1 VI Colóquio Internacional Marx e Engels GT - 3: Marxismo e ciências humanas Título: Um capítulo do “marxismo acadêmico”: a ruptura metodológica de Fernando Henrique Cardoso em relação a Florestan Fernandes Autor: Wanderson Fabio de Melo∗ Este texto versa sobre o decurso intelectual de Fernando Henrique Cardoso a partir do período de seus estudos na Universidade de São Paulo até o rompimento teórico em relação a Florestan Fernandes. Ao analisar suas entrevistas tematizadas na formação intelectual, pode-se perceber os elementos que compuseram o seu pensamento e a constituição de sua “consciência social prática” relacionada ao contexto da Faculdade de Filosofia desde os anos 50 do século XX. O presente texto se prende ao aspecto teórico e metodológico da obra de Cardoso. Nesse sentido, examina-se o quadro teórico a fim de perceber o debate na sociologia produzida a partir da Universidade de São Paulo. Pretende-se explicitar as posições de Cardoso sobre a afirmação da sociologia como área das Ciências Humanas no Brasil, situar suas análises sociológicas, demonstrar as influências das formulações do grupo de estudo d’ O Capital, criado por jovens intelectuais, o seu universo teórico e a sua contribuição metodológica para as Ciências Sociais da USP, bem como o seu trabalho na fundação do Cesit (Centro de Estudos em Sociologia Industrial e do Trabalho). Construiu-se um discurso na história da sociologia brasileira acerca de que Fernando Henrique Cardoso teria sido, por meio de suas pesquisas, um sujeito fundamental na superação do funcionalismo no procedimento investigativo. Além disso, o autor de Capitalismo e escravidão no Brasil meridional teria pautado a renovação do “marxismo”, isto é, reinterpretado a teoria de Karl Marx evidenciando as debilidades teóricas dos autores ligados ao Partido Comunista, calcada em aplicação de modelos de repetição de etapas históricas tendo como referência o continente europeu. A partir dessa perspectiva, surge a indagação a ser trabalhada neste componente: O que representou a renovação metodológica “marxista” de Cardoso? Para responder a essa questão deve-se considerar a evolução da área de sociologia da Universidade de São Paulo e o contexto dos anos 40, 50 e 60 do século ∗ Doutorando em História pela PUC/SP e Professor na Faculdade de Mauá. 2 XX; além disso, explicitar os procedimentos teórico-metodológicos no campo da investigação sociológica; e, por fim, perceber a circulação daquela produção acadêmica e como se tornou hegemônica no âmbito da investigação social. 1. A consolidação da sociologia na Universidade de São Paulo: uma área de pesquisa As Ciências Sociais floresceram na capital paulista em decorrência dos propósitos das “elites dirigentes” do Estado, visto que almejavam retomar, posteriormente, a hegemonia perdida na política brasileira desde a “Revolução de 1930”. Tratava-se, portanto, da preparação intelectual. Nesse sentido, empreende-se a fundação da Escola Livre de Sociologia e Política (1933) e da USP (1934), que objetivavam formar quadros técnicos altamente qualificados. Entretanto, a área das Ciências Sociais evoluiu para a cultura acadêmica, por meio da atividade profissional permanente de docência e de pesquisa. Com efeito, desvirtuou-se a finalidade dos derrotados em 32. De acordo com Miceli, “os grupos sociais emergentes privilegiados por essa expansão do ensino superior arrombaram o projeto universitário acalantado pelas elites”1, pari passu os cientistas sociais na cidade de São Paulo tornaram-se cada vez mais acadêmicos, desapegados às funções dirigentes estatais. Ao avaliar os professores Fernando de Azevedo e Florestan Fernandes, as referências no curso de Sociologia da USP quando de seu ingresso, o ex-aluno Fernando Henrique comentou: Fernando de Azevedo dava aula ao estilo da Faculdade de Direito: bem organizadas, mas não tão cativantes, no sentido de “ciência” que era a nossa paixão. Florestan [Fernandes] dava aulas de bata branca e depois, quando nós todos fomos seus assistentes e, mais tarde, professores, também dávamos aula de avental branco, pois éramos “cientista” [riso]. Então, nossa formação nessa época era em “ciências sociais” /.../. Quem dominava na Sociologia eram Florestan e [Roger] Bastide2. A partir do relato de Cardoso, pode-se registrar a diferenciação de projeto presente nos dois professores no tocante à área de sociologia. Nessa perspectiva, Azevedo foi associado ao bacharelismo, isto é, a produção acadêmica não suficientemente compromissada com a investigação empírica. Ao passo que, Florestan foi identificado como especialista engajado na ciência, uma vez que o professor 1 Sérgio Miceli. “Condicionantes do desenvolvimento das ciências sociais”. In: Sérgio Miceli. História das ciências sociais no Brasil. Vol I. São Paulo: Vértice/Idesp, 1989, p. 87. 2 Fernando Henrique Cardoso, (Entrevista). In: Elide Rugai Bastos. et. alii (Org.). Conversas com sociólogos brasileiros. São Paulo: Ed. 34. 2006, p. 69. 3 pesquisador defendera a indumentária como representação social do fazer científico, sinal de relevância da sua especificidade e do espaço de trabalho; além disso, buscava a expressão e o prestígio às suas investigações. Florestan Fernandes, na primeira metade dos anos 50, chamava a Sociologia de “ciência empírica”. Fernando Henrique enxergou o compromisso de Florestan e do professor francês Roger Bastide em promover o código científico ao trabalho de investigação sociológica por suas atividades em pesquisas, fundamentados teoricamente e respaldados nos dados em exame. É importante considerar que Fernando Henrique tornou-se professor assistente de Roger Bastide e auxiliar de ensino da cadeira Sociologia I da Faculdade de Filosofia da USP, em 1953. Após o retorno de Bastide à França, no ano seguinte, Florestan fora nomeado professor interino da matéria mencionada, em consequência, Cardoso foi convidado para ser o seu primeiro assistente, em janeiro de 1955. Assim, verifica-se o alinhamento do jovem sociólogo aos seus mestres pesquisadores. Nos anos 50, nas referências bibliográficas dos cursos e nos escritos de Florestan encontram-se os textos de Émile Durkheim, Karl Manheim, Max Weber, Karl Marx, Talcott Parsons e Robert Merton, de modo que percebe-se as influências da sociologia francesa, do historicismo alemão, do marxismo e do funcionalismo norte-americano na obra do scholar. Para Cardoso, Florestan Fernandes iniciou no Brasil a redução da reflexão marxiana a um instrumento de análise sociológica, desconsiderando o conteúdo revolucionário da obra de Karl Marx. Em suma, constituiu-se um “marxismo” despojado de seu núcleo, portanto, adstringido, reduzido a algo que a academia de estudos pudesse aceitar. O mestre da ciência social uspiana privilegiou o método e a construção disciplinar pautado no levantamento de dados e no rigor conceitual. Destarte, visava atribuir legitimidade acadêmica à disciplina de sociologia, daí a relação com a produção de Durkheim, posição dominante no contexto da institucionalização dessa área de estudos. Da sociologia alemã de Max Weber, Florestan Fernandes considerou as problemáticas da instauração da “ordem social competitiva”, da “ação social” e das estratificações, além da reflexão do sociólogo da Alemanha de Guilherme II o constructo dos “tipos ideais”. Em relação a Karl Marx, o professor pesquisador frisava que fora o tradutor do livro Crítica da economia política, ainda nos anos 40, e que se tratava de uma obra importante para a compreensão da história enquanto construção humana. Por fim, a absorção das reflexões funcionalistas se processou na constituição de instrumentos de trabalho, a partir das técnicas de observação e coletas de dados. 4 Desse modo, o “ecletismo dinâmico” expressado pelo scholar Florestan Fernandes visava a se contrapor às concepções naturalistas e fatorialistas de ciências sociais, além de garantir a respeitabilidade científica à sociologia. O trabalho de pesquisa de Fernando Henrique Cardoso na segunda metade dos anos 50 resultara na publicação conjunta com Octavio Ianni, que fora prefaciada por Florestas Fernandes, o orientador dos trabalhos, Cor e mobilidade social em Florianópolis: aspectos das relações entre negros e brancos numa comunidade do Brasil meridional, publicada em 1960. Tal investigação, proposta por Florestan e financiada pela Unesco, examinou a situação do negro na região Sul do país e serviu para desmistificar a veiculação de “democracia racial no Brasil”. Posteriormente, Cardoso defendeu a sua tese doutoral, em 1961, intitulada Formação e desintegração da sociedade de casta: o negro na ordem escravocrata do Rio Grande do Sul. Os estudos sobre o negro no Brasil produzidos e orientados por Florestan Fernandes demarcaram posições importantes na contraposição à ideia de “democracia racial” no país. Tais estudos, segundo Carlos Guilherme Mota, foram determinantes para a radicalização do scholar, pois quando passou a realizar essas pesquisas desacentuou-se a orientação funcionalista, visto que expressou a preocupação “com as relações de raça e classe”3. Ademais, o professor caminhou no desvendamento do capitalismo brasileiro. Pode-se perceber a consolidação da sociologia como área de estudo na academia universitária por meio do trabalho de pesquisa científica, tendo como protagonistas importantes nos anos 40 os professores Roger Bastide e Florestan Fernandes. Assim, constituiu-se um discurso hegemônico no campo teórico-investigativo na sociologia uspiana por meio da junção do cientificismo da sociologia francesa; a construção dos “tipos ideais” da sociologia weberiana; a compreensão da história enquanto construção humana, segundo o marxismo; e a quantificação dos dados empíricos de acordo com a sociologia norte-americana. 2. O grupo de estudo d’O capital e o marxismo adstringido Quanto à continuidade de sua formação intelectual após a fase vinculada a Florestan, Fernando Henrique Cardoso situou a importância do grupo de estudo formado por jovens professores da USP para o exame da obra O capital de Karl Marx. 3 Carlos Guilherme Mota. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). 3 ed. São Paulo: Ática, 1977, p. 182. 5 O seminário [sobre a obra de Marx] foi quase uma pós-graduação. Qual era seu sentido? Primeiro quem dava o tom acadêmico e de rigor era o [filósofo José Arthur] Giannotti. Cada um lia numa língua diferente, ao mesmo tempo, para cotejar, mas não era por espírito de religião política, era por religião acadêmica, rigor acadêmico. Eram discussões infindáveis, cada um com sua especialidade: um era historiador, outro antropólogo, outro economista, outro sociólogo, outros tinham vivência política, outros tinham vocação literária ou filosófica. Era como se fosse um college inglês: havia a conivência intelectual e depois o jantar. A convivência nos tornou muito próximos e teve uma influência direta na elaboração das nossas teses de doutoramento, em todos nós, inclusive na do Giannotti4. É importante retomar o contexto do Seminário de Marx organizado pelos intelectuais de São Paulo. Como se sabe, a história da esquerda no final dos anos 50 esteve marcada pelo reconhecimento, por parte da União Soviética, dos crimes de Stalin, o que impactou decisivamente as bases dos Partidos Comunistas no mundo todo. Na medida em que as lutas sociais entravam em ascensão verificou-se a participação das camadas intelectuais nos movimentos por transformações, o que em vários momentos se desdobrou na ligação de membros da intelligentsia aos Partidos Comunistas. Contudo, quando do refluxo dos embates ou nos momentos de “decepções políticas” com as contra-revoluções, denúncias do stalinismo ou derrota nas lutas de classes, percebeu-se o afastamento “dos homens de ciência” em relação à perspectiva do trabalho. Nesse sentido, no ano de 1958, em São Paulo a jovem intelligentsia uspiana, expressando a “insatisfação com a vulgata comunista” (Schwarz,1998: 103), tratou de buscar outros caminhos e debruçou-se na leitura dos textos do próprio Karl Marx, a começar pela obra magna, isto é, O Capital: crítica da economia política. A liderança intelectual do grupo ficou a cargo do filósofo José Arthur Giannotti, autor, segundo Antonio Rago Filho, “altamente influenciado pela fenomenologia e o estruturalismo francês”, e que foi “o artífice principal de um esforço analítico que visara a superar o pensamento de esquerda de baixo padrão desenvolvido por ideólogos hospedados no PCB, o mais influente partido de esquerda na década de 60, no Brasil”5. O grupo de estudo d’O Capital imprimiu uma nova forma de “marxismo” no Brasil ao balizar inúmeras investigações acadêmicas, pois segundo anunciou Giannotti no texto que demarcou a existência do núcleo: 4 Fernando Henrique Cardoso, Idem, p. 76. Antonio Rago Filho. “A filosofia de José Arthur Giannotti: marxismo adstringido e analítica paulista”. Cadernos de Ciências Sociais, Vol. I. Santo André – SP: FAFIL, 2005, p. 480. 5 6 Se levarmos em conta o extraordinário florescimento atual das ciências do homem, dificilmente cada pessoa seria capaz de dominar de uma forma crítica todos os terrenos explorados por Marx. Tendo isto em vista é que nos reunimos num grupo heterogêneo, que nos permitisse caminhar com certa segurança no interior dessas ciências, mas que nos custou horas a fio de irritantes discussões a fim de chegarmos a um vocabulário comum. Entretanto agora, depois de mais de um ano de seminário quinzenais, todos sentimos que estamos adotando uma nova maneira de compreender Marx e os problemas de nossa sociedade estudados por esse autor, o que sem dúvida deverá produzir seus frutos6. Propugnou-se uma “filosofia da práxis” desvinculada do movimento pela emancipação humana e da intervenção prática para a transformação da realidade, visto que “embora marxistizantes, não tínhamos prática de militância política”7. O pesquisador Luiz Fernando da Silva compreende a obra dessa união uspiana como sendo “marxismo acadêmico”, porque ocupavam espaços nas instâncias da universidade, mas não na luta de classes propriamente. Não operaram a transição da militância socialista para o centro de investigação ou ensino, como em diversos países. Ao passo que, “esse marxismo, no Brasil, surge e se consolida no próprio momento de afirmação da universidade, a partir dos anos 50, ao contrário de muitas universidades européias e americanas que há muito já tinham se consolidado”8. De acordo com Fernando Henrique Cardoso, as reflexões do seminário repercutiram enormemente no âmbito científico, haja vista que considera que: A introdução de Marx como tema de reflexão foi feita pela minha geração nos anos 60 e se deve a algo que ocorreu fora do âmbito acadêmico: um seminário sobre Marx organizado por José Arthur Giannotti, por mim e por um grupo de amigos9. Assim, na posição do sociólogo, os estudantes passaram a ler Marx na FFLCH da USP seguindo as reflexões do grupo de estudo encabeçado por Giannotti. Desse modo, surge a indagação sobre como teria sido interpretada a obra de Marx. A partir da produção influenciada intelectualmente pelo grupo do’O capital, notou-se o afastamento de Cardoso em relação ao mestre da “ciência empírica”. Na 6 José Arthur Giannotti. “Notas para uma análise metodológica de O Capital”. Revista Brasiliense, nº 29. São Paulo: Brasiliense, 1960, p: 61. 7 Fernando Henrique Cardoso. “Memórias da Maria Antonia”. In: Maria Cecília dos Santos (Org.). Maria Antonia: uma rua na contramão. São Paulo: Nobel, 1988, p. 31. 8 Luiz Fernando da Silva. Pensamento Social Brasileiro: marxismo acadêmico entre 1960 e 1980. São Paulo: Corações e mentes, 2003, p. 32. 9 Fernando Henrique Cardoso. Entrevista a Lourenço Dantas Mota. Brasília – DF: Senado Federal, 1985, p. 8. 7 versão de Fernando Henrique, tal fato se processou porque “Florestan não gostava do seminário de Marx”10. Outrossim, torna-se lídimo notar que os pesquisadores do grupo de estudo, de certo modo, por sua atitude, questionaram a “hegemonia intelectual” do mestre da sociologia uspiana, sobretudo na medida em que passaram a ocupar espaços na academia e a fazer circular suas próprias conclusões. Contudo, eles reverenciaram o procedimento de pesquisa instaurado por Florestan quanto à escrita pautada em metodologia, problematização, análise de dados e rigor científico em contraposição ao ensaísmo. Cardoso apresenta a ruptura com o mestre enquanto “um conflito de geração, afirmação de geração. O seminário significava nossa emancipação intelectual”11. Desse modo, emerge outra questão: Qual seria o ato fundante dessa nova geração intelectual da USP? Na resposta de Fernando Henrique Cardoso seria a recusa do funcionalismo. Destarte, a novidade instaurada pelos pesquisadores de sua geração nas Ciências Humanas teria sido a superação do funcionalismo e o aprofundamento do rigor metodológico. As principais obras exaltadas como referências a partir do Seminário foram: a pesquisa pós-doutoral de Cardoso, sobretudo o comentário ao procedimento metodológico contido na apresentação; do professor José Arthur Giannotti, que representava o “ângulo filosófico” referendado no artigo “Notas para uma análise metodológica de O Capital” (1960), foi destacada a sua tese Origens da dialética do trabalho (1966); e por fim, o doutorado do historiador Fernando Novais: Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808), reconhecido, segundo Roberto Schwarz, como “a obra-prima do grupo”12. Referente ao encaminhamento do procedimento analítico, Cardoso informou: “Após termos lido Marx, permanecia em nosso espírito a tensão entre ele e Max Weber e só fomos resolver esse problema com a leitura de Sartre, onde encontramos a pista para o que procurávamos, começando pela leitura de seu livro Questão do método”13. Torna-se importante observar que o sociólogo da USP considera a sua metodologia a partir da conciliação dos três autores citados. Embora recuse a ideia de uma antropologia fundante, Cardoso recupera de Jean-Paul Sartre a tentativa de “superar o 10 Fernando Henrique CARDOSO, (Entrevista). In: BASTOS, Elide Rugai et. alii (Org.). Op. cit., p. 77. Idem, Ibidem. 12 Roberto Schwartz. “Um Seminário de Marx”. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, n. 50, mar. 1998, p. 107. 13 Fernando Henrique Cardoso. Entrevista a Lourenço Dantas Mota, p. 8. 11 8 idealismo e o materialismo” suprimindo a objetividade histórica, além disso, opõe formalmente a ação prática à contemplação. 3. O marxismo adstringido e a produção sociológica Em 1962, juntamente com Florestan Fernandes, Cardoso protagonizou a formação de um centro de pesquisa agregado à cadeira de Sociologia I, disciplina que ministrava na USP. Segundo o intelectual, “Quando fizemos o Centro de Pesquisa em Sociologia Industrial e do Trabalho nós saímos da temática do negro para a temática dos empresários, do Estado, do Desenvolvimento etc”14. Os recursos para o Cesit foram conseguidos junto à Confederação Nacional da Indústria no momento em que era presidida pelo líder Fernando Gasparian, representante da burguesia nacionalista que apoiava o governo de João Goulart. A pesquisa de Cardoso no Centro de Estudo sobre Indústria e Trabalho foi materializada na obra Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil, sua tese de livre-docência, publicada em 1964. Estudo que prosseguiu a materialização de sua crítica teórica e prática às esquerdas da época e, ulteriormente, serviria de base para sua reflexão acerca da “teoria da interdependência” e do “desenvolvimento associado”. A produção de Florestan Fernandes e de seus orientandos no Cesit trouxe o universo das relações entre as classes sociais a partir de São Paulo, engajado na produção de estudos sobre trabalhadores, empresários, movimento sindical operário e patronal. No entanto, ao rememorar algumas teses defendidas no Centro, Cardoso enfatiza que “Achávamos assim que ia haver em São Paulo um desenvolvimento em condições mais ou menos semelhantes às da Europa”15, desse modo, expressou-se a falta de percepção sobre a especificidade do capitalismo brasileiro quanto à entificação do capitalismo e as conformações das classes sociais. Ainda assim, o aprofundamento dos estudos cesitianos foi fundamental para o delineamento de Florestan na obra A revolução burguesa no Brasil, por conseguinte, a conceituação de “capitalismo selvagem e difícil” foi utilizada para definir o processo social brasileiro. Diante de todo o exposto, emerge a dúvida: a superação do funcionalismo nas pesquisas em Ciências Humanas na Universidade de São Paulo teria, de fato, advindo do Seminário de Marx, como afirma Cardoso? 14 15 Fernando Henrique Cardoso, (Entrevista). In: Elide Rugai Bastos. et. alii (Org.). Op. cit., p. 75. Fernando Henrique Cardoso. Entrevista a Lourenço Dantas Mota, p. 11. 9 É inegável a presença do funcionalismo em Florestan Fernandes no livro Padrão de trabalho científico dos sociólogos brasileiros, publicado em 1958. Não obstante, segundo Carlos Guilherme Mota, o decurso intelectual de Florestan assumiu paulatinamente o seu viés marxista, ao passo que somou à construção da ciência social rigorosa os estudos dos problemas do país e a sociedade de classe. Destarte, o marco intelectivo foi a obra A sociologia numa era de revolução social, que veio a público como livro em 1962, a partir da coletânea de textos escritos entre 1959 e 1962, desabrochando, assim, o momento de ruptura. É importante lembrar que este foi também o contexto de radicalização da Revolução Cubana, que impulsionara decisivamente parte da intelectualidade latino-americana em direção à perspectiva social crítica. Portanto, pode-se perceber que na medida em que os pesquisadores uspianos se engajaram no estudo sobre as relações entre as classes sociais, concomitantemente ocorrera a decaída do funcionalismo. É importante destacar a sensibilidade de Florestan e Cardoso na percepção dos temas candentes ao Brasil do pós-Segunda Guerra, mas divulgar que o ex-aluno superou o mestre a partir do grupo d’O Capital é desconsiderar a evolução ativa do mestre da sociologia crítica a partir dos resultados das pesquisas no Cesit. Façamos uma breve sistematização do enredo deste texto. Tratou-se da formação de Fernando Henrique Cardoso enquanto cientista social no período que abarcou as décadas de 50 e 60. Verificou-se que no contexto do pós-Segunda Guerra emergiram novas profissões para as camadas intelectuais. Por um lado, doravante, não apenas a ciência do Direito discutiria as questões concernentes ao âmbito social na academia. Por outro, aos jovens com sensibilidade para o social, conformada no momento de vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial e, além disso, em meio à agenda progressista que se seguiu, ainda que não realizada, almejavam novas formas de atuação profissional e social. Setores desconfiavam da priorização nas atividades estatais e buscaram a investigação social. Em suma, a consolidação da sociologia se fez com a geração que assistiu ao conflito mundial e se interessou pelo desvendamento da realidade no contexto de vitória do campo democrático sobre o nazi-fascismo, mas de controle antirevolução socialista respaldado no stalinismo e na social-democracia do continente europeu. Com efeito, essa geração de sociólogos em São Paulo foi treinada por Florestan Fernandes, o grande instigador da sociologia científica no Brasil. Cardoso vinculou-se a 10 essa posição acadêmica preocupada com a análise de materiais empíricos, problematização e apresentação de resultados e conclusões pautadas em metodologia. Entretanto, conforme já se anunciou, a superação do funcionalismo nas ciências sociais não se fez independente do trabalho de Florestan, tampouco contra ele. Ao contrário, o autor de Sociologia numa era de revolução social rompeu com a escola funcionalista na medida em que examinou as classes sociais. Tal processo se aprofundou com as atividades no Cesit devido aos resultados das pesquisas coletivas, culminando na obra A Revolução Burguesa no Brasil. As atividades desenvolvidas no que se convencionou chamar de Seminário de Marx, protagonizado pelos jovens professores assistentes na USP e alguns de seus alunos, foram de grande importância para a práxis de Fernando Henrique Cardoso, visto que introduziram nas Ciências Sociais o “marxismo adstringido”, ou seja, retirou-se o conteúdo crítico revolucionário da obra do pensador alemão, transformando-o em um mero instrumento de análise de conjuntura na longa duração. Por meio da questão do método de Jean-Paul Sartre de compreensão da existência desconectado da ontologia do ser social e da transformação, o arcabouço teórico de Cardoso subordinando o legado de Karl Marx a Max Weber, devido ao entendimento de pluricausalidade, “ação social” e “ordem competitiva”. Instaurou-se o “pensamento dialético” que se aplica à realidade, ao invés de extrair a reflexão por seus elementos constitutivos, o estudo do Ente pelo próprio Ente.