Restrições Semânticas da Dativização em Português e em Inglês1 Eduardo Soares (UFRGS) Sergio Menuzzi (UFRGS) 1. Introdução Em português e em outras línguas românicas, há um processo pelo qual certos complementos verbais podem ser transformados em pronomes clíticos “dativos” junto ao verbo, cf. João deu um anel para Maria/João lhe deu um anel, processo a que chamaremos dativização. A doutrina tradicional não é suficiente para a caracterização precisa do processo, especialmente de suas restrições semânticas. Nosso objetivo aqui é contribuir para uma melhor caracterização destas restrições e das eventuais diferenças em relação às restrições encontradas em um processo semelhante encontrado em outra língua – a conhecida “alternância dativa” do inglês. Nossa conclusão será a de que ambos os processos envolvem a mesma idéia básica de “relação de posse” entre os complementos verbais; diferem, entretanto, quanto ao conteúdo temporal associado a esta relação. A dativização inglesa está sujeita à conhecida restrição do “possuidor prospectivo” e, por isso, limita-se em larga medida aos contextos que expressam “transferência de posse” (cf. Oerhle 1976, Pinker 1989, Gropen et al. 1989, entre outros). Em português, por outro lado, não há restrições ao conteúdo temporal da relação de posse, e o processo de dativização pode se aplicar simplesmente se houver “relação de posse” – passada, presente ou futura – entre os complementos verbais. Na norma culta brasileira da língua portuguesa, o sintagma preposicionado [SP] para os moradores da rua na frase (1a) abaixo pode ser expresso por um “clítico dativo” junto ao verbo, conforme o exemplo em (1b).2 (1) a. Esta árvore dava muitos frutos [SP para os moradores da rua]. b. Esta árvore lhes dava muitos frutos. Aos complementos como o SP acima, que podem ser "transformados" em pronomes átonos "dativos", chamaremos de dativizáveis; e ao argumento a que a regra se aplicou -- que foi "transformado" em pronome dativo -- chamaremos de dativizado. Os complementos dativizáveis -- isto é, os sintagmas preposicionados que podem sofrer o processo ilustrado em (1) -- são denominados, nas gramáticas tradicionais, de “objetos indiretos” (estrito senso).3 Para caracterizá-los, estas 1 [Apresentado no Encontro do GT de Teoria da Gramática da ANPOLL, realizado em novembro de 2009 na UnB, Brasília.] O presente trabalho é uma versão abreviada de um trabalho maior, em preparação, resultante de pesquisa sendo feita pelo primeiro autor sob orientação do segundo. A participação do primeiro autor é financiada por bolsa PIBIC CNPq/UFRGS, e a do segundo, por bolsa de pesquisa do CNPq (Processo no. 308909/2007-0). 2 Entendemos por “norma culta brasileira da língua portuguesa” o conjunto de variedades dominadas por pessoas escolarizadas, o que inclui tanto a variedade que falam quanto a que utilizam quando escrevem textos em que devem “adotar a língua padrão” (artigos em revistas e jornais, trabalhos científicos, etc.). 3 Fazemos a qualificação porque não há consenso terminológico nas gramáticas tradicionais correntes. Cunha & Cintra (2001, p. 136), Gama Kury (2006, p. 40) e Luft (2002, p. 58) seguem a NGB, chamando de “objeto indireto” todos os complementos preposicionados. Já Rocha Lima (2008, p. 243) e Bechara (2006, p. 241) caracterizam como “objeto indireto” somente os que podem ser substituídos por lhe(s). 1 gramáticas lançam mão de uma série de critérios, formais e semânticos. Do ponto de vista da forma, o critério básico é de que são introduzidos pelas preposições a e para;4 vê-se, no entanto, que esta não é uma restrição completamente válida, pois os pronomes átonos dativos podem ser utilizados com verbos que permitem outras estruturas preposicionadas. Por exemplo, (2) demonstra a possibilidade de uma estrutura com a preposição em ser expressa pelo clítico (variedade mais coloquial), e (3), com a preposição com (variedade mais formal): (2) a. João me deu um empurrão. b. João deu um empurrão em mim. c. * João deu um empurrão para mim. (3) a. Todo ano sucede-lhe alguma tragédia... b. Todo ano sucede alguma tragédia com ele... c. ?? Todo ano sucede alguma tragédia para ele... Os demais critérios sintáticos e semânticos das gramáticas tradicionais também apresentam problemas, razão pela qual a caracterização tradicional das construções dativas não é satisfatória. Uma maneira de melhorarmos nossa compreensão do processo de dativização em português é procurar nele semelhanças com processos que envolvam “objetos indiretos” em outras línguas – especialmente aquelas que foram extensivamente estudadas por lingüistas. Neste sentido, evidentemente não há melhor lugar para começar do que pela literatura sobre a famosa alternância dativa do inglês. 2. A dativização em inglês e algumas de suas restrições Contrariamente à dativização em português, o processo em inglês possui uma extensa literatura. A regra inglesa, tal como a portuguesa, afeta uma subclasse dos sintagmas preposicionados; mais do que isso, afeta sintagmas que são regidos pelas preposições to e for, que usualmente são traduzidas por para ou a em português; e, também não por acidente, a regra afeta verbos como give, buy, take, que correspondem a dar, comprar, trazer -- isto é, também aqui há grande sobreposição entre os dois processos. Por analogia com o português, chamaremos de sintagmas, argumentos, etc., dativizáveis os sintagmas regidos por to e for que entram na alternância dativa do inglês; e de sintagma, etc., dativizado aquele a que o processo se aplicou. À diferença do processo em português, na dativização em inglês sintagma preposicionado torna-se o objeto direto do verbo -- e pode ser tanto por um pronome quanto um SN pleno, conforme (4b,c); (4d) mostra que o SN dativizado pode ser passivizado, atestando seu caráter de objeto direto: (4) a. b. c. d. John gave a book to Mary. John gave her a book. John gave Mary a book. Mary was given a book. É de se observar que, embora a dativização em português não transforme o objeto indireto em objeto direto, mas apenas em pronome átono, isto por si já é um modo de torná-lo um "complemento mais próximo do verbo". Sendo átono, o pronome se prende a uma das formas do complexo verbal -- uma "aproximação formal" 4 Esta observação parece ser consenso, cf. Bechara (2006, p. 241); Rocha Lima (2008, p. 244) e Gama Kury (2006, p.40). 2 semelhante à que ocorre em inglês. Além disso, há sincretismos significativos entre as formas pronominais para objetos diretos e indiretos: me, te e nos são formas comuns a objetos diretos e indiretos; e, embora lhe e o se oponham historicamente e no padrão escrito, em muitos dialetos correntes, se não na norma falada, lhe tornou-se a forma átona de tratamento e, como tal, é usada como objeto indireto e direto (cf. O senhor sabia que o João lhe viu ontem no supermercado?). Assim, a dativização em português é uma regra em que o objeto indireto adquire características de objeto direto. Retornando à discussão da literatura sobre a dativização em inglês, é importante mencionarmos que, em larga medida, os trabalhos que estudaram o processo em inglês concluíram que a estrutura preposicionada e a dativa estão associadas a representações de significado diferentes, mas relacionadas: são padrões sintáticos que refletem representações semânticas diferentes, mas regidas pela mesma semântica básica dos verbos. No que segue, retomamos algumas das observações de Oerhle (1976) (no geral, confirmadas em Pinker 1989, Gropen et al. 1989, entre outros) acerca da dativização em inglês, para a seguir utilizá-las para uma comparação com a dativização em português. Oerhle (1976) é um dos primeiros a apontar que as duas estruturas envolvidas na alternância dativa não são semanticamente idênticas. Ele observa, em particular, que são justamente estas diferenças que explicam por que, às vezes, uma das estruturas não possui correspondente na outra, como nos exemplos em (5) e (6) abaixo: (5) a. The movie gave me the creeps. b. * The movie gave the creeps to me. "O filme me deu medo/*deu medo para mim" (6) a. He gave me a terrible insomnia. b. * He gave a terrible insomnia to me. "Ele me deu uma terrível insônia/*deu uma terrível insônia para mim" Note-se que (5) e (6) mostram que há casos em que a estrutura dativa é possível, mas não possui correspondente na estrutura preposicionada. Isso, segundo Oerhle (1976), demonstra que não é possível tratar a alternância dativa como uma "transformação" -- a estrutura preposicionada não é a "estrutura profunda" da dativa. Em relação à estrutura dativa, a observação fundamental de Oerhle é a de que está sujeita a uma condição que veio a ser conhecida como a restrição do possuidor prospectivo (Pinker 1989, Gropen et al. 1989): em geral, só podem ser dativizados argumentos que, antes do evento denotado pela sentença, não "possuem" o objeto direto e que, com o evento, passam a "possuí-lo" -- isto é, só são dativizáveis argumentos que podem estabelecer uma relação que seja concebível como "relação de posse".5 Esta condição explica várias das restrições do processo em inglês. Em primeiro lugar, explica por que lugares não são dativizáveis, como o contraste em (7) mostra: um encaixotador pode vir a "ter (ou estar com) a posse" de um pacote, mas a fronteira (de um país) não: 5 Segundo Oerhle (1976, p. 31), “[i]t has often been noted that there is a connection between a large subset of the verbs which occur in the dative constructions and concepts involving ‘possession’. Yet the concept ‘possession’ is itself a diffuse one.” Assim, tanto em inglês quanto em português, é difícil delimitar-se precisamente a noção de "posse" relevante. Aqui usamos como critério operacional a possibilidade de a relação ser expressa por meio de algum "verbo de posse", como ter ou possuir. 3 (7) a. I sent the package to the boarder/border. b. I sent the boarder/*the border a package. "Eu enviei o pacote para o encaixotador/para a fronteira" A mesma condição é capaz, ainda, de explicar por que somente alguns benefactivos podem entrar na regra, conforme vemos em (8) vs. (9) abaixo: (8) a. I bought a car for Mary./ I bought a Mary a car. "Eu comprei um carro para Maria" b. I baked a cake for Mary./ I baked Mary a cake. "Eu assei (fiz, preparei) um bolo para Maria" (9) a. I washed the car for Mary./ * I washed Mary the car. "Eu lavei o carro para Maria" b. I fixed the car for Mary./ * I fixed Mary the car. "Eu consertei o carro para Maria" Note-se que, em (8) e (9) acima, o componente importante é o da posse prospectiva, isto é, futura. Apenas em (8a,b) o benefício obtido pelo objeto indireto com o evento é, precisamente, "vir a ter, ou usufruir, da posse" do objeto direto; em (9a,b) o benefício reside em que algo de positivo acontece a algo que já pertence ao objeto indireto -- isto é, (9a,b) o objeto indireto é o possuidor atual, e não um possuidor prospectivo, do objeto direto. A mesma condição ainda explica por que eventos malefactivos -- em que o objeto direto não é beneficiado, mas sim prejudicado -- não podem ser expressos pela dativização inglesa (Pinker 1989, Gropen et al. 1989): (10) a. * John ate me the lunch. "João me comeu o almoço" b. * John broke me the car. "João me quebrou o carro" Oerhle ainda observa um outro elemento de oposição entre as duas construções alternantes do inglês: se a sentença envolve ou não transferência de posse. Na construção dativa, o evento denotado pela sentença é de causação de posse, e não necessariamente de transferência: assim, enquanto se pode dizer que houve transferência de posse em exemplos como (7b) ou (8a), o mesmo não parece ser verdade para (8b). Segundo Oerhle, a construção preposicionada com to, ao contrário, exige justamente que haja transferência de posse: isto é, só podem aparecer na forma preposicionada com to verbos cujo significado denota um evento que tem como um estado inicial uma "relação de posse" R entre o sujeito e o objeto direto e, como resultado, a mesma relação R, agora entre o objeto indireto e o objeto direto. Esta condição, observa Oerhle, explica os contrastes em (5) e (6) acima: as sentenças dativas são boas porque expressam a simples "causação de posse", e as construções preposicionadas ruins precisamente porque não há "transferência de posse" no evento descrito -- sensações, idéias, etc., não podem ser "transferidas", apenas "transmitidas". De fato, Oehrle observa que (5) e (6) são casos particulares de uma restrição mais geral, abarcada por sua vez pela restrição da transferência: entidades cuja posse é inerente a um indivíduo -- isto é, de posse inalienável -- não podem ser "transferidas"; logo, não podem ocorrer na construção com to: 4 (11) a. John gave me a hand (and saved me). b. * John gave a hand to me (and saved me). "João me deu uma mão (e me salvou)" A mesma condição explica uma outra restrição no uso da construção com to: give, usado como um light verb, aparece apenas na construção dativa: (12) a. John gave the table a kick. / *John gave a kick to the table. "João deu um chute na mesa" b. John gave the rope a pull. / *John gave a pull to the rope. "João deu um puxão na corda" Nos exemplos acima, o verbo give expressa apenas a idéia de causação: o evento causado é expresso pelo nome núcleo do objeto direto ("dar um chute" é "chutar"), o sujeito é o agente do evento causado, e o argumento dativizado é o paciente. Evidentemente, nem o sujeito nem o argumento dativizado entram numa "relação de posse" com o objeto direto, mas antes mantêm relações temáticas com ele; e é claro que não há "transferência" da relação de agente do sujeito para o argumento dativizado. (Observe-se que os usos em (12) violam a restrição do possuidor prospectivo -possivelmente por neles give expressa apenas causação, e não "causação de posse".) Finalmente, a restrição da transferência de posse explica ainda um outro fato do inglês: o de que beneficiários não aparecem com a preposição to, mas com for. Os exemplos em (8) são de verbos que não acarretam posse prévia do sujeito sobre o objeto a ser usufruído pelo beneficiário ("comprar um carro para alguém" não significa "comprar um carro para si e dá-lo, depois, para alguém"). E os exemplos em (9), muito menos: como vimos, neles o beneficiário já é o "possuidor atual" do objeto direto. As observações de Oerhle (1976) que acabamos de sintetizar serviram de base para diversos trabalhos subsequentes, como Pinker (1989), Gropen et al. (1989), Goldberg (1995), entre outros, todos postulando o significado de causação de posse para a construção dativa, e de causação de movimento para a construção com a preposição to. Portanto, as observações acima constituem um núcleo relativamente consensual na caracterização da alternância dativa do inglês.6 4. Restrições da dativização em português Utilizemos as restrições do inglês para circunscrever melhor o domínio da dativização em português. A primeira observação é que em português também há uma restrição sobre a construção dativa semelhante à da posse prospectiva: obviamente lugares também não são dativizáveis em português: (13) a. João enviou um pacote para a Maria. / João lhe enviou um pacote. b. João enviou um pacote para São Paulo / *João lhe enviou pacote. (14) a. João jogou a bola para o Pedro. / João lhe jogou a bola. b. João jogou a bola para fora de casa. / *João lhe jogou a bola. Entretanto, a condição não é exatamente como a do inglês, e deve ser menos restritiva: tanto benefactivos como malefactivos podem ser expressos pela dativização: 6 Dos trabalhos citados, Goldberg (1995) oferece uma caracterização ligeiramente diferente: a construção dativa não significaria causação de posse, mas de recebimento. Levin & Rappaport-Hovav (2008) e Levin (2008), baseadas em Jackendoff (1990), reavaliam, entretanto, as propostas aqui mencionadas. 5 (15) a. b. c. d. O João nos fez/preparou uma janta deliciosa. O João me consertou/ajeitou o chuveiro O João me sujou/bagunçou o quarto. O João me arrebentou/estragou o carro. A nosso ver, as construções benefactivas e malefactivas em (15) lembram de imediato um outro uso generalizado da construção dativa em português que não encontra correspondente em inglês: em português e muitas outras línguas românicas, a dativização é possível quando o dativo é simplesmente o possuidor atual do objeto direto -- isto é, independentemente de veicular a idéia de benefacção ou malefacção: (16) a. O médico tomou o pulso do doente. / O médico tomou-lhe o pulso. b. O professor corrigiu a prova do aluno. / O professor corrigiu-lhe a prova. A leitura benefactiva/malefactiva parece, então, surgir do fato de o agente fazer algo de positivo/negativo com aquilo "que pertence" ao dativo: (17) a. Minha terapeuta sempre me elogiou a sinceridade. b. Minha professora me reprovava os argumentos. [benefactivo] [malefactivo] Os exemplos sugerem que a generalização básica, para o português (e talvez as demais línguas românicas), é a de que a construção dativa está a serviço de expressar uma "relação de posse" qualquer entre o objeto indireto e o direto -- seja ela futura ou atual, envolva ela a idéia de benefacção, malefacção, ou não. De fato, esta idéia parece confirmada quando notamos a construção dativa pode ser usada com verbos que denotam perda de posse, e o objeto indireto tem função temática de origem: (17) a. Maria me roubou cem reais/o coração. b. Os assaltantes me tiraram tudo -- dinheiro, sapatos, roupas... c. Aquele trabalho estava me tirando o sono/sugando a criatividade. Assim, acreditamos que, quanto à restrição semântica principal sobre a construção dativa, português e inglês diferem basicamente quanto ao conteúdo temporal da relação de posse estabelecida entre o objeto indireto e o direto: em inglês, a relação de posse é causada pelo evento denotado pelo verbo e, portanto, é prospectiva; em português, não há a restrição de causação e, portanto, o que importa é que haja uma relação de "posse" -- seja ela passada, atual ou futura.7 Consideremos, finalmente, a restrição da transferência de posse sobre a construção preposicionada. Novamente o que vemos é que o português apresenta restrição semelhante: de fato, tal como inglês, nem construções em que o objeto direto é de "posse inerente", ou "inalienável", do objeto indireto, nem construções com o verbo dar utilizado como "verbo leve" podem ser expressas com as preposições para ou a. Isso aparece nas traduções de (5) e (6) acima; abaixo fornecemos outros exemplos: (18) a. A aula de natação lhes deu fome/ *deu fome para as crianças. b. A aula de natação deu fome nas crianças. (inglês: *give hunger in) 7 Oehrle (1976, p. 93-98) observa que alguns poucos "verbos de perder", como cost e lose, admitem a construção dativa em inglês. Outros seriam take (somebody) time/effort e last (somebody) time (Hornby 1980, p. xxix). Além de constituir uma classe pequena, estes verbos possuem outras propriedades incomuns: não possuem a construção preposicionada correspondente (seja com from, to ou of); o argumento dativo não é objeto direto, pois não é passivizável. Em inglês, "verbos de perda" em geral possuem um argumento origem (como steal/rob/take/get something from somebody) e não admitem a construção dativa -- como nossa hipótese prediz. Evidentemente, este ponto exige mais estudo. 6 (19) a. A Maria me deu um beijo/ *deu um beijo para mim. b. A Maria deu um beijo em mim. (inglês: *give a kiss in/on) Por outro lado, os exemplos acima mostram que, ainda que não apresente a construção com para ou a, o português (brasileiro, ao menos) permite uma variante preposicionada para a construção dativa -- a variante com a preposição em, sem correspondente em inglês. Esta diferença pode ser simplesmente resultado da existência de um frame sintático específico, idiossincrático, para construções com dar leve em português. Por outro lado, preposições são os elementos gramaticais que variam em significado de língua para língua. No caso das diferenças entre em e in, uma explicação plausível pode ter relação com o fato de que em pode expressar "locativos afetados", como no caso dos "verbos de contato" em (20); em inglês, estes argumentos são expressos normalmente por objetos diretos (Jackendoff 1990, p. 106-112): (20) a. João bateu em Maria. / John hit (*in) Mary b. João tocou/encostou em Maria. / John touched (*in) Mary Isso sugere que em, quando usado com dar leve, não expressa meta, mas simplesmente "argumento afetado", o que inclui pacientes e experienciadores: (21) a. A Maria deu um empurrão/soco/chute em mim. b. O Paulo deu uma mordida/fervida/ralada no nabo. c. Aquelas imagens deram calafrios/náusea/dor de cabeça em mim. O ponto importante destas observações é que, se o complemento preposicionado na construção com dar leve não é meta, então esta construção não envolve a idéia de transferência. Isso confirma a observação de Oehrle de que a construção dativa só possui correspondente com preposições como to em inglês -- e para e a em português -se a construção puder expressar a idéia de "transferência" do objeto direto. 5. Conclusão Neste pequeno trabalho preliminar, procuramos mostrar que a dativização do português -- a transformação dos objetos indiretos regidos por para ou a em pronomes clíticos dativos como lhe, me, etc. -- apresenta restrições semânticas semelhantes às da conhecida alternância dativa do inglês. Especificamente, vimos que a dativização portuguesa apresenta algo como as restrições observadas por Oehrle -- a da restrição do possuidor prospectivo sobre a construção dativa, e a da transferência de posse sobre a correspondente preposicionada. A análise dos fatos do português sugere que, quanto a construção dativa, a principal diferença entre as duas línguas diz respeito ao conteúdo temporal da relação possessiva entre objeto direto e indireto -- ela é restrita à posse futura em inglês, e em português não possui restrição temporal. E, quanto à construção preposicionada, aparentemente o português permite correspondência com a construção dativa em vários contextos em que não há transferência por uma outra propriedade, de natureza lexical: o português (brasileiro) possui uma preposição, em, que permite expressar a idéia de argumento afetado -- preposição sem correspondente em inglês. Bibliografia BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006. CUNHA, C. & CINTRA, L. F. L. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. GOLDBERG, A. E. Constructions: A Construction Grammar Approach to Argument Structure. Chicago, IL: University of Chicago Press, 1995. 7 GROPEN, J. et al. Learnability and Acquisition of Dative Alternation. Language 65:2, 203-257, 1989. JACKENDOFF, R.Semantic Structures. Cambridge, MA: MIT Press, 1990. KURY, G. Novas lições de português pela análise sintática. São Paulo: Ática, 2006. LUFT, Celso P. Moderna Gramática do Português. Porto Alegre: Globo, 2002 LEVIN, B. Dative Verbs: A Crosslinguistic Perspective. Lingvisticæ Investigationes 31, 285-312, 2008. LEVIN, B.& RAPPAPORT-HOVAV, M. The English Dative Alternation: The Case for Verb Sensitivity. Journal of Linguistics 44, 129-167, 2008. OERHLE, Richard. The Grammatical Status of the Dative English Alternation. Tese de doutorado), MIT, Cambridge, Estados Unidos, 1976. PINKER, Steven. Learnability and Cognition. Massachusetts: MIT Press, 1989. ROCHA LIMA, C. H. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2008. 8