4. CONSIDERAÇÕES SOBRE A TRANSFERÊNCIA EM PSICANÁLISE: NOTAS DE UMA VINHETA CLÍNICA Maikon Cardoso do Carmo1 Michaella Carla Laurindo2 Nesse estudo propomos um retorno à bibliografia psicanalítica que permita ilustrar o termo transferência em um estudo de caso atendido pelo estagiário que se apresenta, sob supervisão da docente, na abordagem psicanalítica no Núcleo de Práticas em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, campus Toledo. O caso é referente a uma mulher (Cássia) de quarenta e seis anos, mãe de dois filhos – Agostinho e Pedro3, que contam com dezoito e catorze anos de idade respectivamente. Cássia demandou atendimento para o filho Pedro, porém nas entrevistas iniciais com outra estagiária, a paciente anuncia o desejo de também ser submetida à análise. Dessa maneira, Cássia é encaminhada para o estagiário que vos escreve. A transferência foi um componente de destaque nas meras cinco sessões analíticas desenvolvidas até o momento da confecção desse escrito e, por isso, nos dedicamos a tratar exclusivamente deste conceito, já que ela [a transferência] é, de acordo com Freud (1996e), a maior expressão de resistência no tratamento, bem como condição para que ele ocorra. A RELAÇÃO TRANSFERENCIAL E SEUS PARADOXOS Em A Dinâmica da Transferência, Freud (1996e) infere que cada indivíduo elege nos primeiros anos de vida um método específico de experimentar a vida psicossexual4 consigo mesmo e com o outro – geralmente com aqueles que exercem as funções paternas e maternas. Essas experiências primevas produzem no sujeito um clichê estereotípico que constantemente será repetido e investido a outros. Em outras palavras, as redes de ideias e afetos (libido) que foi investida nos imagos paternos e/ou fraternos na primeira infância, ligam-se a outros no decorrer da vida do sujeito, na busca das mesmas satisfações que (supostamente) tivera nessas primeiras experiências psicossexuais. A análise e o analista não escapam a essas ligações, que já nos autorizamos a chamar de 1 Acadêmico do 10º. Período de Psicologia, é estagiário clínico na abordagem psicanalítica no Núcleo de Práticas em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Escola de Saúde e Biociências - Campus Toledo/PR. Contato: [email protected] 2 Psicóloga clínica. Especialista em Psicanálise pela Universidade de Marília. Mestre em Filosofia pela PUCPR. Docente e Coordenadora do Curso de Pós Graduação em Psicanálise Clínica – De Freud a Lacan PUCPR. Docente e Orientadora de Estágio em Psicologia Clínica, na abordagem Psicanalítica do curso de Psicologia da PUCPR Campus Toledo. Contato: [email protected] 3 Todos os nomes são fictícios para preservar a identidade dos envolvidos. 4 Freud (1996f) concebe a psicossexualidade com algo para além da sexualidade genital. Ainda que esta última esteja subordinada à primeira, a psicossexualidade se trata de um componente psíquico, a própria pulsão, que é a inscrição limite entre o somático e o mental. A pulsão pode ser compreendida como um estímulo interno que exerce pressão no organismo exigindo a satisfação (FREUD, 1996g). ROSA, M. I. P. D. (org.) 1º Simpósio de Psicologia, v.1, n.1, 2015. Curitiba : Editora Champagnat. Página 1 transferência. O paciente repete no analista o mesmo investimento libidinal dos clichês estereotípicos: “[...] a catexia incluirá o médico numa dessas ‘séries’ psíquicas que o paciente já formou” (FREUD, 1996e, p. 112). Lacan (1971-72) articula que só há entrada no processo analítico a partir do estabelecimento de uma transferência. Inicialmente trata-se de uma transferência de suposto saber, pois o paciente supõe que o saber sobre o seu sintoma está no analista. Vejamos uma demanda transferencial desse tipo de Cássia ao estagiário: 5 P : “Então, eu vi um negócio em uma minissérie americana e pensei em falar com você, porque me chamou atenção...” E: “Fale.” P: “Foi assim: Na minissérie a mulher estava no parto e não podia anestesiar ela quando ela estava sentindo as contrações, porque faria mal ao bebê. Aí eu pensei em falar para você, eu não sei se você sabe, mas daí você perguntava para a sua professora, para ver se o Pedro é assim por causa disso, porque eu lembro que eu fui anestesiada e eu já estava sentindo contrações. Me lembro que eu passei muito mal no parto. Aí eu queria saber de você se isso tem alguma coisa a ver...” Cássia supõe que o saber sobre o sintoma do filho, e concomitantemente seu próprio sintoma, está no estagiário ou na professora. Quanto ao analista, frente a tais demandas, Freud (1996e) afirma que este não deve frustrá-las ou saná-las, mas sim assumir a postura de um douto ignorante, ou seja, ser cônscio que de fato o analista nada sabe sobre o outro. Nesse sentido, Lacan afirma o seguinte quanto ao analista que responde à essas demandas: “Assim, se ele [o analista] fala com o sujeito, que aliás sabe tanto quanto ele, este não pode reconhecer no que ele diz a verdade nascente de sua fala particular” (LACAN, 1998c, p. 361). Vejamos a continuação do trecho da análise que exemplifica a maneira pela qual o analista não assume o lugar do saber e não preenche de sentido aquilo que é da paciente: E: “E tem?” P: “Então, eu perguntei à você.” E: “E eu te pergunto: tem a ver?” P: “Eu não sei, eu lembro que no dia o Agostinho estava muito doente, aí eu estava em casa e comecei a sentir as dores do parto e o Agostinho estava muito mal, mas eu não podia levar ele no hospital, aí eu pedi que a minha vizinha levasse ele, ele gostava dela. Aí eu fui para o hospital ter o Pedro, mas estava muito preocupada com o Agostinho, aí não sei se é por isso que o Pedro é assim.” [...] P: “Será que o Pedro é assim por que eu pensava no Agostinho na hora do parto?” 5 Sendo “P” a fala da paciente e “E” a fala do estagiário. ROSA, M. I. P. D. (org.) 1º Simpósio de Psicologia, v.1, n.1, 2015. Curitiba : Editora Champagnat. Página 2 Nota-se que caso o estagiário tivesse respondido à questão da paciente, essa importante construção que ela faz provavelmente ficaria ausente do discurso: “O Pedro pode ser assim porque enquanto ele nascia eu pensava em meu outro filho doente (Agostinho)”. E essa sim é uma construção de fundamental relevância, e não se o estagiário sabe ou não se a causa do sintoma é a anestesia no período de contrações pré-natal. Componentes da transferência positiva e negativa também ficaram bem evidentes no discurso. A transferência positiva refere-se à ligação de sentimentos afetuosos e fraternos ao analista6. Ao passo que a transferência negativa está relacionada aos sentimentos hostis e de agressividades que possam vir a se ligar à figura do analista. É um equívoco pensarmos que apenas a transferência positiva é relevante ao tratamento. Freud (1996e) afirma que ambas podem ocorrer no decurso do tratamento, e que tanto a transferência negativa quanto à positiva fazem parte do material a ser analisado. Vejamos um exemplo, já no término da segunda sessão com a paciente, em que já evidencia a transferência positiva ao estagiário: E: “Nos vemos na semana que vem Cássia.” P: “Até, muito obrigada Maikon.” (Paciente acaricia o ombro do estagiário ao se despedir) Ao aceitar o caso, o autor que aqui escreve foi advertido pela professora supervisora que a estagiária que atende o filho de Cássia percebeu certa agressividade da paciente nas entrevistas iniciais para o atendimento do seu filho. Agressividade que não foi percebida nas sessões iniciais. Muito pelo contrário, apenas a transferência positiva se fez expressiva nesse momento inicial. Entretanto, em certo momento sua hostilidade finalmente - devo dizer - se fez ouvir. Na terceira sessão, a paciente comete o que a podemos considerar lapsos de linguagem: P: “[...] Às vezes eu fico pensando no jeito quando morri...” E: “Quando você morreu?” P: Paciente fica alguns segundos em silêncio antes de respirar profundamente e falar muito irritada: “Olha, eu acho que hoje nós não estamos nos entendendo! Aquela hora eu não tinha falado ‘problema de saúde’, eu falei ‘plano’. E agora de novo... Eu não disse morri, eu disse morreria, é que eu puxo o ‘R’. Eu não sei se isso é uma estratégia de psicólogo. Mas eu não disse morri! Disse morreria!” [...] P: “Mas eu não falei morri, eu não falei! Agora, não sei se isso é uma estratégia para você me deixar louca, mas eu não disse isso!” Pode ser que o leitor questione - tal qual a paciente sugeriu - que o estagiário possa ter se equivocado no que ouviu. E de fato é um questionamento pertinente e fundamentado, afinal Freud (1996b) nos alerta para o risco 6 Freud (1996e) afirma que a transferência de sentimentos afetuosos está intimamente ligada a desejos de ordem psicossexual e eróticos inconscientes. ROSA, M. I. P. D. (org.) 1º Simpósio de Psicologia, v.1, n.1, 2015. Curitiba : Editora Champagnat. Página 3 de que a ambição terapêutica7 do analista interfira na análise de maneira que o analista fique tendencioso a ouvir além daquilo que é dito pelo paciente. No entanto, Em Construções em Análise, Freud (1996h) afirma que são as confirmações indiretas da paciente que atestarão a veracidade da intervenção do analista. Ou seja, se o paciente concordar ou não com a intervenção, pouco nos dirá quanto à validade, mas sim se a paciente produz mais associações a partir daquilo que o analista exclama, ou se responde com outro lapso de linguagem, ou ainda se há uma reação terapêutica negativa, ou seja, um agravamento em seu estado geral. Poderíamos dizer, a priori, que a paciente produziu todas essas confirmações - com exceção da reação terapêutica negativa - mas ainda assim nega ferozmente o que o estagiário construiu sobre o que foi dito por ela. Além da troca de “morri” por “morreria”, anteriormente a paciente havia tido a intenção de falar “plano de saúde” quando na verdade disse “problema de saúde”. Mostra-se muito irritada com o que o estagiário diz. E, além dessas confirmações produz mais associações análogas a essa: P: “É, mas o ‘plano’ e o ‘problema’ eu tenho certeza que não falei, acho que ‘morri’ posso ter falado por causa do meu sotaque, mas o ‘plano’ eu tenho certeza que falei certo. Mas eu troco mesmo algumas palavras, às vezes eu troco o nome do Pedro e do Agostinho, eu vou falar alguma coisa e falo outra, então, mas é normal, assim...Todo mundo faz isso, acho que é normal, não acho que seja alguma doença, ou sei lá o quê.” (grifo nosso) Nesse sentido, temos todos os motivos para acreditar que, de fato, a paciente cometeu um lapso e que o equívoco do estagiário não está na escuta, mas talvez na insistência da interpretação, pois Freud (1996a) adverte que o momento mais assertivo para o analista intervir é somente aquele cuja transferência está bem estabelecida. Mas provavelmente o leitor observará o vínculo temático entre o lapso aqui cometido pela analisante e suas primeiras associações sobre o parto de Pedro, ou seja, interrogações sobre o que o filho representa em seu desejo – questão crucial a ser tratada e não considerada como mera “coincidência” ou “equívoco de linguagem”. Os aspectos transferenciais já se mostraram presentes no início da análise. Manifestações da transferência de suposto saber, positiva e negativa para com o estagiário puderam ser observadas claramente. Ambas possuem sua relevância para o tratamento, a transferência positiva evidencia que já há certa ligação da paciente ao estagiário e ao tratamento. Alguns exemplos dessa transferência nos mostra isso, como é o caso do trecho em que a paciente, ao assistir uma série na televisão a faz pensar sobre o que é dito nas sessões. A transferência negativa nos evidencia 7 O termo pode ser compreendido naquilo que Lacan (1998c) põe em questão: o desejo do analista. A ânsia do analista de que o paciente “se cure” e produza a todo o momento materiais cada vez mais elaborados na análise é tão impertinente quanto os anseios de educá-lo (FREUD, 1996b). O desejo do analista na forma de ambição terapêutica acaba por direcionar o discurso do paciente à vias em que o desejo da analista opera, e não daquilo que é do desejo do analisado, ofuscando a escuta do psicanalista, fazendo-o ouvir apenas aquilo que o seu desejo lhe permite (LACAN, 1998c). ROSA, M. I. P. D. (org.) 1º Simpósio de Psicologia, v.1, n.1, 2015. Curitiba : Editora Champagnat. Página 4 que algo se movimentou na paciente em relação à intervenção do estagiário e que, de fato, os lapsos de linguagem cometidos por esta realmente dizem algo do inconsciente e de sua queixa. Entretanto não há muito que possamos conjecturar nesse momento, pois não dispomos de materiais suficientes para elaborar qualquer construção a respeito do significado que tais lapsos assumem na subjetividade da paciente. O que nos resta são apenas perguntas para a sequência deste processo analítico. 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Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard. Rio de Janeiro: Imago, 1996e. Vol. XII. LACAN, J. O Saber do Psicanalista. [1971-72] Trad. Denise Coutinho. Publicação para circulação interna. Recife: Centro de Estudos Freudianos de Recife, sem data. _______. Variantes do Tratamento Padrão. [1955] In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998c. ROSA, M. I. P. D. (org.) 1º Simpósio de Psicologia, v.1, n.1, 2015. Curitiba : Editora Champagnat. Página 5