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VI Colóquio Internacional Marx e Engels
GT - 3: Marxismo e ciências humanas
Título: Um capítulo do “marxismo acadêmico”: a ruptura metodológica de
Fernando Henrique Cardoso em relação a Florestan Fernandes
Autor: Wanderson Fabio de Melo∗
Este texto versa sobre o decurso intelectual de Fernando Henrique Cardoso a
partir do período de seus estudos na Universidade de São Paulo até o rompimento
teórico em relação a Florestan Fernandes. Ao analisar suas entrevistas tematizadas na
formação intelectual, pode-se perceber os elementos que compuseram o seu pensamento
e a constituição de sua “consciência social prática” relacionada ao contexto da
Faculdade de Filosofia desde os anos 50 do século XX. O presente texto se prende ao
aspecto teórico e metodológico da obra de Cardoso. Nesse sentido, examina-se o quadro
teórico a fim de perceber o debate na sociologia produzida a partir da Universidade de
São Paulo.
Pretende-se explicitar as posições de Cardoso sobre a afirmação da sociologia
como área das Ciências Humanas no Brasil, situar suas análises sociológicas,
demonstrar as influências das formulações do grupo de estudo d’ O Capital, criado por
jovens intelectuais, o seu universo teórico e a sua contribuição metodológica para as
Ciências Sociais da USP, bem como o seu trabalho na fundação do Cesit (Centro de
Estudos em Sociologia Industrial e do Trabalho).
Construiu-se um discurso na história da sociologia brasileira acerca de que
Fernando Henrique Cardoso teria sido, por meio de suas pesquisas, um sujeito
fundamental na superação do funcionalismo no procedimento investigativo. Além disso,
o autor de Capitalismo e escravidão no Brasil meridional teria pautado a renovação do
“marxismo”, isto é, reinterpretado a teoria de Karl Marx evidenciando as debilidades
teóricas dos autores ligados ao Partido Comunista, calcada em aplicação de modelos de
repetição de etapas históricas tendo como referência o continente europeu. A partir
dessa perspectiva, surge a indagação a ser trabalhada neste componente: O que
representou a renovação metodológica “marxista” de Cardoso?
Para responder a essa questão deve-se considerar a evolução da área de
sociologia da Universidade de São Paulo e o contexto dos anos 40, 50 e 60 do século
∗
Doutorando em História pela PUC/SP e Professor na Faculdade de Mauá.
2
XX; além disso, explicitar os procedimentos teórico-metodológicos no campo da
investigação sociológica; e, por fim, perceber a circulação daquela produção acadêmica
e como se tornou hegemônica no âmbito da investigação social.
1. A consolidação da sociologia na Universidade de São Paulo: uma área de pesquisa
As Ciências Sociais floresceram na capital paulista em decorrência dos
propósitos das “elites dirigentes” do Estado, visto que almejavam retomar,
posteriormente, a hegemonia perdida na política brasileira desde a “Revolução de
1930”. Tratava-se, portanto, da preparação intelectual. Nesse sentido, empreende-se a
fundação da Escola Livre de Sociologia e Política (1933) e da USP (1934), que
objetivavam formar quadros técnicos altamente qualificados. Entretanto, a área das
Ciências Sociais evoluiu para a cultura acadêmica, por meio da atividade profissional
permanente de docência e de pesquisa. Com efeito, desvirtuou-se a finalidade dos
derrotados em 32. De acordo com Miceli, “os grupos sociais emergentes privilegiados
por essa expansão do ensino superior arrombaram o projeto universitário acalantado
pelas elites”1, pari passu os cientistas sociais na cidade de São Paulo tornaram-se cada
vez mais acadêmicos, desapegados às funções dirigentes estatais.
Ao avaliar os professores Fernando de Azevedo e Florestan Fernandes, as
referências no curso de Sociologia da USP quando de seu ingresso, o ex-aluno Fernando
Henrique comentou:
Fernando de Azevedo dava aula ao estilo da Faculdade de Direito: bem organizadas, mas não
tão cativantes, no sentido de “ciência” que era a nossa paixão. Florestan [Fernandes] dava aulas
de bata branca e depois, quando nós todos fomos seus assistentes e, mais tarde, professores,
também dávamos aula de avental branco, pois éramos “cientista” [riso]. Então, nossa formação
nessa época era em “ciências sociais” /.../. Quem dominava na Sociologia eram Florestan e
[Roger] Bastide2.
A partir do relato de Cardoso, pode-se registrar a diferenciação de projeto
presente nos dois professores no tocante à área de sociologia. Nessa perspectiva,
Azevedo foi associado ao bacharelismo, isto é, a produção acadêmica não
suficientemente compromissada com a investigação empírica. Ao passo que, Florestan
foi identificado como especialista engajado na ciência, uma vez que o professor
1
Sérgio Miceli. “Condicionantes do desenvolvimento das ciências sociais”. In: Sérgio Miceli. História
das ciências sociais no Brasil. Vol I. São Paulo: Vértice/Idesp, 1989, p. 87.
2
Fernando Henrique Cardoso, (Entrevista). In: Elide Rugai Bastos. et. alii (Org.). Conversas com
sociólogos brasileiros. São Paulo: Ed. 34. 2006, p. 69.
3
pesquisador defendera a indumentária como representação social do fazer científico,
sinal de relevância da sua especificidade e do espaço de trabalho; além disso, buscava a
expressão e o prestígio às suas investigações. Florestan Fernandes, na primeira metade
dos anos 50, chamava a Sociologia de “ciência empírica”. Fernando Henrique enxergou
o compromisso de Florestan e do professor francês Roger Bastide em promover o
código científico ao trabalho de investigação sociológica por suas atividades em
pesquisas, fundamentados teoricamente e respaldados nos dados em exame.
É importante considerar que Fernando Henrique tornou-se professor assistente
de Roger Bastide e auxiliar de ensino da cadeira Sociologia I da Faculdade de Filosofia
da USP, em 1953. Após o retorno de Bastide à França, no ano seguinte, Florestan fora
nomeado professor interino da matéria mencionada, em consequência, Cardoso foi
convidado para ser o seu primeiro assistente, em janeiro de 1955. Assim, verifica-se o
alinhamento do jovem sociólogo aos seus mestres pesquisadores.
Nos anos 50, nas referências bibliográficas dos cursos e nos escritos de Florestan
encontram-se os textos de Émile Durkheim, Karl Manheim, Max Weber, Karl Marx,
Talcott Parsons e Robert Merton, de modo que percebe-se as influências da sociologia
francesa, do historicismo alemão, do marxismo e do funcionalismo norte-americano na
obra do scholar. Para Cardoso, Florestan Fernandes iniciou no Brasil a redução da
reflexão marxiana a um instrumento de análise sociológica, desconsiderando o conteúdo
revolucionário da obra de Karl Marx. Em suma, constituiu-se um “marxismo”
despojado de seu núcleo, portanto, adstringido, reduzido a algo que a academia de
estudos pudesse aceitar.
O mestre da ciência social uspiana privilegiou o método e a construção
disciplinar pautado no levantamento de dados e no rigor conceitual. Destarte, visava
atribuir legitimidade acadêmica à disciplina de sociologia, daí a relação com a produção
de Durkheim, posição dominante no contexto da institucionalização dessa área de
estudos. Da sociologia alemã de Max Weber, Florestan Fernandes considerou as
problemáticas da instauração da “ordem social competitiva”, da “ação social” e das
estratificações, além da reflexão do sociólogo da Alemanha de Guilherme II o
constructo dos “tipos ideais”. Em relação a Karl Marx, o professor pesquisador frisava
que fora o tradutor do livro Crítica da economia política, ainda nos anos 40, e que se
tratava de uma obra importante para a compreensão da história enquanto construção
humana. Por fim, a absorção das reflexões funcionalistas se processou na constituição
de instrumentos de trabalho, a partir das técnicas de observação e coletas de dados.
4
Desse modo, o “ecletismo dinâmico” expressado pelo scholar Florestan Fernandes
visava a se contrapor às concepções naturalistas e fatorialistas de ciências sociais, além
de garantir a respeitabilidade científica à sociologia.
O trabalho de pesquisa de Fernando Henrique Cardoso na segunda metade dos
anos 50 resultara na publicação conjunta com Octavio Ianni, que fora prefaciada por
Florestas Fernandes, o orientador dos trabalhos, Cor e mobilidade social em
Florianópolis: aspectos das relações entre negros e brancos numa comunidade do
Brasil meridional, publicada em 1960. Tal investigação, proposta por Florestan e
financiada pela Unesco, examinou a situação do negro na região Sul do país e serviu
para desmistificar a veiculação de “democracia racial no Brasil”. Posteriormente,
Cardoso defendeu a sua tese doutoral, em 1961, intitulada Formação e desintegração
da sociedade de casta: o negro na ordem escravocrata do Rio Grande do Sul.
Os estudos sobre o negro no Brasil produzidos e orientados por Florestan
Fernandes demarcaram posições importantes na contraposição à ideia de “democracia
racial” no país. Tais estudos, segundo Carlos Guilherme Mota, foram determinantes
para a radicalização do scholar, pois quando passou a realizar essas pesquisas
desacentuou-se a orientação funcionalista, visto que expressou a preocupação “com as
relações de raça e classe”3. Ademais, o professor caminhou no desvendamento do
capitalismo brasileiro.
Pode-se perceber a consolidação da sociologia como área de estudo na academia
universitária por meio do trabalho de pesquisa científica, tendo como protagonistas
importantes nos anos 40 os professores Roger Bastide e Florestan Fernandes. Assim,
constituiu-se um discurso hegemônico no campo teórico-investigativo na sociologia
uspiana por meio da junção do cientificismo da sociologia francesa; a construção dos
“tipos ideais” da sociologia weberiana; a compreensão da história enquanto construção
humana, segundo o marxismo; e a quantificação dos dados empíricos de acordo com a
sociologia norte-americana.
2. O grupo de estudo d’O capital e o marxismo adstringido
Quanto à continuidade de sua formação intelectual após a fase vinculada a
Florestan, Fernando Henrique Cardoso situou a importância do grupo de estudo
formado por jovens professores da USP para o exame da obra O capital de Karl Marx.
3
Carlos Guilherme Mota. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). 3 ed. São Paulo: Ática, 1977, p.
182.
5
O seminário [sobre a obra de Marx] foi quase uma pós-graduação. Qual era seu sentido?
Primeiro quem dava o tom acadêmico e de rigor era o [filósofo José Arthur] Giannotti. Cada um
lia numa língua diferente, ao mesmo tempo, para cotejar, mas não era por espírito de religião
política, era por religião acadêmica, rigor acadêmico. Eram discussões infindáveis, cada um com
sua especialidade: um era historiador, outro antropólogo, outro economista, outro sociólogo,
outros tinham vivência política, outros tinham vocação literária ou filosófica. Era como se fosse
um college inglês: havia a conivência intelectual e depois o jantar. A convivência nos tornou
muito próximos e teve uma influência direta na elaboração das nossas teses de doutoramento, em
todos nós, inclusive na do Giannotti4.
É importante retomar o contexto do Seminário de Marx organizado pelos
intelectuais de São Paulo. Como se sabe, a história da esquerda no final dos anos 50
esteve marcada pelo reconhecimento, por parte da União Soviética, dos crimes de
Stalin, o que impactou decisivamente as bases dos Partidos Comunistas no mundo todo.
Na medida em que as lutas sociais entravam em ascensão verificou-se a
participação das camadas intelectuais nos movimentos por transformações, o que em
vários momentos se desdobrou na ligação de membros da intelligentsia aos Partidos
Comunistas. Contudo, quando do refluxo dos embates ou nos momentos de “decepções
políticas” com as contra-revoluções, denúncias do stalinismo ou derrota nas lutas de
classes, percebeu-se o afastamento “dos homens de ciência” em relação à perspectiva do
trabalho.
Nesse sentido, no ano de 1958, em São Paulo a jovem intelligentsia uspiana,
expressando a “insatisfação com a vulgata comunista” (Schwarz,1998: 103), tratou de
buscar outros caminhos e debruçou-se na leitura dos textos do próprio Karl Marx, a
começar pela obra magna, isto é, O Capital: crítica da economia política.
A liderança intelectual do grupo ficou a cargo do filósofo José Arthur Giannotti,
autor, segundo Antonio Rago Filho, “altamente influenciado pela fenomenologia e o
estruturalismo francês”, e que foi “o artífice principal de um esforço analítico que visara
a superar o pensamento de esquerda de baixo padrão desenvolvido por ideólogos
hospedados no PCB, o mais influente partido de esquerda na década de 60, no Brasil”5.
O grupo de estudo d’O Capital imprimiu uma nova forma de “marxismo” no
Brasil ao balizar inúmeras investigações acadêmicas, pois segundo anunciou Giannotti
no texto que demarcou a existência do núcleo:
4
Fernando Henrique Cardoso, Idem, p. 76.
Antonio Rago Filho. “A filosofia de José Arthur Giannotti: marxismo adstringido e analítica paulista”.
Cadernos de Ciências Sociais, Vol. I. Santo André – SP: FAFIL, 2005, p. 480.
5
6
Se levarmos em conta o extraordinário florescimento atual das ciências do homem, dificilmente
cada pessoa seria capaz de dominar de uma forma crítica todos os terrenos explorados por Marx.
Tendo isto em vista é que nos reunimos num grupo heterogêneo, que nos permitisse caminhar
com certa segurança no interior dessas ciências, mas que nos custou horas a fio de irritantes
discussões a fim de chegarmos a um vocabulário comum. Entretanto agora, depois de mais de
um ano de seminário quinzenais, todos sentimos que estamos adotando uma nova maneira de
compreender Marx e os problemas de nossa sociedade estudados por esse autor, o que sem
dúvida deverá produzir seus frutos6.
Propugnou-se uma “filosofia da práxis” desvinculada do movimento pela
emancipação humana e da intervenção prática para a transformação da realidade, visto
que “embora marxistizantes, não tínhamos prática de militância política”7. O
pesquisador Luiz Fernando da Silva compreende a obra dessa união uspiana como
sendo “marxismo acadêmico”, porque ocupavam espaços nas instâncias da
universidade, mas não na luta de classes propriamente. Não operaram a transição da
militância socialista para o centro de investigação ou ensino, como em diversos países.
Ao passo que, “esse marxismo, no Brasil, surge e se consolida no próprio momento de
afirmação da universidade, a partir dos anos 50, ao contrário de muitas universidades
européias e americanas que há muito já tinham se consolidado”8.
De acordo com Fernando Henrique Cardoso, as reflexões do seminário
repercutiram enormemente no âmbito científico, haja vista que considera que:
A introdução de Marx como tema de reflexão foi feita pela minha geração nos anos 60 e se deve
a algo que ocorreu fora do âmbito acadêmico: um seminário sobre Marx organizado por José
Arthur Giannotti, por mim e por um grupo de amigos9.
Assim, na posição do sociólogo, os estudantes passaram a ler Marx na FFLCH
da USP seguindo as reflexões do grupo de estudo encabeçado por Giannotti. Desse
modo, surge a indagação sobre como teria sido interpretada a obra de Marx.
A partir da produção influenciada intelectualmente pelo grupo do’O capital,
notou-se o afastamento de Cardoso em relação ao mestre da “ciência empírica”. Na
6
José Arthur Giannotti. “Notas para uma análise metodológica de O Capital”. Revista Brasiliense, nº 29.
São Paulo: Brasiliense, 1960, p: 61.
7
Fernando Henrique Cardoso. “Memórias da Maria Antonia”. In: Maria Cecília dos Santos (Org.). Maria
Antonia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 31.
8
Luiz Fernando da Silva. Pensamento Social Brasileiro: marxismo acadêmico entre 1960 e 1980. São
Paulo: Corações e mentes, 2003, p. 32.
9
Fernando Henrique Cardoso. Entrevista a Lourenço Dantas Mota. Brasília – DF: Senado Federal, 1985,
p. 8.
7
versão de Fernando Henrique, tal fato se processou porque “Florestan não gostava do
seminário de Marx”10. Outrossim, torna-se lídimo notar que os pesquisadores do grupo
de estudo, de certo modo, por sua atitude, questionaram a “hegemonia intelectual” do
mestre da sociologia uspiana, sobretudo na medida em que passaram a ocupar espaços
na academia e a fazer circular suas próprias conclusões. Contudo, eles reverenciaram o
procedimento de pesquisa instaurado por Florestan quanto à escrita pautada em
metodologia, problematização, análise de dados e rigor científico em contraposição ao
ensaísmo.
Cardoso apresenta a ruptura com o mestre enquanto “um conflito de geração,
afirmação de geração. O seminário significava nossa emancipação intelectual”11. Desse
modo, emerge outra questão: Qual seria o ato fundante dessa nova geração intelectual
da USP? Na resposta de Fernando Henrique Cardoso seria a recusa do funcionalismo.
Destarte, a novidade instaurada pelos pesquisadores de sua geração nas Ciências
Humanas teria sido a superação do funcionalismo e o aprofundamento do rigor
metodológico.
As principais obras exaltadas como referências a partir do Seminário foram: a
pesquisa pós-doutoral de Cardoso, sobretudo o comentário ao procedimento
metodológico contido na apresentação; do professor José Arthur Giannotti, que
representava o “ângulo filosófico” referendado no artigo “Notas para uma análise
metodológica de O Capital” (1960), foi destacada a sua tese Origens da dialética do
trabalho (1966); e por fim, o doutorado do historiador Fernando Novais: Portugal e
Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), reconhecido, segundo Roberto
Schwarz, como “a obra-prima do grupo”12.
Referente ao encaminhamento do procedimento analítico, Cardoso informou:
“Após termos lido Marx, permanecia em nosso espírito a tensão entre ele e Max Weber
e só fomos resolver esse problema com a leitura de Sartre, onde encontramos a pista
para o que procurávamos, começando pela leitura de seu livro Questão do método”13.
Torna-se importante observar que o sociólogo da USP considera a sua metodologia a
partir da conciliação dos três autores citados. Embora recuse a ideia de uma
antropologia fundante, Cardoso recupera de Jean-Paul Sartre a tentativa de “superar o
10
Fernando Henrique CARDOSO, (Entrevista). In: BASTOS, Elide Rugai et. alii (Org.). Op. cit., p. 77.
Idem, Ibidem.
12
Roberto Schwartz. “Um Seminário de Marx”. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, n. 50, mar. 1998, p.
107.
13
Fernando Henrique Cardoso. Entrevista a Lourenço Dantas Mota, p. 8.
11
8
idealismo e o materialismo” suprimindo a objetividade histórica, além disso, opõe
formalmente a ação prática à contemplação.
3. O marxismo adstringido e a produção sociológica
Em 1962, juntamente com Florestan Fernandes, Cardoso protagonizou a
formação de um centro de pesquisa agregado à cadeira de Sociologia I, disciplina que
ministrava na USP. Segundo o intelectual, “Quando fizemos o Centro de Pesquisa em
Sociologia Industrial e do Trabalho nós saímos da temática do negro para a temática dos
empresários, do Estado, do Desenvolvimento etc”14.
Os recursos para o Cesit foram conseguidos junto à Confederação Nacional da
Indústria no momento em que era presidida pelo líder Fernando Gasparian,
representante da burguesia nacionalista que apoiava o governo de João Goulart.
A pesquisa de Cardoso no Centro de Estudo sobre Indústria e Trabalho foi
materializada na obra Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil,
sua tese de livre-docência, publicada em 1964. Estudo que prosseguiu a materialização
de sua crítica teórica e prática às esquerdas da época e, ulteriormente, serviria de base
para sua reflexão acerca da “teoria da interdependência” e do “desenvolvimento
associado”.
A produção de Florestan Fernandes e de seus orientandos no Cesit trouxe o
universo das relações entre as classes sociais a partir de São Paulo, engajado na
produção de estudos sobre trabalhadores, empresários, movimento sindical operário e
patronal. No entanto, ao rememorar algumas teses defendidas no Centro, Cardoso
enfatiza que “Achávamos assim que ia haver em São Paulo um desenvolvimento em
condições mais ou menos semelhantes às da Europa”15, desse modo, expressou-se a
falta de percepção sobre a especificidade do capitalismo brasileiro quanto à entificação
do capitalismo e as conformações das classes sociais. Ainda assim, o aprofundamento
dos estudos cesitianos foi fundamental para o delineamento de Florestan na obra A
revolução burguesa no Brasil, por conseguinte, a conceituação de “capitalismo
selvagem e difícil” foi utilizada para definir o processo social brasileiro.
Diante de todo o exposto, emerge a dúvida: a superação do funcionalismo nas
pesquisas em Ciências Humanas na Universidade de São Paulo teria, de fato, advindo
do Seminário de Marx, como afirma Cardoso?
14
15
Fernando Henrique Cardoso, (Entrevista). In: Elide Rugai Bastos. et. alii (Org.). Op. cit., p. 75.
Fernando Henrique Cardoso. Entrevista a Lourenço Dantas Mota, p. 11.
9
É inegável a presença do funcionalismo em Florestan Fernandes no livro Padrão
de trabalho científico dos sociólogos brasileiros, publicado em 1958. Não obstante,
segundo Carlos Guilherme Mota, o decurso intelectual de Florestan assumiu
paulatinamente o seu viés marxista, ao passo que somou à construção da ciência social
rigorosa os estudos dos problemas do país e a sociedade de classe. Destarte, o marco
intelectivo foi a obra A sociologia numa era de revolução social, que veio a público
como livro em 1962, a partir da coletânea de textos escritos entre 1959 e 1962,
desabrochando, assim, o momento de ruptura. É importante lembrar que este foi
também o contexto de radicalização da Revolução Cubana, que impulsionara
decisivamente parte da intelectualidade latino-americana em direção à perspectiva
social crítica.
Portanto, pode-se perceber que na medida em que os pesquisadores uspianos se
engajaram no estudo sobre as relações entre as classes sociais, concomitantemente
ocorrera a decaída do funcionalismo. É importante destacar a sensibilidade de Florestan
e Cardoso na percepção dos temas candentes ao Brasil do pós-Segunda Guerra, mas
divulgar que o ex-aluno superou o mestre a partir do grupo d’O Capital é desconsiderar
a evolução ativa do mestre da sociologia crítica a partir dos resultados das pesquisas no
Cesit.
Façamos uma breve sistematização do enredo deste texto. Tratou-se da formação
de Fernando Henrique Cardoso enquanto cientista social no período que abarcou as
décadas de 50 e 60. Verificou-se que no contexto do pós-Segunda Guerra emergiram
novas profissões para as camadas intelectuais. Por um lado, doravante, não apenas a
ciência do Direito discutiria as questões concernentes ao âmbito social na academia. Por
outro, aos jovens com sensibilidade para o social, conformada no momento de vitória
dos Aliados na Segunda Guerra Mundial e, além disso, em meio à agenda progressista
que se seguiu, ainda que não realizada, almejavam novas formas de atuação profissional
e social. Setores desconfiavam da priorização nas atividades estatais e buscaram a
investigação social. Em suma, a consolidação da sociologia se fez com a geração que
assistiu ao conflito mundial e se interessou pelo desvendamento da realidade no
contexto de vitória do campo democrático sobre o nazi-fascismo, mas de controle antirevolução socialista respaldado no stalinismo e na social-democracia do continente
europeu.
Com efeito, essa geração de sociólogos em São Paulo foi treinada por Florestan
Fernandes, o grande instigador da sociologia científica no Brasil. Cardoso vinculou-se a
10
essa posição acadêmica preocupada com a análise de materiais empíricos,
problematização e apresentação de resultados e conclusões pautadas em metodologia.
Entretanto, conforme já se anunciou, a superação do funcionalismo nas ciências sociais
não se fez independente do trabalho de Florestan, tampouco contra ele. Ao contrário, o
autor de Sociologia numa era de revolução social rompeu com a escola funcionalista na
medida em que examinou as classes sociais. Tal processo se aprofundou com as
atividades no Cesit devido aos resultados das pesquisas coletivas, culminando na obra A
Revolução Burguesa no Brasil.
As atividades desenvolvidas no que se convencionou chamar de Seminário de
Marx, protagonizado pelos jovens professores assistentes na USP e alguns de seus
alunos, foram de grande importância para a práxis de Fernando Henrique Cardoso, visto
que introduziram nas Ciências Sociais o “marxismo adstringido”, ou seja, retirou-se o
conteúdo crítico revolucionário da obra do pensador alemão, transformando-o em um
mero instrumento de análise de conjuntura na longa duração. Por meio da questão do
método de Jean-Paul Sartre de compreensão da existência desconectado da ontologia do
ser social e da transformação, o arcabouço teórico de Cardoso subordinando o legado de
Karl Marx a Max Weber, devido ao entendimento de pluricausalidade, “ação social” e
“ordem competitiva”. Instaurou-se o “pensamento dialético” que se aplica à realidade,
ao invés de extrair a reflexão por seus elementos constitutivos, o estudo do Ente pelo
próprio Ente.
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