UMA CARTA Zaqueu Machado A Felipe Leal Quisera

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UMA CARTA
Zaqueu Machado
A Felipe Leal
Quisera escrever uma carta
para consolar meu coração.
Haveria de consolá-lo
como a um amigo desiludido,
de fazê-lo chorar
como a um menino perdido.
Quisera escrever-lhe uma carta,
porque a vida, essa que irrompe,
continuamente, como sangue
num córrego de delírio e caos,
essa que grita com dor de montanha
no ventre adormecido do vale,
essa, ainda maior que as mandíbulas de um gigante,
deflagrou-me, fez-me silêncio em pleno vôo de relva
tocada pelo vento, canto de anêmonas, solidão de vela
à crispação marinha...
Quisera escrever uma carta
para desenganar meu coração.
Que vivesse livre seus sonhos
mais loucos e íntimos,
que cuspisse no cálice,
que adorasse o mistério,
que se desabotoasse sem freio,
que se encantasse pelo ínfimo,
que alimentasse o excluído,
que vivesse como um cavaleiro,
que narrasse o incidente mais preclaro,
que amasse com fome de beijo,
que se condoesse de si mesmo
para compreender seu irmão.
Quisera escrever-lhe uma carta,
uma longa carta na qual coubessem
apenas os desejos livres de uma criança.
(Outro dia, a Marina me pediu uma coisa inusitada:
que eu fosse vento para o dente-de-leão.)
Uma carta escrita por uma criança:
suas letras de torres e árvores,
seus desenhos limpos e abertos
que guardam o maior de todos
os segredos: a face incomunicável de Deus.
Quisera escrever uma carta
para advertir meu coração
de todo sofrimento, de toda dor,
de toda fome, sede, angústia, desilusão,
para que não sofresse tanto e risse mais,
para que compusesse mais versos e canções
com a voz desafinada e rouca, não importa,
para que se lambuzasse mais e medisse menos,
para que penetrasse no reino de um livro
e se encantasse com as palavras e as libertasse
de seu estado de palavra-tinta, palavra-forma,
palavra-coisa, palavra-nada, palavra-palavra...
Eu lhe suplicaria que lesse com ternura
– e até mesmo certa comiseração –
os amores obliterados mas inconsúteis
de Florentino Ariza e Fermina Daza
em tempos de cólera,
de palavra-cólera.
Quisera escrever-lhe uma carta,
uma longa e desmedida carta de amor...
São Paulo, 2 de outubro de 2009.
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