Como os cães e gatos se comportam? Ansiedade, medo

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Ciência
comportame
Como os cães e
gatos se comportam?
Ansiedade, medo,
liderança e distúrbios.
Eles sofrem calados e
acabam desenvolvendo
doenças. Os médicos
veterinários estão
preparados para falar a
língua deles?
› Mariana Cavalcanti, de São Paulo (SP)
[email protected]
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ental
D
ia 24 de junho, às 8h29min,
a redação da Cães&Gatos
VET FOOD recebe um e-mail.
Dentre os vários que chegam diariamente
de leitores, um pedido de ajuda para um
cachorro de quatro anos e meio, com problemas comportamentais, chama a atenção
da equipe.
Bom dia. Sei que
estamos longe,
mas peço ajuda
por não encontrar em minha cidade, alguém que
pudesse me auxiliar. Tenho um
cachorro Cocker com vira-lata,
de quatro anos e meio, castrado
e extremamente agressivo. Todos
dizem que o erro foi meu ao criá-lo de forma terna dentro de casa,
mas, como já tive outro cachorro,
criado do mesmo modo e era um
doce, um amor, nunca imaginei
que este, pego desde filhote,
pudesse ser assim, tão bravo. Por
meio da médica veterinária, ele
toma Fluoxetina 7 mg todos os
dias para acalmar um pouco, mas,
mesmo assim, ele continua muito
agressivo, chegando a me morder,
inclusive minha mãe várias vezes.
São mordidas de agressividade,
então, resolvi morar em um sítio
para que tivesse espaço e se exercitasse. Ele corre para todo lado, mas
continua violento. Dorme no meu
quarto e ninguém o tira de lá. Agora deu para pular na minha cama
à noite e, se meu marido chama
atenção, ele rosna e tenta morder.
Estamos vivendo um pesadelo,
gosto muito dele, não quero me
desfazer e ninguém consegue me
ajudar. Falam que tenho que fazer
um treinamento de reeducação,
comprar roupas especiais, para
quando ele me morder, eu o treine,
mas, isso tudo demanda muito dinheiro que não tenho. Há alguma
forma de mudar isso? Agradeceria
se pudesse me ajudar
Eliana Braganholo
em resposta:
Qualquer comportamento, normal ou anormal, é resultado de influências externas e
internas. Não é possível afirmar exatamente
o responsável pela agressividade nesse cãozinho (se é que haja um!); seria muito importante compreender todos os seus contatos,
os seus “gatilhos”, o momento em que esse
comportamento começou a aparecer. Por
exemplo, se desde filhote, pensa-se em uma
maior influência genética. Mas é sempre um
conjunto: a genética, o ambiente (físico e
social) e, principalmente, as experiências
que esse cão teve no início da vida. Existe
um período infantil sensível para os cães,
da terceira semana ao terceiro mês, onde
eles têm mais propensão a se familiarizarem com tudo e com todos e também, a se
sensibilizarem facilmente com experiências
negativas. Seria interessante entender o que
esse cãozinho vivenciou em sua infância.
Quase sempre há um conjunto de fatores
que desencadeiam esse comportamento.
Agora, diante do problema já estabelecido,
temos que compreender qual é o cenário dele
e trabalhar nesse contexto para controlar o
comportamento agressivo, com métodos positivos, estimulando costumes não agressivos
e os inibindo daqui para frente.
Diante do diagnóstico de agressividade,
há espaço, sim, para a terapia medicamentosa
com Fluoxetina. Ela é um antidepressivo utilizado em agressividade (a grosso modo funciona como um leve “freio” para a agressão), mas
não é correto recomendá-la apenas. Sugiro
que se institua um programa de treinamento
em conjunto com a terapia medicamentosa.
Porque a medicação diminui a chance de
repetição do comportamento e o treinamento
ensinará ao cão como agir, estimulando a boa
conduta. Fundamental será não punir o cão
agressivo, pois atitudes humanas negativas
costumam piorar a agressão canina.
Daniela Ramos
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fazer uso desse privilégio”.
Para o médico veterinário, atuante na
área da medicina do comportamento de
animais domésticos e professor assistente de
Psicobiologia na Faculdade de Psicologia da
Pontifícia Universidade Católica (PUC, São
Paulo/SP), Dr. Mauro Lantzman, o problema
é a desinformação. “O veterinário clínico de
pequenos animais não recebe na faculdade,
nenhuma formação na área de comportamento. Ele pode saber como funciona o
sistema nervoso, mas não estuda como as
informações que recebe do ambiente são
processadas, como se comporta, a questão
cognitiva, comunicação e da questão da
aprendizagem”, comenta.
Durante o curso de graduação, na qual,
segundo especialistas, o profissional deveria
receber informação sobre este tema, ele é dessensibilizado. “Passamos por disciplinas nas
quais é preciso fazer experimentação animal,
entre outras situações, que nos ensinam a
ser mais firmes, e, ao longo da carreira, essa
sensibilidade se perde. Quem começa a caminhar para a área de comportamento animal,
volta a se desenvolver neste sentido, ser mais
calmo, realizar um atendimento tranquilo,
observar o animal, a família e a interação dos
dois”, esclarece Daniela.
É fundamental que o clínico de pequenos
animais busque amplificar seu conhecimento do comportamento. “Mesmo não sendo
especialista, ele precisa ter entendimento de
coisas básicas como, a origem (filogenia) do
cão ou gato, o processo de evolução, aspectos sobre comunicação animal, como ele se
comunica e quais são as vias de comunicação. O cachorro se expressa, por exemplo,
por meio de sinais visuais como postura
corporal. E saber disso é importante para o
veterinário”, ressalta o doutor.
Muitos casos de agressão de cães se
antes o assunto era
uma curiosidade.
hoje, é necessidade,
pois a demanda
por atendimentos
comportamentais
está chegando
velozmente nos
consultórios
Daniela Ramos,
especialista há 13 anos
em comportamento animal
e pós-doutoranda da
Faculdade de Medicina
Veterinária e
Zootecnia da
Universidade de
São Paulo
Foto: divulgação
Atualmente, o tema comportamento
animal vem ganhando proporção no setor,
sendo considerado por muitos especialistas
uma disciplina fundamental a ser incluída
nos cursos de graduação, haja visto que,
durante todo o curso, não se formam profissionais com conhecimento específico sobre
este assunto. Assim como em alguns países
europeus, o clínico que tem essa experiência
sai na frente no mercado.
A etologia é a ciência que estuda o
comportamento de todos os seres vivos,
incluindo os seres humanos. É chamado
de “comportamento” aquilo percebido das
reações de um animal ao ambiente que o
cerca e que são, por sua vez, influenciadas
por fatores internos e externos.
De acordo com a médica veterinária e
especialista em Comportamento Animal,
Daniela Ramos, pós-doutoranda da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da
Universidade de São Paulo (FMVZ, USP, São
Paulo/SP), o estudo desta ciência é desconhecido pelos profissionais e deve ser entendido
sob várias perspectivas, incluindo a evolutiva. “Sobretudo, a história daquela espécie e
os mecanismos que geram suas atitudes. Na
Etologia Veterinária, busca-se compreender a
conduta dos animais, mais precisamente os
distúrbios comportamentais, área esta que é
ainda mais nova no Brasil”.
Nos Estados Unidos, este já é um campo
de estudo consolidado, existindo provas de
certificação, além de clínicas especializadas.
“A falta de conhecimento profundo ou
básico sobre o tema pode comprometer o
tratamento. Às vezes, o médico veterinário
acha que conhece um pouco e dá um palpite,
mas desconhece as técnicas já estabelecidas
para se investigar o comportamento na tentativa de se estabelecer uma hipótese mais
correta sobre o animal. Nunca vou saber
exatamente o que está na mente daquele pet,
mas, considerando todo o contexto em que
o comportamento ocorre, o histórico de vida
do paciente e a resposta que ele tem frente
à postura da família e/ou ao seu ambiente,
podemos chegar próximo”, explica Daniela.
“O caso deste e-mail da leitora ilustra
vários problemas com a área. É um campo
novo, interessante, de demanda crescente, mas como não existe conhecimento
dissipado, todo mundo acha que sabe um
pouco, muitas vezes, interpretando e recomendando de maneira equivocada”, frisa
e complementa que o clínico possui uma
posição privilegiada. “Primeiro, porque ele
tem familiaridade com o paciente; segundo
porque ele é médico veterinário e conhece
de maneira aprofundada como funciona
fisiologicamente este animal e possui habilidade da avaliação clínica, fundamental
para análise do comportamento; de qualquer
modo, precisa ser devidamente treinado para
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a problemática
Problemas de comportamento afetam diretamente a qualidade de vida dos animais e
de seus tutores. Em diversos países, estas
dificuldades comportamentais são as principais causas de abandono e eutanásia de
cães e gatos.
De acordo com estudo realizado pelo
médico veterinário Guilherme Marques Soares, em parceria com outros profissionais,
intitulado “Epidemiologia de problemas
comportamentais em cães no Brasil: inquérito entre médicos veterinários de pequenos
animais”, a prevalência dos problemas de
comportamento dos cães na rotina clínica
é elevada: 91,1% dos veterinários entrevistados afirmaram ser consultados pelos
tutores sobre esta queixa e 90,2% alegaram
que a maior frequência dos comentários foi
relacionada à espécie canina. Destes veterinários, 57,6% tentaram resolver sozinhos ou
encaminharam o caso para um especialista.
Os questionários nos quais se baseou
o estudo de Soares e colaboradores foram
enviados às faculdades de medicina veterinária do Brasil, para serem respondidos
por clínicos gerais de cães e gatos, somando
um total de 101 questionários respondidos.
De acordo com um estudo realizado em
Niterói (RJ), 27,6% dos proprietários de cães
de apartamento entrevistados descreveram
a agressividade como um comportamento
incômodo ou problemático exibido pelos
animais. Ainda, 87,4% dos proprietários
de cães de apartamento relataram que seus
animais rosnavam ou tentavam morder em
pelo menos uma situação cotidiana.
Como no Brasil ainda não há uma casuística nacional dos problemas comportamentais dos cães domésticos, nem de como
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Figura 1. problemas de comportamento
mais FreQuentes relatados em inQuÉrito
epidemiolÓGico realizado com
mÉdicos Veterinários brasileiros
Fonte: Soares
os casos existentes são conduzidos, por meio
do estudo de Soares, identificou-se quais eram
as problemáticas atendidas com frequência
por veterinários clínicos gerais, assim como
as suas condutas clínicas e consequências.
Os questionários foram enviados para 108
faculdades de medicina veterinárias do País,
que possuíam atendimento clínico para cães
e gatos, dentre 137 instituições cadastradas
no Conselho Federal de Medicina Veterinária
(CFMV, Brasília/DF). Obteve-se resposta de
46 instituições e os médicos veterinários
afirmaram que comportamentos destrutivos
eram as queixas mais frequentes, seguidas
pelas agressões. Os comportamentos com
queixas menos assíduas foram: defecações em
locais inapropriados; medo de pessoas e falta
de controle durante os passeios (Figura 1).
O tratamento mais recomendado para
as agressões caninas foi a
terapia comportamental,
além da castração e do uso
de medicamentos.
“É papel do
veterinário informar
sobre a vida social, o
comportamento lúdico,
desenvolvimento e
como se comunicar
com o animal”, cita
dr. Mauro lantzman
Foto: C&G VF
relaciona com a má comunicação entre as
pessoas e o animal. Segundo Daniela, se
o cão tem dificuldade de entender o que
as pessoas estão querendo, ele pode, por
exemplo, perceber as atitudes delas como
algo ameaçador. “Então, ataca por medo,
apreensão, ansiedade, etc.”.
A especialista discorre que as queixas
comportamentais por parte dos proprietários de cães e gatos estão mudando ao
longo do tempo, especialmente porque a
maneira de cuidar dos animais também está
se transformando. “Hoje, eles são membros
da família, humanizados ou não, eles fazem
parte daquele convívio. Isso, às vezes, gera
algumas incompatibilidades e a grande parte
das pessoas não sabe exatamente como
adaptar aquele ambiente e as interações em
função de um bom convívio com o animal,
por quê? Porque no Brasil não aprendemos
comportamento animal nem na faculdade,
muito menos na escola, diferentemente da
Inglaterra, que já se ensina desde o berço”.
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Figura 2.
Problemas
comportamentais
felinos vistos por
um especialista em
Comportamento
Animal
(n=70 casos)
Fonte: Ramos, D.; Reche-Junior, A.
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Já as queixas comportamentais por parte
de proprietários de gatos a um especialista
em comportamento animal foram ilustradas no levantamento de Daniela Ramos e
Archivaldo Reche-Junior: “Fatos, desafios e
perspectivas no atendimento comportamental aos felinos domésticos”, com 70 casos
brasileiros, indicaram uma necessidade de
ajustes na relação gato-dono.
Ainda que a população felina esteja em
franco crescimento e o gato doméstico se
mostre bastante adaptável ao cotidiano
moderno, eles frequentemente exibem
manifestações de desequilíbrio emocional,
tais como estresse, ansiedade, especialmente
decorrentes de ambientes deficitários e
desarmoniosos.
A avaliação do estudo revelou prevalência de problemas comportamentais felinos
similares a outras previamente descritas em
relatos estrangeiros (Figura 2).
Medicação
com moderação
Os especialistas chamam a atenção dos
clínicos quanto ao uso de medicamento
no tratamento de reclamações comportamentais. Segundo Lantzman, “o uso de
medicamentos deve ser complementar à
intervenção ao comportamento”.
Daniela explica que “a medicação é uma
aliada das principais frentes de trabalho em
terapia comportamental animal: manejo ambiental e técnicas de modificação de postura
(ex: treinamento)”.
Para o doutor, parte das queixas associadas à agressividade está relacionada a
animais medrosos, pois cães agridem como
forma de controlar o ambiente social instável
e imprevisível. “O veterinário não deve fazer
diagnósticos precipitados. Na maioria das
vezes, as contestações não estão associadas
a doenças. É preciso analisar o âmbito,
identificar os estímulos que desencadeiam
o comportamento, como as pessoas reagem
e quais foram as tentativas de tratamento. É
preciso a ação como resposta a um contexto
ambiental e social, não simplesmente fazer
um diagnóstico de, por exemplo, agressividade por dominância”.
Os feromônios sintéticos para os felinos
e caninos podem ser opções como substitutos ao remédio. “Até o momento, não
revelaram desencadear efeitos colaterais,
sendo, portanto, seguros e agem principalmente para os animais mais ansiosos e
medrosos, sendo associados com as técnicas
de modificação comportamental e manejo
ambiental. Claro que, em casos mais graves,
o feromônio não conseguirá tanta eficácia
como um ansiolítico ou um antidepressivo
(ex: Fluoxetina). Em algumas situações, se
alia à Fluoxetina ao feromônio. Nos casos
médios e leves, não se necessita de medica-
ção, pois temos outras estratégias terapêuticas, como os feromônios sintéticos, que
controlarão a ansiedade gerando conforto
sem efeito colateral”, pontua Daniela.
Feromônios sintéticos para os filhotes
caninos na recepção em um novo lar, segundo a especialista, são aliados para que as
primeiras noites sejam tranquilas, o animal
durma melhor, sem destruições e vocalizações. “Além de ajudar no aprendizado,
acalmar para viagem (transporte) e nas clínicas. O cão que chega em um consultório
e detecta o feromônio sintético espalhado
no ambiente tende a ficar mais tranquilo.
E, nos gatos, contribuem significativamente
no controle da micção inapropriada do
tipo marcação, sendo essas comumente
depositadas em superfícies verticais, com
pequenas quantidades de urina espalhadas
pela casa, mesmo por uma fêmea”.
A boa era
Mudanças sob o ponto de vista de adestramento também evoluíram ao longo da
descoberta do comportamento animal. O
caminho, agora, é buscar técnicas baseadas exclusivamente no reforço positivo.
“Métodos que se utilizavam para controlar
comportamentos por punição; a teoria de
que se precisa ser líder para ser respeitado
já esta ultrapassada. A ciência evidencia
que não há uma relação direta entre falta de
liderança e problemas de comportamento,
mas sim, entre métodos punitivos, estresse
e sofrimento. As pesquisas mais atuais em
etologia veterinária pregam treinamento
sem o uso de aversivos, inclusive o uso de
borrifadores de água ou barulhos intensos.
É treinamento 100% positivo, para não ter
risco do estresse gerar ou agravar um problema comportamental”, diz Daniela.
Mas, a entrave, segundo ela, é a busca do
proprietário por uma solução rápida, e o fato
de que métodos negativos com punição aparentam funcionar dessa maneira, já na hora
da aplicação, vindo de encontro ao imediatismo dos proprietários. “Em longo prazo,
porém, vemos que esse animal acumula
estresse e sofrimento, podendo ressurgir o
comportamento problemático anterior ou
até mesmo desenvolver um novo problema
dessa natureza”, pontua.
A multidisciplinaridade é defendida pela
especialista, na qual cada elo da cadeia deve
conhecer seu papel em prol da prática de
uma medicina veterinária comportamental
integrada. “O adestrador não tem conhecimento técnico de doenças e habilitação para
prescrever medicação, porém, o proprietário,
muitas vezes, não tem condições financeiras
para pagar uma consulta especializada, então
o adestrador que estiver atualizado, habilitado a trabalhar com as técnicas de reforço
positivo, poderá contribuir muito com o
caso, mas deverá estar consciente de que a
integração com um veterinário, especialmente para avaliar um possível envolvimento
clínico ou mesmo a possibilidade de uso
de medicamentos, é sempre importante”,
exemplifica a especialista.
Daniela também reforça que, para
esse clínico perceber algum desvio comportamental ou queixa pelos tutores no
consultório, o mais indicado é a realização
de um atendimento comportamental, com
uma abordagem especializada, diferente da
costumeiramente adotada pelo profissional,
cabendo a este as adaptações necessárias,
caso se disponha a oferecer auxílio psicológico aos animais, ou até mesmo atendimento domiciliar.
E, para aqueles médicos veterinários
mais interessados sobre a área, tanto Daniela
Ramos como Mauro Lantzman realizam
cursos sobre comportamento animal. Para
mais informações, acesse: psicovet.com.br
e pet.vet.br ◘
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