães, outro de seus discípulos, e que viria, alguns anos mais tarde, a ser Presidente também da Academia Nacional de Medicina. Vários outros Ex-Presidentes do Colégio Brasileiro de Cirurgiões seriam Membros da Academia Nacional de Medicina, dentre os quais destaco em passado mais recente o Academico Américo Caparica Filho, que infelizmente nos deixou em dezembro do ano passado; e os Academicos Orlando Marques Vieira e Samir Rasslan. Foi no ano de 1884, o jovem médico Augusto Brant Paes Leme apresentou Tese de Doutorado à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, na presença de sua Majestade o Imperador D. Pedro II, e além de aprovado com distinção, foi laureado com a Medalha de Ouro por deliberação unanime da Congregação da Universidade, com trabalho que versava, curiosamente, sobre Fraturas Expostas. O primeiro sucessor da Cadeira 62 foi o Prof Arthur de Carvalho Azevedo, ilustre especialista em Ginecologia, também da Santa Casa de Misericórdia, e que curiosamente foi eleito no mesmo dia da minha eleição: 12 de setembro. Seu sucessor foi o eminente Prof Alcindo Baena, que especializouse em Urologia no ano de 1931. O patrono da cadeira, Prof Paes Leme, era seu tio-avô. Curiosamente, dentre os trabalhos científicos do Prof Baena no início da sua vida profissional incluía-se um que muito me interessaria e que recebeu o título: Das Fraturas do Maxilar Superior, publicado no ano de 1918. Sucedendo ao Prof Alcindo Baena, ocupou a cadeira de número 62 o ilustre Prof Sebastião Capistrano Pereira, Livre Docente da Clínica Otorrinolaringológica da Faculdade Nacional de Medicina e da Faculdade Fluminense de Medicina, e que exerceu, por mais de vinte anos, a chefia do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Universitário Antonio Pedro, em Niterói. Seu sucessor foi o Prof Waldir Gonçalves Tostes, especialista em Ginecologia e estudioso da patologia mamária, que chefiou com brilhantismo ímpar o Serviço de Ginecologia do Hospital Servidores do Estado a partir do ano de 1947. Tenho a felicidade e a honra de agora suceder o Prof Dr Hélio Aguinaga, aqui presente, e último ocupante dessa cadeira. O Prof Aguinaga nasceu na cidade de Lençóis Paulistas em São Paulo e ingressou na Faculdade Nacional de Medicina da então Universidade do Brasil no ano de 1934, onde graduouse em 1939. Fez residência médica por dois anos no Hospital da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, onde realizou pós-graduação não só em Ginecologia e Obstetrícia, mas também em Anatomia Patológica e em Clínica Médica. De volta ao Brasil, o Prof Aguinaga ingressou em 1942, como médico do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital-Escola São Francisco de Assis da UFRJ, onde se tornou Chefe da Clínica Ginecológica em 1946, e Chefe do Serviço de Ginecologia em 1969. O Academico Hélio Aguinaga fundou e dirigiu o Centro de Pesquisas de Assistência Integrada à Mulher e à Criança que presta serviços às populações carentes da cidade do Rio de Janeiro e além de membro, agora Emérito, da Academia Nacional de Medicina, é fundador e foi o primeiro Presidente da Associação Brasileira de Entidades de Planejamento Familiar, sendo ainda membro de várias outras importantes Sociedades médicas. O Prof Hélio Aguinaga soube servir não só à Medicina, mas também à literatura tendo recentemente lançado seu décimo sétimo livro. Sua destacada e harmoniosa vida pessoal, profissional e familiar enche de orgulho a todos aqueles que tiveram e ainda têem o privilégio do seu convívio. O Prof Hélio Aguinaga tornou-se Membro Emérito da Academia Nacional de Medicina há cerca de um ano. - É uma honra das mais elevadas sucede-lo, Prof Aguinaga! Conduziram-me a esse recinto os Academicos: Celso Portela, Eustachio Portella, Ivo Pitanguy, Jacob Kligerman, Jayme Marsillac e Marcos Moraes; a quem agradeço por tanta distinção e elevada honra. Gostaria de lhes falar um pouco sobre cada um dos escolhidos como forma singela não só de homenageá-los, mas de homenagear à própria Academia em si. Os Academicos Celso Portela e Marcos Moraes simbolizam minha sólida formação na Cirurgia Geral. Foram eles que me apresentaram aos princípios da Cirurgia durante a fase inicial da minha formação, e que me orientaram durante o convívio de trabalho nas enfermarias do Hospital de Ipanema com tantos outros mestres dentre os quais os Academicos José Hilário e Octavio Vaz. Conheci o Academico Celso Portela, no ano de 1972, quando eu ainda era bem jovem e cursava o primeiro ano da Faculdade de Medicina, por ter sido ele médico de meu pai vitimado por grave doença: um câncer de pulmão. Os Academicos Celso Portela e Jesse Pandolpho Teixeira cuidaram de meu pai com grande desvelo motivo pelo qual toda minha família nunca esqueceu de suas presenças em momento tão difícil de nossas vidas. Com o Academico e Ex-Presidente Marcos Moraes trabalhei também em clínica privada como seu assistente por um período de quase cinco anos, juntamente com meu fraternal amigo e colega de turma Mauro Pinho, hoje destacado especialista em Proctologia. O Prof Marcos Moraes havia recémregressado dos Estados Unidos e, como meu pai havia falecido no ano de 1973, esta oportunidade de trabalho que tive, por ele concedida, em muito ajudou no sustento de nossa família, já que passei a receber generosa remuneração nos auxílios cirúrgicos. O Prof Marcos Moraes sempre foi, e permanece sendo, um pai para mim. Sei que hoje estou aqui graças ao seu incentivo para que eu me candidatasse à Academia. Encerrada minha formação em Cirurgia Geral decidi me dedicar a uma dupla formação: em Cirurgia Plástica e em Cirurgia de Cabeça e Pescoço. Como símbolo máximo da minha formação em Cirurgia Plástica, pontifica o Academico Ivo Pitanguy que me concedeu, no ano de 1979, a oportunidade de realizar um treinamento exclusivamente em Cirurgia Reconstrutora da Face dentro do seu Curso de Pós-Graduação Médica em Cirurgia Plástica, curso este que ele havia iniciado em 1960. Li com emoção seu livro “Cartas a um jovem cirurgião”, publicado em 2009, trinta anos depois que o conheci, e onde constato a confirmação de todos os ensinamentos que o Prof Pitanguy sempre procurou transmitir aos seus mais de 500 discípulos. Foi o Prof Pitanguy quem me apresentou ao Dr Edgard Alves Costa, seu consultor no campo da cirurgia do esqueleto crânio-facial, e com quem trabalhei por três profícuos anos. Neste período da minha formação, mais de três mil cirurgias foram realizadas nessa que se tornaria, trinta anos depois, uma Área de Atuação Médica reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina e pela Associação Médica Brasileira: a Cirurgia Cranio-maxilo-facial. O Prof Edgard Costa, aqui presente e sentado com sua esposa em local destinado aos meus familiares, sempre foi e continua sendo um outro pai para mim, motivo pelo qual é com sentimento de profunda gratidão por todos os seus sólidos ensinamentos no campo das anomalias congênitas e adquiridas da face, que compartilho simbolicamente com ele a cadeira de no. 62 da Academia Nacional de Medicina. Como referencia à minha formação em Oncologia, constituíram a Comissão de Introdução os Academicos Jayme Marsillac e Jacob Kligerman. Agradeço ao Academico Jayme Marsillac por todo o seu carinho e apoio desde o início da minha formação no Instituto Nacional de Cancer, onde seu pai, o Academico e Ex-Presidente Jorge Marsillac, foi o fundador da Seção de Cirurgia de Cabeça e Pescoço. Tive o privilégio de conviver com os Professores Jorge e Jayme Marsillac no período de 1982 a 1990, quando trabalhei no INCA, onde desfrutei também da extraordinária oportunidade de conviver com os destacados oncologistas e Academicos Hiram Lucas e José Carlos do Valle. Foi o Academico Marcos Moraes que me apresentou ao Academico Jacob Kligerman no ano de 1982 quando confirmei minha intenção de fazer minha terceira Residencia Médica, agora na especialidade de Cirurgia de Cabeça e Pescoço, inspiração esta advinda do período em que trabalhei com o Dr Victor de Araujo Lima, ainda durante minha primeira Residencia Médica em Cirurgia Geral no Hospital de Ipanema. Com o Academico Jacob Kligerman trabalhei no Instituto Nacional de Cancer por nove anos, tendo obtido dele também o privilégio de acompanhá-lo em sua clínica privada, como seu assistente, por um período de cinco anos, absorvendo seus ensinamentos éticos e técnicos, até o ano de 1986. Procurei seguir os passos do Prof Kligerman de maneira tão disciplinada e próxima que hoje moro na mesma rua e tenho consultório no mesmo prédio (e no mesmo andar) que ele. Mais um pai (não percam as contas !...) Deve ser mesmo próprio da natureza humana, ao se perder um pai com apenas 17 anos de idade, desejar suprir essa trágica perda com “um monte” de pais. E a verdade é que, consciente ou inconscientemente, eu fiz isso... Finalmente, simbolizando meu enorme interesse pela área do psyque, gostaria de me referir ao Academico Eustachio Portella. Agradeço ao Prof Portella por seus ensinamentos de Psicologia Médica no início de minha graduação; conhecimentos que despertaram em mim o cuidado com o emocional do paciente e de seus familiares, verdadeiro sentido da prática médica. A admiração que nutria pelo Prof Portella me fez pensar seriamente em seguir a Psiquiatria como especialidade médica. Reitero portanto meus agradecimentos aos Mestres que o destino, tão generosamente, permitiu-me consultar por mais tempo. O conhecimento que captei desse estreito convívio impõe que – com indisfarçável orgulho – eu os considere meus Mentores e pilares da minha formação profissional: Profs. Drs. Marcos Moraes, Ivo Pitanguy, Edgard Alves Costa e Jacob Kligerman. Em seguida, gostaria de agradecer de forma especial à Academica Talita Franco pelas palavras amáveis com as quais me recebeu nessa noite. A Profa. Talita acompanha minha vida profissional desde quando ingressei na então Faculdade Nacional de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sediada no bairro da Urca, no ano de 1972. Foi ela quem me incentivou no Departamento de Anatomia, a seguir a especialidade de Cirurgia e me ensinou com detalhes a linda e complexa anatomia da cabeça e do pescoço. Foi também, com a Academica Talita Franco que escrevi meu primeiro trabalho científico publicado. Para mim é motivo de grande felicidade poder desfrutar de seu convívio ao longo de todos esses anos. Gostaria também de agradecer à Academica Anna Lydia Pinho do Amaral que, no ano de 1983, me deu a oportunidade de fundar meu primeiro Serviço de Cirurgia no Hospital de Ipanema; bem como aos ilustres médicos que me incentivaram no rumo da clínica privada, desde o primeiro emprego que obtive, no Hospital Samaritano em 1978. E é nesse sentido que agradeço novamente ao Academico e Ex-Presidente Marcos Moraes, mas também aos Drs. Adherbal Maia e Vicente Pires, além dos Academicos Amarino Carvalho de Oliveira, Luiz Felipe de Queiroz Mattoso e Sérgio Teixeira da Silva, meu querido primeiro anestesiologista. Ao Exmo Prof Dr Pietro Novellino, que ocupa pela terceira vez a Presidencia desta Casa, gostaria de dizer que é uma honra para mim ter recebido de suas mãos as insígnias da Academia Nacional de Medicina, às quais prometo honrar. A família é o bem maior que alguém pode ter. Desde sempre ouvimos os conselhos de nossos pais e avós, conselhos estes que pretendem nos orientar pelo caminho do bem em busca da felicidade. Aos meus queridos pais Selma e Roberto, que sempre me incentivaram a estudar e seguir um caminho baseado nos princípios de honestidade e integridade pessoal e profissional, dedico esta conquista. Embora eles não estejam aqui, posso velos na presença de meu irmão Roberto e de minha irmã Maria Teresa a quem agradeço pelo amor fraterno de uma vida inteira. Em junho de 1990 a Medicina me apresentou a Denise Loreto, com quem tive a felicidade de me casar em fevereiro de 1994 já bem próximo dos 40 anos de idade. Graças à sua coragem e determinação, e com o auxílio dos modernos recursos da Medicina Reprodutiva, tive a felicidade de ter meus filhos, André e Pedro que, juntamente com Denise, são meus amores maiores. Aproveito a oportunidade para agradecer de coração ao Academico Milton Meier que operou meus dois filhos ainda no período neonatal. Na segunda metade desse discurso eu desejo falar sobre a Medicina, e isto poderia ser realizado de várias formas, sob vários ângulos, como muitos dos meus antecessores o fizeram, cada um deles à sua maneira, mas todos certamente com raro brilhantismo. A exiguidade do tempo, entretanto, me obriga a fazer uma escolha, e por este motivo, desejo lhes falar sobre tema que creio ser do maior interesse não só para os médicos, mas para toda a sociedade: Medicina e Humanização. Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística (IBOPE) no ano de 2005, aponta o médico como o profissional no qual a população brasileira mais confia. Quanta responsabilidade... O trabalho do médico reveste-se de inúmeros desafios. Muitas vezes imaginamos que o combate à doença é a nossa única missão, mas nem sempre isso é verdade. Trabalhar com a saúde do outro é compreendê-la. E ter em mente que a saúde não se resume aos aspectos físicos de uma pessoa. A mais antiga definição de saúde é considerada, nos dias atuais, completamente inadequada. Ela se cingia à imagem simplista de que “a saúde é definida como o estado de ausência de doença”. Uma visão, convenhamos, absolutamente reducionista do ser humano... Não seria por outro motivo que o Estatuto da Organização Mundial de Saúde amplia, no pós-guerra, o conceito de saúde, e passa a definir: “saúde é uma condição de total bem-estar físico, mental e social”. Ficava, dessa forma, rejeitada a ideia de que a simples ausência de males físicos caracterizava o cidadão como portador de um estado saudável, exatamente como Platão, filósofo da Grécia Antiga já havia advertido: “A cura de inúmeras doenças é desconhecida dos médicos pois eles ignoram o conjunto, e isto porque uma parte jamais poderá estar bem, a menos que o todo esteja bem”. Estudou o assunto, no cenário de seus dias, o psiquiatra e psicanalista húngaro Sándor Ferenczi – para muitos, o clínico mais talentoso da escola freudiana. Além de pessoa que privava da intimidade de Freud, Ferenczi foi pelo Mestre considerado como o seu discípulo favorito. Na trajetória que o consagrou como uma das figuras mais eminentes e originais da psicanálise, o húngaro formou uma legião de seguidores, onde despontavam notáveis como o seu compatriota Michael Balint. Os admiradores de Ferenczi puderam, por exemplo, registrar um de seus ensinamentos apresentado como técnica de intervenção direta ou ativa, no tratamento dos pacientes por meio de gestos, ternura e afeto. É de Ferenczi a frase que diz: “Quando a alma sofre, o corpo sente...” A reflexão de Ferenczi nos remete ao monge católico e professor de Teologia germânico Martinho Lutero que havia escrito: “Pensamentos soturnos (sombrios) acarretam males físicos; quando a alma está oprimida, o mesmo acontece com o corpo”. Sedimentava-se o conceito de que os médicos e demais profissionais de saúde deveriam estar atentos a todos os aspectos que envolvem o tratamento do paciente, mas essa forma de atenção exige amor... O saudoso Academico Prof Dr Mário Rigatto dizia que “Medicina é um Médico e um Paciente. É uma relação eminentemente pessoal porque ela é uma relação de amor. E não há nenhum sentido figurado nessa palavra...” Ágape é uma palavra grega que define o amor que damos ao outro sem esperar nada em troca, o amor dito incondicional. Na filosofia grega tal conceito difere do amor platônico (desejante) e do aristotélico (exigente da presença), pois o ágape é o único amor no qual a atenção recai totalmente sobre a pessoa amada – pessoa esta que, em nossa profissão, está representada pelo paciente e por cada um de seus familiares que, frequentemente, adoecem junto com ele. Certa vez o ilustre psicanalista Hélio Pellegrino fez referencia a esse amor ao escrever: “Quando você resolve tratar, cuidar de uma pessoa, já tomou partido dela, ou seja, daquilo que você acha que seja sua saúde. Não existe neutralidade nem distanciamento, o que existe é discrição, silêncio, um silêncio que significa consentimento. Consentimento com a existência da pessoa, e isso é uma posição de amor...”. Cada um de nós, médicos – de especialidades muitas vezes tão diferentes –, sentimos no exercício das nossas especialidades o peso desse desafio comum: promover saúde por meio de uma vida profissional útil, impulsionada pelo amor ao próximo. É do grande pensador alemão Albert Einstein a frase que diz: “a única vida que tem sentido é a que se vive para os demais”. Eu próprio fui alvo desse amor quando, aos 13 anos de carinhosamente atendido pelo Dr Jayme Rodrigues e Academico Luiz Cesar Póvoa, que ao sair da consulta, no Sorocaba onde hoje tenho consultório, virei-me para minha disse: idade, fui tão pelo saudoso Centro Médico querida mãe e - Mãe, eu quero ser médico... A beleza e a verdadeira riqueza da história da Medicina residem no fato de que essa evolução – a dos desvelos com a saúde – se espraia para muito além da compreensão da doença, da precisão do seu diagnóstico ou da aplicação de um tratamento. A história da Medicina fala do cuidar genuíno, e do enorme desafio que a sua compreensão holística representa, algo precocemente ressaltado pelo estudioso grego Hipócrates, Pai da Medicina, ao enunciar: “Tanto os médicos como os sofistas afirmam que a Medicina não pode ser compreendida se não se sabe o que é o homem...” Tive a felicidade de ter vários Mestres na nossa querida Universidade Federal do Rio de Janeiro que me ensinaram, com desvelo, o valor inestimável da relação médico-paciente, e dentre eles gostaria de destacar os Profs Drs Danilo Perestrello, Abram Eksterman, Rodolpho Rocco (paraninfo de minha turma em 1977), além do ilustre Academico e hoje Professor Emérito, Adolpho Hoirisch que me concedeu a enorme alegria de também fazer parte da minha Comissão de Honra. O saudoso Academico Augusto Paulino Neto, reforça a importância desse trabalho ao escrever no ano de 2005, no Boletim do Colégio Brasileiro de Cirurgiões que: “... Os psicológos e os psiquiatras têm um papel muito importante no seguimento destes pacientes, antes, durante e após a internação que envolve uma cirurgia. Seu trabalho é realizado não só com o próprio paciente, mas também com sua família, para que todos possam participar na ajuda necessária para um melhor resultado não só físico, mas principalmente psíquico…” A Medicina tem por finalidade a promoção, preservação e recuperação da saúde, sendo o seu exercício uma atividade eminentemente humanitária e social, entretanto, para isso, dependemos não só da formação adequada, do conhecimento técnico da doença e da experiência que adquirimos ao longo dos anos, mas também de valores morais e pessoais. Aristóteles, filósofo grego da Antiguidade, conceitua e investiga apaixonadamente a ética, deixando-nos o legado que fundamenta essa ciência do caráter e dos costumes. Dedicando-se à ética, Aristóteles escreveu conhecida obra dedicada a seu filho Nicômaco, e deu a ela o título: Ética à Nicômaco. Ao longo dos dez livros, Aristóteles escreve para seu filho sobre conceitos que estão relacionados com a felicidade, tais como amizade, amor, liberdade, justiça e bondade, e salienta a importância do trabalho conjunto com a famosa frase “uma andorinha só não faz verão”. Assim como uma andorinha não faz verão por estar sozinha ou praticar voos isolados, o ser humano isolado não atinge sua perfeição ao praticar atos nobres sozinho pois ela, a perfeição, deve ser a finalidade comum dos seres humanos e praticada em conjunto por todos eles. Sendo assim, não basta ao paciente ter acesso aos vários profissionais de saúde, é preciso que esses profissionais conversem entre si e definam uma estratégia conjunta de tratamento. É a isso que se denomina interdisciplinaridade. Torna-se extremamente importante que se conquiste a confiança do paciente e de seus familiares em tudo aquilo que está sendo planejado e executado. Dessa maneira nosso trabalho poderá demonstrar, de forma inequívoca, responsabilidade, bom senso, técnica apurada e, acima de tudo, sensibilidade ao sofrimento do paciente. A delicadeza de um gesto que atende à preocupação do paciente e de seus familiares enobrece o trabalho do médico, e é por esse motivo que reitero meu agradecimento a todos os meus mestres, pelos ensinamentos não só científicos, mas, sobretudo, de ética e compreensão para com o sofrimento humano. A doença tem potencial, é claro, para afetar diretamente o comportamento social e afetivo do indivíduo, comprometendo sua Qualidade de Vida, mas não nos parece que apenas o sofrimento e a morte pelo câncer devam ser alvo desse tipo de preocupação nos enfermos. A “morte em vida”, patrocinada pela desesperança e pela cronicidade de uma doença, pode, da mesma forma, imobilizar um indivíduo por anos, e fazê-lo prisioneiro de uma angústia sem fim. Os médicos devem, portanto, estar prevenidos para combater, de forma eficaz, esse estado de espírito, capaz de abater não só os pacientes, mas também a muitos dos seus familiares mais próximos. Trata-se, nesse caso, de tentar assegurar a essa pessoa não apenas a saúde física ou mental, mas que ela esteja bem consigo mesma, com as pessoas que a cercam e com a oportunidade de vida que ainda terá, já que alcançar Qualidade de Vida é, em última análise, desfrutar de uma existência em equilíbrio. É com esse objetivo que devemos lembrar que ouvir é uma arte a favor do ato médico. É um exemplo simples da denominada Medicina Humanizada. Em seu livro mais famoso, “O Médico, seu Paciente e a Doença”, Michael Balint recomendou: “Ouçam as histórias dos pacientes. Trate-os como amigos...”. Balint, em outro de seus textos, adverte: “os grandes médicos de todos os tempos foram observadores agudos das emoções humanas”. O médico e seu paciente doente, segundo a fórmula de Michael Balint, são duas entidades inseparáveis e com relação de reciprocidade, já que em todo ato médico existe uma questão que envolve a interrelação humana. É importante, e fundamental, que saibamos controlar as expectativas do paciente. Administrar tais ansiedades significa, entre outras coisas, desenvolver habilidades de maneira a jamais faltar com a verdade para com o paciente e seus parentes. Miguel de Cervantes, romancista, dramaturgo e poeta castelhano ensinava que “A verdade alivia mais do que machuca. E estará sempre acima de tudo, como o óleo sobre a água”. Em seu primeiro best-seller “Quando Nietzsche Chorou” de 1992, Irvin Yalom, Professor Emérito de Psiquiatria da Universidade de Stanford e escritor consagrado, construiu um paralelo entre a ficção e a realidade. Nesta obra o filósofo Friedrich Nietzsche se encontra com o jovem médico Sigmund Freud, e Yalom redige o seguinte diálogo: “... – suspirou Freud: A esperança é essencial e quem, a não ser nós, consegue mantê-la? Para mim é a parte mais difícil da atividade médica. Às vezes tenho sérias dúvidas se estou à altura da tarefa...” Na verdade, Freud em sua obra, sempre ressaltou a importância da escuta. Em um de seus livros podemos encontrar o diálogo: “ – Titia, fale comigo. Estou com medo do escuro! - De que adiantaria? Voce não pode ver-me... - Não importa, se alguém fala a luz vem.” Escoaram-se mais de 40 anos, antes que a Organização Mundial de Saúde decidisse incluir o aspecto espiritual no conceito multidimensional de saúde. Próximo do fim do século 20 entretanto, no ano de 1988, a Organização Mundial de Saúde aceitou reposicionar-se, com base nas crescentes evidências de que o conjunto de emoções e convicções de natureza imaterial, a denominada espiritualidade, implicaria em fator de proteção humana tanto em questões de ordem médica, quanto em questões de ordem psicológica – influenciando de forma determinante a recuperação do paciente e garantindo consolo aos familiares que sofrem. No contato diário com o paciente não é difícil perceber que o processo de adoecimento muitas vezes encontra base científica nos estudos da Psicologia, da Sociologia, da Filosofia e da Teologia, confirmando que a Medicina deve abranger a vida sob todos os seus aspectos: físico, mental, social e espiritual. Embora, tradicionalmente, Ciência e Religião sejam considerados elementos de uma relação invariavelmente “complicada”, várias publicações atestam que a maior parte dos médicos acredita que a fé e a esperança têm muita influência na saúde e recuperação de pessoas enfermas. “Nada na vida é mais maravilhoso do que a fé...”, dizia o grande médico canadense William Osler, “misteriosa, indefinível, conhecida apenas por seus efeitos...” Foi Osler também que observou: “tão importante quanto conhecer a doença que o homem tem, é conhecer o homem que tem a doença”, conceito esse reforçado pelo Academico e Ex-Presidente Miguel Couto que sentenciou: “Não existem doenças, existem doentes...” As reformas do ensino médico devem reforçar conceitos na formação de profissionais que aprendam a praticar a arte da Medicina não somente com habilidades, mas acima de tudo com sabedoria. Torna-se importante, portanto, na minha opinião, que uma discussão permanente sobre humanização esteja incluída no programa de formação dos nossos Residentes, e é por esse motivo que realizamos periodicamente em nosso Serviço, projeção de filmes selecionados seguida de debates com grande amplitude holística. Parece óbvio que a Medicina deve ser exercida dentro desse mais puro conceito holístico, que é a maneira correta de se ver o paciente. O médico deve estar ciente de que os aspectos físico e emocional do paciente estão sempre interligados, e aprimorar sua capacidade de escuta de cada caso promovendo o encontro sublime entre ciencia e caridade. Só assim ele conseguirá desenvolver um trabalho que transcenda o viés técnico da profissão. Segundo Perestrello, Freud encarregou-se de esclarecer a todos que a vocação médica associa-se, inevitavelmente, ao ser humano. No livro “Conversando com o Paciente” seu autor, Brian Bird, alerta: “quem não gosta de gente, não deve ser médico...” Convido todos a uma reflexão derradeira. A filosofia da Grécia Antiga teve como foco o papel da razão e da indagação. Sócrates, filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga, foi um dos fundadores da filosofia ocidental e é dele a afirmação de que “a vida sem reflexão não merece ser vivida”. Pois bem, nessa viagem pela vida, o sentido dela própria constitui-se em um dos mais emblemáticos questionamentos filosóficos acerca do propósito e significado da existência humana. Para muitos o sentido da vida é demarcado pela “interpretação do relacionamento entre o ser humano e o seu mundo”, e no mundo do médico destaca-se, obviamente, a Medicina. Se a Medicina pode ser entendida sob múltiplos aspectos (assistencia, ensino, pesquisa, gestão, etc.) vive-la intensamente pode garantir o encontro, nessa existência, com a felicidade, objetivo comum de qualquer ser humano. Medicina tem sido definida, desde a Antiguidade, como a arte e a ciência de curar. Mais recentemente, despojada de crendices, alusões a divindades e métodos misteriosos, Medicina passou a ser entendida como a profissão técnica e humanitária cujos agentes, os médicos, são incumbidos do diagnóstico das enfermidades e do tratamento dos enfermos. Na angústia que a enfermidade desperta a quem por ela é atingido, a presença do médico é um bálsamo que faz renascer a esperança. Aprendi com meus mestres lições proveitosas, vendo como procediam e procurando aplicá-las para que, ao longo da vida, pudesse “combater o bom combate”, aquele que reflete o nobre interesse do médico ao longo de sua vida de lutas. Não, não vos falo apenas do interesse profissional, mas também do humano, aquele que nasce da solidariedade no sofrimento e que não se esgota com a prescrição do medicamento ou com a prática do ato cirúrgico, mas estendese ao cuidado necessário para aniquilar a angústia. Eu vos agradeço, Senhoras e Senhores Academicos, a honra de me receberem como um de vossos pares. E a todos que me ajudaram a ingressar na Academia, já que essa é uma conquista concedida, a minha eterna gratidão. É com entusiasmo e emoção que vivencio o progresso técnico da Medicina porém nesse dia, que se torna o dia mais importante da minha vida como médico, gostaria que minhas palavras pudessem ter-nos feito refletir sobre a premência do resgate da verdadeira Medicina– aquela que precisa evoluir, a cada dia, na sua dimensão técnica de excelência sim, mas que deve permanecer, que precisa permanecer, para sempre, profundamente humana. Muito obrigado. DISCURSO DO PRESIDENTE Acadêmico Pietro Novellino No dizer do nosso ilustre confrade Carlos Gottschall a eleição para nossa Academia pode ser entendida como a mais alta distinção médica conferida a alguém dentro do nosso País, sem outra explicação que não seja de uma suposta excelência profissional. Assim, a Academia Nacional de Medicina, a Instituição Científico Cultural mais antiga do Brasil, prestes a completar 185 anos de existência, acaba de entronizar na Cadeira de nº 62, o Dr. Ricardo Cruz, o qual com sua prodigiosa caminhada distinguiu-se sobremaneira como médico humanista e cirurgião de escól. Seu Curriculum Vitae tão bem delineado pela Acadêmica Talita Franco reflete a trajetória da sua vida profissional, coroada de sucessivos êxitos, merecendo realce sua militância vitoriosa na clínica e na prática da cirurgia crânio-maxilo facial, formando discípulos e participando nos eventos científicos mais expressivos tanto nacionais como internacionais. Minhas Senhoras e meus Senhores. Nascemos há quase 185 anos, e durante esse tempo, temos sido hóspedes ativos da memória médica brasileira sob a guarda daqueles que em nossa Casa no passado processaram ou os que agora processam ciência, humanismo e reflexão, acolhendo em seu seio como Membros Titulares até a presente data 655 (além de ilustres honorários e correspondentes) que aqui vieram, e fizeram pouso de suas inteligências, contribuindo com o que de melhor existiu ou existe em termos de saber científico. Aqui pretendemos ser todos uns para os outros, procurando sempre construir a unidade, embora respeitemos a diversidade, “não deixando que nossas divergências inviabilizem nossas amizades nem que nossas amizades inviabilizem nossas divergências” como aconselha a grande pensadora Simone Weil. Assim Acad. Ricardo Cruz, tenho certeza que Vossa Excelência sentirse-á em franca ressonância com o espírito de nossa Casa caracterizada pela consonância de ideais, pela grandeza de seus Membros e pelo amor à Medicina, pois esta é “eterna como a dor da natureza” no dizer de Mário Alencar ao receber nosso Miguel Couto na Academia Brasileira de Letras. Vossa Excelência distinguiu-se sobremaneira entre seus pares com postura firme, mas sem arrogância ou vaidade. Que continue assim entre nós, pois no dizer de Dante Pazzanese, fundador do Instituto de Cardiologia de São Paulo que leva seu nome, “a inveja não nos deixa reverenciar quem é melhor que a gente, e a vaidade nos faz esquecer que sempre temos algo a aprender com as pessoas”. Senhoras e Senhores Acadêmicos Minhas Senhoras e meus Senhores, Na ótica de Goethe “A alegria e o amor são as asas das grandes ações” e na concepção do nosso eminente Acadêmico Ivo Pitanguy: “O amor é a estrela desenhada no firmamento que pode ser avistada de qualquer parte”. E se a Academia Nacional de Medicina se engalana para receber Vossa Excelência como Membro Titular Acadêmico Professor Ricardo Cruz, cumpre-me, neste momento, prestar merecida homenagem a sua companheira inseparável, Denise, sua musa inspiradora, que Vossa Excelência avistou no firmamento há 24 anos e incorporou ao seu coração. Acadêmico Ricardo Cruz, Esta Casa que hoje o acolhe caracteriza-se pela tradição e inovação, mas apesar dos Transplantes de Órgãos, da Telemedicina, da Robótica, da Genômica, e da Proteinômica, hoje incorporados à Ciência Médica, devemos manter sempre acesa a chama do humanismo, pois sem relação humana não temos medicina. Acredito que além da façanha técnica que imortalizou a equipe médica da cidade de Amiens na França ao realizar, em 27 de novembro de 2005, o primeiro transplante parcial de face na paciente Isabelle Dinoire, que perdeu o nariz, os lábios e o queixo ao ser atacada por um cão, o que mais gratificou àquela equipe de destacados cirurgiões foi poder recuperar plenamente as funções de mastigação e locução da paciente num verdadeiro ato não só de heroísmo, mas principalmente de humanismo. Acadêmico Ricardo José Lopes da Cruz, sede bem vindo à nossa Academia, templo da Ciência, da Cultura e da Sabedoria Médica, pois são sempre bem vindos à nossa Casa aqueles que provaram seu valor e sua seriedade no exercício da nossa profissão. Que Vossa Excelência continue a exercer suas atividades com dignidade, altivez e competência, pois de agora em diante seus êxitos serão motivo de orgulho para todos nós.