Análise Social - Amazon Web Services

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Noêmia Lazzareschi
Análise Social
Edição revisada
IESDE Brasil S.A.
Curitiba
2012
© 2007 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por
escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.
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L461a
Lazzareschi, Noêmia
Análise Social / Noêmia Lazzareschi. - 1.ed., rev. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2012.
108p. : 24 cm
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-3045-3
1. Sociologia. 2. Ciências sociais. 3. Sociologia do trabalho. 4. Sociologia organizacional. I. Título.
12-6040.
CDD: 301
CDU: 316
23.08.12 03.09.12
038481
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0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Noêmia Lazzareschi
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre
em Ciências Sociais do Trabalho pelo Institut
Supérieur du Travail da Université Catholique
de Louvain (Bélgica). Bacharel e Licenciada em
Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo
(USP). Professora do departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP).
sumário
sumário
A promessa e as tarefas das Ciências Sociais 9
11 | Condições históricas do nascimento das Ciências Sociais
17 | As Ciências Sociais
As sociedades industriais capitalistas 23
23 | Emile Durkheim
25 | Max Weber
26 | Karl Marx
28 | A estrutura das sociedades industriais capitalistas
30 | As empresas
39
As diferentes formas de administração do
processo de trabalho no capitalismo moderno 39 | A acumulação primitiva do capital
40 | A divisão tecnológica do trabalho
41 | Taylorismo e fordismo
45 | Impactos do taylorismo/fordismo sobre o trabalhador
48 | Os Anos Dourados
A crise econômica mundial, a globalização 59
da economia e a reestruturação produtiva 61 | A crise da economia mundial
63 | A globalização da economia
69 | A reestruturação produtiva ou a nova lógica organizacional
71 | O desemprego e as novas relações de trabalho
87 | Sindicalismo no Brasil
Novas competências profissionais 97
Apresentação
Análise Social
Historicamente situados, o mundo ­empresarial
e o mundo do trabalho repercutem em seu
interior as condições econômicas, políticas,
­sociais e culturais hoje universalmente existentes, ­devendo ser considerados um microcosmos
delas derivado. Frutos sociais do processo histórico mundial, são, no entanto, ao mesmo tempo
seus produtores, irradiando universalmente as
suas inovações tecnológicas e organizacionais
das quais surgem novos produtos e serviços que
inundam os mercados e determinam, em grande
parte, novos estilos de vida. Processo social universal e mundo empresarial e do trabalho estão,
pois, em relações recíprocas, constituindo uma
só realidade social, objeto de estudo das Ciências
Sociais.
Assim, a disciplina Análise Social tem como
objetivo apresentar os subsídios teóricos produzidos pelas Ciências Sociais e, em especial, pela
Sociologia, para a compreensão das inter-relações entre a sociedade e o mundo empresarial e
do trabalho.
A promessa e as tarefas
das Ciências Sociais
Wright Mills (1965, p. 10), um dos mais conceituados sociólogos norte-americanos do século XX, no livro A Imaginação Sociológica, chama a ­atenção
para o fato de que
[...] raramente [os homens] têm consciência da complexa ligação entre suas vidas e o
curso da história mundial; por isso, os homens comuns não sabem, quase sempre, o que
essa ligação significa para os tipos de ser em que se estão transformando e para o tipo de
evolução histórica de que podem participar. Não dispõem da qualidade intelectual básica
para sentir o jogo que se processa entre os homens e a sociedade, a biografia e a história, o
eu e o mundo.
A qualidade intelectual básica necessária para que os homens compreendam
a história, a biografia e as íntimas relações entre elas, dentro da sociedade,
é a “imaginação sociológica”. Essa qualidade permite a cada um de nós se
compreender como produto e produtor da vida social e, por isso, se compreender
como ser historicamente condicionado, cujas possibilidades e limitações na
vida são, em grande parte, circunscritas pela estrutura da nossa sociedade
num determinado momento da história mundial.
A conscientização política é a expressão primeira, e talvez a mais
importante, da “imaginação sociológica”. Quem a possui sabe não poder
traçar livremente o próprio destino, cujo desenho é esboçado pelas
condições sociais existentes, criadas e transmitidas pelas gerações passadas,
mas reproduzidas, reformadas ou transformadas por decisões políticas da
geração presente, das quais certamente exigirá participar para poder exercer
algum controle sobre o curso de sua própria vida.
Possibilitar o desenvolvimento da imaginação sociológica é, segundo
Wright Mills, a promessa das Ciências Sociais. Para cumpri-la, investigam,
analisam, explicam – norteadas pelos procedimentos metodológicos
e teóricos definidores do conhecimento científico – a estrutura social,
demonstrando os princípios que a constituem, os mecanismos de sua
manutenção e mudança e a psicologia de homens e mulheres que dela
emerge. A compreensão da estrutura social é condição necessária para
situar historicamente o objeto de estudo de cada uma das Ciências Sociais,
por mais específicos que sejam os problemas e as perspectivas teóricas que
definem o eixo de suas preocupações particulares.
9
A promessa e as tarefas das Ciências Sociais
Representando o consenso entre os mais diferentes autores sobre as tarefas e os objetivos que as Ciências Sociais se autoimpõem, Wright Mills considera como a mais importante tornar claros e transparentes os valores sociais
aceitos, pois que os problemas ou questões sociais resultam de sua transgressão, cuja origem deve ser buscada nas contradições da estrutura social.
Uma questão social é um assunto público: é um valor estimado pelo público que está
ameaçado. [...] A questão, na verdade, envolve quase sempre uma crise nas disposições
institucionais, e com frequência também aquilo que os marxistas chamam de“contradições”
ou “antagonismos”. (WRIGHT MILLS, 1965, p. 15)
São muitas as questões sociais que enfrentamos: a violência urbana, os
conflitos armados, a miséria absoluta de milhões de pessoas, a favela, o
­desemprego, o abandono de crianças, a prostituição infantil, as drogas, o
analfabetismo etc. que ferem os valores centrais das sociedades humanas:
o respeito à vida e à dignidade humana, distanciando-nos da realização do
sonho de instauração de uma sociedade justa, na qual, de fato, possam se
realizar os princípios de Igualdade, Liberdade e Fraternidade, herdados da
Revolução Francesa, e que inauguraram o mundo moderno.
O estudo científico da estrutura social é, pois, o ponto de partida não só
do reconhecimento dos problemas sociais que nos afligem, mas, sobretudo, o
ponto de partida da descoberta de suas origens e dos meios disponíveis para
solucioná-los, ou pelo menos minorá-los, no contexto do jogo de interesses
de diferentes grupos e classes sociais das decisões políticas. Mas a imaginação
sociológica, que desperta e aprofunda a conscientização política, torna-se o vetor
do processo político democrático, impedindo que os homens se transformem
em simples marionetes da história e objeto do poder autoritário de alguns.
Para Wright Mills, as Ciências Sociais tornaram-se o denominador comum de
nosso período cultural. De fato, evidencia-se universalmente o reconheci­mento
da importância do desenvolvimento da análise científica da vida social, pois pudemos constatar, sobretudo a partir da Segunda Guerra ­Mundial, que a utilização política dos conhecimentos produzidos pelas ciências físico-químico-naturais pode gerar mais problemas humanos e sociais do que realmente contribuir
para resolver os já existentes. Não obstante, até aquele momento, a humanidade
acreditou que o conhecimento por elas produzido era o mais eficaz e eficiente
instrumento de que dispunha não só para melhorar as suas condições de vida,
mas também para solucionar todos os graves e persistentes problemas sociais.
Por isso, as ciências naturais receberam especial atenção ao longo de mais de
um século no mundo moderno, sem que se prestasse atenção às prováveis consequências dramáticas do uso político que delas se pode fazer.
10
A promessa e as tarefas das Ciências Sociais
Com efeito, basta lembrar a tragédia provocada pela bomba atômica
em Hiroshima e Nagasaki; a ameaça constante de utilização de armas
nucleares; o sofrimento de milhões de famílias devido à introdução de
sofisticadas tecnologias que destroem milhares de postos de trabalho e
geram desemprego em massa; os problemas éticos e morais originários
das potencialidades da engenharia genética, a devastação da natureza,
a poluição do ar, sonora e visual etc. para se dar conta da necessidade
de se avaliar continuadamente os efeitos sociais e humanos, éticos e
morais, positivos e negativos, construtivos e destrutivos, da utilização do
conhecimento produzido por aquelas ciências.
E essa avaliação depende não só da imaginação sociológica, mas da
­produção intelectual dos cientistas sociais, cujas obras podem ser consideradas como a consciência crítica do processo histórico universal, contribuindo
para o desenvolvimento da consciência crítica de toda a humanidade.
São essas as principais tarefas e objetivos das Ciências Sociais, cujos estudos
estendem-se inevitavelmente ao mundo das empresas e do trabalho, ajudando
os administradores de empresas a atuarem profissionalmente com maior clareza
e responsabilidade social, sem perder de vista os seus objetivos específicos de
promoção da eficiência do processo produtivo e de prestação de serviços.
Condições históricas do nascimento das
Ciências Sociais
A análise científica da vida social data do século XVIII e deve ser considerada como o produto intelectual mais importante das transformações econômicas, políticas, sociais e culturais em curso desde o Renascimento e que
se cristalizaram no Ocidente com a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, marcos do surgimento do mundo moderno, isto é, da consolidação da
ordem social capitalista.
a) A Revolução Industrial
A invenção da máquina a vapor na Inglaterra de 1750 significou o início de
uma revolução nas técnicas de produção, o que possibilitou a ­mecanização
do processo de trabalho em muitos ramos da atividade econômica, já na
­primeira metade do século XIX, tendo significado também uma revolução
na organização da produção que, a partir de então, passou a ser realizada no
interior de empresas com caráter permanente e racional.
11
A promessa e as tarefas das Ciências Sociais
Ao propiciar o aumento da produtividade do trabalho, a redução dos
custos de produção e, como decorrência, o barateamento das mercadorias,
a Revolução Industrial permitia vislumbrar o nascimento de uma sociedade
de abundância e mais justa, graças às possibilidades econômicas de uma
distribuição mais igualitária da renda.
Rapidamente irradiada para o continente, a Revolução Industrial, contrariamente a todas as expectativas, gerou problemas sociais de extrema gravidade que se alastraram, também rapidamente, por toda a Europa.
Em primeiro lugar, provocou o êxodo rural de enormes contingentes
de trabalhadores entusiasmados com as perspectivas de melhoria de suas
condições de vida. A consequência inevitável, porém, foi o desenvolvimento
acelerado da urbanização não planejada, cujo resultado se expressava nas
péssimas condições habitacionais dos trabalhadores, na imundície das
cidades industrializadas, na falta de fornecimento de água, nas epidemias
de cólera e de tifo que se espalharam por todo o continente, dizimando
milhares de pessoas.
Segundo Eric J. Hobsbawm (1977, p. 225), o mais renomado historiador
do século XX:
Só depois de 1848, quando as novas epidemias nascidas nos cortiços começaram a
matar também os ricos, e as massas desesperadas que aí cresciam tinham assustado os
poderosos com a revolução social, foram tomadas providências para um aperfeiçoamento
e uma reconstrução urbana sistemática.
Em segundo lugar, os baixos salários e o desemprego de milhares de
traba­lhadores, pois [até a década de 1840]
[...] grandes massas da população continuavam até então sem ser absorvidas pelas novas
indústrias e cidades, como um substrato permanente de pobreza e desespero, e também as
grandes massas eram periodicamente atiradas ao desemprego pelas crises que, até então,
mal eram reconhecidas como temporárias e repetitivas. (HOBSBAWM, 1977, p. 228)
A criminalidade e a violência urbana, o alcoolismo, a prostituição, o suicídio
constituíam o quadro de deterioração da vida social, aprofundado pela enorme
desigualdade social. Ainda nas palavras de Eric J. Hobsbawm, (1977, p. 227)
A época em que a Baronesa de Rothschild usou um milhão e meio de francos em joias
no baile de máscaras do Duque de Orleans, em 1842, era a mesma em que John Bright
assim descreveu as mulheres de Rochdale: “2 mil mulheres e moças passaram pelas
ruas cantando hinos – um espetáculo surpreendente e singular – chegando às raias do
sublime. Assustadoramente famintas, devoravam uma bisnaga de pão com indescritível
sofreguidão, e se o pedaço de pão estivesse totalmente coberto de lama seria igualmente
devorado com avidez.”
12
A promessa e as tarefas das Ciências Sociais
Em terceiro lugar, o rígido controle e disciplina impostos pelos patrões
que tornavam infernal a vida dos trabalhadores das fábricas, submetidos a
jornadas de trabalho de 16 horas e a todo tipo de castigos e multas.
A Revolução Industrial não foi, portanto, apenas uma revolução econômica, que se tornou um marco na história da humanidade ao abrir as portas
do crescimento e desenvolvimento econômicos por suas inovações tecnológicas e organizacionais. Foi, também, responsável pelo aparecimento de
novos e contundentes problemas humanos e sociais, além de ter dado início
ao fim do antigo regime, com a entrada definitiva de novos personagens no
cenário social: o empresário capitalista e o trabalhador proletário que passaram a constituir as duas grandes classes sociais da moderna sociedade capitalista nascente, permanentemente em conflito de interesses por ocuparem
posições diferentes no processo de produção da riqueza. O capitalista é o
proprietário dos meios de produção, isto é, do capital, da riqueza que gera
mais riqueza – terra, tecnologia e trabalho concentrados na empresa por ele
administrada – e o proletário é proprietário apenas de força de trabalho, isto
é, de capacidade para trabalhar, produzir e reproduzir em escala ampliada
o capital, obrigando-se a vender a sua única propriedade no mercado de
­trabalho em troca de um salário com o qual deverá sustentar sua prole.
Por essa razão, a Revolução Industrial não pode ser lembrada apenas
como revolução econômica, devendo ser considerada uma verdadeira revolução da estrutura social que precipitou as transformações políticas, jurídicas
e ideológicas consumadas pela Revolução Francesa.
b) A Revolução Francesa
A Revolução Francesa de 1789 foi o acontecimento de maior repercussão
no Ocidente por ter destruído definitivamente o antigo regime absolutista
e a supremacia de uma aristocracia decadente e por ter criado as condições
necessárias e suficientes para o surgimento do Estado Moderno e a consolidação do regime capitalista de produção.
Foi uma revolução conduzida pela burguesia enriquecida, inconformada
com os consideráveis privilégios e honrarias sociais concedidos aos nobres e
ao clero, e sequiosa de poder para, sobretudo, pôr fim aos altos impostos e
às rígidas regulamentações da política mercantilista vigente que lhe restringiam a liberdade econômica. E pôde contar com o apoio imediato dos camponeses exasperados com o pagamento de um conjunto de obrigações existentes desde a época feudal que lhes limitavam sobremaneira os ganhos.
13
A promessa e as tarefas das Ciências Sociais
Grupos de interesses econômicos contrariados encontraram nas ideias
dos filósofos iluministas e dos economistas o arsenal intelectual para defla­
grar uma revolução que atingiu mortalmente as instituições políticas e
­jurídicas vigentes pela força da nova ideologia, inspirada principalmente nas
obras de: Locke (1632-1704), Voltaire (1694-1778), Montesquieu (1689-1755),
os grandes críticos da monarquia absolutista e pais da teoria política liberal,
e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), fundador da teoria política democrática moderna, obras que se constituíram no fundamento teórico no qual se
assenta o Estado Moderno.1
1
As obras mais importantes de John Locke são: Trata­
dos sobre o Governo; Cartas
sobre a Tolerância; e Tratado
sobre a Racionalidade do
Cristianismo. As de FrançoisMarie Arouet Voltaire são:
Cartas ­Filosóficas; Candido;
Ensaio sobre os Cos­tumes. A
principal obra de Charles
de Secondat, barão de Montesquieu é Espírito das Leis.
As de Jean-Jacques Rousseau são: O Contrato Social;
­Discurso Sobre as Ciências
e as Artes; Discurso Sobre a
Origem e os Fundamentos
da Desigualdade Entre os
Homens; e Emílio.
Os economistas contribuíram com a crítica ao mercantilismo que
impunha severas restrições à atividade econômica com sua política de
amplo controle estatal sobre o comércio, favorecendo as exportações
e restringindo as importações para manter uma balança comercial que
garantisse o enriquecimento do tesouro do país, e amplo controle da
produção doméstica, com leis que regulamentavam os salários, as condições
de emprego, a qualidade dos produtos etc.
A crítica à política mercantilista encontrou na obra de Adam Smith, A
­Riqueza das Nações, de 1776, a sua expressão mais contundente e qualificou
o autor como o pai do liberalismo econômico. A teoria por ele ­elaborada
defendia o livre mercado por sua fundamentação na competição entre
os produtores que, movidos pelo desejo egoísta de obter sempre mais
lucros, garantiriam não só a produção do demandado pelos ­consumidores,
como também o aprimoramento da qualidade dos produtos, a busca da
eficácia e eficiência do processo produtivo para a redução dos custos e o
­barateamento das mercadorias, assegurando, dessa maneira, o desenvol­
vimento eco­nômico continuado.
Assim, intelectualmente fundamentados, os revolucionários de 1789
elaboraram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em setembro
daquele ano, reunindo nesse documento as ideias que comandaram a transformação da sociedade francesa e mais tarde de todo o mundo ocidental.
Nas palavras de Eric J. Hobsbawm (1977, p. 77), “esse documento é um
­manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não
um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária”, porque,
apesar de seu primeiro artigo declarar que “os homens nascem e vivem livres
e iguais perante as leis”, prevê a existência de distinções sociais, ainda que
“­somente no terreno da utilidade comum”. Mas, mesmo assim, não se pode
deixar de considerar a importância social, política, econômica e cultural desse
14
A promessa e as tarefas das Ciências Sociais
documento porque, de fato, ele inaugura o início do processo de resgate
do conceito grego de cidadão, reformulando-o e ampliando-o, condição
­necessária para o surgimento do Estado Moderno, isto é, do Estado ­Racional,
fundado no Direito Racional e na autoridade legal-racional, administrado
burocraticamente e, segundo Max Weber (1864-1920), um dos clássicos da
Sociologia, “único terreno em que o capitalismo moderno pode prosperar”
(WEBER, 1980, p.160).
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seus demais artigos,
foi decisiva para o advento das instituições políticas, jurídicas e econômicas
necessárias e suficientes para o desenvolvimento do regime capitalista de
produção e do Estado democrático, ao declarar a propriedade privada um
direito natural, sagrado, inalienável e inviolável, como também a liberdade de
expressão, a tolerância religiosa e a liberdade de imprensa, ao mesmo tempo
que determinava ser o povo a fonte de toda soberania. A partir dessa declaração,
o povo foi conquistando aos poucos o direito de se organizar politicamente,
quer em partidos políticos, quer em movimentos sociais, não só para eleger seus
representantes, mas também para contestar e reivindicar melhores condições
de vida, ponto de partida para a efetivação de mudanças na estrutura social.
Não obstante a importância desses acontecimentos, cumpre ressaltar que
tanto a Revolução Industrial quanto a Revolução Francesa, como também
as Ciências Sociais, são filhas do processo de racionalização da cultura
ocidental, iniciado dois séculos antes, e cujas expressões mais significativas
são a própria ciência e a filosofia iluminista.
c) O Racionalismo
O Racionalismo tem origem na chamada revolução copernicana do
século XVI que, além de Copérnico (1473-1543), é obra também de Kepler
(1571-1630) e Galileu (1564-1642), cujas ideias, investigações e estudos
sobre o universo se constituíram nas primeiras e mais contundentes
contes­tações à autoridade da Igreja Católica Apostólica Romana como
fonte única do conhecimento oficialmente aceito, até então considerado
sagrado, absoluto, incontestável. Fizeram nascer a convicção de que os
homens, ­dotados de razão e de sentidos pela graça de Deus, são capazes de
desvendar os mistérios de Sua criação e explicá-los corretamente.
No século XVII, René Descartes (1596-1650), matemático e físico, tornou-se o
maior expoente do racionalismo, ao considerar a razão como a única fonte segura
de conhecimento. No Discurso do Método, afirmava ser necessário não só duvidar
15
A promessa e as tarefas das Ciências Sociais
da veracidade dos conhecimentos existentes, como também das impressões
sensoriais, pois nada garante que os nossos sentidos sejam confiáveis.
Para ele, a reflexão filosófica deve partir de verdades ou axiomas simples
e evidentes por si mesmos, como “Penso, logo existo”, e, por dedução matemática, como na geometria, chegar a um conjunto perfeitamente lógico de
conhecimentos sobre indagações específicas.
Com Descartes, o processo de secularização da cultura ganha fôlego
porque o método racionalista por ele elaborado foi o passo decisivo
para o desenvolvimento da crítica racional às verdades que sustentavam
a ordem estabelecida. Os resultados da aceitação desse método como
instrumento único para a construção do conhecimento se expressaram na
emancipação do pensamento das verdades religiosas, na renúncia a uma
visão sobrenatural para explicar os fatos e na contestação dos fundamentos
da sociedade feudal, suas instituições e costumes. Em outras palavras:
o resultado do racionalismo foi a consagração do livre pensamento,
livre da visão de mundo dominante até então, livre para ensaiar novas e
revolucionárias construções.
O Iluminismo ou Filosofia das Luzes, cuja manifestação suprema se deu
na França do século XVIII, foi o ponto culminante dessa revolução intelectual
em curso que abalou definitivamente os alicerces culturais da sociedade
medieval europeia.
A crítica feroz que seus principais representantes desfecharam contra
a sociedade medieval também se assentava na convicção de que os
procedimentos intelectuais que possibilitaram o desenvolvimento das
ciências naturais deveriam ser aplicados na explicação da realidade social
como fundamento racional para a sua rejeição. E esses procedimentos não
se limitavam à aplicação do método dedutivo de investigação legado por
Descartes, mas também do método empirista desenvolvido por Francis Bacon
(1561-1626, cuja obra principal é Novum Organum), baseado na observação
e na experimentação para a descoberta das leis universais invariáveis que
regem a ordem natural e a ordem social.
Pode-se afirmar que da conjugação do método racionalista e do método
empirista advém a concepção moderna de ciência, hoje universalmente
aceita como o caminho para a busca da verdade e, portanto, um dos
valores centrais das sociedades ocidentais. E dessa conjugação surgiram
trabalhos extraordinários no campo das ciências físico-químico-naturais
ainda nos séculos XVII e XVIII. Basta registrar os nomes de Isaac Newton
16
A promessa e as tarefas das Ciências Sociais
(1643-1727) e Leibniz (1646-1716), no campo da Física e da Matemática;
de Boyle (1627-1691) e de Lavoisier (1743-1794), no campo da Química; e
de Lineu (1707-1778) e de Buffon (1707-1788), no campo da Biologia, para
compreender as origens das convicções dos iluministas de que a Razão e a
Ciência poderiam permitir o exercício de um certo controle humano sobre o
mundo e, fundamentalmente, sobre a realidade social, agora compreendida
como construção humana e não mais como realização da vontade divina e,
portanto, passível de crítica, de contestação e de transformação.
Preparava-se, assim, o caminho para o processo revolucionário de instauração
do mundo moderno e para o desenvolvimento das Ciências Sociais.
As Ciências Sociais
Não há fronteiras rígidas entre as Ciências Sociais, pois todas, como vimos,
têm por objeto de estudo o comportamento social determinado pelo processo
histórico universal. No entanto, cada uma delas focaliza um aspecto específico
desse comportamento, analisando-o de uma perspectiva própria, em torno
de conceitos particulares que definem a sua construção teórica. Mas todas as
Ciências Sociais se beneficiam dos conhecimentos produzidos pelos autores
de cada uma, num íntimo entrelaçamento que permite o enriquecimento e
aprofundamento da compreensão da vida social. Embora se possa distinguir a
especificidade da produção de cada uma das Ciências Sociais, nela se identifica
a contribuição do trabalho das demais, pelo menos no que diz respeito à
utilização dos principais conceitos que indicam o seu campo de estudo
particular e os problemas fundamentais de que se ocupam.
A Economia Política, cuja origem é a Escola Clássica da Inglaterra com a
publicação das obras de Adam Smith, Ricardo (1772-1823, autor de Princípios
de Economia Política) e Malthus (1766-1834, autor de Ensaio Sobre a População),
estuda as ações sociais voltadas à produção, circulação, distribuição e consumo
de bens e serviços em seu contexto institucional nacional e, hoje, internacional.
A Ciência Política analisa as instituições políticas que regulamentam a
distribuição do poder, as diferentes formas de governo, a administração
do Estado, a luta pelo poder, o comportamento político em suas diferentes
manifestações: político-partidário e eleitoral, as atitudes populares
diante das questões políticas, a participação em movimentos sociais,
enfim, o processo político em geral, inclusive no seio das organizações
e empresas.
17
A promessa e as tarefas das Ciências Sociais
A História é a ciência que estuda o processo de produção da vida (isto
é, das condições materiais de existência e da consciência, expressa no
­conjunto de crenças, valores, padrões de comportamento), na expectativa
de ­apreendê-lo em suas diferentes manifestações e especificidades ao longo
do tempo. Detém-se sobretudo na análise daqueles acontecimentos que
decisi­vamente contribuíram para a sua transformação com o surgimento de
novas instituições sociais.
A Psicologia Social investiga as relações recíprocas entre personalidade e
estrutura social, demonstrando a influência do ambiente social na formação
da personalidade e, como, em contextos grupais, os processos sociais são por
ela influenciados, como, por exemplo, na ação da multidão, tal como tumultos
ou linchamentos, nos estudos de opinião pública, nos movimentos sociais,
nas atitudes grupais em relação aos preconceitos de qualquer natureza etc.,
ou seja, como as reações coletivas alteram a conduta individual e interferem
na vida social.
A Antropologia focaliza seus estudos na construção da cultura, ou seja,
no mundo dos significados e dos valores sociais predominantes nas mais
diferentes sociedades, inclusive nas sociedades ágrafas, ou sem grafia,
analisando-as em todos os seus aspectos, como conjuntos. Por isso, as
fronteiras entre a Antropologia e a Sociologia são muito tênues.
A Sociologia, ciência que subsidia o curso Análise Social, investiga, analisa,
explica e interpreta a estrutura social como um todo, levando em consideração
todos os aspectos que a constituem, o econômico, o político, o cultural, o
histórico, o psicológico, como também os demais fenômenos que interferem
na configuração da vida social, como a demografia, a ocupação do espaço físico
etc. É a ciência das relações sociais norteadas pelas instituições, ou padrões
de comportamento, que expressam os valores, crenças, ideias, sentimentos,
compartilhados pelos membros de uma sociedade, e princípios sobre os quais
se assenta a organização da vida social em todas as suas dimensões: econômica,
política, social, cultural, determinando-lhe a estrutura e assegurando-lhe uma
ordem. Por isso, muitos autores se referem à Sociologia como a ciência que
procura descobrir, descrever, explicar e compreender a ordem que caracteriza
a vida social, ou seja, os padrões de comportamento que a caracterizam e que
“permitem a corrente rotineira da vida social” (Inkeles, 1964, p. 47), permitindo,
portanto, prever-se o seu curso e, ao mesmo tempo, indicar as manifestações
de desordem, de conflito e de mudança, pois a realidade social é processo.
18
A promessa e as tarefas das Ciências Sociais
Ampliando seus conhecimentos
Estudando Sociologia
(Giddens, 2005)
A imaginação sociológica nos permite ver que muitos eventos que
parecem dizer respeito somente ao indivíduo, na verdade, refletem questões
mais amplas. O divórcio, por exemplo, pode ser um processo muito difícil para
alguém que passa por ele – o que Mills chama de “problema pessoal.” Mas o
divórcio, assinala Mills, é também um problema público numa sociedade
como a atual Grã-Bretanha, onde mais de um terço de todos os casamentos
termina dentro de dez anos. O desemprego, para usar outro exemplo, pode ser
uma tragédia pessoal para alguém despedido de um emprego e inapto para
encontrar outro. Mesmo assim, isso vai bem além de uma questão geradora
de aflição pessoal, se considerarmos que milhões de pessoas numa sociedade
estão na mesma situação: é um assunto público, expressando amplas
tendências sociais.
Tente aplicar esse tipo de perspectiva à sua própria vida. Não é necessário
pensar apenas em acontecimentos preocupantes. Considere, por exemplo,
por que você está virando as páginas deste livro – por que você decidiu
estudar Sociologia. Você pode ser um estudante de Sociologia relutante,
fazendo o curso somente para preencher créditos exigidos. Ou você pode
estar entusiasmado para descobrir mais sobre o assunto. Quaisquer que
sejam as suas motivações, você provavelmente tem muito em comum, sem
saber necessariamente, com outros que estudam Sociologia. Sua decisão
individual reflete sua posição numa sociedade mais vasta.
As seguintes características se aplicam a você? Você é jovem? Branco?
Você vem de um background profissional ou de colarinho-branco? Você já
teve, ou ainda tem, um trabalho de meio-turno para aumentar seus ganhos?
Você quer encontrar um bom trabalho quando terminar sua educação, mas
não está especialmente empenhado em estudar? Você não sabe realmente
o que é sociologia mas acha que tem algo a ver com como as pessoas se
comportam em grupo? Mais de três quartos de vocês responderão “sim” a tais
questões. Estudantes universitários não são o típico da população como um
todo, mas tendem a ser provenientes de ambientes mais favorecidos. E suas
atitudes geralmente refletem aquelas sustentadas por amigos e conhecidos. Os
ambientes sociais dos quais viemos têm muito a ver com os tipos de decisões
que achamos apropriadas.
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A promessa e as tarefas das Ciências Sociais
Mas suponha que você respondeu “não” a uma ou mais dessas questões.
Você pode ter vindo de um grupo minoritário ou de um passado de pobreza.
Você pode ser alguém de meia-idade ou mais velho. Mesmo assim, outras
conclusões ­provavelmente se seguem. Você provavelmente teve de se esforçar para chegar onde está; talvez você tenha tido de superar reações hostis
de amigos e de outros quando contou a eles que estava pretendendo ir à
faculdade; ou talvez você esteja combinando Ensino Superior com paternidade em tempo integral.
Embora sejamos influenciados pelos contextos sociais em que nos encontramos, nenhum de nós está simplesmente determinado em nosso comportamento por aqueles contextos. Possuímos e criamos nossa própria individualidade. É trabalho da Sociologia investigar as conexões entre o que a
sociedade faz de nós e o que fazemos de nós mesmos. Nossas atividades tanto
estruturam – modelam – o mundo social ao nosso redor como, ao mesmo
tempo, são estruturadas por esse mundo social.
O conceito de estrutura social é importante na Sociologia. Ele se refere
ao fato de que os contextos sociais de nossas vidas não consistem apenas
em conjuntos aleatórios de eventos ou ações; eles são estruturados ou
padronizados de formas distintas. Há regularidades nos modos como nos
comportamos e nos relacionamentos que temos uns com os outros. Mas
a estrutura social não é como uma estrutura física, como um edifício que
existe independentemente das ações humanas. As sociedades humanas
estão sempre em processo de estruturação. Elas são reestruturadas a todo o
momento pelos próprios “blocos de construção” que as compõem – os seres
humanos como você e eu.
Atividades de aplicação
1. O filme O Nome da Rosa, encontrado nas prateleiras de filmes de ação
ou de suspense das locadoras de dvds, foi inspirado no livro de mesmo nome de autoria do italiano Umberto Ecco. O livro apresenta, de
maneira romanceada, o início do processo de secularização, intelectualização e/ou racionalização da cultura ocidental. Indique os indícios
desse processo referindo-se ao conjunto das cenas ou a cenas específicas do filme.
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A promessa e as tarefas das Ciências Sociais
2. Explique a seguinte afirmação: “A imaginação sociológica capacita seu
possuidor a compreender o cenário histórico mais amplo, em termos
de seu significado para a vida íntima e para a carreira exterior de
­numerosos indivíduos. Permite-lhe levar em conta como os ­indivíduos,
na agitação de sua experiência diária, adquirem frequentemente uma
consciência falsa de suas posições sociais. Dentro dessa agitação, busca-se a estrutura da sociedade moderna, e dentro dessa estrutura são
formuladas as psicologias de diferentes homens e mulheres. Através
disso, a ansiedade pessoal dos indivíduos é focalizada sobre fatos
explícitos e a indiferença do público se transforma em participação
nas questões públicas” (MILLS, 1965, p. 11-12).
3. Apresente, explicando, as condições históricas que permitiram o surgimento das Ciências Sociais.
4. Qual o objeto de estudo das diferentes Ciências Sociais? É possível
­delimitar fronteiras entre elas? Justifique sua resposta.
Referências
GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.
HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1977.
INKELES, Alex. O que É Sociologia? São Paulo: Pioneira, 1974.
WEBER, Max. História Geral da Economia. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores).
WRIGHT MILLS, C. A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.
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