direito e democracia

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DIREITO E DEMOCRACIA
Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA
Vol. 1 - Número 2 - 2º semestre de 2000
ISSN 1518-1685
Reitor
Ruben Eugen Becker
Vice-Reitor
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Pró-Reitor de Graduação
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Pró-Reitor de Desenvolvimento Comunitário
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Pró-Reitor de Administração
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Jussará Lummertz
DIREITO E DEMOCRACIA
Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA
EDITORA DA ULBRA
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Diretor: Valter Kuchenbecker
Capa: Everaldo Manica Ficanha
Editoração: Isabel Kubaski
CORRESPONDÊNCIA/ADDRESS
Universidade Luterana do Brasil
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a/c Prof. Paulo Seifert, Diretor
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92420-280 - Canoas/RS - Brasil
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Editor
Plauto Faraco de Azevedo
Editor Associado
César Augusto Baldi
O conteúdo e estilo lingüístico são de responsabilidade
exclusiva dos autores. Direitos autorais reservados.
Citação parcial permitida, com referência à fonte.
Conselho Editorial
Aldacy Rachid Coutinho (UFPR)
Altayr Venzon (ULBRA)
U58u
Etienne Picard (Université de Paris I/França)
Gerson Luiz Carlos Branco (ULBRA)
Ielbo Marcus Lôbo de Souza (ULBRA)
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR)
Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide/
Espanha)
José Maria Rosa Tescheiner (PUC/RS)
Luís Afonso Heck (ULBRA)
Luís Luisi (ULBRA e UNICRUZ)
Luiz Carlos Lopes Moreira (ULBRA)
Vladimir Passos de Freitas (UFPR)
Revista Direito e democracia / Universidade Luterana do Brasil – Ciências
Jurídicas. – Canoas: Ed. ULBRA, 2000.
Semestral
1. Direito-periódico. I. Universidade Luterana do Brasil - Ciências Jurídicas.
CDU 34
CDD 340
Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas
Índice
187
Editorial
188
Erratas
Artigos
189
Tiberio Deciani e o sistema penal ~ Luiz Luisi
209
O trabalho científico ~ Luís Afonso Heck
217
Apontamentos históricos sobre o método jurídico ~ Plauto Faraco de
Azevedo
239
Cooperação dos juízes em zona de fronteira no Mercosul ~ Ricardo
Pippi Schmidt
247
A mulher é vítima da justiça ~ Maria Berenice Dias
255
Mulher e mercado de trabalho ~ Luiza Matte
269
Aplicação do direito, em defesa da reserva indígena Uru-Eu-Wau-Wau
~ Antônio José Guimarães Brito
283
Responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do serviço no contrato
de assistência médica ~ Marilise Kostelnaki Baú
305
Universalismo de confluencia, derechos humanos y procesos de
inversión ~ David Sánchez Rubio
Documento Histórico
186
337
Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de
discriminação racial (1968)
355
Normas Editoriais
Direito e Democracia
Editorial
A revista “DIREITO E DEMOCRACIA”, agora em seu volume 1,
número 2, seguindo seu objetivo geral de reflexão do Direito por inteiro,
buscando uma integração de suas diversas perspectivas, começa por abrir
espaço a importante e original investigação histórico-dogmática sobre as
origens do sistema penal, desvelando o pensamento de Tiberio Deciani.
Segue-se acurada síntese sobre a elaboração do trabalho científico, assunto relevante para mestrandos e doutorandos, notadamente. O antigo
e sempre atual problema do método jurídico é objeto de investigação
histórica, de modo a submetê-lo a crítica, a serviço dos fins do ordenamento
jurídico.
A cooperação judicial no Mercosul é apresentada de modo lúcido,
fundada na experiência do juiz em zona de fronteira. Ademais, o leitor
encontrará motivos de reflexão sobre a situação da mulher, face à justiça
enquanto instituição, e à sua situação no mercado de trabalho. A problemática indígena é oportunamente trazida à tona, na sua realidade pungente. O tema da responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do serviço no contrato de assistência médica mostra sua indiscutível importância
atual. Estes diferentes aspectos, relativos ao indispensável diálogo entre o
Direito e a Democracia, são completados por reflexões sobre os direitos
humanos, na sua confluência com o universalismo e o relativismo, questionando a indiferença ética, lamentavelmente tão difundida nos tempos
que correm.
Por fim, o documento histórico apresentado desta vez é a declaração
contra todas as formas de discriminação racial, incorporada ao
ordenamento jurídico brasileiro em 1967 e pouco conhecida.
Os Editores
Direito e Democracia
187
Erratas do número anterior
1- A tradução da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, publicado como texto histórico no número anterior
da Revista Direito e Democracia ( fl. 177-181) foi realizada por
Plauto Faraco de Azevedo e César Augusto Baldi
2- O artigo de autoria do prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho“O futuro do Estado e o Estado do futuro” ( fl. 81-94) foi objeto
de palestra realizada para Curso de Pós-Graduação na ULBRA,
em Canoas, no dia
3- O artigo de autoria do Desembargador Vladimir Giacomuzzi“A responsabilidade dos prefeitos em juízo” ( p. 149-162)- foi
objeto de palestra proferida no dia ..... , no Seminário ....., realizado na ULBRA, em Canoas.
188
Direito e Democracia
Artigos
Tiberio Deciani e o sistema penal
Tiberio Deciani and the Penal System
LUIZ LUISI
Professor Titular do Mestrado em Direito da Universidade Luterana do Brasil - ULBRA
RESUMO
O texto inicia com o registro da fundação da Universidade de Bolonha (1088)
e, concomitantemente, com a escola dos Glosadores e dos Decretistas. Analisa
o trabalho dos Glosadores, relevando terem sido intérpretes do Direito Romano, em enfoque estritamente normativo. Noticia, após, a obra dos PósGlosadores ou Comentaristas e o aparecimento dos primeiros livros especificamente penais ( Os Tratactus de Maleficiis de A Gandino e P. Aretino). Dá
ênfase aos chamados “Práticos italianos” do século XVI, ressaltando Tiberio
Deciani como sua figura maior. Trata analiticamente do Tratactus Criminalis
de Deciani, ressaltando ter ele distinguido a parte processual da parte substantiva do Direito Penal. Com relação a esta, demonstra como Deciani se ocupou
dos princípios e conceitos gerais, criando uma parte geral do sistema penal.
Ressalta o pensamento pioneiro dado pelo professor de Padova na análise dos
crimes em espécie e como os adunou, obedecendo o critério do bem jurídico
ofendido.
Palavras-chave: Tiberius Deciani, Sistema penal, História do Direito Penal .
ABSTRACT
The text begins with the recording of the foundation of Bologna University
(1088) and of the School of Commentators and Decreetists. It analyzes the
work of Commentators, showing that they were interpreters of Roman Law in
a strictly normative approach. Afterwards it informs on the work of the Post-
Direito e Democracia
Canoas
n.2
Direito e vol.1,
Democracia
2º sem. 2000
p.189-208189
Commentarists and the appearance of the first specifically penal books (the
Tratactus de Maleficiis by A. Ganding and P. Aretino). It emphasyzes the so
called “Italian Practics” of the XVIth century, specially Tiberio Deciani as its
major exponent. It deals analytically with the Tratactus Criminalis of Deciani,
showing that he was able to distinguish the processual part from the substantive
one of Penal Law. As far as this last one is concerned, the paper shows how
Deciani dealt with the general principles and concepts, elaborating a general
part of the penal system. It emphasizes the pioneer thinking given by the Padova
Professor in the analysis of the crimes in species and as he understood them,
obeying the criterion of the offended juridical good.
Key words: Tiberius Deciani, Penal system, History of Penal Law
1. A Universidade de Bolonha surgiu com o “Studium Bolognesis”,
em fins do século XI, possivelmente em 1088, como uma corporação de
estudantes de direito (Universitas Scolarum). Seu fundador – IRNERIO
– dedica-se a análise do Corpus Juris, fundando a Escola dos Glosadores.
O seu trabalho consiste na análise dos textos da legislação romana não
“solam sententiam exequens”, mas como “continuatio literae”. O que
significa não se fazer apenas um comentário vago e genérico das normas,
mas uma exegese literal, com verticalidade, que na precisa linguagem de
Carlo Dolcini, “serra e stringe” o texto legal.
Os glosadores, tendo como base o direito romano, por eles aceito e
indiscutido no seu conteúdo, fazem uma análise de suas normas com uma
técnica de abordagem caracterizada pela glosa gramatical e filológica,
pela explicação do sentido, pela concordância, pela distinção. E, é com
este tratamento das normas que os glosadores fundam a Ciência do Direito, com sua feição dogmática, isto é, como conhecimento de proposição
dada e pré-determinada, que cumpre interpretar.
A Escola dos Glosadores continua em Bolonha durante o século XII
através de mestres ilustres, como Bulgaro, Godofredo e Azona. Mas é na
obra de Accursio, a Magna Glossa, – que a Escola atinge o seu grande
momento.
Todavia, ao lado da análise dos textos do Corpus Juris, Graziano, um
monge beneditino, realiza em Bolonha uma obra de levantamento e compilação sistemática das normas do direito canônico, conhecida como
190
Direito e Democracia
Decretum, que veio a lume, mais ou menos, em 1140. Com base nestes
textos, surgem no “Studium”, de Bolonha, os chamados Decretistas, que
se dedicam a glosar as leis da igreja. Dentre estes estudiosos, um deles,
Rolando Bandinelli, chegou a ser Papa, Alexandre III, que ocupou o trono de São Pedro de 1159 a 1183. Mas os mais importantes decretistas
foram Alano Anglico e Giovanni Teutonico. Este último foi autor da “Glosa
Ordinária” do Decretum de Graziano.
A partir da metade do século XIII, surgem os pós-glosadores, também
conhecidos como Comentaristas. Não limitam eles os seus estudos à área
dos textos romanos e das leis canônicas, mas trabalham também com o
direito comum vigente, e com as normas costumeiras, e as práticas dos
Tribunais. Dentre os pós-glosadores o mais importante foi Bartolo Di
Sassoferato, sendo também de se lembrar seu discípulo Baldo Di Perugia.
É dessa época a jurista e docente Novela D’Andrea, que lecionou no
Studium de Bolonha, na primeira metade do século XIV. É certamente a
primeira mulher na história da ciência e do magistério jurídico. “Un’inatesa
e dolce figura feminile”, no dizer de Carlo Dolcini, antecessora das bravas mulheres que ilustram hoje a advocacia, a magistratura e o magistério jurídicos.(1)
Os glosadores, e mesmo importantes comentaristas, não se preocuparam em distinguir as diferentes matérias tratadas no Corpus Juris e no
Decretum. Um tratamento diferenciado da matéria penal só teria começado a partir do século XIII, ou seja, à época dos pós-glosadores. Enrico
Ferri sustenta ter sido Guido Suzzara (que se diz ter falecido em 1283) o
pioneiro da dogmática penal. Mas não se sabe nem sequer o nome de seus
(1)
Sobre os glosadores, os comentaristas e os práticos na literatura penal brasileira, JOSÉ FREDERICO
MARQUES, in “Curso de Direito Penal, Ed. Saraiva, São Paulo, 1954, vol. 1, p. 66 e seguintes;
NELSON SALDANHA, in “Glosadores”, no “Pequeno Dicionário de Teoria do Direito e Filosofia
Política”. Ed. Sergio Fabbris, Porto Alegre, 1993, p. 142 e seguintes; LUIZ LUISI, “Os Novecentos Anos
da Ciência do Direito”, in “Filosofia do Direito”, Ed. Sergio Fabbris, Porto Alegre, 1993, p. 63 e
seguintes, e in “Epistemologia Jurídico Penal. Perspectiva Histórica”, na “Revista de Ciências Jurídicas”, (publicação oficial do Mestrado em Direito da Universidade Estadual de Maringá), vol. 2, 1999, p.
261 e seguintes, e, também, in “Estudos Jurídicos, Políticos e Sociais - Homenagem a Glaucio Veiga”,
Juruá Editora, Curitiba, 2000, p. 173 e seguintes. Sobre a Universidade de Bolonha, é de recomendarse o texto de REINOLDO ALOYSIO ULLMANN: Admite-se “que pelo ano de 1088, IRNERIUS,
também conhecido como MAGISTER WERNARIUS, WARNERIUS e GUARNERIUS, tenha começado a dar aulas sobre o Direito Romano, seguindo a obra de Justiniano” (in “A Universidade Medieval”,
EDIPUCRS, 2ª ed., p. 124).
Direito e Democracia
191
escritos.(2) Outros autores, como Edmundo Mezger, – referem como o
primeiro a tratar especificamente de matéria penal, a Rolandino de
Romanciis, Professor em Bolonha, falecido em 1284, cuja obra “De Ordine
Maleficiorum”, não se conservou.(3)
A primeira obra especificamente penal que chegou até nós foi a de
Alberto Gandino, Tractatus de Maleficiis. Seu autor era um prático, sem
atividade docente. Foi Juiz em Florença, Bolonha, e outras cidades italianas, no primeiro quartel do século XIV. Foi chamado por numerosos autores de magnus praticus. O grande mérito de seu tratado foi dar um
tratamento distinto às normas penais, como um conjunto, ou seja, como
um ramo específico do direito. Na elaboração de seu livro, teve presente,
não só a legislação romana e canônica, mas os “Estatutos” de diversas
cidades italianas de seu tempo, os ensinamentos dos glosadores, e a legislação longobarda. Mas, sobretudo valeu-se de sua vivência prática do
direito, da sua longa experiência de Juiz. O seu tratado destinou-se aos
operadores do quotidiano forense, não se lhe podendo atribuir propósitos
científicos.
Seguiram-se à obra de Gandino, a “Aurea Prática Criminalis” de Jacob
de Belvisio, e o “Tractatus de Maleficiis” de Bonifácio de Vitalinis. Trabalhos sem índole científica, essencialmente práticos, mas cujo mérito
está em continuar o caminho aberto por Gandino, e, possivelmente, antes
por Suzzara e Romanciis, de um tratamento próprio e distinto das normas
penais. De maior significação são os trabalhos de Angelo dei Gambiglioni,
de Arezzo, conhecido como Angelo Aretino. O seu “Tractatus de
Maleficiis” tem um matiz casuístico e original. Adota o método expositivo,
seguindo a tramitação de um processo imaginário. Também de seu tempo,
fins do século XV e princípios do século XVI, são as obras de Ippolito dei
Marsiliis, Professor em Bolonha, de quem se diz ter sido o primeiro a ministrar um curso de direito criminal em 1509, (a primeira Catedra de
direito criminal, no entanto, só seria criada em 1540 na Universidade de
Padova). O trabalho mais conhecido de Ippolito dei Marsiliis foi “Pratica
Causarum Criminalen”. E a obra “Tractatus varii que omnen fere materiam
criminalen” de Egidio Bossi. Os livros de Aretino, de Marciliis e Bossi
(2)
ENRICO FERRI, in “Princípios de Derecho Criminal”, (Trad. para o Espanhol de J. A. Rodrigues Munoz, Ed.
Reues, Madrid, 1933, pág. 29).
(3)
EDMUNDO MEZGER, in “Tratado de Derecho Penal (Trad. para o espanhol de J. A. Rodrigues Munoz), Ed.
Rev. Derecho Privado, Madrid, 1985, p. 5.
192
Direito e Democracia
representam um estágio superior da ciência penal, relativamente às obras
anteriores. Embora de sentido prevalentemente prático trata o direito
penal não se limitando ao simples comentário, mas tratando, – na esteira
de Bartolo e Baldo, – de conceitos gerais e básicos, tais como dolo, a
culpa, a tentativa, etc...
Estava aberto o campo para, no século XV, surgir a chamada Escola
dos Práticos. Mas, embora pese o propósito pragmático, serão lançadas
não só as bases de uma visão sistemática do direito penal, mas o sistema
penal como presente nos nossos dias.
Dos práticos, o mais voltado para a praxis foi Próspero Farinacio, autor
dentre outros trabalhos, da notável “Praxis et Theorica Criminalis”. Sustentava Farinácio que havia esgotado o tratamento do direito criminal, e
que, lida sua obra, se tornaria desnecessário recorrer a outros livros. Trata-se de um grande manual de prática, em que prepondera o aspecto
processual. Todavia, Farinácio analisa alguns delitos, tais como os de lesamajestade, homicídio, furto, crimes sexuais, falsificação e heresia. E estão
presentes, também, alguns aspectos doutrinários. E o caso do chamado
crime continuado, embora referido em Bartolo e Baldo, encontra seu claro delineamento na obra de Farinácio.
Todavia, com Julius Clarus, embora pese a destinação de sua obra para
os práticos, é inequívoco o tratamento científico, trazendo para o Direito
Penal uma expressiva contribuição respaldada, no dizer de Calisse, em
uma experiência prática, “acompanhada por uma liberdade de julgamento verdadeiramente notável para o seu tempo”.(4)
Na sua obra “Receptae Sententiae”, o livro V, se intitula “Prática
criminalis”, que contém um esboço rudimentar de um sistema penal. Inicia com uma introdução terminológica, onde expõe as diferentes classes
de delitos e suas significações. Trata sucessivamente das diferenças entre
“delicta publica et delicta privata”, “delicta eclesiastica, saecularia et
comunia”, “delicta nominata et inominata”, “delicta levis, gravis et
atrocissima”. Trata, ainda, dos delitos em espécie, onde são analisados
cerca de 19 crimes, obedecendo a exposição a ordem alfabética. Na seqüência se ocupa com questões processuais. Na obra de Clarus vislumbra-se uma parte geral, e uma primeira sistematização dos crimes em es(4)
A. CALISSE - “Solgimento storico del diritto penale in Italia dalle invasione barbare alla riforma del secolo
XVIII”, in - Enciclopedia del Diritto penale”, dirigida por E. Pessina, vol. 2, p. 3 e segs.
Direito e Democracia
193
pécie, com um critério primário, ou seja, alfabético, começando com o
assassinato, o adultério, a blasfemia, as falsificações, etc...
Todavia, o mais importante de todos os ditos práticos é, sem dúvida,
Tibério Deciani.(5) Foi o primeiro a tratar do direito criminal com critérios realmente metodologicos e científicos. O seu “Tractatus criminalis”,
é a primeira exposição realmente sistemática do direito penal.
2. Antes da análise do Tractatus, nos deteremos nas contribuições
menores de Deciani, mas que servem para mostrar o ambiente cultural no
qual o Mestre padovano vivenciou o direito, prática e teoricamente.
Durante sua vida, publicou três volumes de suas “Responsas”, e a “Apologia pro iuris prudentibus qui responsa sua edunt imprimenda adversus
dicta per Alciatum Parergon”.
As “Responsas” constituem um repositório do que atualmente chamamos pareceres. Já em Roma, e principalmente na época dos pós-glosadores,
era comum solicitar aos notoriamente doutos que respondessem a consultas sobre determinados casos. Estas solicitações podiam partir das pessoas
envolvidas nos processos, como dos próprios magistrados. Inclusive autoridades também costumavam pedir “responsas”, preferencialmente aos Professores. Entre os clientes de Deciani, – para dar um exemplo, – estavam o
Rei Maximiliano, a Rainha da Dinamarca, o Duque de Ferrara, e outros.
Essas “Responsas” vieram a constituir, ao lado do direito vigente, considerado o saber e a notoriedade de seus autores, uma espécie de fonte do
direito, servindo muitas vezes para fundamentar decisões judiciais. Nes-
(5)
TIBERIO DECIANI nasceu em Udine no dia 03 de agosto de 1509. Em novembro de 1523, com menos de 15
anos, ingressou na Universidade de Padova. Em 19 de abril de 1529, concluiu o curso e obteve, “con una
solenità tutt’affatto speciale, la laurea in diritto civile e diritto canonico”, conforme informa Antonio
Marongiu. Em 1549 inicia sua atividade docente como Professor de Direito Penal, cuja catedra a Universidade de Padova havia criado pioneiramente em 1540. A partir de 1552 passa a lecionar também direito
civil. Exerceu a docência das duas disciplinas até sua morte ocorrida em 07 de fevereiro de 1582. Dedicouse, ainda, a advocacia, tendo sido um dos mais famosos “parecesistas” do seu tempo.
Sobre a vida e a obra de Deciani é de leitura obrigatória o analítico estudo de Antonio Marongiu,
“TIBERIO DECIANI, lettore di diritto, consulente, criminalista”, in “Rivista di Storia del diritto penale”,
vol. nº 07, 1934, pág. 135 e seguintes, e 312 e seguintes. Também é de leitura obrigatória o texto de
FEDERICO SCHAFFSTEIN, “TIBERIO DECIANUS”, in “La ciencia europea del Derecho Penal en la
epoca del humanismo” (Trad. para o espanhol de J. M. Rodrigues Devesa), Ed. Instituto de Estudios
Políticos, Madrid, 1967, pág. 81 e segs.
194
Direito e Democracia
sas “Responsas”, em geral bastante longas, se colacionavam dados do direito romano, do direito canônico, do direito comum, e mesmo “Responsas”
de outros juristas. Tinham um sentido eminentemente prático. E eram
normalmente redigidas em um latim pouco castiço.
A exagerada publicação de coletâneas de “Responsas” suscitou críticas
de alguns juristas. Dentre elas as de André Aliciatus, um jurista italiano
que se transferiu para a França, onde fez prevalecer suas idéias, dando à
ciência jurídica gaulesa um matiz diverso da italiana: o chamado mós gálico,
em contraste com o mós italicus. Nestas críticas, Aliciatus traduzia substancialmente uma concepção diversa do saber jurídico cultivado em seu
país. Impregnado pelo humanismo que marcava a cultura de seu tempo,
Aliciatus entendia que a ciência jurídica devia desvincular-se de compromissos pragmáticos, voltando-se para a análise dos textos clássicos romanos, redescobrindo-os na sua autenticidade, e não como eram apresentados pelos glosadores, e explicitados nas “Responsas”. Também impugnava o
latim bárbaro das “Responsas”, preconizando que a exposição científica do
direito deveria fazer-se com um latim correto e elegante. Também se insurgia contra o uso dos métodos escolásticos e o culto da autoridade.
Em defesa da “jurisprudência prática”, Deciani publica em 1519 a “Apologia”. Entre outras abordagens, o Mestre veneto precisa o conceito de
“Responsa”, defende a necessidade de um latim acessível aos usuários
das “Responsas”, e se posiciona em favor do saber jurídico, com sentido
prático.
Deciani chama de “Responsa” somente pareceres (concilias) dados
pelos juristas a pedido das partes ou do Juiz. Distingue-as das
“allegationes”, pois estas são produzidas em Juízo pelos profissionais que
patrocinam os interesses das partes. Nas “Responsas” não há outra finalidade se não expressar o que se entende seja conforme ao direito, independente do interesse das partes.
No concernente ao uso do latim “bárbaro” do mós itálico, Deciani
lembra que, em seu tempo, o latim não era mais uma língua que se aprendia ao nascer, e os Juízes e as partes teriam dificuldades para compreender os textos escritos em um castiço e refinado idioma latino.
Com relação ao sentido prático a dar-se ao saber jurídico, Deciani enfatiza
que o direito é elaborado para ser aplicado, e a norma jurídica é analisada
visando a sua aplicação. O jurista não pode limitar-se ao preparo cultural,
Direito e Democracia
195
mas deve ser capaz de aplicar as normas e os princípios às hipóteses fáticas.
O médico, – argumenta o docente vêneto, não pode limitar seus conhecimentos às características do corpo e às substâncias medicinais, mas deve
saber dar a cada cliente o remédio correto. E os práticos do direito para
poderem desempenhar seus misteres devem conhecer, além das obras doutrinárias, as Responsas e as Decisões Judiciais. Sustenta ainda, Deciani
que as Responsas devem ter presente a norma jurídica aplicável ao caso,
como também os argumentos de lógica jurídica (“rationes”) e as lições dos
juristas (“authoritates jurisprudentum”), que melhor auxiliem a interpretação e a aplicação do direito ao caso concreto.
Todavia, não foi Deciani um mero prático, infenso às concepções
humanistas, ao mós gálico. Deciani foi um notório cultor das letras e das
artes. Proprietário de uma notável galeria de quadros de importantes pintores, várias coleções de antiguidades, uma grande coleção de medalhas,
e, sobretudo, uma riquíssima biblioteca de obras clássicas. Manteve relações com importantes figuras do mundo literário de seu tempo como
Francesco Aluno e Aretino, dentre outros. Envolveu-se, também, em polêmicas filológicas e gramaticais. Por essas razões, se pode dizer ter sido
Deciani um jurista próximo ao mós gálico (a jurisprudência culta), embora seu alinhamento aos que entendiam que o saber jurídico tinha que ter
obrigatoriamente em sentido prático. Ou seja: ao jurista, com seu trabalho cabe viabilizar a compreensão e aplicação do direito ao concreto da
vida social. E, por ter dado ênfase a esta concepção pragmática, se situa
na área do mós itálico.
Na sua obra maior, – o Tractatus Criminalis, – por constituir um “sistema”, ou seja, uma exposição predominantemente científica, harmônica e
lógica, está inquestionavelmente presente o humanismo em suas nuanças
fundamentais.
O grande mérito do “Tractatus” está em ter sido a primeira exposição
sistemática do direito penal. Ao expor o plano da obra, Deciani se propôs
na primeira parte, ocupar-se apenas das os “principia, causas, fontes,
naturam, accidentia, augmenta, diminutiones, effectus ac fines delictorum
in genere omnium”. A segunda parte é destinada “sicut speciatim singula
crimina interse divisa”. E a terceira “quae praxim et forum dumtaxat
spectabit”, ocupando-se das pessoas do acusador, acusado, juiz, etc... Vale
dizer: a primeira parte é relativa aos temas gerais do direito penal; a segunda é uma parte especial, tratando das diversas espécies de delito; e a
terceira versa matéria processual.
196
Direito e Democracia
Convém, no entanto, relevar que o jurista padovano não conseguiu
realizar plenamente seus propósitos, pois, por algumas vezes, tratou na
parte geral de temas de processo, tais como matérias relativas aos tribunais, à jurisdição, e às queixas. Todavia, afora alguns aspectos, é
inquestionável que Deciani foi quem pioneiramente distinguiu o direito
penal material do direito penal processual. Embora alguns autores, – como
dentre outros Bossi e Clarus, – houvessem tratado, como anteriormente
fizeram Bartolo e Baldo, de conceitos gerais, a Deciani se deve a primeira
exposição sistemática desses elementos gerais, elaborando uma autêntica
parte geral. E de extraordinária significação histórica foi a forma de classificação e exposição da matéria pertinente ao que modernamente chamamos parte especial. Clarus havia “sistematizado” os delitos adotando o
critério alfabético. Outro seria o critério usado por Deciani, ou seja, o do
bem agredido, ofendido, pelo delito.
3. O “Tractatus” somente foi publicado após a morte de Deciani por
iniciativa de seu filho Nicola. A primeira edição é de 1590 e apareceu em
Veneza. A segunda edição, aos cuidados de P. C. Bredrobe, editada em
Frankfurt, é do ano seguinte.
O “Tractatus” é constituído de 09 (nove) livros. Cada um deles dividido em títulos e sub-dividido em capítulos. Todavia a obra é incompleta.
O texto relativo a “De interpretatione legis”, referido por Deciani na sua
já mencionada “Apologia”, não foi encontrado. É de crer-se que tenha se
perdido também o texto concernente à continuação da exposição dos
delitos, notoriamente os contra o patrimônio.
Pode-se sustentar (embora não conste do texto), que o Tractatus tem
duas partes. Uma que se pode dizer geral, que compreende os quatro
primeiros livros, e os seis primeiros capítulos do quinto. O restante da
obra é dedicado à intepretação e exposição dos delitos, e ao processo.
3a. A parte geral do “Tractatus” pode se afirmar constituir uma autêntica teoria do delito.
Inicia perquirindo como o delito se origina. Socorre-se, para tanto,
das “quatro causas” da ontologia aristotélica.
Direito e Democracia
197
Causa formal do delito é a lei, “Nullum potest cognosci delictus, nisi
praecedar lex, quae illud prohibear et puniat” (a). E, mais: “Lex enim
delictum facit, quod prius non erat, et contra licitum facit, quod prius
delictum erat”(b). Nestas passagens do Tractatus pode-se vislumbrar enunciado o princípio da reserva legal. Todavia, não se pode sustentar tenha
Deciani formulado tal princípio no sentido atual, pois entendia serem
diversas as fontes do direito penal. Não só a lei escrita, mas também a lei
natural, e as normas costumeiras.
Causa material do delito é a vontade. Sustenta Deciani ser a vontade
a alma do delito. Sem a vontade, o delito não existe.
Causa eficiente do crime é a exteriorização da vontade. Este, o delito,
só existe, e é punível, se a vontade delituosa se exterioriza, ou seja, quando se expressa em “actus corporis”.
No concernente à causa final do atuar criminoso, o Professor de Padova,
repete Aristóteles, reduzindo-a a três aspectos: “necessitas, cupiditas et
ira”.
Postas as causas que dão origem ao crime, Deciani deduz das mesmas
o seu lapidar conceito de delito. Define-o como “factum hominis, vel
dictum aut scriptum, dolo vel culpa, a lege vigente sub poena prohibitum,
quod nulla iusta causa excusari potest”(c).
É inquestionável que até então não fora conceituado o delito de forma mais correta.
O dolo e a culpa merecem do Jurista padovano uma ampla análise. O
dolo é definido como “propositum et malus animus delinquere”. Admite
o chamado dolo presumido. A culpa tem por fundamento “excesus sive
peccatum per imprudentiam in alicuius damnun, quod temen
perprudentem, si amimadvertisset, evitare potuisset”. Admite ser possível
graduar a culpa, distinguindo a culpa lata, que se aproxima do dolo, leve
que consiste em uma omissão da diligência que se pode exigir de um
“bom pai de família”. A levíssima é a que, não obstante as cautelas usadas, uma pessoa diligentíssima teria evitado o evento.
(a)
A lei, pois, cria o delito que antes não existia e torna lícito que antes era delito.
(b)
Nenhum delito pode ser conhecido, a não ser que preexista a lei que o proíbe e pune.
(c)
Um ato de um homem, dito ou escrito, com dolo ou culpa, proibido sob pena pela lei vigente, que não pode ser
escusado por nenhuma justa causa.
198
Direito e Democracia
Outro aspecto amplamente estudado no “Tractatus” é o das causas
que excluem ou modificam a aplicação da pena, tais como: a idade, o
sexo, a doença mental, a embriaguez, a ira, o erro, a legítima defesa, e
a coação psicológica. Com relação à idade, não previu regras rígidas,
mas preferiu confiar na prudência do julgador, que deverá procurar
perquirir, se o menor agiu ou não com discernimento. O sexo feminino
é entendido por Deciani, – em consonância com o pensamento dominante em seu tempo –, como um fator de atenuação da pena em geral.
Todavia, não vige tal atenuante em se tratando de delito de lesa majestade, ou contra religião. A doença mental, conforme a sua natureza, pode ser excludente ou atenuante. Quando a enfermidade é de
molde a privar o agente da “sana voluntas” não é viável nem a acusação, e, pois, nem a punição. Quando a doença é de pouca monta será
causa de atenuação de pena. Aos doentes mentais Deciani equiparava os surdos mudos e os sonâmbulos, quando o delito é cometido durante o sono. A embriaguez é tida como atenuante da pena, mesmo a
habitual. A ira só pode diminuir a pena, quando é provocada por um
justo motivo.
O erro é tratado por Deciani com acuidade. É tido fundamentalmente como um vício da vontade. E, conforme as circunstâncias, pode
excluir ou atenuar a pena. Distingue o erro de fato e o de direito. No
pertinente ao erro de fato, pode, conforme o caso concreto, constituirse em uma excludente ou em uma atenuante. Relativamente ao erro de
direito, sustenta que em princípio o mesmo não pode ser excludente.
Mas entende que, quando o agente entende estar agindo licitamente,
o erro quanto à licitude pode constituir uma excludente. Mas o Juiz, –
recomenda expressamente Deciani –, deve examinar atentamente as
circunstâncias, as qualidades pessoais do acusado, bem como os “indícios e presunções”.
A legítima defesa é considerada por Deciani como um direito natural,
que autoriza a proteção da vida e da integridade corporal. A defesa é
legítima quando exercida nos necessários limites, sendo punível o excesso. Prevê, ainda, o Professor vêneto casos em que o agente é levado à
prática de um fato delituoso, em virtude de ser ameaçado de morte, se
não cometer um delito. Exemplifica com a hipótese de uma ordem de um
governante tirânico, ou de um patrão, cuja ameaça de morte, não lhe dá
outra alternativa, senão o de realizar o fato delituoso ordenado.
Direito e Democracia
199
3b. Também a tentativa e o concurso de pessoas são analiticamente
tratados por Deciani.
Com relação à tentativa, parte da crítica de algumas leis romanas (lex
julia e lex cornelia), que prevêm a punição da simples “cogitatio”, ou
seja, do delito meramente pensado. Para o Mestre vêneto é punível não
só o delito consumado, mas também o tentado e o falho. Caracterizam-se
por terem superado a mera intenção e concretizado atos de execução. No
delito falho, o resultado não ocorreu, embora o agente tenha realizado
todos os atos necessários para a sua concreção, ou seja, “ommia consumasset
quae ipse in hoc facere poterat”. Dá como exemplo o agente que propina
veneno, mas a vítima se salva por receber a tempo o necessário socorro
médico. Nesta hipótese a pena, segundo Deciani, – deverá ser igual à do
delito consumado. Com relação à tentativa propriamente dita, Deciani
não distingue as duas hipóteses de interrupção de iter criminis: aquela
em que o agente foi impedido de consumar sua atividade criminosa, e a
outra em que o agente desiste de prosseguir a sua conduta delituosa.
Ambas as hipóteses se caracterizariam por ter o agente iniciado a prática
dos atos necessários a consumação do delito, mas não os realizou. Nestas
hipóteses, Deciani entende que a pena deve ser atenuada.
O concurso de pessoas é exaustivamente examinado pelo Professor de
Padova. Distingue quem realizou os atos executivos do delito daquele que
concorreu, de outros modos, para a realização do crime. E, com relação à
participação criminal, considera três situações: “ante maleficium”, “ipso
maleficium” e “post maleficium”. A participação anterior ao fato se configura em conselhos, persuasão ou instigação, bem como em mandatos. No
concernente ao momento do fato, Deciani lembra como uma de suas modalidades a cumplicidade (societas criminis, auxilium opem praestare). E
no pertinente à participação posterior ao delito, Deciani fala frequentemente em seu “Tractatus” de “favorecimento e de receptação”, sem distinguir os dois delitos. Receptantes ou receptatores são os que escondem o
acusado de um delito ou o recolhem em seu domicílio, ou o alimentam. A
pena para tais delitos deve ser diversa da pena do acusado favorecido. E,
devem ser considerados nesses crimes as relações de parentesco entre seu
autor e os delinquentes favorecidos. Da receptação na forma modernamente
tipificada, o “Tractatus” não fala, mesmo porque a obra referida, pelo que
dela nos chegou, não trata dos crimes contra a propriedade. Também o
concurso de crimes é estudado por Deciani. Distingue os crimes praticados
com uma só conduta, dos crimes cometidos através de duas ou mais condu-
200
Direito e Democracia
tas. Recomenda uma pena mais branda para a primeira hipótese.
Mas o que é surpreendente é ter Deciani previsto o concurso aparente
de crimes, também chamado concurso aparente de normas, sustentando
que o delito maior absorve (consunção) o delito menos grave.
O Mestre padovano não trata, na parte geral, das penas. Não enfrenta
a temática dos fundamentos e fins das sanções penais. Nem classifica e
nem caracteriza as penas existentes no direito do seu tempo. Nem versa,
em termos gerais, a matéria pertinente à aplicação das sanções penais.
Das penas, Deciani se ocupa na parte especial, examinando-as com relação a cada delito. Examina-as, nesta perspectiva, na literatura bíblica, no
direito romano, no direito canônico, no direito estatutário e na prática.
Embora sem ter enfrentado o problema da natureza e dos fins da pena,
manifesta implicitamente simpatia pelo entendimento canônico de ter a
pena por objetivo a emenda dos sentenciados. Todavia, é uma constante
no seu “Tractatus”, a recomendação de ser preferencialmente aplicada a
pena extraordinária (formas diferenciadas da pena de morte, e escolhidas, em cada caso concreto, a critério do Juiz), e não a pena ordinária, ou
seja, a pena capital.
3b. Como já enfatizado, Tibério Deciani é o primeiro jurista a “sistematizar” a exposição relativa aos crimes em espécie. E o fez tendo como
critério os bens ofendidos pelos delitos. E os hierarquizou em consonância
com os valores dominantes no seu tempo. Os primeiros são os delitos contra a fé e a unidade da Igreja. Seguem-se os delitos contra a religião.
Sucedem-se os crimes contra o Estado e os poderes políticos, contra os
poderes públicos, contra a fé pública, contra a economia pública, a indústria e o comércio, contra a liberdade sexual, e os bons costumes, contra a
integridade da estirpe, e contra a vida individual.
Relativamente aos crimes contra a fé pública e a unidade da igreja,
Deciani enumera a heresia, o cisma, a apostasia, e a simonia. A heresia é
definida como “falsa et pertina opinio contra Deum et ipsium catholecom
fidem”(d). É um delito de pensamento. Constitui, no entendimento do
professor padovano, uma exceção ao princípio “cogitationes poenam nemo
(d)
Opinião falsa e pertinaz contra Deus e a própria fé católica.
Direito e Democracia
201
patitur”. Pode ser relativa a artigos de fé, ou seja, “ea quae explicite
credere tenumer”, como também sobre os ritos, e as disposições da igreja
em matéria de dogmas e de sacramentos. Deciani noticia cerca de 150
formas de heresia. O cisma consiste na ruptura da unidade da Igreja
provocando sua divisão. A apostasia é o abandono da igreja, por parte de
quem nela já se achava integrada. Apóstata é quem “im totum a fide
recidit”. Deciani, no entanto, inclui entre os Apóstatas, os que abandonaram o estado religioso, e mesmo quem passou de uma ordem para outra
sem a licença dos superiores.
A simonia é definida como “dato vel conventio dandi vel faciendi vel
dicendi aliquid temporale pro spiritualibus vel illis annexis”. Pode-se qualificar a simonia como uma espécie de heresia. Deciani, no entanto, entende que a simonia só pode ser punida desde que se apresente objetivamente.
A simonia meramente mental não é punível, se não perante Deus.
Constituem, outrossim, delitos contra a religião: a blasfemia, o juramento falso, o sacrilégio e a violação das sepulturas.
A blasfemia é definida por Deciani como a irreligiosa ofensa e maldição contra Deus. O juramento falso ou perjúrio refere-se tão somente ao
juramento em que haja invocação de Deus, como testemunha. Por sua
vez o sacrilégio consiste, conforme definição que Deciani adotou de Baldo, na “violatio rei sacrae”. Pode recair sobre uma res sagrada mas também sobre pessoas e lugares sagrados. Pode ser cometido com ou sem violência. A violação das sepulturas é diversa do sacrilégio, pois, a sepultura
não é considerada como uma “res sacrae”, mas simplesmente uma res
religiosa. Consiste não só na violação das sepulturas, mas também na
turbação das cerimônias funebres, na violação do cadáver. E, ainda, se
não justificado, no uso do cadáver.
No concernente aos delitos contra o Estado e os poderes políticos,
arrola Deciani os de lesa majestade, compreendendo uma série de tipos.
O delito de lesa majestade é entendido em sentido muito amplo, abrangendo tanto os delitos contra “imperia et potestates publicas”, como também os atentados aos poderes políticos. Constituem espécies típicas do
delito de lesa majestade a insurreição, a conspiração, a conjura ou sedição, a rebelião, a traição e passagem para o inimigo, a usurpação do poder
político, os crimes contra a segurança pública, e a ofensa e/ou ocultamento
de reféns.
202
Direito e Democracia
A insurreição é a “perduellio” romana, e consiste no fato de se insurgir
“hostili animo adversum republicam vel principem”. A rebelião consiste
na frontal contestação ao príncipe, recusando-lhe obediência, bem como
a outras autoridades. A conspiração, injúria ou sedição são nomes diversos, que compreendem várias mas semelhantes figuras de um pacto de
diversas pessoas “ad subversionem status vel dignitatis alterius”.
Da traição e da passagem para o inimigo. Consiste a primeira na revelação de segredos aos inimigos do príncipe ou na trama contra a obediência devida ao soberano e ao Estado. A segunda consiste em fornecer armas ao inimigo e facilitar a invasão do Estado, e fatos semelhantes. A
usurpação do poder político ocorre quando o agente se investe
abusivamente do poder, ou lhe assume as funções. Inclusive declarando
guerra, ainda se vitoriosa, sem a autorização do soberano. Deciani inclui
entre as formas deste delito o deter pessoas por mais de 20 horas, ou
liberar presos, detidos por determinação do soberano. Os delitos contra a
segurança pública se caracterizam por atos que perturbem a paz pública.
A ofensa ou o ocultamento de reféns se pune para resguardo dos soberanos na comunidade dos Estados. Ofendem, para usar-se linguagem
contemporanea, a personalidade internacional do Estado.
Quanto aos delitos contra os poderes públicos, - que se diferenciam
dos crimes contra os poderes políticos, elenca Deciani a violência pública
e privada, o peculato e a malversação, a corrupção e a concussão, a revelação de segredos, e os delitos militares. E, ainda, os chamados delitos de
“ambitus e peregrinitatis”.
O delito que Deciani chamada de “ambitus” configura-se quando um
candidato a um cargo público engana o povo para obter votos. O crime de
“peregrinitatis” se tipifica quando alguém se arroga a cidadania, não a
tendo, comportando-se como cidadão.
A violência pública é a que se concretiza com o uso de armas privativas das autoridades. A violência privada é a que ocorre sem o uso de
armas. Elencam-se no âmbito da violência pública o uso de armas de
fogo, definidas por Deciani como uma “invenção diabólica”, e o porte
abusivo de armas. O uso de armas merece severíssima apenação, quando
este uso ocorre por bandos ou quadrilhas, como também quando usadas
em seqüestros, no impedimento de funções judiciárias, na violação de
domicílios, e casos similares. O peculato consiste na “pecunia publicae
anti sacrae furtum”. O professor vêneto entende que o peculato somente
Direito e Democracia
203
ocorre quando o dano é da cidade a que o agente pertence. Se o dano é
relativo a outras cidades, a espécie será de furto. Já a malversação chamada de “residiis” se concretiza quando o agente, tendo recebido dinheiro para aplicá-lo em um determinado objetivo de utilidade pública, o
desvia, no todo, ou em parte para seu proveito pessoal.
A revelação dos segredos é pertinente, de um modo geral, ao segredos
privados e religiosos, tais como, os segredos epístolares, os relativos ao
conteúdo de testamento, antes de sua publicação. Compreende ainda a
revelação de segredos religiosos aos infiéis.
No pertinente aos delitos militares, além do de passagem para o inimigo, que constitui crime de lesa-majestade, Deciani enumera a deserção,
a insubmissão, o abandono de posto, e similares.
No elenco dos crimes contra a fé pública, Deciani inclui o de moeda
falsa e o da falsidade das marcas, carimbos e timbres públicos, e de documentos públicos.
O delito de moeda falsa é cometido não só por quem fabrica a falsa
moeda, mas também por quem, a sabendo falsa, dela faz uso, ou não dá
conhecimento à autoridade. Para os falsos moedeiros, a pena prevista é a
chamada pena ordinária, ou seja, de morte. É mais mitigada para os que
fazem uso da moeda falsa, em prejuízo de um Estado estrangeiro.
Constituem delitos contra a economia pública, a indústria e o comércio: o monopólio, atos contra a liberdade econômica, e as fraudes e abusos econômicos.
O monopólio consiste, no entendimento de Deciani, em fazer depender do arbítrio e da ganância de poucos homens o preço das “res venales
vel locandae”. Pode caracterizar-se na pactuação de negociantes que ajustam um preço comum para determinados produtos, ou em acordo entre
prestadores de serviços para manter um mesmo e alto valor para a retribuição dos mesmos.
Os atos contra a liberdade econômica são formas atenuadas de monopólio. Deciani analisa diversas formas desses atos. Entre elas, a ocultação
de produtos para forçar a alta de preços, e o acordo entre proprietários
para locar seus imóveis por um mesmo e certo preço.
As fraudes e abusos do comércio chamadas também de delitos
204
Direito e Democracia
“annonarios” ou de “dardaniariatos” consistem em desregular, mediante
fraude, o comércio de gêneros de primeira necessidade, que se diziam
Annonas, ou seja, os que servem direta ou indiretamente “ad victum
humanum”, tais como pão, carne, vinho, etc... Os delitos de annona são
considerados mais graves que o monopólio. Dada a variedade de formas
desses delitos, as penas são aplicadas conforme as peculiaridades de cada
caso, e de uma maneira geral, ficam a critério do Juiz.
São considerados delitos contra a liberdade sexual e os bons costumes,
a violência carnal e o rapto.
A violência carnal é o delito praticado pelo homem que obriga uma
mulher ou uma criança, usando de violência, a uma relação sexual. A
violência pode ser real, como também pode consistir em uma intimidação. Ou seja: pode ser ablativa ou compulsiva. Não se configura o delito
quando a vítima é uma meretriz.
O rapto se tipífica na forma consensual, quando este consenso decorre
de uma promessa de dinheiro, e o raptor não cumpre com o prometido.
No rapto, o agente deve ser homem e a mulher, a vítima, deve ser honesta. Não se afasta a possibilidade de um homem vir a ser raptado por uma
mulher, ficando a matéria ao prudente arbítrio do Juiz, considerando as
peculiaridades do caso concreto. Também é previsto o rapto mediante
violência. Neste caso a pena cominada é a de morte.
No elenco dos delitos contra a integridade da estirpe, figuram o aborto e a provocação de impotência sexual.
O aborto provocado é punido com pena de morte quando ocorre 40 dias
após a concepção. O aborto somente tentado é punido, mas não com a
pena capital. A provocação de impotência sexual, é, em geral, caracterizada pelas diferentes formas de castração. Também é prevista a pena capital.
Na área de abrangência dos delitos definidos por Deciani como delitos contra a vida humana, os mais graves são os que atentam contra a
integridade da pessoa, ou seja, os homicídios.
O homicídio tem três modalidades: o contra si mesmo, o parricidio, e
o provocado contra a vida de outra pessoa.
O chamado homicídio-suicídio é considerado pelo Mestre vêneto o
que mais repugna o senso ético, pois conflita contra o direito divino, o
Direito e Democracia
205
direito natural, o direito canônico, e o direito civil. E, também, contrasta
com os ensinamentos religiosos. Todavia o suicídio não é punível quando
motivado “impatientia, vel furore, vel morbo, vel pudori, vel tardio vitae”.
A sanção pode ser o confisco de bens, a nulidade de testamentos, e similares. Deciani noticía casos de suplícios, infligidos ao cadáver do suícida.
O parricídio era tido como o assassinato não só dos pais como de outros ascendentes. E, ainda, de pessoas vinculadas por parentesco próximo
como os irmãos, o sogro, etc... Mas Deciani entendia que o tipo de
parrícídio devia ser mais amplo, abrangendo também a própria esposa. É
considerado um delito gravíssimo, sendo passível de punição qualquer
cúmplice, inclusive o mais remoto.
Homicídio, em sentido estrito, consiste na eliminação dolosa de uma
vida alheia. Pode ser cometido de diversos modos. DECIANI dá particular importância ao venenicídio, ou seja, homicídio por envenenamento.
O “Tractatus”, como já exposto, nos chegou incompleto. Não se tem
notícia de ter analisado aspectos relevantes da tipologia penal, como, por
exemplo, os crimes contra a propriedade. Todavia não se afasta a hipótese
do escrito a respeito ter se perdido.
3c. Deciani, em seu “Tractatus”, analisa os aspectos fundamentais do
processo penal.
No livro III, expõe as diferentes formas de proposição da ação penal.
Dedica um longo estudo aos atos iniciais do processo, examinando minuciosamente as condições de sua admissibilidade. E, em 20 capítulos, trata
das causas que inviabilizam o início do processo.
No livro IV, expõe as normas gerais relativas à jurisdição e à competência (territorial, por conexão, por prevenção, e por delegação). Indica
as soluções para os possíveis conflitos de competência entre os tribunais
eclesiasticos e os tribunais civis.
Embora acentue a necessidade dos delitos não ficarem sem a necessária punição, Deciani acentua a indispensabilidade do pleno respeito aos
direitos do acusado, e a necessidade de imparcialidade e ponderação dos
juízes na condução do processo. Enfatiza, também, o Mestre de Padova,
que ninguém pode ser considerado culpado, - principalmente nos delitos
206
Direito e Democracia
mais graves, - sem prova segura, e não extorqüida, como acentua no capítulo 36, do livro IV, do “Tractatus”, “Metu tormentum”. E se tais provas
faltarem, ou sejam insuficientes, os indícios devem ser interpretados, como
escrito no capítulo 31, do livro V, do “Tractatus”, em “mitiore partem”, ou
seja, no sentido mais favorável ao Réu.
4. É oportuno ponderar que a obra de Deciani é essencialmente técnica. Na linha inaugurada pelos primeiros glosadores do século XI, Deciani
é fundamentamente um dogmático. O seu trabalho tem por base o direito
nas suas expressões preponderantemente positivas, ou positiváveis. E propõe-se como objetivo sua faina científica ser instrumento do quotidiano
dos operadores de direito. Ou, em outros termos, servir a aplicação concreta do direito.
Neste aspecto, Deciani é um homem do seu tempo, ou seja, do século
XVI, quando, ainda, não haviam surgido as primeiras efetivas manifestações do grande movimento de idéias, o iluminismo, - que enfocando a
experiência social, em todas as suas nuanças, haveria de embasar, dois
séculos após, um novo Estado e um novo direito.
No entanto, embora vivendo a época de um direito penal de conotações
monstruosas, longe de ter adotado uma postura crítica em relação a esta
ordem jurídica, mas movido por sentimentos humanitários, afirmou a necessidade das condenações serem fundadas em provas seguras, geradoras
da certeza dos fatos em julgamento. E, ainda, aconselhou a aplicação das
penas menos rigorosas.
Porém, o mérito incontestável de Deciani é o de ter “sistematizado” o
direito penal. Distinguiu o seu aspecto processual, do aspecto material. E
com relação a este enunciou seus princípios gerais,
expondo-os organizadamente, a partir de uma definição do delito, que
qualquer penalista moderno não se recusaria, com alguns retoques, a
endossar. Todos os elementos constantes de uma contemporânea parte
geral estão presentes na obra do Professor vêneto, tais como: o princípio
da vinculação do delito à lei, e a necessária presença do dolo e da culpa.
Também foram analiticamente examinadas as excludentes da ilicitude, e
a participação criminal. E, ainda, as causas que excluem ou modificam a
aplicação da pena. Não deixaram de ser expostas a tentativa, o concurso
de crimes, as agravantes e as atenuantes.
Direito e Democracia
207
No pertinente à parte especial, como reiteradamente noticiamos,
Deciani foi o primeiro a expô-la de forma sistemática, e tendo como critério a natureza do bem jurídico ofendido. Neste particular, o seu trabalho
só veio a ser retomado a partir dos códigos editados a partir de fins do
século XVIII.
Sem dúvida, a Tibério Deciani deve-se a primeira sistematização do
direito penal, embora a sua obra tenha restado incompleta, e seja carente
em alguns aspectos. Mas este pioneirismo, dando ao sistema penal a configuração com que ele atualmente se apresenta, não pode deixar de lhe
ser creditado. Daí a importância ineludível do seu trabalho, e, principalmente, a sua significação histórica. Como conseqüência, não se pode
deixar de concordar com ANTONIO MARONGIU quando afirma que
Tibério Deciani, foi um dos “fundadores na moderna ciência penalística”(6).
E, com FEDERICO SCHAFFSTEIN, quando escreve ter sido o professor
padovano “o verdadeiro criador tanto da parte geral como do sistema da
parte especial”, e que “nenhum de seus contemporâneos, e nenhum dos
criminalistas dos séculos seguintes, o superou”. Razão porque, no entender do mestre alemão mencionado, Deciani foi “um dos maiores juristas
que apresenta a história da ciência do direito”.(7)
(6)
ANTONIO MARONGIU, ob cit., p. 387.
(7)
FEDERICO SCHAFFSTEIN, ob. cit. págs. 124 e 126.
208
Direito e Democracia
O trabalho científico
The Scientific Paper
LUÍS AFONSO HECK
Prof. Pós-Graduação na UFRGS e ULBRA; Coordenador de Pesquisa em Ciências Jurídicas na ULBRA
RESUMO
O artigo dedica-se, primeiro, à questão da escolha do tema, teórico ou prático,
para a elaboração de um trabalho científico; depois, do problema da estrutura, a
divisão em unidades de sentido, do tema escolhido e, em seguida, do desenvolvimento, a formulação do problema e a sua resposta, seguindo-se uma conclusão.
Palavras-chave: trabalho científico, metodologia, escrita
ABSTRACT
The paper deals with, first, the issue of choosing a topic, theoretical or practical, for writing a scientific paper; then, with the problem of structure, the division in units of sense, the topic chosen and, finally, with the development, problem formulation and answer.
Key words: scientific paper, methodology, writing
INTRODUÇÃO
Toda a feitura de uma pesquisa1 tem em vista um resultado, ou seja, a
Este artigo é o resultado de uma palestra proferida no Curso de Atualização em Metodologia do Ensino Jurídico,
no dia 03 de junho de 2000, na ULBRA, Canoas.
1
Sobre a pesquisa especificamente, ver ZITSCHER, Harriet Christiane. Como pesquisar? Revista da Faculdade
de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, vol. 17, página 108, 1999.
Direito e Democracia
Canoas
n.2
Direito e vol.1,
Democracia
2º sem. 2000
p.209-215209
elaboração de um trabalho científico que, nas ciências do espírito,2 em
geral, é constituído por um artigo ou uma monografia (obra que trata
exaustivamente de um determinado tema). Este artigo, portanto, tem em
vista fornecer àqueles que se dedicam à elaboração de um trabalho científico na área jurídica um auxílio. Para tanto, ele está estruturado em três
partes: a primeira trata do tema (sobre o que escrever), a segunda cuida
da sua estruturação (por que escrever) e a terceira se dedica ao desenvolvimento (como escrever).
1. A ESCOLHA DO TEMA
Quando alguém se propõe a escrever um trabalho científico, em geral,
está motivado por uma exposição oral, uma leitura ou um problema que se
apresentou na vida profissional. Em todos esses casos é importante identificar
os pontos essenciais do tema. Para tanto, não basta a capacidade de ouvir, de
ler ou de decidir, mas é necessária a disposição de acercar-se dos pontos
essenciais de forma correta. Disposição significa, neste caso, compreender,
não apenas entender. Em outras palavras: é preciso conhecer, familiarizar-se
com o tema sobre o qual versou a exposição, o escrito ou que compôs o problema que se apresentou, ou seja, é necessária a pré-compreensão e não o
pré-juízo. Como se chega a ela? Em primeiro lugar, deve-se estar consciente
de que nada cai do céu azul, em segundo, por isso mesmo, é preciso situar o
tema. Para tanto, é necessário verificar qual a melhor obra sobre o tema
escolhido. Se não for nacional, o melhor é lê-la no original, mas se isto não for
possível, deve-se optar pela melhor tradução. Quando se tratar de uma questão prática surgida na atividade profissional, cabe verificar qual o tribunal,
ou eventualmente o juiz, que decidiu sobre o problema que se apresentou. Se
não for um tribunal brasileiro, deve-se, da mesma forma, procurar ler a decisão no original, ou então, valer-se de uma boa tradução. Depois, convém
verificar se tem material disponível sobre o livro ou a decisão, isto é, resenhas,
artigos, livros de comentários, livros de doutrina ou monografias, principalmente trabalhos de mestrado ou doutorado.3
2
Para uma diferenciação destas com as ciências da natureza exatas, ver KRINGS, Hermann, STEGMÜLLER,
Wolfgang & BAUMGARTNER, Michael. Método. Tradução por Luís Afonso Heck. Estudos Jurídicos,
São Leopoldo, vol. 32, n. 84, principalmente página 16 e seguinte, jan./abr. 1999. Tradução de Methode.
3
Quando a elaboração de um trabalho científico cabe ao aluno, em geral, o professor fornece informações a este
respeito.
210
Direito e Democracia
Nesta situação coloca-se, portanto, a tarefa de identificação e coletânea do material. Desde este momento é fundamental a previsão da execução do trabalho por meio de um cronograma.
Para a identificação são úteis as fichas. Elas podem ser organizadas, no tocante à doutrina, por autor ou por palavra-chave. Se for por autor, ela deve
conter: nome do autor, da obra, edição, local da edição, editora e ano. Também
é importante indicar na ficha onde se encontra o trabalho fichado. Isto pode ser
colocado à direita, na parte superior da ficha. Se a organização se der por
palavra-chave, vale a mesma coisa: coloca-se a palavra-chave à esquerda, na
parte superior da ficha, à direita, também na parte superior da ficha, o local
onde se encontra o trabalho e, abaixo, repete-se como se fosse ficha de autor.
Tanto em um como em outro caso é bom, devido à praticidade, organizá-las em
ordem alfabética. Quando se tratar de identificação de jurisprudência é necessário, primeiro, organizar as fichas por tribunais, se o tema for verificado em
mais de um tribunal, segundo, ordená-las dentro de um determinado período
de tempo, que pode ser anual e, terceiro, colocar à esquerda, na parte superior
da ficha: turma ou câmara, relator, data e, à direita, na parte superior da ficha,
indicar se houve voto dissidente. Quando, enfim, a identificação for relativa à
legislação é importante organizar as fichas por meio do tipo de leis (lei complementar, lei ordinária, medida provisória, e assim por diante), que pode ser colocado à esquerda, na parte superior da ficha, e ordená-las de acordo com a
seqüência temporal das publicações.
Uma vez identificado o material, que pode ser feito tanto por visitas a
bibliotecas, tribunais ou corporações legislativas4, como também pela
Internet, é necessário coletá-lo. Aqui são indicados os serviços das bibliotecas, os contatos com pessoas que podem ajudar e o manuseio da Internet.
2. A ESTRUTURAÇÃO DO TEMA
Por estruturação do tema entende-se, aqui, tecnicamente, a feitura
de um sumário5, que é diferente de um índice.6 Nesta parte, colocam-se
4
Convém que o pesquisador iniciante se informe nas bibliotecas, tribunais ou corporações legislativas com a pessoa
competente, ou seja, a responsável técnica, com o fim de manusear corretamente os meios disponíveis de
informação, como, por exemplo: organização de catálogos, critério de disposição dos livros ou revistas, tipos de
empréstimo, as vinculações da biblioteca com outros setores, funcionamento dos computadores.
5
Ver NBR 6027.
6
Ver NBR 6034.
Direito e Democracia
211
duas questões: quando fazer e como fazer, sendo que esta depende daquela. A feitura de um sumário exige que se tenha lido efetivamente o
material coletado e meditado sobre ele. Disto deve resultar, por um lado,
a compreensão da origem e da evolução do tema, das posições divergentes sobre ele, de suas conexões com temas afins e dos seus pontos problemáticos7 e, por outro, a delimitação do próprio tema que pode, neste momento, ser mais abrangente ou mais restrito daquele inicialmente imaginado. Quando, portanto, o processo do pensamento sobre o tema estiver
neste ponto, ele também é capaz de dar o suporte adequado para a segunda questão, ou seja, a de como fazer.8 Nesta etapa deve ser observado que
um trabalho científico, no caso, um livro, compõe-se de elementos prétextuais, textuais e pós-textuais.9
O texto é um dos elementos textuais, isto é, a parte do livro em que é
exposta a matéria e que é composta, em geral, de introdução, desenvolvimento e conclusão. Aqui é importante ater-se à questão da estrutura do
desenvolvimento. A forma de divisão da estrutura do desenvolvimento pode
ser por categorias: partes (primeira parte, segunda parte ... - sempre por
extenso), capítulos (número romano) partes de capítulo (letra maiúscula),
subdivisão das partes de capítulo em parágrafos (número arábico), subdivisão dos parágrafos (letras minúsculas) e, se mais subdivisões se mostrarem
necessárias, empregam-se as letras gregas. Ou então pode-se adotar para a
divisão da estrutura do desenvolvimento a forma decimal, ou seja, 1. 2. 3.
... e correspondente subdivisão: 1. 1.1, 1.2., 1.2.1, 1.2.2 ... .10
Deve também prestar-se atenção no arranjo da estrutura do texto relativo ao desenvolvimento. As divisões da estrutura devem guardar uma
proporção entre si no que diz respeito ao peso temático, à extensão e às
subdivisões. A existência de desproporções, neste âmbito, prejudica não
só a clareza e inteligibilidade do sumário, mas também dificulta a sua
função de direção.
7
Isso tudo possibilita a idéia do conjunto do tema, isto é, de sua composição e de sua unidade que, por sua vez,
permite a formulação do problema. Na linguagem científica alemã costuma-se dizer que aquele que
pretende elaborar um trabalho científico deve primeiro conseguir ver o tema (durchblicken), ou seja, a
idéia do conjunto deve tornar-se-lhe transparente e não permanecer opaca. Dito de outra forma: a
elaboração de um trabalho científico requer que se domine o tema neste sentido.
8
É importante acentuar que o fracasso na elaboração de um trabalho científico está vinculado muito mais a estas
duas questões do que à falta de talento para realizá-lo. Por isso, o professor orientador desempenha, neste
momento, um papel fundamental como interlocutor do aluno.
9
Ver NBR 6029 e NBR 10524. Para os elementos da composição de um artigo, ver NBR 6022.
10
A NBR 6024 parece adotar o sistema decimal.
212
Direito e Democracia
3. DESENVOLVIMENTO
A redação do trabalho científico11 depende, em grande medida, do
acerto dos passos anteriores, ou seja, da escolha do tema e da sua
estruturação. Em outras palavras: se isto está correto, meio caminho já
está andado ou o fio vermelho já foi achado. Cabe, portanto, ao desenvolvimento mostrar o desenrolamento deste fio, também à introdução e à
conclusão. A presença deste fio vermelho no decorrer de todo o trabalho
está na dependência de alguns aspectos.
O primeiro é relativo aos títulos das divisões da estrutura. Os títulos,
inclusive aquele do trabalho, devem representar o conteúdo daquilo que
segue a eles e, ainda, o título inferior, ou seja, aquele que vem imediatamente depois do título superior, deve ser uma parte do título superior de
modo que ambos formem uma unidade de sentido. Em outras palavras: o
título do livro deve representar um conceito12 amplo, formado pelos títulos que dividem e subdividem a estrutura do elemento textual (desenvolvimento) e, por isso, estes títulos devem compor conceitos subordinados.
O segundo aspecto diz respeito àquilo que se quer dizer com o escrito.
Como todos os títulos da divisão e da subdivisão da estrutura devem expressar conceitos, então deve aquilo que segue a eles desenvolver o que
o conceito do título expressa. No desenvolvimento da exposição de cada
título é conveniente pensar com parágrafos, ou seja, no primeiro apresentar a idéia ao leitor, e no seguinte, ou seguintes, trabalhá-la de forma
lógica13 de modo que cada parágrafo componha um desdobramento da
idéia para, no final da exposição do título, a seqüência dos parágrafos
formar um conjunto compreensível.14
O terceiro aspecto é pertinente à terminologia. Todo ramo da ciência
tem uma terminologia que lhe é própria e assim também o Direito. A
redação de um trabalho científico requer o domínio desta terminologia.
A falta de precisão terminológica em um texto científico revela, em geral, falta de conhecimento do tema, ou seja, o autor não tem a pré-com11
Pode haver mais de uma, a provisória e a definitiva, por exemplo.
12
Conceito é o conteúdo semântico de uma palavra, de uma idéia.
13
A Lógica é a doutrina da estrutura, das formas e leis do pensamento; a doutrina do pensamento conseqüente,
da conclusão sobre a base de declarações dadas.
14
Não é demais lembrar que a redação de um trabalho científico pressupõe o conhecimento da gramática.
Portanto, o que foi dito para os parágrafos também se aplica às frases do texto.
Direito e Democracia
213
preensão necessária. Esta carência não pode ser curada com a desculpa
da elegância de estilo.15
O quarto aspecto toca às citações.16 Aqui cabe mencionar dois pontos.
O primeiro é pertinente à omissão da fonte. Desde Kant, a verificação da
verdade17 relativa às afirmações lógicas cabe à ciência.18 Portanto, um
trabalho científico não pode omitir fontes, mesmo quando se tratar de
citação livre do texto (paráfrase),19 porque é tarefa sua verificar a verdade e não passá-la adiante como se fosse sua. Além disso, a omissão da
fonte coloca o trabalho científico sob a suspeita do plágio. O segundo
ponto está afeto à citação em si. Ela deve contribuir para o desdobramento da idéia e, neste sentido, requer o conhecimento não apenas do texto
citado, mas também do contexto onde está situado. Além disso, longas
citações devem ser evitadas. O seu conteúdo deve ser trabalhado e inserido no corpo do texto.
O quinto aspecto é referente à introdução e à conclusão. A questão
aberta na introdução deve ser fechada na conclusão. Dito de outro modo:
a formulação do problema situado na introdução deve obter uma resposta
na conclusão. Esta tarefa deve orientar tanto a estruturação do tema
como o seu desenvolvimento.
Por fim, não deve ficar esquecido o tamanho do trabalho científico.
Quando se trata de uma obra monográfica, ela não deveria ultrapassar
250 páginas.
CONCLUSÃO
A elaboração de um trabalho científico pressupõe uma pesquisa e requer a consideração da escolha do tema, da sua estruturação e do seu
desenvolvimento. Estas questões se encontram em uma relação de precedência (do sucesso de uma depende a outra) e mútua influência (das três
15
Diz-se que, segundo Albert Einstein, a elegância pertence aos alfaiates e sapateiros.
16
As regras relativas às citações encontram-se na NBR 6023, NBR 10520 e NBR 10522.
17
Verdade, dito de modo simples, é a concordância de uma declaração com o objeto sobre o qual ela é feita.
18
Ciência é o saber apoiado argumentativamente para uma atividade investigadora e criadora em um determinado âmbito.
19
Ver sobre isto a NBR 10520.
214
Direito e Democracia
deve resultar uma construção livre de contradição). Elas também exigem
a administração correta do tempo. Por isso, é fundamental, desde o início, também a organização de um cronograma, porque além de auxiliar
no controle da execução do trabalho ele também cria o hábito de atuar
com disciplina.
Direito e Democracia
215
216
Direito e Democracia
Apontamentos históricos sobre o
método jurídico
Historical Notes on the Juridical Method
PLAUTO FARACO DE AZEVEDO
Doutor em Direito pela Universidade Católica de Louvain. Professor do Curso de Pós-Graduação - Mestrado em
Direito da ULBRA.
RESUMO
O texto busca reexaminar o método jurídico e suas modificações, tendo por
eixo o seu comprometimento social, esquecido durante o positivismo,
notadamente exegético. Segue-se seu exame no historicismo jurídico e à luz da
Escola do Direito Natural. O relativismo, que se seguiu a estes movimentos,
desembocou no formalismo, desarmado frente à arbitrariedade legal. Considera, por fim, o método jurídico em face da perplexidade neoliberal.
Palavras-chave: Método jurídico e positivismo, Método jurídico, historicismo e
jusnaturalismo, Método jurídico e contexto atual.
ABSTRACT
The text aims at reexamining the juridical method and its changes, having as axis its
social commitment, which was forgotten during Positivism, primarily concerned
with exegesis. It is followed by its examination in juridical historicism and under the
light of the School of Natural Law. The relativism which followed these movements
produced a formalism which was unable to face legal arbitrarities. The text also
considers the juridical method face to the neoliberal perplexity.
Key words: juridical method and positivism, juridical method, historicism and
jusnaturalism, juridical method and present-day context.
Direito e Democracia
Canoas
n.2
Direito e vol.1,
Democracia
2º sem. 2000
p.217-237217
1. MÉTODO JURÍDICO - COMPROMETIMENTO
SOCIAL E DESVIO POSITIVISTA
Como todo escrito, que pretenda ter ressonância humana, o escrito
jurídico precisa assentar na realidade. Isto supõe a capacidade de observar, discriminar e aferir a trama íntima dos fatos e valores constitutivos do
direito. Hoje, como em qualquer tempo, é na sociedade que se situa o
centro de gravidade do desenvolvimento jurídico 1.
Esta premissa serve para afastar o vezo de apresentar doutrinas e teorias desligadas de suas condicionantes sociais e políticas, como se fossem
puras construções do espírito, entre as quais, em conseqüência, se torna
difícil escolher 2.
A Ciência do Direito, como toda ciência, não “é uma atividade que
opera no vazio, mas sim ‘uma atividade social’”3, impregnada de juízos
valorativos, comprometida com certa visão de mundo e com os interesses
materiais e imateriais que a sustentam. É, assim, em medida variável,
permeada pela ideologia4, cujo jogo não pode ser ignorado, necessitando
ser distinguido e, tanto quanto possível, controlado.
Por isto, não pode o direito - material, processual ou sobredireito - ser
desligado de suas condicionantes histórico-culturais5. A ordem jurídica
1
Ehrlich, Eugen. I fondamenti della sociologia del diritto (Grundlegung der Soziologie des Rechts). Trad. per Alberto
Febbrajo. Milano: Gouffrè, 1976. P. 3.
2
Miaille, Michel. Les figures de la modernité dans la science juridique universitaire. In Bourjol , Maurice et
allii. Pour une critique du droit. Grenoble: François Maspero-Pressses Universitaires, 1978. p. 114.
3
Latorre, Angel. Introducción al derecho. 6.ed. Barcelona:Ariel, 1974. p. 122.
4
A bilbiografia sobre o significado e função da ideologia tornou-se, como é notório, inexaurível, desde que Marx
a aflorou, em 1845-1846, na Ideologia Alemã (referência bibliográfica: Azevedo, Plauto Faraco de. Direito,
justiça social e neoliberalismo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999). Não é o intuito deste trabalho seguirlhe o traçado, nem em Marx nem dos que, posteriormente, dela se ocuparam. O que se deseja é por em
relevo seu caráter escamoteador da realidade, mediante a deformação da imagem mental, que a traduz.
Não se pretendendo alterar a realidade, produz-se uma falsa imagem dela, que a subverte. Sucintamente
é “o pensamento teórico, que julga desenvolver-se abstratamente sobre seus próprios dados, mas que é, em
verdade, expressão de fatos sociais, particularmente de fatos econômicos, dos quais aquele que o constrói
não tem consciência, ou, ao menos, não se dá conta de que eles determinam seu pensamento”. Lalande,
André. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. 10.éd. rev. aug. Paris: Presses Universitaires de
France, 1968. p. 459.
5
Azevedo, Plauto Faraco de. Recherches sur la justification de l’application du droit étranger chez les Anglo-Américains
et leurs antécédents Hollandais. Préface par François Rigaux. Louvain: Centre de Droit International, 1971,
passim; __ Do histórico no direito. Separata da Revista Estudos Jurídicos n. 9, da Escola de Direito da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, s.d.
218
Direito e Democracia
reflete e reproduz, com maior ou menor coerência, os fatores materiais e
imateriais constitutivos do modelo político-econômico vigente. Do caráter mais ou menos verossímil6 do pensamento jurídico deriva sua capacidade maior ou menor de orientar de modo justo o convívio social, assim
como de adaptá-lo às mutáveis exigências do quadro histórico. Para que
isto se possa realizar , de modo adequado, a Ciência do Direito precisa
ultrapassar a ideologia positivista, que busca circunscrevê-la aos juízos de
constatação, amputando-lhe a dimensão histórico-crítica7.
A ideologia positivista dificulta o progresso jurídico, porque traduz
indiferença às contingências sociais, dando prevalência quase exclusiva
aos aspectos formais do direito. Embora tenha se refinado com o passar do
tempo, contribuindo para “o conhecimento do lado existencial do direito”8, não mudou seus fundamentos. Sempre confundiu, senão identificou
o direito e lei, autolimitando a Ciência do Direito ao estudo da lei positiva, estabelecendo a estatalidade (exclusiva) do direito9.
Não há dúvida que o trato científico do direito requer a precisão conceitual,
mas isto não pode implicar uma preocupação exclusiva com o logicismo
interno da ordem jurídica ou com seu encadeamento conceitual. O trato do
conceito pelo conceito facilmente se converte em ideologia. Em situações de
crise, como a atual, o virtuosismo conceitual é mais rigorosamente cultivado,
operando como cortina de fumaça a desviar a percepção do real, onde se
encontram os problemas, a cuja solução deve tender a ordem jurídica. Para
isto, não pode a Ciência do Direito ser um discurso morto, sobre uma realidade menosprezada ou tida como inerte. É parte inafastável da Ciência do
Direito o trabalho de valorização do direito positivo10 e de seus efeitos sociais.
6
Sobre a importância da verossimilitude, no direito, vide: Aristóteles. Ethique à Nicomaque. 2.éd. Paris:
Librairie Philosophique J. Vrin, 1967. III, 5, 1112a, p. 133-5; __ Réthorique. 2.éd. Paris: “les Belles
Lettres”, 1960. t. 1, livre I, 1354a, 1355a-b, 1356a-b, 1357a-b, 1358a-b, p. 70, 74-5, 77-9, 80-4; Perelman,
Chaim. Logique juridique. Nouvelle réthorique. Paris: Dalloz, 1976. p. 1-2, p. 99-125, passim.
7
Haesaert, J. Théorie générale du droit. Bruxelles: Bruylant; Paris: Sirey, 1948. p. 20. Azevedo, Plauto Faraco de.
Justiça distributiva e aplicação do direito. Porto Alegre: Fabris, 1983. p. 112 e seg; Crítica à Dogmática e
Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Fabris, 1989. passim; __Aplicação do direito e contexto social. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 36-52, passim.
8
Henkel, Heinrich. Introducción a la filosofia del derecho (Einführung in die Rechtsphilosophie) Trad. por Enrique
Giambernati Ordeig. Madrid: Taurus, 1968. p. 634.
9
Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. A Ciência do Direito. São Paulo: Atlas, p.32
10
Não deixa dúvida Karl Larenz, escrevendo “que a ciência do Direito desenvolve por si métodos ‘orientados a
valores’, que permitem completar valorações previamente dadas...” Larenz, Karl. Metodologia da ciência do
direito. Trad. da 5.ed. alemã, 1983, por José Lamego ver. Por Ana de Freitas. 2.ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1989. p. 3.
Direito e Democracia
219
Nega-se, freqüentemente, este aspecto, por opção fundada nos pressupostos
do positivismo jurídico. Renunciando valorizar os institutos legais e a metodologia por que orienta seu trabalho, o jurista não pode influir na atualização
das instituições, tendo que aceitar que se modifiquem ou fraturem à sua
revelia11.
Embora a base para o positivismo haja sido preparada pelo extraordinário sucesso das ciências naturais, na primeira metade do século XIX,
do que derivou a tendência de aplicar seus métodos às ciências sociais12,
não constituiu ele apenas uma tendência científica, “mas também esteve
ligado, inegavelmente, à necessidade de segurança da sociedade burguesa”13.
2. HISTORICISMO JURÍDICO E CIÊNCIA DO
DIREITO
O caminho para o positivismo jurídico havia sido preparado por Kant
(1724-1804), ao estabelecer, no Conflito das Faculdades, que “o jurista
erudito não busca as leis que garantem o meu e o teu (se, como deve,
proceder como funcionário do governo) na sua razão, mas no código oficialmente promulgado e sancionado pela autoridade suprema. Não pode
justamente exigir-se dele a demonstração da sua verdade e legitimidade,
nem a sua defesa contra a objeção antagónica da razão. De facto, os
decretos é que primeiramente fazem que algo seja justo, e indagar se
também os próprios decretos são justos é algo que os juristas têm que
rejeitar como absurdo... o respeito devido ao governo consiste precisamente em que ele não permite aos súbditos a liberdade de julgar sobre o
justo e o injusto, segundo seus conceitos próprios, mas de acordo com a
prescrição do poder legislativo”14.
11
Azevedo, Plauto Faraco de. Aplicação do direito e contexto social, p. 22, passim.
12
Bodenheimer, Edgar. Jurisprudence: The Philosophy and Method of the Law. ed.rev. Cambridge, Mass.: Harvard
University Press, 1974. p. 93
13
Ferraz Júnior, Tércio Sampaio, op. cit., p. 22.
14
Kant, Immanuel. O Conflito das Faculdades(Der Streit der Facultäten).Trad. por Artur Morão. Lisboa:
Edições 70, 1993. p. 27-8. O grifo é nosso. Na Universidade, Kant distingue três Faculdades superiores,
segundo a razão: Faculdade Teológica, Faculdade dos Juristas e Faculdade de Medicina. Nas doutrinas
por estas disseminadas, o governo tem interesse, como “meio de ele manter a mais forte e duradoura
influência sobre o povo”, reservando-se “o direito de ele próprio sancionar as doutrinas das Faculdades
220
Direito e Democracia
Também conducente ao positivismo jurídico foi a Escola Histórica alemã, que, pela primeira vez, emprega o termo Ciência do Direito
(Rechtswissenschaft, Jurisprudenz), que se opôs à “concepção sistemática,
de caráter formal-dedutivo, representada pelo jusnaturalismo racionalista”,
acentuando a inserção histórica e social do direito, buscando o direito na
experiência jurídica dos povos15.
Savigny sublinhava a dependência natural do direito civil relativamente ao costume e ao caráter peculiar de cada povo, à semelhança do que se
passa com a linguagem. “O direito progride com o povo, aperfeiçoa-se com
ele e finalmente perece quando o povo perde sua individualidade... o direito vive na crença comum do povo”. Na medida em que a civilização progride, as múltiplas atividades do povo vão-se especializando e o que, a princípio, formava um conjunto, divide-se em múltiplos ramos, tocando um deles
aos juristas. “Deste modo, o direito, juntamente com a linguagem, aperfeiçoa-se, ganha aspecto científico, e o que antes vivia na consciência popular converte-se daí, em diante, em matéria da competência dos juristas,
que, deste modo, vêm a representar o povo”. A partir deste momento, “sem
deixar de haurir sua vida da vida do povo, produz-se simultaneamente
outra vida, como obra especial da ciência, a cargo dos juristas”. Em suma,
“o direito se origina, em primeiro lugar, dos costumes e crenças populares,
e, após, da jurisprudência; sempre, portanto, em virtude de uma força interior e silenciosa, jamais em virtude do arbítrio de qualquer legislador”16.
Verdade é que a Escola Histórica , “que parecia voltada a um
sociologismo jurídico, engendrou um normativismo e um dogmatismo”17
Superiores”. O governo “não ensina, mas ordena somente aos que ensinam (lide-se com que verdade se
quiser), porque, ao tomar posse de seu cargo, concordaram com isso mediante um contrato com o governo”.
O governo pretende “apenas que certas doutrinas sejam acolhidas pelas respectivas Faculdades na sua
exposição pública, com exclusão das doutrinas contrárias”. Ademais, “o teólogo bíblico (como adscrito à
Faculdade Superior) não vai buscar os seus ensinamentos à razão, mas à Bíblia; o professor de Direito não
vai beber ao direito natural, mas ao direito consuetudinário... Kant, Immanuel, op. cit., p. 21-5. O grifo
é nosso.
15
Guerra Filho, Willis Santiago. Introdução à Filosofia e à Epistemologia Jurídica. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1999. p. 110-11. A Escola Histórica Alemã conduziu a investigação no sentido das forças
modeladoras do direito, fazendo ressurgir o interesse pelas investigações históricas do direito, típico do
século XIX. Bodenheimer, Edgar, op. cit., p. 73-4.
16
Savigny, F. de. De la vocación de nuestro siglo para la legislación y la ciencia del derecho. Trad. por Adolfo G. Posada.
Buenos Aires: Atalaya, 1946. P. 43-8. Onde, no texto, se lê “jurisprudência”, deve-se entender Ciência do
Direito, conforme a tradição doutrinária alemã. O grifo é nosso.
17
Hernandez Gil, Antonio. Metodologia de la Ciencia del Derecho. In: Obras completas. Madrid: Espasa-Calpe,
1988. t. 5, p. 77.
Direito e Democracia
221
À medida que a Escola Histórica foi progredindo em suas análises
dogmáticas, “o pandectismo absorveu o historicismo”, chegando o
conceptualismo jurídico (Begriffsjurisprudenz) a imperar nesta Escola18.
Carlos Cossio assinala que, do ponto de vista da Sociologia do Conhecimento, duas circunstâncias possibilitaram o surgimento da Ciência do Direito positivo: “a distinção gnosiológica entre moral e direito,
sustentada por Kant, e a ontologização do direito positivo levada a efeito por Savigny”. Surge, então, a Ciência do Direito com característica
empírica, trabalhando “o direito enquanto fenômeno efetivo, em atitude neutra relativamente a qualquer avaliação a respeito de sua intrínseca moralidade e justiça”19. Não há como negar, por outra parte, que
Savigny, opondo-se à codificação e contribuindo a retardá-la por quase
um século, exprimiu uma concepção que considerava os fatores históricos sob o prisma da função conservadora da norma legal20.
3. ESCOLA DA EXEGESE
Outro braço do conservadorismo jurídico foi representado pela Escola da Exegese, na França, resultante da codificação napoleônica,
notadamente do Código Civil de 1804. Se não resta dúvida de que a
codificação representou um avanço relativamente à legislação fragmentária do Antigo Regime21, propiciando a segurança que o “tráfico” jurídico burguês necessitava para expandir-se, o seu culto, através da Escola da Exegese, evidenciou seu aspecto conservador. O positivismo,
que, a partir dela, se estabeleceu, não recusa o direito natural, por
entendê-lo contido na codificação, que o exprimiria de modo perfeito.
18
Tal é a análise de Luís Legaz y Lacambra, em sua Filosofia del Derecho, 1953, recolhida e aceita por Reale,
Miguel. Teoria tridimensional do direito. 2.ed.rev.atual. São Paulo: Saraiva, 1979. p. 5, nota 3.
19
Cossio, Carlos. La valoración jurídica y la Ciencia del Derecho. Buenos Aires: Arayú, 1954. p. 39-40.
20
Azevedo, Plauto Faraco de. Limites e justificação do poder do Estado.
21
A sociedade medieval era “uma sociedade pluralística, e, portanto, cada grupo tinha direito próprio: havia o
direito feudal, o direito das corporações de ofício, o direito das comunas ou civitates (dito direito
estatutário, porque os atos que o contemplavam chamavam-se estatutos), o direito dos reinos. Todos estes
direitos eram, em princípio, subordinados ao direito romano, assim como as organizações sociais subordinavam-se ao Império”... Bobbio, Norberto. Il positivismo giuridico (Lezioni di filosofia del diritto raccolte dal
dott. Nello Morra). Torino: G. Giaippichelli, 1979. p. 25.
222
Direito e Democracia
Petrópolis: Vozes, 1979. p. 25-6.
Na medida em que se instala o positivismo jurídico, o direito natural
perde sua força crítica22.
O mesmo espírito, presente no positivismo jurídico, exprimia-se claramente no positivismo filosófico de Augusto Comte, que só pode ser compreendido sob o pano de fundo de uma sociedade traumatizada pela Revolução Francesa. Comte, a seu modo, procura deter o curso da história,
centrando-se seu pensamento sobre “a idéia de ordem ,que é a matriz de
todos os temas filosóficos”, exprimindo-se “pela meticulosidade de sua
mania classificatória”. Por meio da classificação das ciências, “designa a
cada cientista a sua tarefa específica, proibindo-lhe transgredir as fronteiras que separam uma disciplina da outra.” A garantia de segurança,
buscada por Comte, conduziu-o à famosa ‘higiene cerebral’, pela qual
proibiu-se toda leitura nova, após os trinta anos. Ademais, “combate o
sufrágio universal, a organização constitucional do Estado, a democracia
parlamentar”. Já o problema social “não é solucionável por meio de uma
reforma econômica, mas unicamente por uma reforma moral que mude os
costumes e as crenças”23.
Compreende-se esta forma de “filosofia” nos quadros do século XIX,
“dominado pela contra-revolução”. O pensamento filosófico do século XVII
“metera mãos à obra para explorar vigorosamente o mundo”, buscando
encontrar ‘a verdade nas ciências’. “A razão do século XVIII alegra-se em
comparar, inventar, mudar, com o gosto da diferença, que se compraz com
a mobilidade da história”. Já, no século XIX, “os homens parecem acometidos de estupor diante do sorvedouro aberto pelos acontecimentos da
Revolução: chamam de volta a razão à sua concórdia doméstica”, proibindo-se ‘divagar’ sobre a substância das coisas ou inventar novas experiências sociais. É assim que Comte quer exorcizar a mudança, escapando
ao devir “que altera e corrompe a ‘natureza’ de todas as coisas”24. O
positivismo jurídico, seguindo uma inclinação filosófica geral do século
passado, traduz a crença na possibilidade de estudar e aplicar o direito
independentemente de valorações éticas ou implicações sociais. Nesta
circunstância, “uma operação de poder historicamente relativa, uma so-
22
Batiffol, Henri. La philosophie du droit. Paris: Presses Universitaires de France, 1966. p. 7-8. (“Que sais-je”)
23
Verdenal, René. A Filosofia positiva de Augusto Comte. In: Châtelet, François, ed. História da filosofia;
idéias, doutrinas (Histoire de la philosophie; idées, doctrines) Trad. por Guido de Almeida. Rio: Zahar,
1974. V. 5: A filosofia e a história (La philosophie et l’histoire), 1780-1880. p. 214, 216-8,228; passim.
24
Verdenal, René, op. cit., p. 244.
Direito e Democracia
223
lução contingente, própria de determinado jogo de forças históricas, foi
projetada até o paraíso dos modelos absolutos e se converteu na melhor
solução para hoje e amanhã, graças às potencialidades jusnaturalistas de
que foi impregnada. Estabeleceu-se como conforme à natureza aquilo
que era tão-só o instrumento inteligente e lúcido para a manutenção do
poder conquistado a duras penas”25.
Na nova configuração de forças resultante da Revolução Francesa,
passou-se a considerar o direito positivo como um sistema fechado. Tratava-se de vedar, de modo terminante, a alteração do direito posto pelo
Estado, limitando-se a atividade do prático, particularmente do juiz, proibindo-lhe drasticamente criar o direito. Ao sistema cerrado do direito
positivo haveria de corresponder o fechamento do horizonte hermenêutico,
segundo o modelo restrito e restritivo do ensino jurídico26.
Da Revolução Francesa, via Escola da Exegese, resultou a elaboração
da Ciência Jurídica de feição positivista, que cindiu o discurso jurídico,
instaurando a “ideologia da separação”27. Estabeleceu-se “um verdadeiro
dualismo ou uma justaposição de perspectivas, como se houvesse um direito para o jurista e um outro para o filósofo, cada um deles isolado em seu
domínio...”28, ocupando-se o jurista da Ciência Jurídica, de orientação
positivista, destinada à compreensão e organização da ordem jurídicopositiva, mediante a rigorosa conceituação e taxinomia das instituições
legais, alheada de seus valores e efeitos concretos na vida dos homens.
Não há dúvida de que o direito seja, “antes de tudo, ciência de normas”,
a exigir do jurista seu acurado conhecimento, indispensável à sua interpreta-
25
Grossi, Paolo. Absolutismo jurídico e derecho privado en el siglo XIX.
Barcelona, 1991. p. 14-5.
26
Sobre as reservas dos revolucionários franceses relativamente aos juízes do Ancien Régime e suas razões, vide:
Vedel, Georges. Droit administratif. Paris: Presses Universitaires de France, 1958. t. 1, p. 37-8; David,
René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Direito Comparado (Les grands systèmes de droit
contemporains. Droit comparé) Trad. de Hermínio A. Carvalho. Lisboa: Miridiano, 1972. p. 65; David,
René & Jouffret-Spinosi, Camille. Les grands systèmes de droit contemporains. 10.éd. Paris: Dalloz, p. 43;
Halperin, Jean-Louis. “Introuvable pouvoir judiciaire”. Le Monde de la Révolution Française, n. 10:
Journal des droits de l’homme, Paris, out. 89, p. 21; Engisch, Karl. Introdução ao pensamento jurídico
(Einführung in das Juristische Denken) Trad. e pref. Por J. Baptista Machado. 2.ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1968. P. 170. Sobre o modelo de ensino jurídico vigente à època da Escola da
Exegese, vide: Bonnecase, Julien. Introduction à l’étude du droit. 2.éd.ver.aug. Paris: Recueil Sirey,
1931. p. 181 e segs.
27
Lyra Filho, Roberto. Para um direito sem dogmas.
28
Reale, Miguel. Teoria tridimensional do direito.
224
Barcelona: Universidad Autónoma de
Porto Alegre: Fabris, p. 42-3.
2.ed. rev. atual.
Direito e Democracia
São Paulo: Saraiva, 1979. p. 3
ção e aplicação. Mas isto não indica que possa o direito ser reduzido “a uma
técnica consistente em um hábil arranjo de princípios e exceções”.29
4. RELATIVISMO JURÍDICO E
“ARBITRARIEDADE LEGAL”
Radbruch, que, em uma primeira fase foi relativista30, em extraordinário trabalho, no pós-guerra, tendo em vista as bárbaras vicissitudes do
Terceiro Reich31, escreveu que o “positivismo jurídico, com seu ponto de
vista de que ‘antes de tudo se há de cumprir as leis’, deixou inermes os
juristas alemães em face das leis de conteúdo arbitrário e injusto”, ajuntando que “não se pode definir o direito, mesmo tão-só o direito positivo,
a não ser como uma ordem, que, por seu próprio sentido, está determinada a servir à justiça”. Quando não se pretende, de nenhum modo,
estabelecê-la, deixando-se de lado a igualdade, que constitui a medula
da justiça, “as normas assim elaboradas não constituem apenas direito
injusto, pois carecem da própria natureza jurídica”. Em conseqüência,
ainda que tendo cumprido os trâmites formais legalmente estabelecidos,
não constituem direito normas determinando tratamento sub-humano ou
negando direitos humanos a certos homens, assim como aquelas que, tendo
por objetivo necessidades momentâneas de intimidação, estipulam a mesma
pena (notadamente a pena de morte) a delitos de diversa gravidade32.
29
Gaudemet, Jean. Etudes juridiques et culture historique. Archives de Philosophie du droit (Droit et Histoire).
Paris, :11-2l, 1959.
30
Radbruch, Gustav. “Le relativisme dans la philosophie du droit”. Archives de philosophie du droit et de sociologie
du droit, 4 (1-2) :105-110.
31
Vide a este respeito: Azevedo, Plauto Faraco de. Limites e justificação do poder do Estado. Petrópolis: Vozes, 1979.
p. 85-190, e bibliografia aí referida, notadamente: Barbu, Sevedei. Psicologia de la democracia y de la dictadura
(Democracy and Dictatorship. Their psychology and patterns of life). Buenos Aires: Paidós, 1962, passim;
Bühelr, Ottmar. Constitución alemana de 11-8-1919 Texto completo, comentários, história y juicio crítico. Madrid:
Labor, 1931; Ebenstein, William. “Nacional socialismo”. In: Enciclopedia internacional de las ciencias sociales.
Madrid: Aguilar, v. 7; Fest, Joachim, C. Hitler (Hitler, eine Studie über die Angst) Trad. de Analúcia Teixeira
Ribeiro et alii. 2.ed. Rio: Nova Fronteira, 1976, passim; Hofer, Walther. Dossier do nacional-socialismo (Der
National-sozialismus, dokumente, 1933-1945). Lisboa: Aster, 1959; Neuman, Franz Behemoth. The Structure
and Practice of National Socialism. New York: Harper & Row, 1966, passim;. Shirer, William L. The Rise and the
Fall of the Third Reich. London: Secker and Warburg, 1962. O grifo é nosso.
32
Radbruch, Gustav. Leyes que no son derecho y derecho por encima de las leyes. In: Derecho injusto y derecho nulo.
Introd., trad. e seleção de José Maria Rodrigues Parniagua. Madrid: Aguilar, 1971. passim, notad. P. 12-16;
__ Arbitrariedad legal y derecho supralegal (Gesetzliches Umrecht und übergesetzliches Recht) Trad. de Maria
Isabel Azereto de Vásquez. Buenos Aires:Abeledo-Perrot, 1962. passim, notad. p. 21-22, 38-40.
Direito e Democracia
225
Trata-se, sem dúvida, de aferição da validade intrínseca das normas
jurídicas, indispensável à adequada evolução e aperfeiçoamento do sistema jurídico, não podendo, pois, ser defesa à Ciência Jurídica, embora
tradicionalmente seja ela denominada Dogmática Jurídica. É preciso ter
em conta que o fundamento das normas jurídicas não reside unicamente
no fato de dispor-se da força necessária para impor a sua vigência. O
poder de impor observância da norma jurídica pode servir para fundar um
“ter que “ (müssen), jamais um “dever” (sollen) ou um “valor” (gelten). A
simples existência da norma jurídica implica o valor da segurança jurídica, “Mas esta não é o único, nem o valor decisivo, que cumpre ao direito
realizar. Junto a ela há dois outros valores, que são a conveniência e a
justiça”33.
5. FORMALISMO JURÍDICO- UMA POSIÇÃO A
SER SUPERADA
Demais, a necessidade inquestionável da segurança jurídica não se
pode confundir com o imobilismo social, pois “nesta visão de mundo há
uma única tensão - a ordem e a desordem, a lei e o desrespeito à lei.
Prevaleça a ordem e a lei e o mundo estará salvo. Quem identifica ‘Estado-Ordem-Lei-Justiça’ não aceita o acolhimento de qualquer direito que
não seja o estatal, nem a absorção, pelo jurista, dos reclamos de justiça do
povo, Esta é uma visão míope da realidade social... que faz tábula rasa da
tensão existente entre ordem estabelecida e ordem desejada”34. Ora, a
segurança jurídico-social se encontra precisamente no adequado encaminhamento dessa tensão imanente ao processo histórico. Ter a ordem
estabelecida como inquestionável e, logo, imutável, pode conduzir à séria desconformidade entre o processo histórico e o processo legal, que
nele se insere35, com conseqüências sociais indesejáveis.
Com razão, escreve Vera Regina Andrade que “contrariamente à autoimagem da Dogmática Jurídica, não se trata ela de uma Ciência descritiva, nem ideologicamente neutra, mas... a neutralidade ideológica é, de
33
Id., Leyes que no son derecho y derecho por encima de las leyes, p. 12-13; Arbitrariedad legal y derecho supra
legal, p. 35-36.
34
Herkenhoff, João Baptista. Como aplicar o direito. 2.ed. Rio: Forense, 1986. p. 171.
35
Azevedo, Plauto Faraco de. Limites e justificação do poder do Estado, p. 17-23.
226
Direito e Democracia
fato, um efeito do approach científico juspositivista... E na relação funcional que a Dogmática Jurídica guarda com o Judiciário, na mesma medida em que sua neutralização decorre das exigências de neutralização
deste Poder, exerce sobre seu processo decisório uma ação de retorno
fundamental”36.
Através da doutrina e do ensino jurídico, esta matriz epistemológica
se perpetua, tendo ganhado significativo avanço com o “purismo”
metodológico de Hans Kelsen, o qual constitui a mais sofisticada versão
do positivismo jurídico e do intento de “elaborar uma ciência jurídica tão
sólida quanto pareciam sê-lo as ciências naturais”37.
Do pensamento de Kelsen, o que permaneceu, na América Latina e
no Brasil, foi a restrição gnosiológica, de que se acha impregnada a sua
concepção normativista, propondo-se exclusivamente a estabelecer o direito que é, rejeitando saber “como o direito deveria ser ou como deve ser
elaborado. Para construir a Ciência do Direito, buscou estabelecer, ciosamente, seu objeto, não reservando nenhum espaço à justiça. Equipara-se
esta à legalidade.38
Esquece-se comumente da influência política exercida por Kelsen para
que a Constituição penetrasse no mundo jurídico, “com a mesma força
com que existia no mundo político”, tendo sido também decisiva sua contribuição “para a criação e fixação das competências de uma Corte Constitucional”39.
36
Andrade. Vera Regina Pereira de. Dogmática Jurídica. Escorço de sua configuração e identidade. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1996. P. 85. “Efetivamente, o paradigma dogmático se configura através de um
processo complexo e multifário ao longo do qual vai consolidando sua identidade estrutural que, nuclearmente, uma matriz epistemológica positivista (saber) e uma matriz política estatal (poder) concorrem para
modelar”. Id., p. 88. O grifo é nosso.
37
Haesaert, J. Théorie générale du droit, p. 50.
38
Kelsen, Hans Théorie pure du droit (Reine Rechtslehre). Trad. par Charles Eisenmann. 2.éd. Paris: Dalloz,
1962. P. 1-2; __Teoria pura del derecho y del Estado. Trad. por Eduardo Garcia Maynez. 3.ed. México:
Textos Universitarios, 1969. p. 16. “É justo que uma regra geral seja aplicada naqueles casos em que, de
acordo com seu conteúdo, deva ser aplicada”, enquanto que “injusto seria que ela fosse aplicada em um
caso e não o fosse em outro similar”, independentemente de seu valor intrínseco, não se referindo ao
conteúdo da norma, mas à sua aplicação. Cabe, aqui, ressaltar, por ser freqüentemente esquecido, que o
purismo gnosiológico de Kelsen não o impediu de perceber o caráter necessariamente criador da aplicação
do direito. Kelsen, Hans. Théorie pure du droit, p. 453-462; vide trad. portuguesa: Teoria pura do direito.
Trad. por João Baptista Machado. 4.ed. Coimbra: Arménio Amado, p. 463-471.
39
Dallari, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1966. p. 82.
Direito e Democracia
227
Raymundo Faoro, seguindo uma lição de Bergson, assinala que “o
ordenamento jurídico, o que está nos códigos e nas leis, espelha, ainda
que implicitamente, a sociedade fechada, concluída, em estruturas
previstamente imutáveis”. Mas, “a sociedade não viveria se não permanecesse aberta, criativa”, não podendo a lei, dela afastar-se, “senão refugiando-se num tempo morto”. Freqüentemente, “o que hoje está na lei,
foi, ontem, resistência contra regras reputadas imutáveis e sagradas”. A
inspiração do jurista haverá de ter por eixo “a justiça, que não é uma
abstração, um ponto longínquo que está além das relações humanas”. Na
verdade, “a justiça evocou ‘sempre idéias de igualdade, de proporção, de
compensação;” - traduzindo uma necessidade social. Sem ela “a sociedade subsistiria pela violência, pela repressão, pelo medo, imobilizando a
paz sobre a qual repousa”40.
Não pode o direito cumprir, satisfatoriamente, sua missão, sem que a
formação jurídica se libere dos antolhos positivistas, que levam à paralisia
da consciência crítica do jurista, cortando-lhe a iniciativa, fazendo-o
defender a ordem estabelecida, seja ela qual for41.
40
Faoro, Raymundo. A injustiça nos tribunais. Aula inaugural na Faculdade de Direito da UFRGS, a 20 de março de
1986. Porto Alegre: UFRGS, 1986. p. 14-5.
41
Villey, Michel. Leçons d’histoire de la philsophie du droit. 2.éd. Paris: Dalloz, 1962, p. 113. Não pode o
profissional do direito “dispensar uma séria preparação técnico-juridíca, quaisquer que sejam as atividades que vá desempenhar... Mas a técnica tem função ancilar e deve estar a serviço de funções que o
direito se propõe alcançar: finalidades jurídicas, sim, mas também sociais e políticas.” Grinover, Ada
Pellegrini. Reforma do ensino jurídico. In: OAB ensino jurídico. Diagnóstico, perspectivas e propostas. 2.ed.
Brasília: Conselho Federal da OAB, 1996. p. 42.
O ensino jurídico atual “funda-se em premissas
ingênuas e idealistas, distantes de uma realidade sócio-econômica explosiva, contraditória e conflituosa”.
A sua alteração “deve começar pela própria reflexão sobre o Direito a partir de uma crítica epistemológica
do paradigma positivista-normativista”, que o informa. Faria, José Eduardo, op. cit., p. 165. Sobre o
ensino jurídico, vide Azevedo, Plauto Faraco de. “Dogmática Jurídica e ensino do direito”. Revista da
Ajuris, Porto Alegre 17(49): 207-13, jul. 1990; ___”Ensino jurídico (Respostas à Comissão de Ciência e
de Ensino Jurídico da OAB)”. In: Ensino jurídico, diagnóstico, perspectivas e propostas. Brasília, Conselho
Federal da OAB 1992. p. 221-8. ___”Ensino jurídico e politicidade do direito”. Revista da Ajuris, Porto
Alegre, 24(69): 93-104 mar. 1997 e Revista Virtual-Teia Jurídica (http://www.teiajurídica.com). “Não se
trata de desprezar o conhecimento jurídico especializado. Trata-se, isto sim, de conciliá-lo com um
saber genético sobre a produção, a função e as condições de aplicação do direito positivo”, para o que fazse necessária “uma reflexão multidisciplinar capaz de desvendar as relações sociais subjacentes às
normas e às relações jurídicas...”. Faria, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico. Porto Alegre: Fabris,
1987. p. 38-9.
228
Direito e Democracia
6. MÉTODO JURÍDICO NO CONTEXTO DA
“GLOBALIZAÇÃO”
Não pode o jurista resignar-se ao papel de técnico a serviço da ordem
estabelecida, destro na localização das leis convenientes aos interesses
que conjunturalmente necessite defender. Este não é o jurista, mas o
técnico indiferente indiferente à velha lição romana, segundo a qual
nem tudo o que a lei permite é honesto, vale dizer, moral (Non omne
quod licet honestum est). É preciso ter presente que a lei pode ser imoral,
injusta ou arbitrária. É injusta quando, apesar de sua formulação abstrata, encarecida por Rousseau42, traduz, na verdade, interesses de setores,
grupos ou classes sociais capazes de exercer pressão determinante da elaboração legal, à sombra de uma formulação ideológica mistificadora de
seus interesses parciais.
Nessa artimanha, os interesses parciais e parcializados contam, de modo
freqüente, com a colaboração da grande imprensa, que lhes é dócil porque, ou lhes pertence, ou deles vive, dizendo-se guardiã da liberdade de
pensamento. É esta imprensa que, hoje, defende e alardeia a “superioridade” e a pretensão universalista do “pensamento único”43.
É sensível a submissão dos Parlamentos aos ditames político-econômicos do Executivo, conforme já antecipava expressivamente Legaz y
Lacambra” aludindo às “leis motorizadas” 44, em que se enquadram os
decretos-leis e as medidas provisórias45. Dá-se, por esta forma, livre-curso ao cipoal legislativo, casuístico e confuso, tantas vezes orientado pelas
exigências vindas do exterior, indiferentes ao sofrimento da população,
esmagada pelas exigências de um mercado cada vez mais draconiano,
42
“...la loi peut bien statuer qu’il y aura des privilèges, mais elle n’en peut donner nommément à personne...
toute fonction qui se rapporte a un objet individuel n’appartient point à la puissance législative”. Rousseau,
Jean-Jacques. Du contrat social. Chronologie et introduction par Pierre Burgelin. Paris: Garnier-Flammarion,
1966. Livre II, chapitre VI, p. 75.
43
Aos regimes totalitários, de partido único, hostis aos direitos humanos, o neoliberalismo quer fazer suceder
‘“os regimes globalitários’, que não são senão uma variante dos primeiros, adaptados às circunstâncias do
final do século. Repousando sobre os dogmas da globalização e do pensamento único, não admitem outra
política econômica, subordinando os direitos sociais do cidadão à razão competitiva e abandonando ao
mercado financeiro a direção total da sociedade dominada...” Ramonet, Ignacio. Régimes globalitaires.
Le Monde diplomatique. Paris, jan. 1977. n. 514, p. 1.
44
Legaz Y Lacambra. Filosofia del derecho. 4.ed. Barcelona: Bosch, 1975. p. 378.
45
Estas, no Brasil, tornam-se permanentes, ultrapassando 2000, sendo reeditadas ad infinitum, muitas vezes com
texto diverso, a cada republicação, sem atender aos requisitos da relevância e urgência.
Direito e Democracia
229
identificadas por tecnocratas adrede adestrados, servidos por linguagem
abstrusa, com pretensão de traduzir a mais autorizada ciência.
Neste quadro de dimensões desoladoras, a humanidade é a grande
ausente, e o “mercado” financeiro a presença onipotente, cujas apreensões, soluços e tiques demandam utilização de dotes divinatórios, exercidos, muito a propósito, por aqueles que são os beneficiários de sua agiotagem. Diariamente, a televisão diz das idiossincrasias do mercado, de seu
nervosismo, de suas expectativas, de suas demandas, personificando-o,
ao mesmo tempo em que se perde a contextura do humano, volatilizandose os indivíduos que não interessam a este estado de coisas - os miseráveis e os miserandos -, cujo número constantemente se avantaja46.
Pois é neste quadro de impiedade, que se busca eliminar os direitos
econômicos e sociais, em nome das exigências da necessidade da competição ilimitada. Vivesse Hobbes, melhor não encontraria configurada a
luta de todos contra todos, em que se desvanece a imagem do futuro, em
nome das exigência inumanas do presente. Nada mais vale além das exigências do mercado financeiro onipotente. A produção de bens de primeira necessidade passa a ser secundária. O exaurimento do meio ambiente pouco importa. Privilegia-se o lucro fácil, imediato, on line, tendo
por divisa o “eu existo, logo invisto” e o seu contrário - “não invisto, logo
não existo”.
A “flexibilização” dos direitos econômicos e sociais conduz à
inviabilização dos direitos políticos, na falta de suporte econômico em
que assentem, como, translucidamente, já assinalava, Calamandrei, em
1946. A este respeito, aludia à história do moleiro de Sans Souci, que
respondia às ameaças do soberano com a frase: “Há juízes em Berlim”.
Honrava, desta forma, os magistrados dessa cidade, demonstrando que
neles confiava, na luta entre o humilde e o poderoso. Todavia, como observa o mestre italiano, “nunca se explicou o que poderia fazer o moleiro,
se não dispusesse dos meios indispensáveis para trasladar-se a Berlim, a
fim de fazer valer suas razões contra o régio adversário, assim como para
pagar um advogado, que lhe fizesse frente, nesse juízo”. Isto o leva a
observar que, “também, no processo, pode existir entre as partes uma
46
É assim que, “contabilizando 6 bilhões de habitantes, o planeta apresenta outro número assustador: 834
milhões de pessoas, aproximadamente, correm o risco de morrer de desnutrição, ou seja, oito vezes mais do
que o registrado em 1966.” Correio do Povo, 18-07,1999, p. 8. A referência do fato não chega a ocupar um
quarto de página, como convém ao que é aceito como rotineiro.
230
Direito e Democracia
igualdade teórica, à que não corresponde uma paridade de fato; as duas
partes são (pessoas ), no mesmo sentido, mas os meios de que dispõem
para fazer valer esta igualdade são desiguais”47.
A justiça social é condição da efetividade da liberdade e da democracia. A “flexibilização” dos direitos sociais conduz, mais dia, menos dia,
à sua caricatura, na medida em que se restringem ou suprimem os direitos sociais, num retrocesso histórico autodenominado modernidade. A
globalização, tal como é apregoada, conduz ao desenraizamento das pessoas “como condição da eficiência e da competitividade”, destruindo “características relevantes da vida comunitária” e trazendo “um sentimento
crescente de insegurança pessoal”.48
A globalização, de que tanto se fala e tanto se mitifica, não é senão a
culminância de um longo processo, que se esboça desde as Cruzadas (séc.
XI-XIII) e as viagens de Marco Polo (séc. XIII-XIV), acentuando-se com o
Renascimento (séc. XV-XVI), de que constituem fatos salientes os descobrimentos, os quais, posteriormente, com a contribuição notável do ouro brasileiro, viriam a propiciar o desenvolvimento “de uma força social de poder
incomparável - a burguesia -, que abalou as estruturas existentes”49. A tendência inelutável à globalização não tem nada de extraordinariamente novo.
A globalização, hoje, singulariza-se por ser financeira, permitindo, graças à
Internet, a especulação em escala planetária, favorecendo o estabelecimento
de regimes globalitários50. Em 1931, Jaspers percebia sinais evidentes da
47
Calamandrei, Piero. Proceso y democracia. Conferencias pronunciadas en la Facultad de Derecho da la
Universidad Autónoma de México. Trad. por Hector Fix Zamudio. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas
Europa-América, 1960. p. 180-1. Ainda, em extraordinário prefácio, este insigne jurista consignou:”I
diritti di libertà debbono dunque sopratutto concepirsi, in un ordinamento democratico, come la garanzia
della partecipazione del singolo alla vita politica della comunità. São “come la porta che li consente di uscir
dal suo piccolo giardino sulla strada e di portare di lì il suo contributo al lavoro comune: libertà, non
garanzia di isolamento egoistico, ma garanzia di espansione sociale”.
48
Dahrendorf, Ralph. Quadrare il cerchio. Benessere economico, coesione sociale e libertà politica (Economic
opportunity, civil society and political liberty). Trad. per Rodolfo Rini. 5.ed. Roma-Bari: Laterza, p. 38-9.
49
Desde os fins do século XVII, operou-se uma lenta retomada da produção mundial do ouro, primeiro em
Moçambique e na Guiné, posteriormente no Brasil, com a descoberta de novos veios, em Ouro Preto, em
1696. O ouro passa, então, de Portugal à Inglaterra, seu fornecedor de produtos manufaturados. Por outra
parte, a produção de prata mexicana expande-se vigorosamente, a partir de 1725, ultrapassando a do Peru,
sendo exportada para a Espanha, de onde passa para a França. O comércio em expansão propicia a
passagem destas riquezas, da Inglaterra e França, para os países vizinhos, estimulando a produção de
mercadorias por toda a Europa. “No século XVIII, a extração de metais preciosos supera o que se havia
extraído de 1492 até essa época”. Pillorget, Suzanne. Apogée et déclin des sociétés d’ordres. 1610-1787.
Paris:Larousse, 1969. p. 236, 250.
50
Ramonet, Ignacio. Régimes globalitaires. Le Monde Diplomatique. Paris, jan 1997, nº 514, p. 1.
Direito e Democracia
231
convergência do mundo para a unidade, anotando que a terra se tornava
acessível em todos os seus pontos: “pela primeira vez o habitat inteiro do
gênero humano se acha unificado segundo as dimensões do planeta. Tudo
está em relação com tudo. A dominação técnica do espaço, do tempo e da
matéria cresce indefinidamente, não mais em virtude de descobertas particulares devidas ao acaso, mas por meio de um trabalho sistemático, no qual a
própria descoberta pode ser metodicamente provocada”51. Em conseqüência
da dominação da natureza, resultado do trabalho científico e tecnológico, as
diversas civilizações humanas, que se haviam desenvolvido separadamente,
durante milhares de anos, se aproximavam e confrontavam52, movimento este
que viria cada vez mais a acentuar-se, no decorrer do século XX.
7. LIBERALISMO E OS “DIREITOS DO HOMEM”
É a partir da ascensão da burguesia que a face do mundo se modifica
radicalmente, embora essa transformação viesse se fazendo paulatinamente. Com o Renascimento, o homem deixara de projetar sua vida no além,
em consonância com a religião, buscando sua realização neste mundo. As
conquistas científicas, permitindo o alargamento de suas atividades, levaram-no a pretender dominar a natureza e tornar-se senhor de seu destino
terrestre. A Revolução Francesa foi o primeiro acontecimento histórico a
cumprir-se em nome de uma consciência completamente secularizada, segundo a qual a existência humana devia ser radicalmente transformada e
aprimorada pela razão. “Seus únicos sinais precursores foram as ‘fundações’
norte-americanas: estes protestantes que, impulsionados pela intransigência
de sua fé, tinham abandonado a pátria, a fim de realizar sobre um novo solo
o que havia fracassado em seu país natal, haviam entrevisto, em uma secularização inaugural, a idéia de um direito universal do homem”53.
51
Jaspers, Karl. La situation spirituelle de notre époque. Postface par Xavier Tilliette. Trad. par Jean Ladrière et
Walter Biemel. 4.éd. Paris-Louvain: Desclée de Brower, E. Nauwelaerts, 1951. p. 24.
52
Jaspers, Karl, op. cit., p. 24, 28.
53
Jaspers, Karl, op. cit., p. 15. A Revolução Francesa , apesar do curso imprevisto, que tomou, desviando-se de
seus objetivos originais, “foi um acontecimento sem precedentes na história humana. Ela inaugurou uma
época, em que o homem iria tomar seu destino em suas próprias mãos, fundando-o sobre princípios
racionais. Por isto, foi acolhida, na consciência dos europeus mais eminentes, com um impulso de entusiasmo”, uma vez que “nenhum movimento de renovação dos séculos precedentes se havia proposto a
modificar a sociedade humana”. Mesmo a Revolução Inglesa, do século XVII, fundamenta-se na religião
e no sentimento de poder da nação. Jaspers, Karl, op. cit., p. 14-5. O grifo é nosso.
232
Direito e Democracia
A Revolução Francesa, - influenciada pelos precedentes norte-americanos, iniciados com o Bill of Rights de Virgínia, de 12-06-1776, culminando com a Constituição de 17-09-1787, acrescida de dez artigos, em
25-09-1789, consagradores dos direitos fundamentais (aditamento ratificado em 15-12-1791)54, iria consagrar, na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 26-08-1789, a seguir incorporada à Constituição Francesa de 03-09-1791, a melhor e mais acabada formulação dos
direitos humanos, nessa época. “É todo um Direito Novo, o Direito Moderno, que se acha embutido na declaração revolucionária, o que explica
tenha ela servido de preâmbulo à Constituição de 1791...”55.
Desponta, então, o moderno constitucionalismo, tendo como pedra de
toque a limitação do poder estatal através da positivação dos direitos
humanos. É verdade que, da proclamação à efetivação dos “direitos
invioláveis do homem e do cidadão frente ao Estado”, vai um longo caminho, ainda hoje não cumprido, tendo em vista suas flagrantes violações,
como o demonstram os relatórios de várias organizações não governamentais, particularmente da Anistia Internacional, e noticiam, quotidianamente, os jornais.
Buscando controlar o poder, mediante a sua delimitação jurídica, o
liberalismo entendeu “que o Estado se reduzia a um mínimo, o necessário
à manutenção da ordem. Mas, pelo ângulo sociológico, sabemos que esta
ordem era uma determinada ordem, dominada por certos padrões e dirigida
por uma classe”. Daí resultou que as liberdades, resultaram precárias “para
os que se achassem fora das grandes estruturas da propriedade”56.
A Enciclopédia Francesa, tratando da representação política, em verbete assinado por D’Holbach, depois de encarecê-la, estabelecendo a
necessidade de seu assento constitucional, diz que as assembléias, “para
serem úteis e justas, deveriam ser compostas por aqueles, cujas posses os
tornam cidadãos, cujo estado e esclarecimento lhes permite conhecer os
interesses da nação e as necessidades dos povos; em uma palavra, é a
54
Constituições Políticas de diversos países. Introd. org. e trad. de Jorge Miranda. Lisboa, 1975; Heck, Luís Afonso.
Direitos fundamentais e sua influência no Direito Civil. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, (29)
:4l, jan.-mar. 1999; Sarlet, Ingo Wofgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1998. p. 44-5.
55
Reale, Miguel. Nova fase do direito moderno. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 77-9.
56
Saldanha, Nelson. O que é o liberalismo. In: Estado de Direito, liberdade e garantias (estudos de direito público e
teoria política). São Paulo: Sugestões Literárias, 1980. p. 89-91.
Direito e Democracia
233
propriedade que faz o cidadão; todo homem, que tem bens no Estado,
está interessado no bem do Estado... é sempre como proprietário, é em
razão de suas posses que ele deve falar, ou que ele adquire o direito de se
fazer representar”57.
8. ESCOLA DO DIREITO NATURAL E
LIBERALISMO
O pensamento liberal teve como fonte de inspiração a Escola Clássica
do Direito Natural, na qual começou a delinear-se a noção de direito
subjetivo. “Esta abertura para a dimensão subjetiva e individual foi mais
ou menos simultânea aos começos do liberalismo: deu-se mais ou menos
na geração de John Locke”58.
Com o liberalismo instaura-se o capitalismo, seu braço econômico,
terminando “por desnaturar a idéia de liberdade”, e dando lugar à famosa pergunta de Proudhon: “Onde está a liberdde do não proprietário?”59
Mas, não resta dúvida que o Estado liberal “representou um avanço
no sentido da luta contra o absolutismo e na busca de um governo mais
consentâneo com a condição humana dos governados”60.
Em suas origens, o liberalismo “é uma doutrina da boa consciência”. É
“uma doutrina individualista porque a liberdade deveria ser fecundada
pelo esforço de cada um. É uma doutrina otimista - não nega as deficiências da ordem existente, mas assegura que elas serão corrigidas pelo uso
da liberdade”61.
57
Nossa tradução é livre. O texto da Enciclopédia é: “...Ces assemblées, pour être utiles et justes, devraient être
composées de ceux que leurs possessions rendent citoyens, et que leur état et leurs lumières mettent à
portée de connaître les intérêts de la nation et les besoins des peuples; en un mot c’est la propriété qui fait
le citoyen; tout homme qui possède dans l’état est intéressé au bien de l’état... c’est toujours comme
propriétaire, c’est en raison de ses possessions qu’il doit parler, ou qu’il acquiert le droit de se faire
représenter”. Encyclopédie ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers (articles choisis),
Chronologie, introduction et bibliographie par Alain Pons. Paris: Garnier Flammarion. v. 2, p. 300. O
grifo é nosso.
58
Saldanha, Nelson. O que é o liberalismo, p. 86.
59
Ibid., p. 89.
60
Ibid., p. 91.
61
Burdeau, Georges. Le libéralisme. S.l. Seuil, 1979. p. 28.
234
Direito e Democracia
O período, que se inicia no final do século XVII e se estende pelo
século XVIII, caracteriza-se pela exaltação da razão. É a época da Filosofia da Luzes, da Aufklarüng, que sucederia a um período de trevas.
Esta convicção era também sustentada pelos progressos científicos. O
espírito crítico passa a reinar, desdenhando ritos e dogmas. “Os ocidentais, que lêem e raciocinam passam a crer no progresso geral do mundo,
no seu avanço regular, e em uma melhoria crescente, quase automática, dos valores morais do gênero humano”, tornando-se um postulado a
“bondade fundamental do homem”. A busca da felicidade torna-se um
ideal absoluto.62
É imperioso lembrar que da elaboração doutrinária da Escola Clássica
do Direito Natural derivam “as pedras fundamentais sobre que se ergueu
o arcabouço da moderna civilização ocidental”. Nela receberam decisivo
impulso e culminaram idéias que vinham despontando desde o início do
século XVI, integrando um processo de paulatina libertação do indivíduo. Dentre suas generosas contribuições enumeram-se a liberdade de
movimento e de vocação profissional, a liberdade espiritual e religiosa, a
condenação da tortura e a humanização da pena, o fim dos julgamentos
por bruxaria, a busca da segurança jurídica, o princípio da igualdade
perante a lei e a elaboração dos princípios fundamentais do Direito Internacional.63
Nelson Saldanha lembra que “Ortega y Gasset disse algures que o
movimento liberal envolveu a substituição ‘dos príncipes pelos princípios’.
Surge, então, o Estado Moderno, configurador do constitucionalismo, pelo
qual o poder se autolimita, reconhecendo uma área de livre atuação do
indivíduo, mediante a previsão dos direitos humanos, que, penetrando
no âmbito constitucional, tornam-se direito positivo. São os direitos humanos positivados, de primeira geração, a serem resguardados, em seu
exercício, fundamentalmente contra o Estado.
De outro lado, o direito privado ganha contornos asseguradores da
segurança jurídica, ao mesmo tempo em que assume o caráter sistemático, daí em diante característico da ordem jurídica. Os tempos são marcados por uma grande elaboração dogmática do direito, buscando o que se
62
Pillorge, Suzanne, op. cit., p. 246-9.
63
Bodenheimer, Edgar. Jurisprudence. The Philosophy and Method of the Law.
Harvard University Press, 1974. p. 57-8.
Direito e Democracia
ed.rev. Cambridge, Mass.:
235
entendia constituir a cientificidade do direito. O liberalismo, no entanto, “sempre cai no formalismo e se rende à burocracia”.64
É que, efetivamente, a Ciência do Direito de cunho positivista se interessa, primordialmente, pelo aspecto formal do direito, chegando, no
Pandectismo, ao conceptualismo, de certa forma alheado dos problemas e
interesses humanos. Esta situação, também se verifica na Escola da Exegese,
na França, e em seus epígonos neste país e alhures, por toda parte por
onde se espraiou a mensagem dos códigos napoleônicos, especialmente
do Code Civil de 1804.
9. NOTA SOBRE A PERPLEXIDADE NEOLIBERAL
Isto foi possível enquanto a estrutura político-jurídica se manteve em
certa consonância com o contexto social. Todavia as duas Grandes Guerras Mundiais, com intermezzo da quebra da Bolsa de Nova York permitiram que aflorasse à vista d’olhos a crise que se denominou questão social,
reclamando do direito uma perspectiva que guardando o cuidado com
seus aspectos formais, também atentasse à realidade material do tecido
histórico, de maneira a melhor distribuir, de um lado, as vantagens e os
bens, e de outro lado, os encargos e deveres da vida social.
Constituem manifestações dessa tendência a Jurisprudência dos Interesses ( Ciência jurídica dos interesses) e o renascimento da preocupação
com o Direito Natural, com Radbruch assinalada pelo termo “direito
supralegal” em contraposição à “arbitrariedade legal”. 65
Na práxis social, o Estado liberal cede o passo ao Estado Social,
intervencionista, interessado em influir na economia de modo a melhor
estabelecer de critérios de justiça distributiva mais afinados com a melhor distribuição das oportunidades e asseguradores da legitimidade do
poder. Culmina esta etapa com o estabelecimento da Social-Democracia
européia, sem dúvida a mais notável construção político-jurídica da história da humanidade.
64
Saldanha, Nelson. Sociologia do direito. 2.ed.rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. p. 117-8.
65
Radbruch, Gustav. Derecho por encima de las leyes y leyes que no son derecho. Passim.
236
Direito e Democracia
Mas, eis que o inimaginável vem a suceder, de modo a negar toda e
qualquer pretensão de validade da noção de progresso, derivada do
Iluminismo. Em complicado trajeto histórico, obscurecido pela trama ideológica de interesses menores, mas muito potentes do ponto de vista econômico, com os governos Thatcher e Reagan, na Inglaterra e Estados
Unidos, vem a ganhar vigência a doutrina neoliberal, em conformidade
com a pregação de Milton Friedman e Friedrich Hayek, a partir da Sociedade de Mont Pellérin, em 1947.
É o renascer do chamado “Estado mínimo”, do Estado jardineiro, em
consonância com as instituições financeiras, com a colaboração incessante e incansável da grande imprensa, sobretudo da televisão, a reclamar,
obsessivamente, o equilíbrio macroeconômico a qualquer preço, a
desregulamentação e privatização do setor público de modo tão geral
quanto possível, para que se atinja a prometida bem-aventurança da
globalização. Para o que se reclama a colaboração dos juristas, o desrespeito à Constituição e a docilidade do Poder Judiciário.
Tendo-se olhos de ver a realidade como processo histórico global, a
pergunta que se põe, hoje, é se aceitar- se-á, passivamente, a
desconstituição dos direitos econômicos e sociais, para o que se chega
mesmo a propugnar pela extinção da Justiça do Trabalho. Aceitar-se-á o
regresso ao século dezenove, em nome da autocracia do mercado, de que
resulta a precarização do trabalho e da existência humana? Pôr-se-á de
lado a lição de François Gény, em obra magistral, datada de 1899, ao
escrever que fazia-se sentir “a necessidade de introduzir, em nossa organização positiva, mais fraternidade profunda, ou, como hoje se diz de bom
grado, maior solidariedade social”, de modo a “melhor igualar as condições de luta entre as atividades rivais”, assegurando “uma repartição dos
ganhos mais exatamente proporcionada aos esforços de cada um”, atenuando os rigores excessivos do direito individual, tendo em vista o interesse social comum? 66
A responsabilidade do jurista, diante deste dilema, é inafastável.
66
Gény, François. Méthodes d’interprétacion et sources en droit privé positif. Préf. par Raymond Saleilles.
2eme. ed. rev. et mise au courant. Paris: Librairie Générale de Droit et Jurisprudence, 1954. Tome, p. 226.
Direito e Democracia
237
238
Direito e Democracia
Cooperação dos juízes em zona de
fronteira no Mercosul.1
Cooperation of Judges in Borderline Areas of
Mercosur
RICARDO PIPPI SCHMIDT
Juiz de Direito e Professor da URCAMP
RESUMO
O texto traz à luz a atuação do juiz de fronteira, em face das vicissitudes do processo de integração intentado na construção do Mercosul, examinando situações
vivenciadas na fronteira do Brasil com o Uruguai, nas cidades limítrofes de Santana
do Livramento e Rivera. Ao lado da preocupação dominante de surgimento de um
mercado econômico/comercial/intergovernamental, põem-se as questões do cotidiano dos litígios entre particulares, em que sobressaem a troca de informações
acerca de registros públicos, a obtenção de informes a respeito das partes, a dispensa de tradução de documentos, a jurisdição de menores, a inquirição de testemunhas, etc, no que o magistrado tem relevante responsabilidade nessa construção, ao
interpretar a legislação nacional à luz dos tratados e convenções internacionais.
Palavras-chave: Mercosul e juiz, Mercosul e questões jurídicas interpessoais,
Mercosul e juiz de fronteira.
ABSTRACT
The text brings to light the activity of the border judge as for as the process of
integration in the organization of Mercosur is concerned, examining typical
1
Palestra proferida em 17/05/2000, por ocasião do Seminário de Direito Penal, promovido pelo Curso de PósGraduação - Mestrado em Direito da ULBRA - Canoas.
Direito e Democracia
Canoas
n.2
Direito e vol.1,
Democracia
2º sem. 2000
p.239-246239
situations in the frontier of Brazil and Uruguay, in the borderline cities of
Livramento and Rivera. Together with the preoccupation with the emmergence
of a economical/commercial/intergovernmental market, the questions of daily
litigations between private citizens arise, in which relevance is given to the
mutual exchange of public records, the gathering of data on the parts, the
dispensation of document translation, the jurisdiction on minors, the inquiring
of witnesses, etc. The magistrate has a relevant responsibility in these matters
when he interprets the national legislation under the perspective of international conventions and treatises.
Key words: Mercosur and judge, Mercosur and interpersonal juridical problems, Mercosur and border judge.
Foi com imensa satisfação que aceitei participar deste seminário nesta
prestigiada Universidade, notadamente quando formulado o convite por
um dos mais ilustres juristas deste País, reconhecido em todo o Brasil e no
exterior como um dos expoentes do Direito Penal Moderno, nosso mestre
Professor Luis Luisi, a quem agradeço esta oportunidade, esperando atender aos objetivos do presente encontro.
Ressalvo, de início, que minha participação neste evento não traduz
qualquer tese jurídica nova, muito menos tem a pretensão de se constituir em uma palestra, se não um depoimento sincero de quem, atuando
como Juiz em uma Comarca de Fronteira, de há muito se debate na busca
de soluções eficazes ao problema da efetiva aplicação do direito no âmbito do Mercosul.
Foi esta atuação como juiz de fronteira, aliás, que me permitiu refletir
sobre o assunto e expor, de público, algumas idéias acerca do tema, inicialmente em depoimento prestado por ocasião da VI Reunião de Ministros
de Justiça dos países do Mercosul, realizada em Santa Maria, em novembro de 1996, e, após, como representante da AJURIS, no III Congresso de
Magistrados do Mercosul, realizado em Assunção, em setembro de 1998.
Ao apresentar minha exposição, falando em português, naquele congresso, justifiquei que o fazia na crença de que a verdadeira integração
está assentada na comunicação ideal, que é aquela em que cada um fala
o seu idioma e é compreendido pelo interlocutor, numa relação de absoluto respeito às diferenças e individualidades.
240
Direito e Democracia
É assim na fronteira do Brasil com o Uruguai, onde a integração dos
povos, porque cultural, mostra-se efetiva e verdadeira, assentada no respeito à diversidade de cada povo.
É o que ocorre em Santana do Livramento, cidade que, com Rivera,
forma uma única e peculiar comunidade, ainda que geograficamente situada em territórios de dois países, onde há mais de 100 anos brasileiros e
uruguaios convivem em harmonia, compartilhando experiências numa
integração verdadeira de culturas, sem que para isto tenham que abrir
mão, cada qual, de seus costumes e de seu idioma, os brasileiros falando
português e os uruguaios falando espanhol, sem qualquer submissão ou
preponderância de um ou de outro.
Esta a comunicação ideal, esta a integração mais verdadeira, porque
envolve pessoas e culturas, retrato de um Mercosul Real, em
contraposição ao que chamo de Mercosul Virtual, o das relações comerciais, das comunicações por telefone, carta postal, fax ou Internet, de São
Paulo a Assunção, de Buenos Aires a Montevideo, tudo muito impessoal,
como convém às relações comerciais.
É este tema - Mercosul Real -, que acontece com toda a intensidade
exatamente nas zonas de fronteiras, que quero tratar neste espaço.
Todos sabemos que o Mercosul foi concebido fundamentalmente em
face dos interesses econômicos, como um Mercado Comercial, cuja finalidade diz com a livre circulação de bens e serviços, via eliminação de
direitos alfandegários e restrições não-tarifárias à circulação de mercadorias, estabelecimento de tarifa externa e política comercial comuns e
coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os EstadosPartes.
É este aspecto econômico do Mercosul que monopoliza a atenção
das autoridades governamentais que comandam este processo de
integração, onde se evidencia um domínio absoluto das instituições financeiras e grupos econômicos transacionais que, por reunirem condições de atuar na economia mundial, tornam-se cada vez mais capazes de
negociar diretamente com os Estados (vale dizer, com o Executivo) condições mais favoráveis aos seus interesses, à produção e circulação de
suas mercadorias e serviços, tornando-se, em conseqüência, capazes de
ditar ou influenciar políticas de governo, como estamos assistindo hoje
em nosso país.
Direito e Democracia
241
Neste contexto, a via político/diplomática ou o procedimento arbitral
ditam as soluções para as eventuais controvérsias surgidas, afastada, assim, ao que se evidencia, qualquer idéia de participação institucional do
Judiciário, ausente qualquer perspectiva da criação mesmo de um Tribunal Supranacional.
Surge então a indagação: Este é o Mercosul que queremos ou que
podemos ter? Será o Mercosul somente isto, um Mercado Econômico/
Comercial/Intergovernamental? Este sistema de resolução de controvérsias via negociações político/diplomáticas ou arbitramento, serve à verdadeira integração? Estará ele ao alcance do cidadão comum ou mesmo dos
pequenos e médios comerciantes que, eventualmente, neste processo de
integração chamado Mercosul, venham a ter divergências em suas relações? Qual o papel do Judiciário e dos operadores do Direito neste contexto? Até que ponto a ausência de interferência de um órgão judicial,
na solução destes conflitos, não impede o progresso da verdadeira
integração dos Povos, sedimentada em jurisprudência, que se constitui a
fonte mais dinâmica do Direito, porque corre atrás do tempo, na tentativa de acompanhar a realidade diuturna, que só a experiência da vida, e
não a lei, pode revelar?
Pensava em tudo isso quando, atuando como Juiz em Santana do Livramento, separada de Rivera, no Uruguai, apenas por uma praça e uma
rua, onde a integração dos povos é uma realidade secular, dinâmica e
verdadeira, tinha que decidir questões decorrentes de litígios como aquele
envolvendo uma brasileira que casou com um uruguaio, e que mora no
Brasil, mas trabalha no Uruguai, tal como seu marido, e que com ele teve
dois filhos, um nascido do lado de cá da fronteira, aqui registrado, outro
do lado de lá, registrado no outro País, e que é abandonada pelo marido e
vem à Justiça Brasileira para pedir alimentos em favor dos filhos que passam fome, e a solução que o sistema coloca à disposição do Juiz é a expedição de uma rogatória ou exhorto, para que se possa fazer cumprir a
decisão de obrigar a pagar alimentos aquele pai, que deixou os filhos
passando fome do lado de cá da rua e foi viver sua vida do lado de lá, na
certeza de que a Justiça brasileira não o alcançaria.
Ou, vice-versa, no caso do Juiz de Rivera, no Uruguai, que recebe
uma demanda de um uruguaio, que é atropelado por um motorista brasileiro na rua que separa os dois países, e cujas testemunhas são também
brasileiras e, então, para a citação daquele ou inquirição destas, para
bem decidir o processo de reparação de danos, deverá exigir do autor que
242
Direito e Democracia
apresente cópias de todos os documentos, com tradução por tradutor
juramentado, para que se possam extrair exhortos ou rogatórias para citar
e ouvir aquelas pessoas que moram do outro lado da rua.
Os Senhores sabem o tempo médio de demora e o custo de uma
rogatória no Brasil, considerando os trâmites burocráticos e as traduções
necessárias?
Este sistema funciona?
Pode funcionar onde não seja fronteira.
Porque, nas cidades de fronteira, são tantas as situações a exigir comunicação entre autoridades dos dois Países, que a expedição de rogatórias,
para tal, inviabiliza o próprio processo, seja pela demora, seja pela desproporção do custo/benefício da demanda.
Assim é que, penso, podemos avançar ainda mais na integração, criando instrumentos legais, instituídos através de acordos de cooperação
judicial bilaterais, que permitam a comunicação direta de Juiz a Juiz,
sem necessidade da interferência de autoridades centrais ou diplomáticas, nas comarcas e cidades de fronteira.
Neste sentido, aliás, já há preceito importante no art. 19 do Protocolo sobre Medidas Cautelares, prevendo que “Os Juízes ou Tribunais das
Zonas Fronteiriças dos Estados Partes poderão transmitir-se, de forma direta,
ou exhortos ou cartas rogatórias previstas neste Protocolo, sem necessidade de
legalização”, acrescentando que “Não será aplicado no cumprimento das
medidas cautelares o procedimento homologatório das sentenças estrangeiras.”
Trago aqui, como exemplo, a experiência realizada por nós, Juízes que
atuam naquela fronteira Livramento/Rivera, já levada ao conhecimento do
Ministério da Justiça Brasileiro, sugerindo institucionalização daqueles procedimentos que ajustamos num prévio encontro entre Magistrados daquelas
duas cidades, há mais de 5 anos, e que passamos a adotar, informalmente,
com resultados positivos evidentes, na medida em que, desde então, raríssima
tem sido a expedição de rogatórias para atos de mero trâmite, tais como:
a) troca de informações acerca de registros públicos (ex: solicitação direta, ou pelo Juiz do local onde situado o cartório, acerca de certidões de casamento, nascimento ou óbito das partes
envolvidas no processo);
Direito e Democracia
243
b) obtenção de informes acerca das partes (ex: pai devedor de
alimentos, trabalhando no Brasil - informações sobre os seus
ganhos, a serem requisitadas pelo Juiz Brasileiro à empresa onde
ele trabalha);
c) dispensa de tradução de documentos (ex: a familiaridade do
idioma, em zonas de fronteira, e o elevado custo das traduções,
autorizam tal medida, ressalvada situação especial em que haja
controvérsia a respeito - necessidade de impugnação específica
pelo interessado);
d) na jurisdição de menores (ex: encaminhamento direto ao Juiz
do domicílio, para que tome as medidas adequadas frente à família, além de colocação dos serviços de assistência social, para
verificação e elaboração de laudo social)
e) inquirição de testemunhas (quando se trate de depoentes
domiciliados em Rivera (do outro lado da rua), solicita-se, através da Chefatura de Polícia ou de servidor da Justiça do local
em que é domiciliada a testemunha, para que “invite” a pessoa
a comparecer no dia, horário e local informados no documento,
evitando-se o custo de rogatórias (Livramento-POA- BrasíliaMontevideo-Rivera- Montevideo- Brasília- POA- Livramento).
Evidente que aqui entra o componente cultural da integração, que
explica porque tais procedimentos funcionam lá na fronteira do Brasil
com o Uruguai, mas poderão não funcionar na fronteira do Brasil com o
Paraguai.
Há toda uma cultura de integração que faz com que a testemunha
residente em Rivera atravesse a rua e atenda o chamamento que lhe faz
a Justiça de Livramento.
É uma situação diferente, específica, e por tal razão deve ser tratada
de forma diferente, específica, institucionalizando-se, (por que não?),
através de acordos bilaterais (no caso, entre Brasil e Uruguai, para tal
tipo de fronteira), aqueles mecanismos de cooperação judicial que, na
prática, vêm apresentando resultados positivos, quais sejam, evitar custo
e demora na tramitação dos processos.
Poderemos avançar ainda mais, como por exemplo (já sentei precedente neste sentido), a possibilidade de praticar, mediante despacho ins-
244
Direito e Democracia
truído, inquirição de testemunhas que moram no outro país, com a presença das partes e do Juiz solicitante no local da inquirição, o que, aliás,
encontra previsão no art.11 do Protocolo de Las Leñas.
A institucionalização de tais procedimentos mostra-se necessária
sobretudo no âmbito penal.
Neste sentido, propusemos, naquele nosso encontro de Magistrados
daquela fronteira, já em 1993, que, nos delitos de receptação (mais freqüentes), onde há habitual prática de o estrangeiro adquirir objetos que
são produtos de delitos contra a propriedade cometidos no outro País, seja
criado mecanismo de comunicação imediata, quer através dos Juízes dos
dois Países, visando expedição de mandados de busca para constatar a
presença de bens receptados, quer através dos órgão do Ministério Público/Fiscalía, visando à pronta punição daqueles que usam o território do
seu País como refúgio à impunidade.
É que, na fronteira, fato notório, há uma teia de comunicação entre os
que vivem do crime, que se comunicam e se movimentam neste submundo,
quase que instantaneamente, enquanto as autoridades se quedam inertes diante das dificuldades burocráticas de comunicação e atuação
conjunta, quando não se deixam contaminar por este submundo, criando
verdadeiro sistema de poder paralelo, que tanto perigo representa para o
Estado Democrático e de Direito.
Sinceramente, pela experiência como Juiz em Zona de Fronteira durante mais de 8 anos, estou convencido da necessidade de avançarmos
na criação destes mecanismos de cooperação judicial, porque impositiva
esta forma de integração para melhorar a própria imagem da Justiça na
América Latina, que necessita, com urgência, de novos meios e instrumentos que a dotem de maior eficiência e eficácia, a serviço da comunidade dos povos que compõem o Mercosul.
Minha proposta concreta, pois, é a de que os Poderes Judiciários dos
Países que integram o Mercosul participem deste processo de integração, em
resguardo da própria eficácia das decisões judiciais proferidas pelos seus membros, notadamente daqueles que, como eu, atuam em Zonas de Fronteira, e
que ficam à mercê da burocracia inerente ao procedimento de expedição de
rogatórias e exhortos, pela via tradicional, cujos custos e demora acabam por
impedir a pronta prestação jurisdicional em favor do cidadão comum, que
bate às portas dos Tribunais nas Zonas de Fronteira, à espera de justiça.
Direito e Democracia
245
O processo de integração decorrente do Mercosul não pode dispensar
a participação do Judiciário, institucionalmente, e nossa, dos magistrados, individualmente, porque somos nós, Juízes, em última análise,
que temos a responsabilidade de interpretar a legislação nacional à luz
dos mandamentos de tratados e convenções internacionais a que o país
haja aderido. Extensa e grave atribuição, como já dizia a Dra. Ellen
Northfleet, Presidente do TRF da 4a Região2, “na medida em que muitas
dentre as normas de direito interno - porque promulgadas em contexto
sócio-econômico-cultural já ultrapassado - ou não se conformam, ou são
diametralmente opostas aos ditames do direito internacional”, o que, aliás, impõe a adaptação das Constituições dos países membros, de forma a
acolher a soberania compartilhada necessária a operar no espaço de
integração.
Devemos, pois, estar comprometidos em dotar o Judiciário de mecanismos que viabilizem sua pronta atuação, assegurando a todos que se
encontram em território submetido à nossa jurisdição, cujos direitos tenham sido eventualmente violados, acesso às medidas jurisdicionais efetivas, sem restrições ou discriminações de qualquer ordem, para o que
cresce em importância o estudo das normas decorrentes de tratados e
convenções internacionais e sua inserção em nossa prática diária.
Temos, sim, responsabilidade em interferir neste processo de
integração do Mercosul, visando assegurar a todos o devido acesso ao
Judiciário, qualquer que seja a sua nacionalidade ou origem, e buscar,
por todos os meios, a eficácia das nossas decisões, através de mecanismos
de cooperação judicial entre os Estados membros que viabilizem não só
uma decisão justa e rápida, mas também uma decisão, na prática, eficaz,
o que pressupõe a criação de novos mecanismos de rápida comunicação
entre as autoridades judiciais, notadamente nas cidades de fronteira.
2
Hoje, primeira mulher a integrar o Supremo Tribunal Federal
246
Direito e Democracia
A mulher é vítima da justiça
Women as Victims of Justice
MARIA BERENICE DIAS
Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de
Direito de Família - IBDFam
RESUMO
Indispensável reconhecer a necessidade de deferir uma maior atenção aos delitos cometidos contra a mulher. A Justiça, por reproduzir o modelo social, em
nome da proteção da família, acaba deixando impunes os crimes que se cometem no âmbito familiar, postura que gera a consciência da impunidade e só faz
aumentar a violência de que são vítimas as mulheres.
Palavras-chave: mulher, violência doméstica, justiça, impunidade
ABSTRACT
It’s absolutely essential to admit the need of granting a larger attention to the
crimes committed against women. Justice, by reproducing the status quo in
name of family protection, leaves unpunished the misdeeds occurred in home
circle. This attitude begets an awareness of impunity and increases the violence
against women.
Key words: woman, domestic violence, justice, impunity
1. O PANORAMA ATUAL
Reformas fundamentais nos campos civil, político, econômico e social
sustentam o movimento de mulheres, que vêm adquirindo uma força cada
Direito e Democracia
Canoas
n.2
Direito e vol.1,
Democracia
2º sem. 2000
p.247-254247
vez mais expressiva. Além de proclamar a necessidade do reconhecimento do direito à igualdade, denuncia a discriminação e a violência doméstica, que se retrata no assassinato, no espancamento e no estupro de
mulheres feitos pelos maridos ou companheiros.
Ainda assim, muitas mulheres nem chegam a ter consciência de seus
direitos, e, quando têm, o descrédito na polícia e na Justiça as inibe de
denunciar a violência da qual são vítimas. Normalmente só vão às delegacias quando já não agüentam mais ou temem pela própria vida. Sempre
há uma certa relutância em registrar a queixa, principalmente quando
são dependentes economicamente dos maridos e têm filhos. Depois, há o
medo de não terem para onde ir, e, voltando para casa, temem reação
muito mais violenta do seu algoz ao saber da denúncia levada a efeito.
Ainda que vencida a resistência inicial e registrada a ocorrência, passada a raiva e esquecida a dor, sob a alegação de que “as coisas melhoraram”, a tentativa é de que não se desenvolva o processo. A omissão do
Estado, não prosseguindo com a investigação, mostra conivência com a
situação, havendo necessidade de que ocorra a punição do culpado, única forma de reverter a situação que se encontra estratificada.
2. O FENÔMENO SOCIAL
Na sociedade ocidental existe um modelo preestabelecido. Ao homem cabe o espaço público, e à mulher, o privado, nos limites da família
e do lar. As mulheres, por receberem educação diferenciada, necessitam
ser mais controladas, mais limitadas em suas aspirações e desejos. Isso
enseja a formação de dois mundos: um de dominação, externo, produtor;
o outro de submissão, interno e reprodutor. A essa distinção estão associados os papéis ideais de homens e mulheres: ele provendo a família e ela
cuidando do lar, cada um, desempenhando a sua função.
Os padrões de comportamento distintos instituídos para homens e mulheres leva à geração de um verdadeiro código de honra. A sociedade outorga ao macho um papel paternalista, exigindo uma postura de submissão
da fêmea. Ambos os universos, o ativo e o passivo, acham-se carentes de
proteção, sendo que ao autoritarismo corresponde o modelo de submissão.
A redefinição, no contexto atual, desse modelo ideal de família - que
248
Direito e Democracia
levou a mulher para fora do lar e impôs ao homem a necessidade de assumir responsabilidades dentro de casa - provocou o afastamento do parâmetro
a ensejar um desequilíbrio propício ao surgimento de conflitos. A violência surge e justifica-se como forma de compensar possíveis falhas no cumprimento ideal dos papéis de gênero. Quando um não está satisfeito com
a atuação do outro no cumprimento do seu papel, surge a guerra dos
sexos e os envolvidos usam suas armas: músculos e lágrimas. As mulheres
levam a pior, tornam-se vítimas da violência masculina e só têm outra
arma, que é a queixa. A passividade do papel da mulher coaduna-se com
o de vítima, mas é necessária a existência da queixa, para mostrar a terceiros o seu infortúnio.
3. POSTURAS JUDICIAIS
Diante das situações de violência familiar, a Justiça não trabalha com
fatos, mas com representações sociais. Os operadores do Direito não apreciam só o comportamento no momento do crime, mas se investiga a vida
dos envolvidos. Os estereótipos dos protagonistas são elementos decisivos
para o resultado do processo. Se um não corresponde ao papel ideal de
bom pai de família e a outra, de fiel dona-de-casa, seguramente o seu
agressor será absolvido.
Só são condenados maridos ou companheiros que têm evidência de
alcoolismo, vício em drogas, um passado de abuso doméstico e estão desempregados ou são criadores de caso.
O perfil dos absolvidos é o oposto: réus primários, trabalhadores, carinhosos e bons maridos. Assim, se restar evidenciado que o homem era um
bom pai de família e matou a mulher que lhe era infiel, certamente será
ele absolvido.
Igualmente, quando a boa esposa matou o mau marido para defender
a si e aos filhos das agressões que sofriam, possivelmente será absolvida.
Não há como negar que a Justiça tem uma certa condescendência
para com os réus, sempre entrando em linha de questionamento a atitude
da vítima, como sendo o móvel dos fatos. Perquirir-se o comportamento
moral da mulher pode levar ao reconhecimento surpreendente de que foi
ela que provocou o crime, sendo culpada pela própria sorte.
Direito e Democracia
249
Tais circunstâncias evidenciam que as mulheres são vítimas nos tribunais brasileiros, já que os processos sofrem a influência de normas sociais
permeadas de preconceito de gênero.
4. A DISCRIMINATÓRIA LEGISLAÇÃO
É necessário reconhecer que parte do problema está na própria legislação.
O fato de os delitos sexuais serem considerados crimes contra os costumes, e não contra a pessoa, evidencia que a objetividade jurídica protegida é a sociedade, a parte ofendida é o ente social, e não a mulher.
O estupro, ainda que pertencente à categoria de crime hediondo, é
classificado como crime de ação privada. A abertura do processo depende de provocação da vítima, não sendo obrigação do Estado. Ademais,
normalmente se exige evidência de lesões corporais, sob pena de se questionar se efetivamente houve resistência. A vítima que se afasta dos padrões de castidade é tratada como leviana e permissiva, tornando-se muito
difícil a condenação quando são estupradas prostitutas ou pessoas que
têm uma postura sexual liberada.
O estupro praticado pelo marido não é normalmente denunciado, sendo
visto como cobrança de obrigação conjugal, pois a recusa em manter relações sexuais é considerada como causa para separação. Muitas vezes as
esposas, mesmo obrigadas à conjunção carnal, consideram-na uma obrigação matrimonial, a desestimular denúncias e investigações.
Com exceção do estupro, as demais ofensas só são consideradas crimes
se a mulher for honesta ou virgem, o que leva a investigar-se o passado da
vítima, e quem não corresponder a esse perfil é acusada de ter permitido
o ato.
5. LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA
O STJ, em 11 de março de 1991, acolheu recurso do Ministério Público remetendo a novo julgamento João Lopes pela morte de sua mulher e
seu amante, surpreendidos em um motel na cidade de Apucarana, no
250
Direito e Democracia
Paraná, asseverando que: O homicídio não pode ser encarado como meio
normal e legítimo de reação contra adultério, pois nesse tipo de crime o que se
defende não é a honra, mas a autovalia, a jactância, o orgulho do senhor que
vê a mulher como propriedade sua...A honra é um atributo pessoal e o adultério de um mulher não ofende a honra do marido”.
Ainda assim, no segundo julgamento, novamente foi o réu absolvido
por legítima defesa da honra.
O argumento extralegal da legítima defesa da honra, que vem servindo como causa de absolvição, revela uma atitude preconceituosa contra
as mulheres. O fundamento é de que, se alguém pode defender a vida,
também pode defender a vida interior, que é a honra, reconhecida como
razão de viver. Esse argumento, no entanto, é falacioso, deixando evidenciado que seu substrato é de ser a mulher propriedade do marido, a ele
subordinada, e qualquer atitude sua fora das regras conjugais prescritas
consiste em ofensa à honra do cônjuge.
A mera suposição de adultério, o desejo de separação ou a simples
negativa de relações sexuais são classificados como legítima defesa da
honra para embasar pedidos de absolvição.
Nos delitos sexuais, não se atenta em que um dos elementos da legítima defesa é a existência de ameaça presente ou iminente. Ainda quando
os crimes são premeditados, acaba-se por reconhecer a presença da
excludente.
A paixão nos assassinos só surge ante a hipótese de um adultério, e, sem
maior atenção aos fatos, se reconhece desrespeito à moral do marido. Tal
argumento tem levado maciçamente à absolvição dos maridos assassinos.
6. DELITOS PRIVILEGIADOS
Outra forma de privilegiar os delitos cometidos contra a mulher é aceitar a exceção legal da violenta emoção causada por provocação injusta
da vítima, que leva, em caso de homicídio, à redução da pena de 12 a 30
anos para de 1 a 6 anos (o fato de a vítima e o agressor serem casados é
circunstância agravante).
É reconhecido como crime passional o provocado por uma emoção tão
Direito e Democracia
251
forte, que o acusado experimenta uma insanidade momentânea. No entanto, usa-se como argumento a insanidade temporária - que é uma
excludente da criminalidade - para exculpar maridos que matam as mulheres por mera suspeita de infidelidade.
Para o reconhecimento da atenuante, é necessário que a prática do
delito tenha sido motivada por violenta emoção imediatamente após a
provocação da vítima. Incrível, porém, a facilidade com que se reconhece essa circunstância em caso de delito premeditado, e ainda sem nenhuma prova de ter havido provocação da vítima. Às vezes, mero pedido de
pensão leva ao crime, sendo aceito tal fato como provocação da vítima.
Assim, privilegiar o delito com o abrandamento da pena por reconhecimento da atenuante é postura carregada de discricionariedade.
Há uma tendência do sistema judiciário brasileiro de reduzir a gravidade da acusação formal dos agressores de mulheres, tipificando-se delitos de penas mais brandas. Com mais facilidade se classifica o fato como
lesão corporal, quando se trata de tentativa de homicídio. Igualmente, se
dá pouca credibilidade à versão da vítima que mantém relações
extramatrimoniais, sendo considerada como não tendo um comportamento
moral adequado, a evidenciar maus antecedentes.
7. OS DELITOS DOMÉSTICOS
A Lei nº 9.099, de 26/9/95, que criou os Juizados Especiais Criminais,
instituiu uma Justiça consensual, possibilitando a aplicação de pena mesmo antes do oferecimento da acusação e ainda antes da discussão da
culpabilidade. As medidas de despenalização adotadas, bem como a adoção de um rito sumaríssimo, buscam a agilização no julgamento dos delitos de pequena potencialidade ofensiva e levam ao desafogamento da
Justiça Comum.
Ainda que se tenha de reconhecer uma consciente tentativa de acabar com a impunidade - vista como a causa maior da criminalidade -,
deixou de ser priorizada a pessoa humana, a preservação de sua vida e de
sua integridade física. Ao condicionar a ação penal relativa às lesões
corporais leves e lesões culposas à representação, omite-se o Estado de
sua obrigação de punir, transmitindo à vítima a iniciativa de buscar a
252
Direito e Democracia
apenação de seu agressor, segundo critério subjetivo de conveniência.
Passou a considerar como infrações menores as que afetam o cidadão,
mas continua com o monopólio de punir os delitos contra o patrimônio,
pois esses ainda persistem desencadeando ação pública incondicionada.
Há, no entanto, que atentar nas hipóteses em que existe um
desequilíbrio entre agressor e agredido, uma hierarquização entre ambos.
A punição, nesses casos, certamente não ocorre, pois não há como exigir
que o desprotegido, o hipossuficiente, o subalterno, venha a formalizar
queixa contra o seu agressor. Dentro dessa categoria, não se pode deixar
de enquadrar a mulher, a criança e o adolescente, pois os delitos perpetrados contra eles, em sua maciça maioria, são praticados por maridos,
companheiros ou pais, ou seja, pessoas com quem convivem e mantêm
uma relação de afeto.
Inquestionável que a ideologia patriarcal ainda subsiste, leva o homem a ter-se como proprietário do corpo e da vontade da mulher e dos
seus filhos. O medo, a dependência econômica, o sentimento de inferioridade, a baixa auto-estima, decorrentes da ausência de pontos de realização pessoais, sempre impuseram à mulher a lei do silêncio. Raros os
casos em que se encorajavam a revelar a agressão ocorrida dentro do lar,
mas isso bastava para o desencadeamento da ação penal.
A nova lei, além de ter esvaziado as Delegacias da Mulher - que agora
se limitam a lavrar um termo circunstanciado -, está, sem sombra de dúvida, dificultando o desencadeamento da ação e a apenação nos chamados delitos domésticos.
Impõe a nova lei a realização de audiência preliminar, com a presença
do autor do fato e da vítima. A conciliação, que imperiosamente tem de ser
proposta, enseja simples composição de danos, a ser executada no juízo
cível. Não obtida a conciliação, há o direito de exercer a representação,
verbalizada, no entanto, na presença do agressor. Mais: feita a representação, pode o Ministério Público transacionar a aplicação de multa ou pena
restritiva de direitos, que, se aceita pela parte, não implica reincidência,
não consta da certidão de antecedentes e não tem efeitos civis. Trata-se de
uma verdadeira transação penal, da qual a vítima não participa.
Esse contexto está contribuindo para que se chegue a um alarmante
nível de violência, que só agora vem despertando a atenção de todos.
A desproporção, quer física, quer de valoração social, entre os gêneros
Direito e Democracia
253
masculino e feminino necessita ser ressaltada, para que se dimensione o
crime doméstico como hediondo, merecedor da execração social.
É necessário lembrar que o Direito Penal tem uma função simbólica,
não centrada só no castigo, mas na demonstração da intolerância social
com relação a determinado ato, que passa a ser repudiado mediante sua
criminalização. É mister que a condenação seja exemplar e que se cunhe
uma nova consciência, buscando-se o efeito positivo da apenação e o
reconhecimento de novos valores.
Assim, pode-se concluir que a criminalização dos delitos contra as
mulheres é uma exceção, sendo que não é a Justiça, mas a sociedade
machista que absolve os homens, postura que se revela como afronta aos
direitos humanos.
254
Direito e Democracia
Mulher e mercado de trabalho
Women and Labour Market
LUIZA MATTE
Bacharel em Direito pela UFRGS, mestranda em Instituições de Direito do Estado pela PUC/RS, advogada em
Porto Alegre e professora das Faculdades de Direito da ULBRA – Canoas/RS e PUC/RS
RESUMO
Tendo em vista tanto a caminhada feminina em direção à emancipação, quanto as normas destinadas à proteção da mulher, vêem-se, ainda hoje, entraves
com relação à atuação feminina no mercado de trabalho. Assim sendo, é imperativa a discussão deste assunto na busca de soluções satisfatórias a todos os
envolvidos neste processo.
Palavras-Chave: mulher, mercado de trabalho, discriminação, normas
protetivas
ABSTRACT
Regarding the feminine journey towards emancipation, as well as the rules designed
to protect women, we still find, at present, obstacles related to women’s participation in the labour market. So, it is imperative the discussion of this issue in order to
achieve some satisfactory solutions for everyone involved in the process.
Key Words: women, labour market, discrimination, protective rules
INTRODUÇÃO
O direcionamento do presente trabalho para as relações da mulher
com o mercado de trabalho funda-se em dados concretos, tais como o
Direito e Democracia
Canoas
n.2
Direito e vol.1,
Democracia
2º sem. 2000
p.255-267255
fato de que tramitam no Congresso Nacional quase duzentos projetos de
interesse das mulheres, sendo considerados prioridade vinte deles, referentes à situação da mulher no mercado de trabalho e à violência contra a mulher. A importância do tema é indiscutível.
O que se busca é descobrir aspectos positivos e negativos do tratamento diferenciado que é dado à mulher no mercado de trabalho, coletando
sugestões de vários autores para o incentivo à igualdade neste campo.
Ante a falta de eficácia concreta das normas igualitárias formais, desponta como esperança a relevância positiva do espaço jurídico.
TIPOS DE DISCRIMINAÇÃO E SEGREGAÇÃO
SEXUAL NO MERCADO DE TRABALHO
Em primeiro lugar, necessário se faz vislumbrarmos os tipos existentes
de discriminação e segregação sexual no mercado de trabalho. Assim,
tem-se que, do ponto de vista etimológico, a palavra “discriminação” significa o caráter infundado de uma distinção. A propósito, o art. 1º da
Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera que a discriminação no trabalho compreende:
“... distinção, exclusão ou preferência fundada em raça,
cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional,
origem social ou outra distinção, exclusão ou preferência
especificada pelo Estado-Membro interessado, qualquer
que seja sua origem jurídica ou prática e que tenha por fim
anular ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento no emprego ou profissão.”
A discriminação sexual pressupõe um tratamento comparativamente
desfavorável à mulher em relação ao homem, que pode advir de preconceitos contra as mulheres, ou do fato da sua contratação poder trazer
ônus econômicos maiores para o empregador. Podem-se diferenciar as
seguintes discriminações no mercado de trabalho:
- As diretas fazem referência às desvantagens das mulheres na
entrada no mercado, considerando-se como exemplos a influ-
256
Direito e Democracia
ência da situação familiar, do casamento ou da gravidez, na preferência pelos homens na contratação.
- As indiretas referem-se àquelas práticas que desfavorecem um
dos sexos a partir de critérios e requisitos exigidos ou solicitados
pela oferta de empregos. De natureza mais sutil, essas discriminações não aparecem formalmente, mas influem decisivamente na
realidade prática em termos da diminuição do número de oportunidades de trabalho para as mulheres em relação aos homens.
- A discriminação vertical encontra expressão na circunstância
de que os postos de chefia e de direção continuam sendo conferidos aos homens em detrimento das mulheres. As principais
razões apontadas para tanto, segundo pesquisas da OIT, são: a
dificuldade de submeter os homens às ordens das mulheres, a
falta de qualificação delas e a descontinuidade das carreiras
femininas, na maioria dos casos proveniente da maternidade.
- A discriminação horizontal diz com o fato de algumas ocupações serem consideradas “trabalho de mulher” e outras “trabalho de homem”, o que limita o número de profissões disponíveis
às mulheres. As atividades tidas por femininas normalmente
guardam semelhança com as atividades domésticas e compreendem os setores de saúde, serviço social, educação, limpeza e
afins, costura, área administrativa e serviços de balcão. Em geral essas funções não oferecem perspectivas de crescimento social e econômico que assegurem à mulher uma vida digna. Os
salários são sempre mais baixos, pois são tarefas desprezadas culturalmente.
RESTRIÇÕES X AÇÕES AFIRMATIVAS:
ASPECTOS POSITIVOS E NEGATIVOS
Resta, ainda, analisarmos a discriminação proveniente da legislação,
que, com suas proibições e privilégios, resulta muitas vezes num fator
negativo para as mulheres.
Sabe-se que, até bem pouco tempo, em vários países, as oportunidades
de emprego das mulheres estavam diretamente relacionadas com sua con-
Direito e Democracia
257
dição nos códigos civis, tanto com relação à sua capacidade, quanto com
relação ao matrimônio, que trazia a necessidade de não-oposição ou autorização do marido para o exercício de atividade remunerada, ou, em
outro extremo, a renúncia ao casamento e à maternidade.
Mais tarde, as leis de feição protetora, que trazem a exclusão da mulher de certos tipos de trabalho, como, por exemplo, trabalho noturno, em
regime extraordinário, em condições insalubres ou perigosas, em subterrâneos, etc., também contribuíram para a segregação profissional. E mais,
a partir da incorporação das mulheres casadas e mães na força de trabalho, outras dificuldades surgiram a partir da lei, por exemplo, quanto à
responsabilização do empregador pela infra-estrutura de creches, berçários e pré-escolas para assistência dos filhos de pais que trabalham, bem
como os ônus assumidos com a trabalhadora gestante e mãe, tais como os
transtornos da ausência dela por longo período, quando às vezes é preciso
contratar uma substituta, o período de “estabilidade” pós-parto e as altas
indenizações, que também influem negativamente para a valorização do
trabalho feminino.
O que se tem, por fim, é que esta complexa teia de fatores econômicos
e sociais resulta em salários mais baixos e num menor número de oportunidades para as mulheres e vimos que a legislação, em alguns aspectos
positiva e mesmo imprescindível, noutros contribui para a mantença e
justificação da situação de inferioridade feminina no mercado de trabalho.
As políticas para corrigir a desigualdade entre os sexos, contudo, vêm
de longa data. Já no século XIX iniciou-se a tutela do trabalho feminino
e infantil e, na tentativa de se reagir contra as degradantes condições de
trabalho, surgiram leis que proibiam ou restringiam, em algumas condições, o acesso da mulher ao mercado.
Alice Monteiro de Barros1 aponta como fundamentos da tutela especial às mulheres:
“...motivos fisiológicos e de eugenia, ligados, respectivamente, à função reprodutora e ao fortalecimento da raça, para
justificar a licença-maternidade e os intervalos destinados
ao aleitamento; motivos biológicos, provenientes da debili1
A mulher e o direito do trabalho, p. 36.
258
Direito e Democracia
dade física, capazes de determinar a proibição de trabalhos perigosos, insalubres e as medidas especiais de higiene
e segurança; finalmente razões espirituais, morais e familiares, que a rigor residem “no resguardo da mulher no lar”,
utilizadas para justificar a proibição do trabalho extraordinário e noturno.”
Assim, além de normas discriminatórias, como aquelas de que já falamos, que condicionavam o trabalho da mulher casada à aprovação do
cônjuge, normas restritivas específicas surgiram no mundo inteiro, vetando ou diminuindo a participação feminina quanto ao trabalho noturno e
ao trabalho em condições insalubres, perigosas e penosas.
Estas disposições legais protetivas terminaram por se constituir em um
entrave para o sucesso profissional da mulher. Estas verdadeiras
“desequiparações”, em sua maioria absoluta, partiam do pressuposto da
fragilidade feminina, motivo pelo qual não resistiram ao tempo e à evolução cultural. Restaram, contudo, aquelas normas protetivas ligadas, de
uma forma ou outra, à maternidade, e outras, como é o caso do tempo de
serviço para aposentadoria (inferior ao dos homens), que se baseiam na
realidade da dupla jornada.
Com a consagração nacional e internacional do princípio da igualdade entre os sexos, há quem veja a proteção que restou como injustificado
privilégio, que continua a ter efeitos negativos para o crescimento da
mulher. Em entrevista para revista feminina de circulação nacional2, um
headhunter, contratado por grandes companhias, afirma que “se a mulher
realmente deseja competir nas mesmas condições que o homem, vai ter
de renunciar ao protecionismo”.
Entende-se que esta atitude seja radical, não encontrando guarida
no mundo jurídico. Maria Berenice Dias, desembargadora gaúcha e figura de destaque na defesa dos interesses femininos, rechaça a possibilidade de que as normas constitucionais que tutelam o trabalho da mulher
estejam em conflito com o princípio da igualdade, ou que este esteja em
oposição ao princípio da isonomia. Diz ela3:
2
Revista Cláudia, maio de 1997, p.235.
3
A solução para a desigualdade. Zero Hora, 23.05.97, p. 23.
Direito e Democracia
259
“Essa aparente incompatibilidade entre os dois princípios
solve-se ao constatar que a igualdade formal - igualdade
de todos perante a lei - não conflita com o princípio da
igualdade material, que é o direito à igualdade mediante a
redução das desigualdades sociais. A obediência estrita ao
preceito constitucional não pode levar a se ver como
infringência ao princípio da isonomia a adoção de posturas
que, atentando à realidade, gerem normas protetivas, visando a propiciar o equilíbrio para assegurar-se o direito à
igualdade.”
Ademais, a Convenção nº 111, da OIT, elaborada no ano de 1958 e
ratificada pelo Brasil, que trata da discriminação no emprego ou profissão, dispõe que não são consideradas discriminações as distinções, exclusões ou preferências que tenham caráter de medidas de proteção ou assistência especial reconhecidas como necessárias por motivos como sexo,
invalidez, encargos de família ou nível social ou cultural.
Logo, não se justifica a intolerância social para com as normas protetivas
em face do ordenamento jurídico nacional e da própria realidade social,
que exige da mulher mais do que do homem. Mas, mesmo que mantidas
as normas existentes, sejam elas protetivas ou afirmativas de direitos iguais,
frente às desiguladades que vimos, são elas suficientes e eficazes na prática? A resposta negativa é óbvia.
Despontam, então, como opção para a solução desta problemática, as
chamadas “ações afirmativas”, programas que envolvem os setores público e privado e podem ser de caráter obrigatório, voluntário ou misto4.
Uma boa definição do que sejam tais ações afirmativas encontra-se na
obra de Alice Monteiro de Barros5. Explica ela:
“As ações positivas recomendadas são programas adotados
tanto no setor público como no setor privado, atribuindo
um tratamento especial às mulheres, temporariamente, até
4
O caráter voluntário normalmente identifica-se com o setor privado, enquanto o caráter obrigatório reservase ao setor público. A França é exemplo de caráter misto, onde o empresário que se dispõe a implantar um
plano de ação afirmativa obtém apoio e orientação do Estado.
5
Op. cit., p. 175 e 176.
260
Direito e Democracia
que haja um equilíbrio entre os sexos no mercado de trabalho, tornando-o mais homogêneo. Sua função consiste,
portanto, em promover a igualdade de oportunidades, transformando a função estática do princípio igualitário inserido
na lei em uma função ativa, com a utilização de meios
capazes de alterar as ‘regras do jogo no mercado de trabalho’. As ações positivas já não visam ao reconhecimento
da igualdade de tratamento, mas aos meios necessários
para torná-la efetiva.”
As ações afirmativas surgiram na década de sessenta, nos Estados
Unidos e, em 1976 a Comunidade Econômica Européia elaborou orientações definindo estas ações, para, mais tarde, em 1982, desenvolver seu
conceito, no primeiro programa de Ação para igualdade de oportunidades. Segundo a recomendação que nasceu deste programa6, “ações afirmativas têm como objetivo contribuir para cancelar ou corrigir as desigualdades de fato, de maneira a promover a presença e a participação de
mulheres em todos os setores profissionais e em todos os níveis de responsabilidades.”
O progresso nesta temática, como enfatiza Alice de Barros, ainda não
é significativo. Esta autora afirma que as ações positivas têm encontrado
resistência mesmo nos Estados Unidos, concentrando-se em programas
de formação profissional e em setores não tradicionais. Ainda assim, elas
são consideradas responsáveis pelo crescimento da proporção de mulheres em postos diretivos, que passou de 5% em 1972, para 11% em 19917.
O grande problema das ações afirmativas é que elas dependem de
vontade política, pressão sobre o Poder Legislativo e sobre o empresariado.
O que se nota, na experiência americana e européia, é que as ações
afirmativas encontram mais eficácia na área pública do que na área privada, mas, ainda assim, a burocratização da máquina administrativa aparece como empecilho e é difícil a identificação de quem estaria preparado para supervisionar e controlar as condições de introdução e manutenção da nova política de igualdade.
6
Texto da Recomendação nº 635/84 da CEE, de 13.12.84.
7
Alice MONTEIRO DE BARROS, op. cit., p. 177.
Direito e Democracia
261
ALGUMAS OPÇÕES PARA FOMENTAR A
IGUALDADE NO MERCADO DE TRABALHO
Ao longo da pesquisa feita, deparamo-nos com diversas opções para
fomentar a igualdade no mercado de trabalho. Pretende-se, assim, expor
as diferentes opiniões e sugestões encontradas nos autores e no material
pesquisados, no sentido de soluções para a desigualdade. São elas:
- Adotar políticas de valorização da diferença feminina, nova tendência que visa promover pesquisas de avaliação do trabalho
feminino, criando-se critérios diferentes para a comparação das
atividades feminina e masculina, para que não se aceite, a priori,
o único critério existente na classificação social das práticas
produtivas: o masculino. Esta recomendação encontra eco no
fato de que, se as ações afirmativas buscarem tão somente inserir a mulher nos espaços modelados pela experiência exclusiva
dos homens, as criações e contribuições femininas podem desaparecer sob um massificante projeto de igualdade de gênero,
reforçando o estereótipo de que o conteúdo do trabalho da
mulher é fruto de sua opressão e, portanto, de menor valor.
- Fazer da educação e da escola um instrumento para o fortalecimento do papel da mulher na sociedade. A conscientização das
autoridades políticas e das próprias mulheres para a defesa do
seu direito integram este conceito.
- Assegurar a participação feminina nos sindicatos, negociando-se
cláusulas de não discriminação e ações positivas nos contratos
coletivos e estipulando-se, também, a representação sindical nos
tribunais de recrutamento, de contratação e de ascensão.
- Estimular a cumulação de antigüidade durante o gozo de licença-maternidade, para assegurar que as mulheres não sejam penalizadas pela procriação. Ainda quanto ao tempo de serviço,
permitir às mulheres que o aproveitem para passar a outros trabalhos ou para avançar ao longo da carreira.
- Adotar medidas especiais para acelerar a ratificação e aplicação das normas internacionais (OIT e ONU), que visam coibir
a desigualdade entre os sexos.
262
Direito e Democracia
- Criar órgãos governamentais especializados na promoção de
melhorias na condição feminina, com ligação a determinados
ministérios, em categorias de subsecretarias, direções gerais,
conselhos, divisões governamentais nos setores família, bem-estar social, educação, cultura, trabalho, planejamento e desenvolvimento econômico.
- Promover a revogação expressa do art. 376, da CLT, que proíbe
a jornada extraordinária às mulheres, salvo força maior. Em conseqüência, dever-se-ia revogar o art. 384, da CLT, que prevê
descanso especial para a mulher na hipótese de prorrogação de
jornada. Sustenta-se que esta proibição pode restringir o campo
de trabalho e a possibilidade de ganhos da mulher, além de não
coadunar-se com a realidade, já que, na prática, as mulheres
prestam horas-extras tanto quanto os homens.
- Abolir a restrição de que trata o art. 390, da CLT (quanto a
serviços que empreguem força muscular), passando-se a submeter cada caso à apreciação das condições pessoais da empregada, ao tempo consumido no serviço e às suas condições.
- Alterar a localização temática do trabalho da mulher na CLT,
que não mais encontra justificativa para ser disciplinado em
conjunto com o trabalho do menor, como regimes especiais. Como
o regime jurídico da mulher deve ser o mesmo do homem, devese reduzir a proteção ao essencial, ou seja, à gravidez e à maternidade, sob pena de prejuízo para as mulheres no mercado de
trabalho.
- Implementar ações positivas como medidas temporárias, destinadas a acelerar a igualdade de fato entre os sexos, eis que a
lei, por si só, não nos torna iguais.
- Transferir o encargo da licença compulsória e dos serviços de
assistência à criança para um sistema de seguro financiado pela
coletividade ou por fundos públicos.
- Dotar de maior flexibilidade a distribuição do período total da
licença-maternidade, principalmente quanto ao período anterior ao parto, que poderia ser mais uma faculdade do que uma
imposição. A própria duração do referido período poderia ser
sujeita à flexibilização. O fomento de uma política de criação
Direito e Democracia
263
de berçários, creches e pré-escolas é algo que contribuiria com
a diminuição do período da licença-maternidade.
- Estender a licença pós-parto ao pai, não só quando for o único
genitor ou quando da incapacidade da genitora8 e também para
o caso de pais e mães adotivos.
- A instituição da licença parental, adotada pela Suécia, Hungria,
França, Itália e Alemanha, autorizando um dos cônjuges a cuidar do filho após o término da licença-maternidade, garantindo-lhe o direito ‘a readmissão, visto que as famílias monoparentais
são cada vez mais uma realidade. A licença deve ser
oportunizada também ao pai, como ocorre em Cuba, em Angola,
na república da Guiné, no Japão e no Iraque (e também na
hipótese das férias especiais para mães de filhos menores no
Senegal).
- Agilizar a elaboração de lei reguladora que estenda os direitos
trabalhistas e previdenciários aos trabalhadores domésticos, que,
em sua maioria, são mulheres.
Vê-se que as idéias são muitas e que os direitos da mulher, como direitos fundamentais específicos, evoluíram de forma revolucionária em um
espaço de tempo diminuto, historicamente falando.
A sua efetivação ainda necessita aprimoramento, principalmente se
levarmos em conta as mudanças ocorridas no tratamento jurídico da família. A “nova família” não suporta mais o status quo ante feminino. Para
que a democratização familiar realmente ocorra, a mulher tem que ter o
seu espaço garantido (também no mercado de trabalho) e a mentalidade
tem que mudar, fazendo com que todas as sugestões neste sentido sejam
bem-vindas.
Na verdade, sabe-se que os direitos fundamentais são também direitos históricos, que surgem aos poucos das lutas por liberdade e pelo aprimoramento das condições de vida. Também os direitos individuais, como
produto da civilização e do progresso humanos, são mutáveis, sempre novos e cada vez mais extensos.
8
Nas legislações da Colômbia e da Espanha, a mãe, após desfrutar do afastamento obrigatório por determinado
período, pode ceder ao pai parte da licença. Na Espanha, em especial, o intervalo para aleitamento, quando
artificial, pode ser gozado indistintamente por ambos os sexos.
264
Direito e Democracia
No tocante à proteção efetiva dos direitos fundamentais, o primeiro passo para garanti-los foram os processos de conversão em direito
positivo, de generalização e de internacionalização. Naturalmente, uma
longa jornada ainda precisa ser percorrida, eis que, à medida em que
as pretensões aumentam, a satisfação delas torna-se cada vez mais
difícil. No campo dos direitos individuais, a exemplo de outros campos do direito, também há uma enorme a defasagem entre a posição
da norma e a sua efetiva aplicação. E esta defasagem é ainda mais
intensa quanto aos direitos sociais, já que estes são mais difíceis de
proteger do que os direitos de liberdade, pois é requerida uma intervenção ativa do Estado.
Nota-se, entretanto, a estreita conexão existente entre mudança social e nascimento de novos direitos, o que nos leva a refletir sobre o direito como fenômeno social. De acordo com Norberto Bobbio, os direitos
fundamentais “tornam-se um dos principais indicadores do progresso histórico”.
CONCLUSÃO
O direito deve adaptar-se à mudança social, como, aliás, vem fazendo no que tange à mulher. Vimos, por exemplo, que as normas restritivas foram, pouco a pouco, perdendo espaço no ordenamento jurídico.
Vimos que as chamadas ações afirmativas em muito podem contribuir
com o crescimento feminino. Entretanto, outras políticas e opções de
solução devem a elas somar-se para que o resultado seja satisfatório,
surgindo, neste sentido, a nova filosofia de valorização das diferenças
femininas.
Para que sejam superadas as diferenças, a aceitação de preceitos jurídicos compensatórios é fundamental. Não mais servem determinadas normas protetivas antigas, que, conforme salientado, ao invés de colaborarem com a situação da mulher, agravavam as discriminações perpetradas
contra ela. Não mais servem os estereótipos para fundamentarem as diferenças. Contudo, em nome da isonomia, não se pode consagrar a desigualdade. A maternidade e a dupla jornada são realidades femininas e,
quanto a estes aspectos, sim, é necessário que o direito atue na proteção
da mulher.
Direito e Democracia
265
Neste sentido, eloqüentemente opina Maria Berenice Dias9:
“Ao que se deve atentar não é à igualdade perante a lei,
mas ao direito à igualdade mediante a eliminação das desigualdades, o que impõe que se estabeleçam diferenciações específicas como única forma de dar efetividade ao
conceito isonômico consagrado na Constituição.”
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CFEMEA - Centro feminista de estudos e assessoria. As mulheres no Congresso revisor,
Brasília, 1993.
9
Vide nota 3.
266
Direito e Democracia
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Direito e Democracia
267
268
Direito e Democracia
Aplicação do direito em defesa da
reserva indígena Uru-Eu-Wau-Wau
The Application of Law with the Uru-Eu-Wau-Wau
Indians
ANTÔNIO JOSÉ GUIMARÃES BRITO
Indianista e pesquisador. Universidade Federal de Rondônia - Amazônia – Brasil
RESUMO
O texto trata da situação do índio brasileiro, tendo em vista o desafio da fronteira cultural, quando a cultura dominante impõe-se sobre a cultura do índio,
desvirtuando-lhe a existência e pondo-o frente à agressividade do presente e à
falta de perspectiva futura. Um estudo de caso, o dos Uru-Eu-Wau-Wau ,
ilustra esse desencontro de etnias, o que se verifica, sobretudo, face ao desrespeito do direito pelos brancos, manifesto nos delitos ambientais. Por tudo, cabe
indagar o que pode fazer a ordem jurídica em face deste quadro dramático.
Palavras-chave: Direitos do índio, Delitos ambientais, desencontro étnico.
ABSTRACT
The text deals with the situation of the Brazilian Indian considering the challenge of cultural frontiers, when the dominant cuture is imposed on the native
culture, disturbing its existence, placing it face to face to the aggressiveness of
the present and the lack of perspective for the future. A case study, that of the
Uru-Ee-Wau-Wau, illustrates this mismatch of ethnies which is verified when
we consider the lack of respect white men have for indians rights, evident in
environmental felonies. Thus it is necessary to ask oneself what can the juridical
order do to change this dramatic situation.
Key words: Indian rights, environmental felonies, ethnic mismatch
Direito e Democracia
Canoas
n.2
Direito e vol.1,
Democracia
2º sem. 2000
p.269-281269
I. IMPORTÂNCIA DA URU-EU-WAU-WAU
A Reserva Indígena Uru-eu-wau-wau, com uma área de 1.832.300 ha
( 800.000 ha referentes ao Parque Nacional Pacaás-Novos, que está
encravado no centro da reserva), é a terceira Área de Proteção Nacional
em extensão, perdendo somente para o Parque Nacional de Jaú ( 2.272.000
ha) e para o Parque Nacional do Pico da Neblina (2.200.000 ha). Grande
em extensão, mas especialmente superior pela sua riqueza natural, a Reserva Indígena Uru-eu-wau-wau é uma das áreas protegidas de maior
importância ambiental da Amazônia, e, sem sombra de dúvida, o principal refúgio natural no Estado de Rondônia. Cinqüenta por cento (50%)
da área é rochosa e montanhosa, situando-se entre nascentes e encostas.
Este território caracteriza-se por duas macro-regiões de planícies e
elevações montanhosas, numa transição entre a floresta (com rica cobertura vegetal) e o cerrado. Existem na área três Serras: de Uopianes,
Moreira Cabral e do Pacaás-novos, encontrando-se nesta, o pico mais
alto do Estado, medindo 1200 metros acima do nível do mar, com uma
temperatura anual de 22 graus centígrados. O topo das elevações, que
formam a serra dos Pacaás-novos, apresenta vegetação com fisionomia de
cerrado, mas com uma flora que não é típica dessa formação vegetal,
revelando espécies não encontradas em outras regiões da Amazônia.
A proteção da Uru-eu-wau-wau é indispensável garantia das nascentes dos principais rios do sul amazônico. Engloba as três principais bacias
hidrográficas de Rondônia: Guaporé, Madeira e Mamoré, considerandose que os rios Jací-Paraná, Cautário, Candeias, Urupá, Jarú, Muqui, São
Miguel, Pakaás-Novas, Ouro Preto, perfazendo o total de 17 rios, nascem
nas escarpas das serras localizadas na Uru-eu-wau-wau. Nas nascentes
do rio Pakaás-novos, ao pé da serra, há abundantes grutas com inscrições
pré-colombianas, configurando um sítio arqueológico. A fauna dessa região é muito diversificada, compreendendo espécies como Onça Pintada
(pantera onça), Anta (tapirus terrestris), Veado Roxo (mazona
gouazeubira),Queixada (tayassu pecori),Tamanduá (myrmecophaga
tridactyla),Lontra(lutra
longicaudis),
Jacaré-açu
(caiman
crocodilus),Gavião-Real(harpia sp) além de diversos primatas e pássaros.
Somando a riqueza dessa biodiversidade, habitam as florestas da Urueu-wau-wau vários grupos indígenas, entre eles os Urupa-in, Jururey,
Yvyraparaquara , povos que manuseiam machados de pedra e apresentam
270
Direito e Democracia
um domínio incipiente da técnica do fogo. A importância cultural e
ambiental da Uru-eu-wau-wau é incalculável. Dentro desta reserva, encontramos ecossistemas ricos em biodiversidade, savanas, florestas, serras, sítio arqueológico, sociedades indígenas isoladas, espécies da flora e
fauna não classificadas, nascentes formadoras de bacias hidrográficas. Por
tudo, é, sem sombra de dúvida, uma área relevante de proteção ambiental,
infelizmente vulnerável ao modelo de ocupação desordenada, que se perpetua no Estado de Rondônia. Covarde e inescrupulosamente, a reserva
Indígena Uru-eu-wau-wau e o Parque Nacional do Pacaás-Novos estão
sendo saqueados por madeireiras, mineradoras, fazendeiros e pequenos
colonos, incentivados pela política agrária adotada no Estado.
II. POVOS QUE HABITAM A RESERVA
O termo Uru-eu-wau-wau é uma alusão dos Pacaás-Novos, que significa “aqueles que tocam taboca”. Na verdade trata-se de alusão onomatopéica
aos sons que são produzidos por esses instrumentos. Habitam a reserva os
Oro-Win (aldeados na cabeceira do rio Pacaás-Novos), os Jupaú ( localizados em 04 aldeias na bacia do rio Jamarí, rio Jaru e rio Urupá) e os
Amondawa ( situados em um afluente do rio Urupá). Há também índios
isolados, como os Yvyparaquara-ga, que habitam entre o rio Cautário e o
rio Pacaás-Novos e os Jurureí, isolados na cabeceira do rio Muqui.
No início do século, muitos grupos de tupi-kaguahiv ( Jupaú,
Amondawa, entre outros) foram identificados na bacia do rio Machado
pela Comissão Rondon, e por estudos de Curt Nimuedajú, Alfred Métraux,
Lévi-Strauss. Presume-se que, no início do século, havia 30.000 índios
desta etnia. Sobreviveram poucos, somente aqueles que moravam em locais de difícil acesso, acima das cachoeiras, nas cabeceira dos rios. Os
Tupis-Kawahib teriam vindo do rio Tapajós para o Madeira e outros afluentes do rio Ji-Paraná. Em 1981, por causa de muitos conflitos entre índios e não índios, a FUNAI teve que fazer contato com 02 grupos Tupi
Kaguarib: os Jupaú e Amondawa.
Sobre os Oro-win, único grupo Txapacura presente na Uru-eu-wauwau, infelizmente não existe nenhum estudo etnográfico. Presume-se que
eles teriam vindo do rio Baures (Bolívia), durante o século XVIII, fugindo
da ação dos jesuítas espanhóis. O povo Oro-win sofreu inúmeros massacres,
Direito e Democracia
271
restando poucos sobreviventes. O Genocídio contra os Oro-win foi realizado com verdadeiros requintes de crueldade, como, por exemplo, atirando
crianças índias para o alto e espetando-as na ponta de facões, e amarrando
mulheres grávidas, em troncos, provocando-lhes a morte lentamente, sendo a barriga rasgada por terçados. O “último” massacre contra os Oro-win
foi em 1963, organizado pelo então seringalista Manoel Lucindo da Silva,
posteriormente denunciado em 1978, e condenado, em 1994, pelo Tribunal
do Júri Popular, a 15 anos de prisão pelo crime de Genocídio.
Os povos que habitam a Uru-eu-wau-wau correm o risco de desaparecerem sem deixar o registro de sua cultura e isso nos faz indagar quais as
possibilidades da sociedade brasileira de preservar o seu patrimônio e de
que forma o Direito deve se manifestar diante de tais acontecimentos.
III. DEMARCAÇÃO E HOMOLOGAÇÃO DA ÁREA
Com o forte fluxo migratório no final da década de 70, o INCRA promoveu inúmeros projetos de assentamento em territórios tradicionalmente ocupados pelos povos da Uru-eu-wau-wau. O projeto de assentamento, que acarretou um número maior de vítimas e conflitos, foi o Burareiro.
A Autarquia Federal, responsável pela política agraria no Estado, concedeu 122 títulos definitivos a colonos, em uma área que estava interditada
pela FUNAI (esse território foi interditado em 20/06/78 - portaria 508/
78), em razão da presença de índios não contatados, à época. O conflito
assumiu uma tal proporção, que foi necessária a intervenção do Serviço
Topográfico do Exército brasileiro para a demarcação, que somente ocorreu em 09/07/85, pelo decreto 91.416/85, finalmente homologado em 29/
10/91 (decreto 275/91).
IV. CRIMES AMBIENTAIS COMETIDOS CONTRA
A URU-EU-WAU-WAU
Presume-se que, em Rondônia, 80% de madeiras nobres, como Mogno e Cerejeira (destinadas à exportação), sejam extraídas de Reservas
Indígenas e Unidades de Conservação, apesar da proibição estabelecida
pela Constituição Federal, pelo Código Florestal, pela Lei de Crimes
272
Direito e Democracia
Ambientais, pelo Estatuto do Índio, pelo Decreto 2687/98 - que protege o
Mogno em vias de extinção-, e outros dispositivos legais.
Em 10 anos de operação ilegal, calcula-se que da Reserva Indígena
Uru-eu-wau-wau foram furtados mais de 500.000 metros cúbicos de madeira nobre. Quase uma centena de veículos foram apreendidos, dentre
caminhões e tratores, devolvendo-se, no entanto, a maioria deles, aos
infratores como fiéis depositários, o que permite aos infratores continuar
a furtar a madeira, com os próprios veículos apreendidos. Apesar da instauração de mais de duas dezenas de Inquéritos Policiais, nenhum madeireiro pagou indenização aos índios, nem reparou danos ou foi responsabilizado penalmente.
Os crimes são muitos: corte ilegal de madeira (art.39 da lei 9.605/98
combinado com o art.46 da lei 6.001/73), destruição da floresta, com abertura de estradas e clareiras para estocagem da madeira esplanada (art.38
da lei 9.605/98), danos ao patrimônio cultural (art. 63 da lei 9.605/98);
acampamentos de caçadores ( art.29,parágrafo 4º, inciso I, da lei 9.605/
98); mortandade de peixes mediante utilização de explosivos (art.35 da
lei 9.605/98); não solicitação de instauração de Inquérito Policial, em
flagrantes feitos por equipes do IBAMA (crimes contra a administração
ambiental, art.68 da lei 9.605/98); risco de incêndio, pelo acúmulo de
biomassa ou material lenhoso proveniente da queda das grandes árvores
(art. 41 da lei 9.605/98); conflitos com povos indígenas, introdução de
doenças endêmicas, causando epidemias mortais em grupos indígenas isolados. Estes são alguns, dentre tantos danos causados ao meio ambiente
e aos povos indígenas.
Imagine-se o pavor que deve causar o som de tratores, motosserras e
caminhões, aos povos indígenas, que não conhecem a “civilização”. Há
também a ação dos palmiteiros, a ocupação de novos colonos e o desaparecimento de árvores apreendidas, guardadas no pátio de unidades do IBAMA.
Ora, tudo isso é de conhecimento das Autarquias responsáveis, FUNAI e
IBAMA. Contudo, a prática desses ilícitos ambientais se perpetua. Os crimes ambientais cometidos dentro das áreas indígenas possuem um grande
poder lesivo ao meio ambiente, pois, via de regra, incidem sobre florestas
primárias, onde há significativas reservas de biodiversidade, além, é claro,
dos crimes praticados contra as etnias indígenas, principal sujeito passivo
desses delitos. Como acontece com todo crime ambiental, os danos ecológicos nas áreas indígenas afetam também interesses coletivos e difusos, repercutindo não só nas populações tradicionais, como sobre toda sociedade.
Direito e Democracia
273
No primeiro levantamento relativo ao furto de madeira (1995/1996),
realizado pela Organização Não Governamental KANINDÉ, somente na
bacia do rio Juruparí, afluente do rio São Miguel, foram encontradas 178
árvores, com o volume de 1.520 metros cúbicos, sendo 70% Mognos, 26%
Cerejeira, 3% Cedro e 1% Maçaranduba, além de mais 74 toras abandonadas em diversos pontos. Mensurou-se nesse trabalho a abertura de 38.500
metros de estrada. No segundo levantamento foi constatado a abertura
de 32,001 metros de estradas e cubadas 190 toras com volume de 555
metros cúbicos, sendo 97% de Mogno.
V. O DIREITO EM DEFESA DE ETNIAS
INDÍGENAS
A Ciência Jurídica deve ser estudada e aplicada como um instrumento de justiça, na defesa da vida. Somente por esse aspecto o Direito cumpre sua finalidade de ser, que é o de estabelecer limites para a ação destruidora do homem sobre si e a natureza. O Direito possui essa árdua
tarefa, de educar o homem, de conduzi-lo a níveis superiores de civilização. Infelizmente, observamos nas faculdades brasileiras, um direito desprovido de um sentido elevado, fragmentado, desnutrido dos valores que
lhe são essenciais, um direito deformado. Chegou-se ao ponto de se pensar, como critica Plauto Faraco de Azevedo(1999:31), na existência de
um direito para o jurista e um outro para o filósofo.
Quanto às minorias étnicas, nesse estudo as indígenas, o Direito possui imenso campo de atuação e reflexão, não sendo menores as dificuldades encontradas, nessa prática jurídica, dada a sua complexidade, tanto
antropológica como jurídica. Se, na prática do Direito, existem infindáveis
conflitos teóricos, em uma sociedade tradicionalmente legalista, maiores
serão os problemas encontrados pelos juristas nessa faixa de fronteira cultural, quando sociedades de temporalidades históricas completamente
desiguais passam a inter-relacionar-se e a conviver em busca de seus direitos. Importante a observação de Martins(1997:32):
“As mesmas pessoas têm os diferentes momentos de sua
vida atravessados, às vezes num único dia, por diferentes
temporalidades da história. É o que ocorre quando grupos
274
Direito e Democracia
tribais, que só recentemente passaram do machado de pedra para o machado , ou que só nas últimas décadas deixaram o canibalismo ritual, ao mesmo tempo entram na
era do avião, da máquina fotográfica e da filmadora.”
As faixas de fronteiras étnicas, ou de integração dos povos indígenas à
sociedade nacional, remetem o jurista a um campo intrincado das ciências sociais, onde há confrontos de humanidades e temporalidades. É nesse
limiar que os cientistas da lei precisam salvar minorias étnicas do extermínio, como a própria decência desta civilização chamada superior, defesa essa que incansavelmente tem ocupado os homens de vanguarda.
Como acrescenta Bastos(1985:98):
“ Por fim, não podemos deixar de reconhecer as significativas dificuldades de se acomodar à ordem jurídica dominante, especialmente condicionada pelos parâmetros
legalistas de organização, sociedades históricas organizadas em função de padrões e valores costumeiros e
imemoriais. Verdadeiramente, esta a grande dificuldade para
se sintonizar o legalismo racionalista da ordem jurídica brasileira e o tradicionalismo espontâneo e consuetudinário
que preside a vida comunitária dos indígenas locais.”
As tragédias étnicas se perpetuam nessas faixas de confronto entre
sociedades, onde a dominação é grotescamente primitiva. Os povos
indígenas da Amazônia convivem com massacres contemporâneos dos
Mac’donalds, apesar da civilização ter publicado centenas de declarações de direitos humanos. É importante destacar que a violência
praticada contra as etnias indígenas na Amazônia são crônicas atuais,
e não relativas ao Brasil remoto. Nas novas fronteiras de ocupação,
áreas de migrações internas no Brasil, povos indígenas são cruelmente
massacrados, à medida que esses grupos colocam-se como obstáculo
ao endo-colonialismo econômico. O Brasil ainda não está descoberto,
como muitos pensam, principalmente nessas frentes de fronteira cultural, onde o encontro de civilizações resulta em massacres étnicos.
Esse contraste da realidade social brasileira é muito bem apontado por
Darcy Ribeiro (1977:07):
Direito e Democracia
275
“ A enorme extensão territorial e a desigualdade de desenvolvimento das suas várias regiões fazem do Brasil um país
de violentos contrastes, em que tribos indígenas virgens de
contato com a civilização são contemporâneas de grandes
metrópoles modernas. Aquilo que para o Brasil litorâneo é
a história mais remota, só registrada nos documentos da
colonização, para o Brasil interior é crônica atual.”
Outro exemplo bárbaro de massacre contra etnias indígenas, entre
tantos outros, é o caso dos Cinta-Larga, índios que habitam as Florestas
de Rondônia e Mato-Grosso. Relata Martins (1997:168):
“ Nesse período recente, não foram raros os casos de
expedições de caça ao índio organizadas pelos brancos
da frente de expansão, para removê-los de suas terras e
prevenir ataques. Como em 1963, quando os responsáveis por um seringal no Mato Grosso ordenaram a destruição e o massacre de toda uma aldeia de índios Cinta
Larga: de avião, em vôos rasantes, foram jogadas dinamites sobre a aldeia, ao mesmo tempo que uma metralhadora era disparada sobre os índios que corriam em
pânico. Os atacantes voltaram por terra e metralharam
outro grupo de índios acampados à beira de um rio. Ouvindo choro abafado de criança, voltaram e encontraram, sob dois corpos crivados de bala, a mãe viva e uma
garotinha. Enquanto violentavam a mulher, que matariam depois, com um tiro estouraram os miolos da menina
que tentara socorrer a mãe.”
As leis brasileiras, que tratam dos gêneros de violência praticados
contra as populações indígenas, não ultrapassam os limites teóricos da
Dogmática Jurídica. A perspectiva da fronteira é muito bem apontada
por Martins, quando explica que é nela que encontramos o humano no
seu limite histórico(1997 :13). Este limite precisa ser incorporado quase
como um método hermenêutico, quando o operador do Direito se depara com questões jurídicas envolvendo as populações indígenas. O Código Civil, o Estatuto do Índio e outros diplomas legais, que tratam da
matéria, são insuficientes como instrumentos de composição, prevenção de litígios e reparação de classes, pois falta-lhes a perspectiva da
276
Direito e Democracia
Antropologia Jurídica, de modo a tornar visível a problemática das
temporalidades étnicas, nas faixas de integração das sociedades indígenas. Por exemplo, o regime tutelar dos indígenas, que regulamenta a
sua capacidade civil e criminal em relação à sociedade nacional, não
assegura satisfatoriamente aos índios meios de proteção, na sua inserção brusca na sociedade contemporânea e nos transtornos, que lhe causam essa ruptura de civilização.
A classificação, contida na lei 6.001/73, distinguindo-os em índios
isolados, em vias de integração e integrados, reduz um grande problema
antropológico a um simplismo teórico grave, não permitindo ao operador
do Direito uma discussão sobre temporalidades e faixas de integração. Os
índios integrados, talvez sejam os mais violentados, pois, como acrescenta
Galvão(1979:278), a inserção do índio nessa sociedade ( de classe) se dá ao
nível de seu extrato mais baixo, como trabalhador não qualificado. O índio
integrado, aquele que está livre do regime tutelado previsto na lei, é
incorporado nas camadas mais marginais da sociedade, com grandes
chances de tornar-se mendigo e alcoólatra. Por isso, a inserção do índio
na nossa sociedade e seu comportamento social não, podem ser vistos
unicamente sob o prisma da lei. É necessário considerar as diversas
temporalidades históricas, em que se encontram as diferentes humanidades. O Direito não está encerrado nos textos legais, como asseverou
Demolombe –“ os textos antes de tudo”, mas sim na história do homem e de
sua relação com os outros homens no mundo. Como assinala Azevedo(1999:30):
“ Quem tiver uma concepção positivista do direito nada
mais verá no direito do que a lei. Identificará mesmo direito e lei. Então, tudo se torna singelo.”
Muitos daqueles que criticam pejorativamente as medidas “protecionistas” revelam seu desconhecimento teórico e prático das questões
indígenas, ou camuflam, por detrás de discursos oportunistas e imorais,
seus verdadeiros interesses econômicos, prática essa muito comum em
Rondônia, que se traduz em aliciar índios para depois negociar suas
florestas.
Vale, entre centenas de casos contemporâneos, a história de contato
dos Kreenakarore, segundo o relato de Martins (1997:165):
Direito e Democracia
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“ No dia 13 de Fevereiro de 1973, eram finalmente atraídos para viver no acampamento dos brancos e contatados:
eram 350 pessoas. Dois ano depois desse episódio e do
contato com os brancos, em janeiro de 1975, só restavam
vivos setenta e nove deles ( quarenta homens e trinta e
nove mulheres), todos com sinais visíveis de tuberculose.
Um ano depois, um sertanista denunciava que brancos
podiam ter submetidos os índios a severas humilhações,
que eles não faziam mais roça e havia entre eles vários
casos de doenças venéreas transmitidas pelos brancos, sem
contar trinta e cinco índios com gripe, inclusive o cacique.
Os índios estavam abandonando a aldeia e construindo
suas malocas na beira da rodovia.”
Aos índios isolados deve o Direito garantir a integridade de seus territórios, a ação punitiva sobre os violadores desses direitos tutelados e o
acompanhamento das políticas indigenistas institucionais. Porém, é em
relação aos índios integrados ou em vias de integração, nessa faixa de
encontros e degradações ( integração), que o Direito é chamado a intervir. Os homens da lei precisam compreender o desespero silencioso dessas
minorias, investigar o drama da fronteira étnica, onde povos indígenas
contatados tornam-se seres perdidos e subjugados ao poderio ostentado
pela sociedade nacional. O Direito deve se insurgir é contra os sistemas
que oprimem, marginalizam e excluem, e julgar com misericórdia as criaturas que também se tornam vítimas dessas organizações injustas. O alcoolismo e a participação com madeireiros no desflorestamento das reservas, são exemplos da progressiva degradação dos índios, um suicídio simbólico e lento sobre si e sobre seu habitat: as florestas. É dessa forma que
o jurista deve enxergar o índio e seus conflitos, uma civilização sem perspectiva histórica, acuada e transtornada, quase vencida.
Uma questão que também deve ser suscitada é a da distinção entre
posse e habitat. O direito dos índios sobre as terras que tradicionalmente
ocupam é assegurado pela Constituição Federal Brasileira, competindo à
União a proteção de todos os bens originários das reservas Indígenas. A
posse que os silvícolas detém sobre suas terras, tem como finalidade garantir a sobrevivência dessas populações, em sua forma de vida tradicional. Considerando que etnia é um conceito essencialmente antropológico, não há relação entre a reserva indígena e os “índios” desaculturados,
apartados de suas tradições, pois o significado de reserva indígena vai
278
Direito e Democracia
além da questão fundiária e patrimonial, encerrando em si uma dimensão
cultural. A finalidade da reserva não é unicamente a defesa da integridade física do índio, mas a proteção de sua cultura. Quando a cultura
indígena é violentada, é desviada também a finalidade da reserva, tornando a condição do índio “integrado”( aquele que muitas vezes perdeu
seus referencias tradicionais, mas que também não foi aceito na sociedade nacional e quando isso ocorreu foi nas condições mais marginais), um
problema confuso, tanto para o sociólogo, como para o antropólogo e o
jurista. Nesse sentido valem os apontamentos de Wander Bastos(1985:93):
“ Reduziu-se a discussão da questão das terras indígenas
como bem público a uma questão de direito patrimonial,
com exclusivo predomínio do entendimento dogmático, divergente, por conseguinte, da opinião de Vitor Nunes, subsidiada por Hermes Lima. Para eles, o problema das terras
indígenas não se reduz a uma simples questão de direito
patrimonial, mas está intimamente associado às variantes
culturais da vida do indígena, e juridicamente, deve ser
observada também como problema cultural, especialmente a se considera-las como habitat remanescente de populações primitivas.”
Victor Nunes Leal, no acórdão de que resultou a Súmula nº 480, acrescenta sobre a matéria:
“Aqui não se trata do direito de propriedade comum: o
que se reservou foi o território dos índios...Não está em
jogo, propriamente um conceito de posse, nem de domínio,
no sentido civilista do vocábulo; trata-se do habitat de um
povo.”
A reserva existe para a vida indígena tradicional. Se forem adotados
modelos predatórios, o território indígena não estará cumprindo a sua
finalidade de proteção étnica. É a desigualdade de civilização que permite ao índio a exclusividade dessas imensas terras chamadas reservas indígenas. A partir do momento em que o índio abdicar ( mesmo forçado
pelas pressões da expansão nacional) da sua condição de índio, terá que
disputar seu lugar nas mesmas condições de milhões de marginalizados
Direito e Democracia
279
que vivem no Brasil. Portanto a idéia de posse dos índios sobre suas terras,
está condicionada ao critério de habitat de um povo diverso da nossa
civilização. Quando não houver diferenças, não há que se pensar em
medidas especiais. A relação entre posse e tradição é inevitável. O índio
mantém o domínio de suas terras enquanto não perder o contato com
suas origens culturais. Acrescenta Galvão (1979:128):
“ A única coisa que permite a esses índios, na competição
econômica com o branco, manter a posse de uma gleba ou
de garantir a si próprios um mínimo de assistência é fazer
valer sua condição de índio”
O grande problema reside nas faixas de integração, pois aí estão localizadas as confusões de identidades, e é nesse limiar que o jurista é obrigado a atuar, não se esquivando covardemente dessa tragédia de
etnicidades. A verdade é que a sociedade nacional não sabe o que fazer
com o índio, se lhe nega a inserção na história contemporânea, mantendo-o em sua vida tradicional(o que seria um grande patrimônio cultural
para a humanidade), ou se lhe abre as portas da civilização “branca”, com
todas as chances de o transformar em um ser desfigurado, marginal e isso
tem sido demonstrado na prática. De qualquer forma, o jurista precisa
agir, encontrar caminhos nos desencontros, ouvir os antropólogos, sociólogos, filósofos, para não cair no ostracismo da lei, ou da sua aplicação
injusta e improfícua. E assim tem sido a vocação do verdadeiro jurista,
um pensador da complexidade da história e do destino dos homens, que
não são menos homens por pertencerem a etnias diferentes da nossa. É
indispensável respeitar-se a diversidade cultural para preservar a riqueza
da vida
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Direito e Democracia
Responsabilidade civil do
fornecedor pelo fato do serviço no
contrato de assistência médica
Civil Responsability of the Providers for the
Service Fact in the Medical Assistence Contract
MARILISE KOSTELNAKI BAÚ
Advogada, Professora de Direito Civil e Mestre em Direito
RESUMO
Um número cada vez mais significativo de brasileiros usam a assistência médica prestada por meio de pessoas jurídicas da iniciativa privada, os chamados
planos ou convênios de saúde. Essas empresas de medicina pré-paga são
particulares, que terceirizam os serviços médicos, sendo trabalho efetivamente
prestado por terceiro, que não é parte direta na relação de contrato firmada
entre o consumidor e quem se compromete a oferecer assistência em caso de
doença. Pretendemos examinar a questão da responsabilidade civil na medicina
prestada por empresas, na averiguação e delimitação de sua obrigação de fazer, principalmente, no que se refere à responsabilidade no caso de mal pratice
médica. A lei 9.656/98 é omissa quanto à questão da responsabilidade civil.
Assim, nos casos em que houver relação de consumo, a matéria continua regulada pelo Código do Consumidor.
Palavras chaves: responsabilidade civil, contratos de assistência médica, e fornecedor de serviços.
Direito e Democracia
Canoas
n.2
Direito e vol.1,
Democracia
2º sem. 2000
p.283-304283
ABSTRACT
In Brazil, there are millions of persons looking for private medical assistance,
through health agreements or health conventions contracted with Health Insurance Companies. These are private establishments that employ other persons,
who don’t belong to this contractual relationship. We intend to examine the civil
responsibility of those companies, in the evaluation and delimitation of their
obligations, specially in malpractice cases.
Key words: civil responsibility, medical assistence contracts, service providers
INTRODUÇÃO
Os contratos de medicina pré-paga têm natureza sui generis, envolvendo um feixe de relações contratuais e tendo grande relevância social.
Trata-se de contratos de adesão, definidos no Código do Consumidor,
artigo 54:
Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido
aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas
unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços,
sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
O presente trabalho classifica os contratos de assistência médica em
dois grandes grupos: contratos de medicina pré-paga, popularmente conhecidos como convênios ou planos de saúde, e os contratos de seguro-saúde.
São mencionadas as semelhanças e examinadas algumas diferenças entre
as duas modalidades, no que se refere à responsabilidade civil e à validade
das respectivas cláusulas, que limitam a responsabilidade de indenizar os
danos à saúde do consumidor, causados em virtude de mal practice.
Aborda-se a responsabilidade do fornecedor pelo fato do serviço, que
é neste caso a empresa oferecedora do serviço, conforme o Código de
Defesa do Consumidor, o que examinamos, mais detalhadamente em outra obra1.
1
MARILISE KOSTELNAKI BAÚ O Contrato de Assistência Médica e a Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro:
Forense, 1999.
284
Direito e Democracia
Encerra-se o estudo recomendando-se a divulgação, para que se torne de praxe, da inclusão de uma cláusula penal no contrato de seguro ou
de convênio, onde a empresa estipule previamente, de maneira justa,
clara, e com real valor, uma pena para o caso de inadimplemento contratual,
delimitando o quantum indenizatório pela falha do serviço médico, que se
comprometa a prestar através de terceiros. Caso que, infelizmente, não
foi contemplado pela nova lei, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, lei 9.656/98.
Por sua vez, a lei 8.078 de 11.9.90, Código de Proteção e Defesa do
Consumidor, já socorre o usuário desta espécie de serviços, os chamados
serviços médicos. O consumidor, denominado neste caso de paciente,
está certamente mais amparado com o advento da aludida lei e pode,
com maior facilidade, ser ressarcido por danos causados a sua pessoa pela
má prestação do serviço.
Neste passo, o que se propõe é discutir em quais casos e quais as vantagens de o paciente cobrar diretamente do convênio ou acioná-lo judicialmente, para pleitear a indenização pela má qualidade na prestação
do serviço por ele oferecido.
Faz-se necessário estabelecer distinções entre contrato de assistência
médica pré-paga e contrato de seguro-saúde, que embora regidos pela
mesma lei, estabelecem distintos graus de responsabilidade para um e
outro caso.
Traçaremos então, um paralelo entre a responsabilidade civil dos convênios e dos seguros, no tocante às cláusulas de exclusão ou limitação de
responsabilidade, com base, principalmente, no Código do Consumidor.
1. A RESPONSABILIDADE CIVIL
A responsabilidade civil é, tradicionalmente, estudada em duas perspectivas. Em primeiro plano, como inadimplemento de uma obrigação,
isto é, responsabilidade contratual; num segundo plano, como conseqüência de um ato ilícito que, segundo outra fonte de obrigação, a lei,
configura fatos causadores do dever de indenizar, vale dizer, a responsabilidade extracontratual. Esta última, por sua vez, é embasada em dois
fundamentos: a culpa e o risco.
Direito e Democracia
285
Pela teoria da culpa, responde o médico quando exerce sua profissão de
forma liberal, isto é, quando procurado pelo paciente em seu consultório
particular. A teoria da culpa também é chamada de teoria tradicional ou
teoria subjetiva, tendo sido estudada, durante largo período, como único
fundamento da responsabilidade civil e priorizando a pessoa do autor do
dano, que é responsável pela indenização, sempre que a vítima comprove
sua culpa ou dolo. Em outras palavras, a vítima só terá direito à indenização
se conseguir comprovar, ao menos, a culpa do médico, sob pena de ter que
se conformar com o dano e atribuí-lo aos infortúnios do destino. Esta concepção é coerente com as correntes racionalistas e individualistas, com a
liberdade contratual e com o absolutismo do direito de propriedade, que
dominavam o mundo à época da Revolução Francesa até o início do nosso
século. A partir daí, fez-se necessária uma revisão no conceito de responsabilidade, para se enfatizar uma preocupação com a vítima do dano, impotente frente a grandes forças econômicas, no outro pólo da relação
contratual. Surgiu, então, uma nova doutrina, conforme José de Aguiar
Dias2, cujas primeiras idéias devemos aos alemães, mas sua sistematização
é legado dos franceses Raymond Saleilles e Louis Josserand3.
Por ocasião do grande despertar da indústria e da tecnologia, a muitos
pareceu que ao Direito não caberia sacrificar os causadores dos benefícios daí oriundos, lançando ônus excessivo a empresas que trariam desenvolvimento para a comunidade como um todo. A reparação dos danos,
causados por esta camada social, era negada pela falta de relação
contratual entre a empresa e a vítima que não tinha condições de provar
culpa alguma. Já havendo relação contratual, leoninamente, a empresa
poderia ser tentada a ditar as regras do contrato, eximindo-se de qualquer responsabilidade por danos a que desse causa. Na relação fornecedor-consumidor, aquele sempre estava em situação de extrema vantagem. Com a automação, esta desvantagem do consumidor, tornou-se
potencialmente maior. O Direito Tradicional foi ficando inadequado e os
problemas passaram a se acumular, tais como: práticas comerciais desleais
e abusivas, produtos defeituosos, serviços lesivos colocados no mercado
pela eficácia da multimídia, e assim por diante.
Pela teoria da responsabilidade objetiva, analisa-se a questão da res-
2
in Responsabilidade Civil. Forense. Rio de Janeiro, 1995, p.56.
3
SALEILLES, Raymond. Les Accidents deTravail dans la Responsabilité.Paris, 1887. JOSSERAND,Louis. Les
Mobiles.dans les Actes Juridiques du Droit Privé. Paris: Libririe Dalloz, 1928.
286
Direito e Democracia
ponsabilidade sob a ótica da vítima, como sendo a parte mais fraca, e
responsabilizando o agente causador do dano pelo fato de ocasionar o
risco. Basta que o autor comprove o dano e o nexo de causalidade entre
o ato e o dano, para que surja o dever de indenizar, por parte do causador
do prejuízo, independentemente de que tenha agido com culpa ou não.
Como conseqüência natural da evolução das relações contratuais,
surgiu o Direito do Consumidor, visando a estabelecer igualdade entre as
partes, tutelar efetivamente a atual liberdade contratual, defender os
interesses individuais e os interesses comuns ou difusos, contra os abusos
do fornecedor. Neste sentido, o novo Código vem fixar, em vários artigos,
a responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do serviço e, no tocante
às cláusulas de exoneração de responsabilidade nos contratos de assistência médica, deixa claro que a empresa que oferece serviços médicos deverá responder pela qualidade dos mesmos.
2. CONTRATO DE ASSISTÊNCIA MÉDICA PRÉPAGA(CONVÊNIO OU PLANO DE SAÚDE) E
CONTRATO DE SEGURO-SAÚDE
2.1 Aspectos Relevantes
O sistema de contratação das empresas de assistência médica geralmente ocorre de dois modos: fechado ou aberto.
Fechado é aquele que não permite a livre escolha do médico ou instituição que prestará diretamente o serviço; neste caso, o paciente deverá
optar somente por profissionais e instituições previamente constantes nos
cadastros da empresa. Estes profissionais, por sua vez, também manterão
acordo de convênio com a empresa e seguirão estritamente suas normas,
desde que não sejam abusivas.
No sistema de contratação aberto, é permitida ao paciente a livre escolha do profissional, ficando a obrigação da empresa limitada ao ressarcimento dos gastos com saúde, efetivamente efetuados pelo associado.
Em qualquer das hipóteses, é comum constarem nos respectivos con-
Direito e Democracia
287
tratos que a empresa celebra com o cliente, cláusulas de isenção de responsabilidade como a que segue:
“... A empresa não se responsabiliza por danos causados à
saúde do associado ou de seus dependentes, causados por
atos culposos, dolosos ou acidentais por parte dos médicos
e outros profissionais, hospitais ou instituições prestadoras
de serviços médico-hospitalares, quer os de livre escolha
do associado, quer os integrantes das listas de credenciados
ou referenciados.”
A abusividade destas cláusulas parece indiscutível, como cuidaremos
de demonstrar. Para este propósito, analisaremos em separado as cláusulas
exonerativas e as cláusulas limitativas de responsabilidade, nos convênios e nos contratos de seguro.
Estes contratos são contratos atípicos mistos, uma vez que somente o
seguro-saúde propriamente dito encaixa-se adequadamente no conceito
de seguro previsto no art. 1432 do Código Civil. São bilaterais, formais, de
adesão, geralmente impressos, de longa duração e de execução continuada. A diferença primordial entre convênio e seguro, como bem salienta
Arnaldo Rizzardo 4, está no fato de que no seguro inexiste vínculo
contratual entre o conveniado e o prestador direto do serviço. O segurado escolhe o médico livremente, efetuando o pagamento pela prestação
do serviço e só depois será reembolsado pela seguradora até os valores
preestabelecidos no contrato.
Tanto o contrato de seguro como o de convênio devem seguir os princípios norteados pelo Código de Defesa do Consumidor, como a boa-fé e a
transparência nas informações.
2.2 Convênios ou Planos de Saúde
Os convênios, também chamados de planos de saúde, são realizados
por empresas geralmente da iniciativa privada, organizadoras de medicina pré-paga, que celebram pelo menos dois contratos, um com o pacien-
4
in O código de Defesa do Consumidor nos Contratos de Seguro-saúde e Previdência Privada. Ajuris nº64, pp 78-101.
288
Direito e Democracia
te, outro com o médico/hospital/clínica.5 São contratos revestidos de características especiais que envolvem um feixe de relações, com prestação
de serviços contínuos, massificados, prestado por pequeno grupo de empresas, no geral com a utilização de terceiros para a realização do verdadeiro objetivo contratual, ou seja, a prestação direta do serviço ao consumidor. Para a realização de tal desiderato final, ocorre uma cadeia invisível de fornecedores diretos e indiretos.
2.2.1 A Validade das Cláusulas Exonerativas de
Responsabilidade
No tocante à validade das cláusulas exonerativas de responsabilidade, devemos levar em consideração, em primeiro lugar, que estamos tratando de um contrato de adesão, com cláusulas propostas unilateralmente pela empresa. Desta forma, entendemos, como regra geral, que não
poderá a empresa prestadora simplesmente exonerar-se de qualquer responsabilidade pelos serviços que coloca no mercado.
Poderemos analisar, sob dois aspectos, a invalidade das cláusulas
exonerativas, ou seja, nas duas formas de contrato que este tipo de relação desenvolve. No contrato entre a empresa terceirizadora e o profissional contratado para prestar diretamente o serviço e no contrato entre a
empresa e seu cliente, o consumidor.
No contrato entre a empresa e o médico, esta cláusula de exoneração
de responsabilidade é abusiva e sem validade, conforme o art. 51, § 1º, II
do Código de Defesa do Consumidor:
Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes
à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto
ou o equilíbrio contratual.
Uma cláusula assim acarreta vantagem exagerada para o convênio,
que justamente é a empresa que intermedia, que obtém o maior lucro.
5
CLÁUDIA LIMA MARQUES A abusividade nos Contratos de Seguro-saúde e de Assistência Médica no Brasil.
Ajuris nº64, pp.34-77.
Direito e Democracia
289
Por isso, não poderá ela, de forma unilateral, exonerar-se completamente
dos riscos, pois isto ensejaria um desequilíbrio contratual em que a parte
intermediadora ficaria com o lucro maior e a outra, sem lucro e com todos
os riscos. Ademais o art. 34 do Código do Consumidor é de redação
insofismável:
O fornecedor de produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes
autônomos.
O Código em questão é norma de ordem pública ( art. 1º). Assim,
seus artigos são inderrogáveis pelas partes, e vêm interferir diretamente
no setor privado do Direito, não podendo as partes estipular cláusulas
contrárias ao que a lei preestabelece. As obrigações, tanto da empresa
quanto do médico, são concorrentes, e o legislador quis com isto, evitar
prejuízos não-indenizáveis devidos à insolvência do autor do dano.
O art. 51 qualifica claramente a cláusula de não indenizar como
abusiva:
São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas
contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos ou serviços ou impliquem renúncia ou disposição de
direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o
consumidor-pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis: (...)
III - transfiram responsabilidades a terceiros;
Como salienta Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, “não há que
se falar, nas relações de consumo, em cláusula exonerativa de ressarcimento”.6 O CDC também esclarece que quem oferece o serviço se obriga, e que
qualquer promessa vincula o promitente. Isso está previsto no art. 30 da lei:
6
Responsabilidade civil no Código do Consumidor. Rio de Janeiro, Aide, 1991. p. 56.
290
Direito e Democracia
Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa,
veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação
com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que fizer ou veicular e integra o
contrato que vier a ser celebrado.
Se o convênio promete o serviço, responderá pela prestação e pela
qualidade do mesmo. A ele caberá a escolha dos profissionais para constarem nos seus cadastros, respondendo pela sua atuação.
O Código do Consumidor vem reforçar a atual tendência de valorização da fase pré-contratual como vinculadora, a oferta obrigando o
promitente a realizar as expectativas legítimas do consumidor, com base
na confiança despertada, seja pelo anúncio do fornecedor, seja pela respeitabilidade e fama da empresa no mercado.
A empresa prestadora de saúde responde ainda pelas culpas in eligendo,
in omittendo e in vigilando. Deverá, portanto, escolher com cuidado e
diligência os médicos e clínicas com quem assinar convênio, mantendose sempre atenta e vigilante quanto à boa atuação desses profissionais no
mercado de trabalho, descredenciando os que não honrarem a profissão,
pois responderá pela atuação dos mesmos.
No contrato celebrado entre a empresa e o associado, há uma obrigação principal , que é uma obrigação de fazer, a qual deverá ser prestada
por terceiro, colocando-se a empresa operadora como fiadora do serviço
desse terceiro. Em caso de descumprimento contratual por parte do
prestador direto do serviço, o fiador responde solidariamente.
O Associado compromete-se ao pagamento das mensalidades, e a
empresa assegura, além da obrigação principal de prestar o serviço médico, a qualidade do mesmo, inclusive no que se refere aos danos que, por
ventura, sobrevirem da execução do contrato. A obrigação da empresa
organizadora de saúde pré-paga é de resultado, quando se obriga à prestação do serviço por médicos e estabelecimentos, constantes nos seus cadastros de registro; obriga-se, pois, a que esse serviço seja prestado em
condições tais que o paciente não sofra danos por deficiência da assistência prometida. O convênio deverá reparar os danos ocasionados, pelo fato
do serviço oferecido ser defeituoso, conforme o entendimento do art. 14
e §1 º do CDC:
Direito e Democracia
291
O fornecedor de serviços responde, independentemente
da existência de culpa, pela reparação dos danos causados
aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos
serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§1º: O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o
modo de seu fornecimento;
II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi fornecido.
É conveniente lembrar que o direito de ação, para tornar efetivo o
direito material à reparação, é prescritível em cinco anos, de acordo com
o art. 27 do Código do Consumidor.
Parece indiscutível a inviabilidade de qualquer cláusula exonerativa,
revelando-se, pois, abusiva, afrontando diretamente o espírito do CDC.
Trata-se de um contrato de adesão, que já está elaborado e impresso no
momento da assinatura, achando-se a empresa em situação de superioridade. Por isto, não pode obrigar-se a oferecer um serviço sem nenhuma
sanção jurídica para o caso de descumprimento. Isto eqüivaleria a obrigar-se a nada. Há de se ressaltar que os valores comprometidos nessa
espécie de relação envolvem direitos personalíssimos, como o direito à
vida, à saúde e à integridade corporal do beneficiário, que a eles não
pode renunciar, bem como à finalidade econômica perseguida. Então,
qualquer cláusula em que o convênio se exonere de responsabilidade por
danos causados à saúde do paciente por má prestação do serviço, ou, em
outras palavras, decorrentes de erro médico, é considerada abusiva na
sua integralidade e é tida como inexistente, isto é, sem nenhuma validade. O convênio ou plano de saúde responderá, sim, e de forma objetiva,
bastando que o paciente comprove o dano e o nexo de causalidade entre
ele e a prestação do serviço, para que a empresa tenha o dever de indenizar, não sendo necessário que se comprove a culpa do médico ou a culpa
do convênio. O médico, se diretamente acionado pelo paciente, responde pela teoria da culpa, nos termos do art. 1545 do Código Civil e art. 14
§4º do CDC, incumbindo ao paciente o ônus da prova. É do conhecimento de todos a dificuldade de fazer esta prova devido aos precários conhe-
292
Direito e Democracia
cimentos específicos das pessoas de forma geral, por se tratar de uma
ciência altamente técnica. Já quanto às empresas, respondendo objetivamente7, ocorrerá a inversão do ônus da prova, ficando a cargo do próprio
convênio, que deverá provar a sua não-culpa para livrar-se do encargo.
Acionando diretamente o convênio, o paciente tem muito mais chances
de ser ressarcido e de forma mais rápida. Como existe responsabilidade
solidária entre o plano de saúde e o médico que presta diretamente o
serviço, o convênio tem direitos regressivos contra o profissional e poderá
com este repartir o ônus, se comprovar a culpa do mesmo. Existe, ainda, a
possibilidade de o convênio punir os profissionais culpados e reincidentes, inclusive mediante o descredenciamento.
2.2.2 Validade das Cláusulas Limitativas de Responsabilidade
As cláusulas que exoneram da responsabilidade podem apresentar-se
de forma absoluta ou parcial. Estes pactos de limitação da responsabilidade, em que o associado renuncia antecipadamente a seus direitos, estariam baseados no princípio da autonomia das vontades. O que se pergunta
é se o sócio poderá ter limitado, de forma total ou parcial, seu direito de
obter ressarcimento por inexecução, por culpa ou dolo da outra parte.
Somente no caso de limitar e não de excluir a responsabilidade por
danos causados à saúde do paciente, por descumprimento contratual,
seria discutível a validade da cláusula.
Segundo Carlos Alberto Ghersi8, não se valorizará a cláusula de redução do quantum indenizatório, em contratos de adesão quando:
1. a lei a proibir;
2. for contrária ao ordenamento jurídico, à moral ou aos bons costumes;
3. desnaturar a obrigação ou a essência do vínculo obrigacional;
4. limitar a responsabilidade sobre os danos corporais;
7
8
GENIVAL VELOSO DE FRANÇA in Flagrantes Médico-legais III, p.174.
Contrato de Medicina Prepaga. Editorial Astrea. Buenos Aires, 1993. p.201.
Direito e Democracia
293
5. estabelecer limites por danos patrimoniais sem a adequada equivalência econômica;
6. se referir a danos sobre a vida, saúde e integridade corporal;
7. quando o associado não tem a real intenção de renunciar a este
direito;
8. quando afeta a liberdade contratual e a boa fé.
Poderia ser considerada válida uma cláusula penal contida no contrato se fosse estabelecida nas seguintes condições:
1. vindo expressa de forma clara, legível e com letras ostensivas;
2. estando prevista no momento da assinatura do contrato, inclusive com o quantum previamente calculado, jamais inserida posteriormente, de forma unilateral;
3. expondo as formas de reajuste;
4. estabelecendo limite de indenização razoável, jamais irrisório.
A adoção obrigatória da cláusula penal seria, sem dúvida, uma contribuição para a evolução desses contratos de indiscutível valor social e
uma solução prática para problemas indenizatórios causados pela má prestação do serviço médico. Sendo os convênios obrigados por lei a estipular
previamente uma multa convencional para o caso de inadimplemento
contratual, certamente teriam um maior cuidado na seleção de profissionais, e o cidadão veria seus direitos garantidos através de uma melhor
prestação de serviços médicos, assegurando ao paciente uma melhor qualidade e uma maior expectativa de vida.
O ente organizador, por vezes, reserva-se o direito de modificar unilateralmente alguma cláusula contratual, postura que é claramente abusiva
e inválida de acordo com o CDC. As cláusulas de exoneração ou de
limitação geralmente se referem à conduta dos agentes executores diretos dos serviços, em que o intermediário pretende livrar-se das conseqüências dos atos praticados:
- por dolo
- por culpa grave
- por culpa leve
294
Direito e Democracia
Entre nós, é irrelevante esta classificação, sempre que se tratar de
exoneração da responsabilidade, pois, de forma nenhuma, a empresa poderá abster-se do dever de indenizar por falhas nos serviços que ela própria oferece, tanto no caso de dolo como no de qualquer das modalidades
de culpa. As partes somente poderão acordar uma limitação da responsabilidade sendo os valores justos e próximos do valor real, isto é, deverá
sempre haver uma justa proporção entre a extensão do tamanho do dano
e o quantum indenizatório.
Em conclusão, podemos aduzir que, enquanto a exoneração é
taxativamente proibida entre nós, a limitação é válida, desde que justa.
2.3 Seguro-saúde Propriamente Dito
O conceito de seguro encontra-se no Código Civil, art.1432:
Considera-se contrato de seguro aquele pelo qual uma
das partes se obriga para com a outra, mediante a paga de
um prêmio, a indenizá-la do prejuízo resultante de riscos
futuros, previstos no contrato.
O Decreto-lei nº 73/66 ( que continua em vigor, mesmo depois do
advento da lei 9.656/98) trata, no art. 129, do contrato de seguro-saúde
propriamente dito, isto é, aquele que envolve reembolso de futuras despesas médicas eventualmente realizadas. O decreto também menciona,
no seu art. 135, o contrato que envolve pré-pagamento, por isso há quem
defenda a idéia de tratá-los todos pelo nomem juris de “seguro-saúde”.
Sem dúvida, assemelham-se pelo tipo de cláusulas e obrigações. Há elementos característicos do seguro nas duas formas, pois o associado ou
segurado contrata o pagamento de futuras e incertas despesas exigíveis,
ao advir o evento doença.
Porém, muitas são as distinções entre as duas espécies, especialmente
no que se refere à responsabilidade civil. De um lado, há uma grande
proliferação de empresas não-médicas, que se vinculam a grupos de médicos e hospitais conveniados e oferecem uma forma mista de seguro,
desenvolvendo uma cadeia de obrigações conjuntas, em que o médico
como executor direto dos serviços assume uma obrigação de meios perante o convênio e perante o paciente, isto é, compromete-se a usar do seu
Direito e Democracia
295
conhecimento universitário e altamente técnico, com toda sua diligência
e sagacidade, na tentativa de conseguir o melhor diagnóstico, tentar a
cura, o alívio da dor e o bem-estar do paciente; de outro lado, o fornecedor indireto dos serviços, a empresa fornecedora que explora economicamente a medicina pré-paga, que é a organizadora desta cadeia solidária
de fornecimento de serviços médicos, assume perante o paciente uma
obrigação de resultado, tendo que garantir a qualidade dos serviços que
oferece, e por ela responde objetivamente.
Esse contrato apresenta alguma semelhança com o contrato de fornecimento médico fechado, aquele contratado na atualidade da doença,
descaracterizando o processo de indenização resultante de risco,
desbordando do conceito de seguro.
Somente quando o contrato previr ao segurado a livre escolha dos profissionais que farão o atendimento médico, poderemos afirmar que se trata
de seguro propriamente dito e, neste caso, a empresa não fará parte da
cadeia de responsabilidades como acontece no caso dos convênios. Se
inexistir contrato entre a seguradora e os prestadores diretos do serviço,
fica a seguradora livre de indenizar, quando ainda assim estipular em cláusula destacada. Mas com ou sem destaque, não valerá a cláusula nos casos
em que o seguro se compromete a ressarcir toda e qualquer doença ou
internação do segurado, desde que entenda que a obrigação assumida é a
de resultado, vale dizer aquela que compreende todo o qualquer tratamento, mesmo a deformidade, aleijão ou doença causada ou piorada pelo mau
e demorado atendimento ou, ainda, pela negligência médica. A obrigação, sendo de resultado, a seguradora é responsável e deverá custear o
risco de qualquer doença não previamente excluída. Em outras palavras,
para ficar livre da obrigação de custear, a seguradora deverá colocar no rol
das doenças, que previamente exclui, aquelas decorrentes da culpa médica, com letras garrafais, conforme ordena o art. 54 § 4º do CDC:
As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua
imediata e fácil compreensão.
Se não excluir claramente o tratamento de enfermidade advinda de
erro ou acidente médico, pagará o seguro pelo tratamento, isto é, continuará com a obrigação de custear todo o tratamento, que se fizer necessário até a completa cura.
296
Direito e Democracia
3. O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E
OS CONTRATOS MÉDICOS TERCEIRIZADOS
Inicialmente, observaremos a responsabilidade civil pelo Código Civil,
no campo extracontratual, que ocorre de três formas:
1. Por fato próprio - art. 159 e 160;
2. Por fato de terceiro, ou por quem o fornecedor é responsável art. 1521;
3. Por fato de coisa, pela qual o fornecedor também é responsável.
No primeiro item, o pressuposto para o nascimento da obrigação é a
culpa do fornecedor, com ônus para a vítima de provar o ilícito, o dano e
o nexo de causalidade entre o ato e o dano. Por ser demasiadamente
difícil a prova desta culpa, a jurisprudência recorreu à presunção de culpa do fornecedor para se viabilizar a ação.
Na segunda forma, a motivação do dever de indenizar baseia-se na
responsabilidade do fornecedor sobre os atos do terceiro, enumerados no
art. 1521, estabelecida a responsabilidade mediante a prova da culpa pela
vítima, conforme o art. 1523 e pela Súmula 341 do STF.
A responsabilidade pelo fato de coisa assemelha-se ao caso anterior,
embasada no dever de guarda da coisa pelo responsável.
Hans Kelsen9, na sua Teoria Pura do Direito, faz distinção entre as leis
de aceitação social e as de rejeição social, havendo nestas uma maior
necessidade de carga sancionatória para garantir o seu cumprimento. O
Código de Proteção e Defesa do Consumidor, sob certo aspecto enquadra-se nesta modalidade de lei, idéia inserida já no art. 1º da lei:
art.1º- O presente Código estabelece normas de proteção e
defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social,
nos termos do art. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias.
9
Teoria Pura do Direito. Martins Fontes, São Paulo, 1991. p. 41.
Direito e Democracia
297
O art. 5ºXXXII da Constituição Federal, mencionado no art. 1º do
CDC reza: O Estado promoverá na forma da lei, a defesa do consumidor.
Já o art. 24 VIII da CF estabelece competência concorrente para a
União e Estados legislarem sobre a proteção ao consumidor.
O sentido da palavra defesa pode ser traduzido como direito de agir
administrativamente ou em juízo, colocando os necessários instrumentos
administrativos ou processuais à disposição do consumidor para que seus
direitos sejam efetivamente protegidos. A palavra proteção tem um significado mais amplo, compreendendo todo um conjunto de princípios, estabelecidos pelo Código, onde o legislador tentou reunir e enfatizar o que
já havia esparsamente na legislação.
O Código do Consumidor veio melhorar e aperfeiçoar, sobretudo, o
Direito das Obrigações, visando a restabelecer a igualdade entre as partes e o equilíbrio contratual, rompidos pelas transformações econômicas
e, acima disso tutelar efetivamente os consumidores, presumidamente
vulneráveis ( art. 4º, I ), protegendo-os da outra parte economicamente
mais forte.
Em nosso sistema constitucional, com efeito, toda a atividade econômica deve ser orientada para o bem-comum, e este fato, por si só, legitima
todas as medidas de intervenção estatal para assegurar a proteção do
consumidor.
Sílvio Luís Ferreira da Rocha10 atribui acertadamente à Revolução
Industrial, iniciada na segunda metade do século XVIII, e à Revolução
Tecnológica representada pelo rápido desenvolvimento técnico depois da
2ª grande guerra, a causa da modificação das relações sociais, que conduziram à Resolução 85/374 do Conselho das Comunidades Européias,
em 25.7.85, onde a Diretiva da Comunidade Européia introduz o The
Consumer Act, de 1987.
Entre nós, o art. 4º do Código estabelece uma política nacional de
relações de consumo, objetivando atender às necessidade dos consumidores, no que tange à dignidade, à saúde , à segurança e a proteção de
sua qualidade de vida, bem como à transparência e harmonia das rela-
10
Responsabilidade Civil do Fornecedor pelo fato do Produto no Direito Brasileiro. Editora Revista dos Tribunais. São
Paulo, 1992. p.12.
298
Direito e Democracia
ções de consumo. A política nacional das relações de consumo é mais
ampla que a proteção ao consumidor, transcende a todas estas normas e à
própria descrição legal dos direitos do consumidor. Sendo a dignidade e
saúde do consumidor objetivos de toda uma política voltada às relações
de consumo, conclui-se que contratos de seguro-saúde ou de medicina
pré-paga, deverão ser totalmente moldados por esta política.
Tentando responder quem seria o consumidor nos contratos de seguro-saúde e de medicina pré-paga, o art. 2º do CDC generaliza:
Consumidor é toda a pessoa física ou jurídica que adquire
ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Para sabermos quem é o consumidor, em qualquer contrato médico,
leva-se em consideração a natureza do serviço prestado, o serviço médico. O consumidor é o cliente, também chamado de paciente, doente,
enfermo, etc.
O consumidor é o destinatário dos direitos do consumidor, pois foi
visando a sua proteção e defesa que o Código foi elaborado. É quem tem
legitimidade processual ativa para buscar seus direitos, vale dizer, aquele
que tem direito à reparação quando lesado no seu patrimônio e, quando
for o caso, tem o direito à inversão do ônus da prova.
De acordo com o art. 3º:
Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes
despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de
produtos ou prestação de serviços.
O fornecedor, na hipótese da medicina prestada através de convênios
de saúde, é a empresa que oferece o serviço médico. No caso da assistência médica oferecida pela previdência social ou SUS ( Sistema Único de
Saúde), o fornecedor é o Estado.
Sobre a responsabilidade civil do fornecedor nos contratos médicos,
observamos que os médicos, enquanto profissionais liberais, respondem
Direito e Democracia
299
mediante a comprovação de culpa, de acordo com o art. 1545 do Código
Civil e parágrafo 4º do art. 14 do Código do Consumidor11.
O Código Civil já disciplinava e o Código do Consumidor veio confirmar a responsabilidade civil do profissional que atende pessoalmente em
seu consultório privado. Faz-se relevante este estudo, no momento da
averiguação da possibilidade da inversão do ônus da prova, que somente
é possível quando o serviço médico tenha sido feito em caráter privado,
pois o contrato de tratamento médico configura uma obrigação de meio e
não de resultado, cabendo ao prejudicado a incumbência de provar a
culpa do profissional, conforme José de Aguiar Dias12, sendo indispensável estabelecer a relação de causa e efeito entre o dano e a falta do
médico. Já as empresas sempre respondem objetivamente, ou seja, independentemente da existência de culpa profissional. O lesado deve provar
a lesão e a relação de causalidade entre a lesão e o atendimento.
Revela-se possível se estabelecer uma analogia entre a responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto e a responsabilidade civil do
fornecedor pelo fato do serviço. Pelo fato do produto, o fornecedor pode ser,
por exemplo, o fabricante, e mesmo que o produto, depois de colocado no
mercado, tenha passado pelas mãos de vários intermediários, esta circunstância não diminui, em nenhum aspecto, a sua responsabilidade, quando
coloca no mercado um produto defeituoso. Da mesma forma, uma empresa
que oferece um serviço, tal como o serviço médico, mesmo que não o preste
diretamente, estará comercializando algo que ainda não existe, mas, desde
já, responsabiliza-se pela conclusão e pela qualidade do mesmo, não podendo isentar-se de responsabilidades através de cláusulas exonerativas.
A saúde é um bem que está assegurado no inciso 1º do art. 6º do
CDC, no qual estão elencados alguns direitos básicos do consumidor:
Art. 6º: São direitos do consumidor:
I - A proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos
provocados por práticas no fornecimento de produtos e
Art.1545 do Código Civil:- Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o
dano, sempre que da imprudência, negligência ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de
servir, ou ferimento. Parágrafo quarto do art. 14 do CDC: A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais
será apurada mediante a verificação de culpa.
11
12
in Responsabilidade Civil.Forense. Rio de janeiro,1995, p.256.
300
Direito e Democracia
serviços considerados perigosos ou nocivos.
II- a educação e divulgação sobre o consumo adequado
dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações.
III - A informação adequada e clara sobre os diferentes
produtos e serviços, com a especificação correta da quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem
como os riscos que apresentem.
Quanto ao inciso primeiro, podemos concluir que o consumidor tem
assegurado o direito à proteção de sua vida e de sua saúde no fornecimento de serviços considerados perigosos. A prática da profissão médica
torna-se eminentemente perigosa, se não exercida por profissionais muito
competentes, podendo pôr em risco a vida do consumidor. Por isto, a empresa que terceiriza este tipo de atendimento, deve assegurar-se da competência dos profissionais que autorizar a prestar atendimento a seus associados.
Segundo o inciso II do art. 6º acima transcrito, fica claro que cabe ao
convênio prestar ao associado toda a informação que se fizer necessária
sobre a competência do profissional que indica, e deve também assegurar
a liberdade de escolha do médico especialista, na área que o cliente necessitar, prática incomum, pois os planos de saúde geralmente limitam o
cliente na sua liberdade de escolha, isto é, o paciente só poderá escolher
um dos médicos credenciados.
Do terceiro inciso, concluímos que a empresa deverá informar sobre os
riscos existentes nos tratamentos de saúde e deverá esclarecer quanto,
ela empresa, pagará ao médico por aquela modalidade de consulta e/ou
procedimento.
Ao elaborar o CDC, o legislador reservou um capítulo sobre a qualidade dos produtos e serviços, prevenção e reparação de danos, que encontramos nos arts. 8º a 18.
O art. 9º prescreve
O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de
Direito e Democracia
301
maneira ostensiva e adequada, a respeito de sua nocividade
ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto.
Com o constante desenvolvimento da medicina, estão sempre surgindo procedimentos e técnicas novas e avançadas, como o lançamento no
mercado, de aparelhos sofisticados ou de medicação com fórmulas novas,
envolvendo os profissionais médicos, os fabricantes, os laboratórios, farmácias que comercializam e os hospitais que a adotam. Pelo produto defeituoso em sua formulação, a responsabilidade civil pelos danos causados
é exclusiva do fabricante. Como salienta Zelmo Denari13,a nocividade
pode ser resultante da má utilização do produto, por falta, insuficiência
ou inadequação, persistindo a responsabilidade do fabricante, se não prestou as devidas instruções ou informações que se fizessem necessárias, conforme o caso, responsabilidade esta, objetiva. O art. 12 confirma esta idéia:
O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da
existência de culpa, pela reparação dos danos causados
aos consumidores, por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagens, fórmulas, manipulação,
apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem
como informações insuficientes ou inadequadas sobre sua
utilização e riscos.
A oferta e a apresentação de produtos ou serviços devem assegurar
informações corretas, claras, precisas, ostensivas e, em língua portuguesa,
sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço,
garantia, prazos de validade e origem, dentre outros dados, bem como
sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.
Aqui, uma vez mais, fica bem claro que a empresa que oferta e apresenta serviços médicos no mercado, deve assegurar todas as informações
sobre o serviço que oferece, informações a respeito dos prestadores de
serviço como aspectos do curriculum, onde se formou, cursos no exterior,
anos de experiência na especialidade. etc. Deve informar também sobre
13
in Código Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Forense
Universitária.Rio de Janeiro,1995.p.97.
302
Direito e Democracia
todas as restrições de cobertura que sofrerá o consumidor e sobre as
modalidades de planos asseguradas pela lei 9.656/98 e suas medidas provisórias que visam adaptação dos contratos anteriores à lei.
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304
Direito e Democracia
Universalismo de confluencia,
derechos humanos y procesos de
inversión1
DAVID SÁNCHEZ RUBIO
Professor de Filosofia do Direito da Univ. de Sevilla, professor do Programa de Doutorado de Derechos Humanos
y Desarrollo da Univ. Pablo de Olavide (Sevilla)
RESUMEN
Teniendo como hilo conductor el problema de la inmigración en el contexto de la
globalización, en este artículo se desvelan algunas de las contradicciones y paradojas en las que incurre el discurso del universalismo proyectado sobre los derechos humanos. Simultáneamente, en el marco de la polémica universalismo/
relativismo, se denuncian los efectos negativos de aquellos planteamientos que
abordan la realidad por un lado, de manera dualista y maniquea, exigiendo una
toma de posición excluyente y exclusiva en uno de los elementos de los pares de
opuestos con los que se interpretan los fenómenos. Y por otro lado, aplicando
procesos de abstracción sin tener en cuenta elementos fundamentales como son
las condiciones de posibilidad de la vida de los seres humanos, los propios sujetos,
los contextos, la riqueza humana y su mundo de diferencias y pluralidades.
Palabras-clave: inmigración, globalización, derechos humanos
ABSTRACT
From the point of view of the immigration problem in the context of globalization, this paper shows some contradictions and paradoxes in which the dis-
1
Publicado, originalmente, em HERRERA FLORES, Joaquin, org. El vuelo de Anteo. Derechos humanos y
critica de la razón liberal. Bilbao, Descléé de Brouwer, 2000.
Direito e Democracia
Canoas
n.2
Direito e vol.1,
Democracia
2º sem. 2000
p.305-336305
course of universalism on human rights incurs. At the same time, in relation to
the dispute universalism/relativism, the paper denounces the negative effect of
those proposals that, in one side, see reality in a dualist and maniquean way,
demanding a excludent and exclusive choice of one element in a pair of opposites interpretations of phenomena. And in the other side, applying abstraction
processes without taking into account fundamental elements as the conditions
of possibility for human beings lifes, the subjects themselves, the contexts, the
human richness and its world of differences and pluralities.
Key words: immigration, globalization, human rights
1. EL EMPUJE DE LA INMIGRACIÓN Y SU
INCOMODIDAD
A cada segundo y a cada instante que pasa, varios grupos de ciudadanos magrebíes y/o africanos están intentando cruzar en pateras el Estrecho de Gibraltar y otros tantos espaldas mojadas hacen lo imposible por
traspasar, escondidos, la frontera marcada por el Río Bravo. Lo mismo
está sucediendo en otros lugares de enlace entre gentes de países de un
Sur que se dice es menos desarrollado y de un Norte que se dice es más
desarrollado. Bajo el drama de la huida y la incierta esperanza de llegar a
un destino en donde poder obtener mejores condiciones de vida, les espera un mundo que en la mayoría de los casos se presenta bajo el yugo de
la frustración. En ese abandono quizá temporal de sus hogares, escapan
del ahogo que supone el no poder mantener dignamente ni a sus familias
ni a ellos mismos, bien porque están siendo perseguidos por la intolerancia o bien porque el sistema económico de sus naciones dependientes no
quiere ni puede atender sus necesidades. Pese a las dificultades y pese a
las adversas circunstancias, al actuar de esta manera, están forjando un
sendero de lucha con el que romper aquellas barreras que los países de
destino les levantan. Así, incluso sin pretenderlo, abren espacios para
hacer valer sus derechos y desplazan todo tipo de límites territoriales legitimados bajo la bandera de una exigente nacionalidad que ellos mismos
no poseen.
Asombra la manera como desde Occidente respondemos a este gran
problema de la inmigración. Consideramos que es un asunto ajeno a nosotros que debe ser solucionado en su raíz por los países periféricos. Aquí
únicamente autorizamos el número de quienes puden entrar, repatriando
306
Direito e Democracia
a todos aquellos que no están dentro de la cuota legal concedida. Quienes nos consideramos la máxima autoridad valedora de la idea de universalidad reflejada en la figura de los derechos humanos, antes de reconocer que nos encontramos con un problema global que también nos afecta
y del cual también en un alto porcentaje somos responsables, que no nos
es ajeno y al que debemos buscarle una solución global porque ha surgido
por la propia lógica de exclusión de un sistema capitalista que en nuestro
propio entorno se controla y se dirige2, preferimos cerrar las puertas de
nuestras casas que supuestamente exhalan universalidad. Incluso vamos
más allá blindando nuestras fronteras para impedir que nuestro discurso
emancipador de libertad, igualdad y solidaridad sea reconocido a otros
seres humanos que lo hablan con otro acento, con otro tono y lo expresan
de una forma diferente.
2. TRES PARADOJAS EN EL LENGUAJE
HEGEMÓNICO SOBRE LO UNIVERSAL
A través de este intolerable comportamiento, nos topamos con tres
grandes paradojas muy interrelacionadas entre sí que no sólo aparecen
con el tema de la inmigración. También las encontramos en otras parcelas vinculadas con la convivencia humana, como son el problema del
medioambiente, las políticas de guerra -Irak y los Balcanes son claros
ejemplos3-, los asuntos estratégicos y armamentísticos propios de las relaciones internacionales, la manipulación genética, la idea de desarrollo y
las diversas situaciones de exclusión y desigualdad social...
Teniendo de hilo conductor a los movimientos migratorios, la primera
nos muestra cómo el discurso oficial es favorable o desfavorable al desplazamiento de personas según beneficie o perjudique a los intereses de determinados grupos que están supeditados funcionalmente a los parámetros
que se estructuran dentro del sistema económico capitalista. No priman
las razones de justicia ni de dignidad humana, a pesar de que quienes
2
Ver el magnífico trabajo de Maryse Brisson, Migraciones... ¿alternativa insólita?, DEI, San José, 1997.
3
En este sentido ver los trabajos de Franz Hinkelammert- La inversion de los derechos humanos: el caso de John
Locke y el de Germán Gutiérrez-Globalización y liberación de los derechos humanos. Una reflexion desde
America Latina-, publicados en HERRERA FLORES, Joaquin. El vuelo de Anteo. Derechos humanos y
crítica de la razón liberal. Bilbao, Descléé de Brouwer, 2000.
Direito e Democracia
307
establecen las condiciones de entrada se consideren la máxima expresión
del mundo civilizado.
Con la segunda paradoja, se comprueba de qué manera ese mismo
discurso se asienta sobre unas premisas de estricta universalidad que son
erróneas porque en cada contexto, también en función de motivos de
estrategia política e intereses específicos, será más conveniente primar el
acento universalista o el acento particularista. Lo mismo sucede con los
procesos de globalización. Por un lado se homogenizan determinadas pautas de comportamiento nacidas en un contexto concreto y por otro se
rechazan aquellas otras que cuestionan y ponen en peligro el sistema.
Esto nos servirá para denunciar más adelante, la trampa que supone dualizar
maniqueamente el problema del universalismo y el relativismo.
Finalmente, la tercera paradoja se centra expresamente en la figura de
los derechos humanos y en la titularidad exclusiva que Occidente se otorga para definirlos porque se considera la única autoridad facultada para
hacerlo. Si hay que eliminar focos de resistencia y coartar prácticas sociales
que expresan otras maneras de reivindicar la dignidad humana, se rechazan. Gracias a esta dualidad se verán algunos de los mecanismos de inversión ideológica que se realizan cuando a costa de defender los mismos derechos humanos concebidos por la cultura occidental, se vulneran y violan.
Las tres contradicciones, evidentemente, se preocupan principalmente
de dos cuestiones fundamentales: la una, sobre la polémica entre el universalismo y el relativismo cultural y la otra sobre la figura de los derechos
humanos. En ambas aparece un denominador común: que existe un cierto
margen de interpretación de estas categorías cuyos sentidos son muy distintos, e incluso opuestos, si la dotación de significados procede del dominio de los poderosos beneficiados por el orden económico y simbólico o
tiene su origen en el ámbito abierto por las víctimas del sistema, expresado
a través de los movimientos sociales de emancipación y liberación. En uno
prima una lógica de exclusión, en la que sólo caben unos pocos; en el otro,
predomina una lógica de inclusión en la que todos cabemos.
2.1. Primera paradoja. Poder y doble interés
Empecemos con la primera contradicción o paradoja. Pese a que la
historia de la humanidad está llena de migraciones y desplazamientos de
308
Direito e Democracia
grupos humanos que han provocado grandes crisis y, además, tremendas
transformaciones dentro de las sociedades receptoras -en su momento
también surgidas del impacto intercultural-, ahora resulta que sólo es
Occidente como cultura hegemónica quien decide cuándo su gente necesita emigrar y cuándo deben hacerlo los demás.
En su posición de emisor de población emigrante, diremos como ejemplo que ha hecho que América sea testigo durante los siglos XVI, XVII y
XVIII de todo un proceso de colonización en su mayor parte
iberoanglosajona, en el que en ningún instante hubo impedimento para
eliminar, sustituir o desplazar a la población originaria indígena por la
nueva población blanca que llegaba. Incluso cuando fue necesario importar mano de obra barata para realizar trabajos forzados, se trajo a la población negra con el estatuto de esclavos como solución. Tampoco tuvieron
oposición los colectivos de trabajadores y exiliados europeos cuando en
los siglos XIX y XX por razones socioeconómicas y políticas fueron acogidos por los países latinoamericanos ya emanciapados. Hasta en estos casos de fuerza mayor y de circunstancias dramáticas en los motivos de sus
salidas, no se encontraron con tantas dificultades como las que tienen
ahora los desplazados de los países del Sur.
Adquiriendo la posición de receptor de población extranjera, durante
la década de los sesenta y los setenta del siglo XX, Estados Unidos y
Europa han desarrollado todo un discurso favorable y defensor de la inmigración. Como hacía falta mano de obra y fuerza de trabajo, la gente de
fuera era bienvenida4. No obstante, en el instante que cambiaron las circunstancias y se consideró el efecto negativo de su admisión avalado por
el auge de la ideología neoliberal, el sentido del discurso cambió. Así se
demuestra el rasgo camaleónico y la capacidad de metamorfosis del lenguaje de los gobernantes occidentales. Según la realidad del momento,
cambia su orientación de significado hasta tal punto que puede justificarse su contrario si hace falta y sin remordimiento alguno5.
Es triste decirlo pero hoy en día esta razón económica de trabajo es el
mismo y el único argumento oficial sobre el que se justifica la admisión
controlada de la población extranjera. Sólo se acepta la movilidad de
personas de acuerdo a las necesidades productivas de los países del Nor-
4
Maryse Brisson, op. cit., pp. 98-100.
5
Ídem, pp. 16-18.
Direito e Democracia
309
te. En cambio, como sucede en el presente, cuando la iniciativa sale de
los propios pueblos desfavorecidos y no surgen por razones expansionistas
sino como consecuencia de la necesidad de buscar la satisfacción de sus
necesidades, se paraliza y controla su impulso estableciendo todo tipo de
restricciones, aún aquellas que van en contra de la dignidad humana.
El caso es que históricamente siempre ha existido una tendencia del
hombre para buscar en otras partes, aquello que le hace falta y no puede
conseguir en el sitio que inicialmente habita. Bien para superar los límites establecidos por una naturaleza inclemente o por la saturación provocada por el crecimiento demográfico, bien por la amenaza de guerras o
situaciones violentas, incluso por el empuje que supone el deseo de conocimiento y de aventura o bien por la carencia en la satisfacción de las
necesidades, la solución y la salida lo han decantado por el desplazamiento a otros lugares6. Lo más destacable de todo es que los movimientos
migratorios... son directamente proporcionales, entre otras cosas, al incremento del nivel mundial de miseria, la explotación y el crecimiento de algunos a
costa de la mayoría7. Y en estos casos han aparecido y se han desarrollado
prácticas sociales con las que se han deslizado y superado los límites de la
acción humana, y se ha denunciado el aprovechamiento abusivo que
determinados grupos han realizado con respecto a otros. Por tanto, si en
los tiempos que corren nos encontramos con 2/3 de la Humanidad en
condiciones de pobreza, con personas que hasta mueren por vivir junto a
grandes basureros públicos, es que algo grave está sucediendo.
La inmigración es un problema que forma parte de otro más grande. Si
hay tanta gente que no puede vivir dignamente es porque el sistema y el
orden mundial imperante -con sus actores y sus agentes que actúan en
función de sus intereses- tolera, permite y ocasiona situaciones límites de
exclusión y marginación social. Como contrapartida y desde diversos frentes
hay que saber responder con una lógica contraria, de inclusión y de reconocimiento de todos los sujetos y que, al menos, sepa proporcionar los
medios con los que poder satisfacer sus condiciones de vida. La inmigración, al igual que la reacción manifestada contra la injusticia de muchos
movimientos sociales, deben forzarnos en esta dirección.
Pero está claro que el parámetro de quienes controlan ese orden no es
6
Ídem, p. 88.
7
Ídem.
310
Direito e Democracia
éste. Según los casos y en función de intereses personales y concretos, hay
unos cuantos -los privilegiados de los países centrales y la elite de los
países periféricos y semiperiféricos- que sí tienen derechos para trasladarse de un lugar a otro sin importar las causas. El resto, que es la gran
mayoría, no los poseen, pese a que sea la supervivencia el elemento
condicionante de sus desplazamientos. La justificación no es por razones
de justicia. Los sujetos, las personas, los seres humanos y sus necesidades
de sobrevivencia, de dignidad y de libertad son pura quimera, incluso
aparecen como factores que distorsionan el natural discurrir de los acontecimientos que favorece a los poderosos. Es mucho más positivo y mucho
más rentable el flujo de capitales que el flujo de personas. Sólo importa
éste si genera riqueza. En función de las necesidades del capital y la
obtención de mano de obra, unos están dentro y otros quedan fuera8. Las
razones de equilibrio y competencia que exige el sistema de mercado
demarcan los límites de los derechos y el espacio de no derecho de los
seres humanos.
2.2. Segunda paradoja. Globalización y
universalidad
Con relación a la segunda paradoja, el sistema capitalista utiliza un
medio muy efectivo para asegurar su funcionamiento: el llamado
globalismo, también denominado globalización económica. A través de
él, se homogenizan y unifican determinados comportamientos acudiendo
para su reforzamiento a otras esferas de lo simbólico y lo cultural con
finalidades muy concretas e intenciones muy precisas. Bajo pautas mercantilistas de competitividad, rentabilidad y de eficiencia y modos de
vida de carácter ostentoso y consumista, se quiere presentar la realidad
de algunos grupos como aquella que viven y deben vivir los demás. De
esta manera se gestionan los bienes de la Humanidad a su antojo y siguiendo sus pautas de jerarquización y distribución desigual. Abstrayendo e invisibilizando este tipo de relaciones se extiende bajo el manto de lo
natural y de lo cotidiano.
La globalización, con su sistema financiero, sus agentes y sus estrate-
8
Sobre la racionalidad económica y la prioridad que la lógica de utilidad y de cálculo medio-fin tiene en el
mercado, véase Franz Hinkelammert, El mapa del emperador, DEI, San José, 1996.
Direito e Democracia
311
gias de control, se dice, es algo inevitable; no tenemos más remedio que
aceptar la unidad global que desarrolla fruto de la fuerza compulsiva de
los hechos. Pero posee una dimensión claramente práctica que es resultado de todo un proceso histórico de actualización y habituación recíproca,
aunque desigual, entre los seres humanos9. Siendo un localismo que se
expande y generaliza por el resto de culturas, la actual sociedad global
tiene unos esquemas muy definidos que han surgido de determinados
procesos de estructuración fundamentalmente coloniales e imperiales,
iniciados con la modernidad10.
El acceso a los bienes y a las cosas reales en lo económico, el modo de
ejercer el poder en lo político y los subsistemas de sentido que acompañan a las habitudes en lo ideológico, están controlados por unos pocos que
son quienes construyen la realidad oficial en función de sus intereses y
por el conjunto de disposiciones adquiridas con el funcionamiento propio
del sistema. Cualquier otra expresión que cuestiona esta forma de interpretar y edificar la existencia, la rechazan.
Por esta razón también el sistema capitalista utiliza otro medio para su
afianzamiento: la fragmentación11 entre aquellos grupos humanos considerados potencialmente más peligrosos para que se enfrenten entre sí y
no tengan una visión total desde la que entender los mecanismos de
exclusión y manipulación social. Si por un lado se utiliza lo global para
imponer determinada perspectiva de las cosas y obligar a todos a que
acepten determinados modelos de desarrollo, por otro se articulan instrumentos de separación y división entre quienes salen más perjudicados en
ese reparto desigual de los bienes. De ahí que se haga uso de un discurso
que, en función del momento, unas veces apuesta por lo aparentemente
universal y otras veces por lo estrictamente local y particular, que es origen y raíz de todo el proceso de generalización posterior que se impone.
Incluso ambas dimensiones pueden articularse simultáneamente. No sería atrevido por ello afirmar que la globalización es la otra cara de la
fragmentación establecida por los señores del poder12. En este caso nos
9
En este sentido ver el planteamiento de Antonio González y la interpretación que realiza de aquellas teorías
del nexo social como las de Anthony Giddens y Xabier Zubiri que «descentran» al sujeto en favor de la
acción. «Orden mundial y liberación», en Travesías. Política, cultura y sociedad en Iberoamérica, nº 1, 1996.
10
Ídem, p. 79.
11
Maryse Brisson, op. cit., pp. 31-32.
12
Ídem.
312
Direito e Democracia
encontramos con un tipo de universalidad que no es fruto de la participación conflictiva y dinámica de múltiples culturas.
Con el problema de la inmigración tenemos un ejemplo significativo.
Es cierto que debido al proceso expansionista de Occidente por el mundo, también surgen como reacción identidades defensivas frente a lo que
se considera una amenaza. Ya veremos que no todas ellas tienen que ser
positivas y con un cierto cariz emancipador, pero cuando por razones de
necesidad la gente tiene que desplazarse y traspasar las fronteras por situaciones provocadas, en un alto porcentaje, por la aplicación de un pésimo modelo de desarrollo elaborado por el Fondo Monetario Internacional, el Banco Mundial, los siete grandes junto a sus empresas
transnacionales, Occidente los rechaza y apela a la dimensión nacional
para proteger a sus ciudadanos reconociéndoles sus derechos. Aquellos
extranjeros que son considerados inútiles para el mercado ni siquiera son
tomados en cuenta.
Esto demuestra el origen local de esta universalidad abstracta que
reconoce los derechos de todos los seres humanos por naturaleza y por el
simple hecho de nacer. Al haber surgido esta perspectiva en un contexto
histórico determinado -el tránsito a la modernidad y dentro del desarrollo del capitalismo-, los esquemas teóricos y prácticos elaborados en ese
momento y cimentados sobre el parámetro del Estado-nación, se aplican
y se mantienen con el transcurso del tiempo pese a que hayan cambiado
las circunstancias y nuevos problemas hayan aparecido. Por esta razón, la
modernidad ha entendido que las categorías ético-sociales (como justicia, igualdad, derechos, democracia) han de ser aplicadas a las relaciones humanas que
tienen lugar en el marco jurídico de un Estado13. El discurso de lo universal
queda atrapado por sus mismas premisas ancladas en un ritmo, un espacio
y un tiempo distintos a los que en el contexto actual predominan. La
dimensión nacional queda superada por la dimensión global, pero como
interesa que este universal no sea fruto de distintos procesos de conflictiva confluencia de grupos humanos y culturas distintas, el planteamiento
funcional localista cierra el paso a posibles aportes diferentes sobre la
manera de construir la universalidad.
En otro sentido, hay quien opina que la globalización supone una
usurpacón del ideal universalista de la Ilustración y va en contra del
13
Antonio González, op. cit., p. 71.
Direito e Democracia
313
ideal de emancipación humana y progreso moral de la modernidad14. La
lógica del mercado es incompatible con la lógica de los derechos universales de los seres humanos. Aquélla con su ideal de progreso
socioeconómico es la que ha vencido, saliendo perdedor el ideal de progreso moral. Su dominio defendido por la ideología liberal es el que ha
ignorado el reconocimiento de otras identidades y particularidades15,
además de haber potenciado la desigualdad y la exclusión social.
No obstante habría que cuestionarse si realmente ha habido tal separación entre ambos ideales de progreso. En nombre de las exigencias formales
de un universalismo abstracto se justifica el orden establecido, el reparto
vigente de los poderes y los privilegios, utilizándose el propio discurso del
estado de derecho, los derechos humanos y la democracia16. Ahora bien,
estamos hablando de la mediación que la visión abstracta del formalismo
ejerce para justificar y legitimar un determinado modo de producción y de
concretas relaciones sociales capitalistas17. El formalismo se encarga de dar
conformidad normativa al orden socioeconómico instituido. En su manifestación jurídica, la racionalidad formal del derecho camufla y no tiene en
cuenta la irracionalidad de las premisas sobre las que se sostiene, las propias del mercado, a las cuales quiere delimitar desde su lógica y su coherencia. El progreso moral en este caso está funcionalizado con respecto a los
derechos y libertades establecidos por el mercado -libre competencia, propiedad privada, libertad de contratos, obtención del máximo beneficio-18.
En definitiva, no es cierto que haya una oposición y una separación
radical entre lo universal y lo particular. Ambos se coimplican de tal manera que el uno está conformado por el otro. Según el contexto, cada
cultura nos dará una versión distinta y específica de lo que se considera
lo universal. Por tanto existen múltiples formas de construirlo. Con respecto a cuál será el concepto de universalidad más pleno, real y positivo,
dependerá de varios elementos: del grado de apertura y reconocimiento a
lo diferente, de los modos y niveles de redistribución, de los índices de
participación ... Más adelante se verá.
14
Javier de Lucas, «Multiculturalismo y derechos», en J.A. López García y J. A. del Real (eds.), Los derechos:
entre la ética, el poder y el derecho, Dykinson, Madrid, 2000, pp. 73-74.
15
Ídem, pp. 74-75.
16
Pierre Bourdieu, Meditaciones pascalianas, Anagrama, Barcelona, 1999, p. 97.
17
Ver el trabajo de Joaquín Herrera, «Hacia una visión compleja de los derechos humanos», nota 3.
18
Ídem. Sobre el peligro de la absolutización del formalismo, véase también, David Sánchez Rubio, Filosofía,
derecho y liberación en América Latina, Desclée de Brouwer, Bilbao, 1999, pp. 245-248.
314
Direito e Democracia
2.3. Tercera paradoja. Inversión ideológica y
negación de derechos
Finalmente, el uso estratégico de la polarización y la fragmentación
social que el sistema capitalista realiza nos introduce en la última de las
contradicciones que, a su vez, presenta dos facetas. Por un lado, Occidente se niega a reconocer determinadas prácticas sociales que cuestionan los límites del orden social y cultural vigente. No sólo se trata de
debilitar a los grupos humanos dividiéndolos sino que además no se les
considera aptos para reivindicar nuevos derechos. Y se llega aún más
lejos, porque tampoco se les garantizan los supuestos derechos universales que previamente se han conquistado e institucionalizado. En consecuencia, y como segunda faceta, simplemente por ser diferentes y por
perseguir condiciones de vida más dignas, son personas a las que no importa sacrificar. En nombre de determinadas concepciones de los derechos humanos, se establecen condiciones de muerte para quienes no están dentro del marco de protección establecido por el funcionamiento
del sistema capitalista. La política que se emplea es aquella que defiende
los derechos humanos, a costa de violar la dignidad y la vida de las personas que no se adaptan a la lógica del sistema de mercado a la que están
supeditadas.
El problema de no reconocer la capacidad de crear, desarrollar y disfrutar los derechos a determinados grupos humanos está conectado, de
alguna manera, con el excesivo peso que se le otorga tanto a lo que se
supone fue el momento histórico en el que surgieron los derechos humanos, como al colectivo que también se piensa fue el que los creó. Se
afirma que, una vez que nacieron, ya surgieron en su máxima expresión y
se dieron para siempre. Mediante procesos de abstracción se han mantenido sus estructuras congeladas para establecerlas como molde y patrón,
y se han aplicado sobre otras secuencias espacio-temporales, invisibilizando
tanto la dinámica y los conflicto implicados como los nuevos problemas
que se han ido presentando.
No vamos ahora a discutir si la idea y la práctica de los derechos
humanos sólo y exclusivamente surgieron en el contexto de la cultura
occidental, dentro de los cambios vinculados con el ascenso de los mercados y los Estados modernos. Tampoco se trata de descartar la posibilidad de que el resto de sociedades y culturas posean concepciones distintas y autóctonas. Menos aún es el momento de entrar en la polémica
Direito e Democracia
315
sobre si sólo la lucha por la dignidad humana que se dio en Occidente se
manifestó en forma de derechos humanos y que, si bien es cierto que
otras culturas no occidentales poseen tradiciones de lucha por la dignidad, buscaron otros medios para realizarla muy distintos y hasta incompatibles con los derechos humanos19. Lo que si está claro, por lo menos, es
que las prácticas sociales realizadas por la burguesía con el tránsito a la
modernidad contra los límites impuestos por el sistema tradicional del
feudalismo, aportaron toda una filosofía y todo un discurso sobre los derechos humanos, además, de un concreto sistema institucional y jurídico
positivo de garantías. Surgieron en un contexto histórico determinado
que con posterioridad se ha ido transformando. Pero no hay que quedarse
encasillado en la historia y hacer de ella un determinismo.
Si gracias a la burguesía se manifestó una lucha por la libertad y la
igualdad contra un sistema que le era adverso, hay que proyectar a otras
prácticas sociales y a otros colectivos un esquema análogo de lucha por
los derechos, que tenga en cuenta los nuevos contextos y los distintos
principios reivindicados. De ahí la importancia que posee una concepción de los derechos humanos que se haga cargo de toda su rica complejidad. Hay que relacionar los derechos humanos con los múltiples procesos dinámicos de confrontación de intereses que pugnan por ver reconocidas sus propuestas partiendo de diferentes posiciones de poder. No hay
que abstraer ni los conflictos de intereses ni las circunstancias espaciotemporales. Además, los derechos humanos entendidos como práctica
social, como expresión axiológica, normativa e institucional que en cada
contexto abre y consolida espacios de lucha por una vida más digna20, no
se reducen a un único momento histórico y a una única dimensión jurídico-procedimental y formal.
Es esta la perspectiva que Ignacio Ellacuría trata de trasmitirnos con
la contraposición que realiza entre la idea de libertad desde la liberación
de las mayorías oprimidas y la idea de libertad desde la liberalización propia del liberalismo. Cuando la burguesía revolucionaria comenzó en el
siglo XVIII a negar el estado de cosas dominante que consideraba injusto, empezó a objetivar sus aspiraciones y preferencias en todos los niveles
posibles, hasta culminar con la objetivación institucional de sus derechos
19
Para una mayor profundización sobre todo esto, véase Jack Donnelly, Derechos Humanos universales: en teoría
y en la práctica, Edic. Gernika, México, 1994, pp. 13, 79 y ss.
20
Joaquín Herrera, ídem.
316
Direito e Democracia
o libertades. Lograron, desde sus aspiraciones particulares, convertirlas
en universales tras un proceso social de superación de las privaciones con
las que se encontraban21.
El problema apareció en el momento que otros grupos o clases sociales
cuestionaron esas mismas estructuras institucionales elevadas a universalidad, porque consideraban que les marginaban, les alienaban, no atendían a sus demandas. Se intentaron nuevos procesos de lucha, similares a
aquellos que posibilitaron las conquistas de los derechos y las libertades
de la burguesía. Pero se les impidió desarrollarlos, se les cerró la posibilidad de que sus necesidades y sus valores pudieran objetivarse
institucionalmente, sin ser garantizados por las Constituciones o por las
Declaraciones Internacionales22.
De esta forma, las luchas liberales, aunque fueron fruto de un proceso
de liberación, al final hicieron de él un camino para preservar la libertad
de unos pocos, no para conseguir la de todos. La mera expansión de las
libertades sólo pudo ser recorrida por un grupo minoritario y no se permitió ni la distribución social de las condiciones reales para su ejercicio ni
la posibilidad de abrir nuevos focos de resistencia.
Esto es lo que actualmente viene pasando con los actuales procesos de
globalización neoliberal y de democratización formal. La lógica de la acumulación del mercado, además, anula el papel activo de las personas. En
cambio, a través del reconocimineto del papel tan importante que poseen
los procesos de lucha, se permite abrir posibilidades para objetivar y generalizar las demandas populares y, con ello, protege y garantiza los derechos y las libertades que se reclaman. La auténtica lucha por la libertad
exige la transformación de aquellas condiciones reales que impiden o dificultan
al máximo la libertad sociopolítica y económica de la mayor parte del pueblo23.
La libertad asociada al concepto europeo de liberalismo es restrictiva,
pues excluye a quienes no forman parte de su entorno cultural. Básica-
21
Para Ignacio Ellacuría, las liberties son el resultado de complejos procesos de liberación. Ver su «Historización
de los derechos humanos desde los pueblos oprimidos y las mayorías populares», en ECA, nº 502, 1990.
22
En este sentido ver Joaquín Herrera, “La fundamentación de los derechos humanos desde la Escuela de
Budapest”, en Los derechos humanos, ETEA, Córdoba, 1995, pp. 42 y 43; y Juan Antonio Senent de Frutos,
Ignacio Ellacuría y los derechos humanos, Desclée de Brouwer, Bilbao, pp. 168 y ss.
23
Ignacio Ellacuría, “En torno al concepto y la idea de liberación”, en Implicaciones sociales y políticas de la teología
de la liberación, Escuela de Estudios Hispanoamericanos, Sevilla, 1989, p. 99.
Direito e Democracia
317
mente, el prejuicio o el error en el que incurre Occidente es que reduce la capacidad de crear, desarrollar y disfrutar derechos a determinados grupos humanos, negando la posibilidad de su disfrute a otros grupos humanos. Y si la comparte, lo hace delegativamente, como un bien
ya obtenido que concede a otros. Detenta el monopolio de la libertad,
de la igualdad y de la dignidad, de lo que significan y cómo se disfrutan. Y no sólo eso, sino que también impide que se abran nuevos procesos con los que poder reinterpretar los valores humanos y conquistar
nuevos derechos.
Retomando el argumento y siguiendo dentro del ámbito interno de la
cultura occidental, sería un error pensar que las mismas condiciones del
pasado en que surgieron los llamados derechos individuales, permanecen
en la actualidad y que nada ha cambiado desde entonces24. En el interior
del propio desarrollo del sistema capitalista, una vez que triunfó la clase
burguesa y subió al poder, fueron apareciendo otros colectivos humanos
que sufrían otras situaciones de explotación y marginación social. Reaccionaron a su manera, con sus propias especificidades -p.e. la clase obrera, las mujeres, los negros...- En la nueva y actual fase de desarrollo del
sistema capitalista está sucediendo lo mismo con otros movimientos de
emancipación, entre ellos el de los inmigrantes.
El fenómeno de la inmigración es una manifestación de la respuesta
que las gentes del Sur adoptan ante una situación límite de pobreza y
exclusión. Luchan no ya sólo por la libertad y la igualdad, sino, sobre
todo, por la vida y por una sociedad en la que todos quepan25. Pero como
ponen en peligro el orden de convivencia de los países del Norte, suponen una amenaza que hay que controlar. Se amortiguan entonces sus
24
El condicionamiento que ese momento originario ha tenido con posterioridad, se refleja en la propia visión
generacional de los derechos humanos. Sólo los derechos individuales considerados de primera generación
-y que no todos poseen el privilegio de disfrutarlos- son los que mayor nivel de protección tienen. El resto
de generaciones quedan por detrás, son secuenciales, vienen después, por etapas y, sobre todo, al ser de
peor calidad pueden ser sacrificados a costa de los primeros. Lo estamos viviendo actualmente con los
derechos sociales y su vulneración permanente con motivo de la ideología liberal y las políticas de ajuste
estructural. También lo comprobamos con las dificultades que tienen los de tercera generación para
afianzarse. Como históricamente ya se dieron y se delimitaron los derechos del individuo, es imposible que
puedan aparecer otros tipos nuevos o con el mismo rango institucional. Sobre la perspectiva generacional
de los derechos humanos, ver José Martínez de Pisón, Derechos humanos: historia, fundamento y realidad,
Egido Editorial, Zaragoza, 1997, pp. 174 y ss. y Antonio Enrique Pérez Luño, «Tercera generación de los
derechos humanos», en Vicente Theotonio y Fernando Prieto (coords.), Los derechos humanos, una reflexión
interdisciplinar, ETEA, Córdoba, 1995, pp. 110 y ss.
25
Maryse Brisson, op. cit., p. 29.
318
Direito e Democracia
acciones eliminando y echando para atrás cualquier conato de resistencia. Lo mismo sucede con otras actuaciones que desempeñan algunos
colectivos humanos como comunidades, pueblos, asociaciones, movimientos sociales y organizaciones no gubernamentales. Con sus actuaciones se
afirma que no están reivindicando ningún tipo de derechos, ni los ya
consagrados ni unos nuevos. Además, si hace falta eliminarlos, se les eliminan. Únicamente se toleran aquellos comportamientos que son afines
a la lógica del sistema. Aquí nos encontramos con la segunda faceta de la
última paradoja.
El problema fundamental de este mecanismo de extrema exclusión
radica en la lógica hegemónica que subyace detrás, y que es un ejemplo
más, de la tendencia que Occidente tiene para hacer sacrificios humanos justificándolos26.
Cuando la burguesía se hizo con las riendas del poder no tuvo reparo
alguno en enfrentarse al mundo entero para colonizarlo y someter a todo
aquel que le salía al paso. En nombre de la ley absoluta del mercado
destruyó a las sociedades preburguesas. A las que todavía no lo eran, les
declaró guerras justas considerándolas en rebeldía porque iban en contra
de las normas establecidas por el mercado27. Todo colectivo, todo grupo y
toda persona que no aceptara sus pautas de comportamiento, no eran
dignos de representar a la civilización. Asimismo, los seres humanos en
general se supeditaron a ellas y el sujeto concreto y corporal que siempre
había cuestionado al poder, es eliminado para ser sustituido por el individuo con facultades universales pero condicionadas a las relaciones
utilitarias de la economía. Como ya no es sujeto que cuestiona el sistema,
no tiene derechos sino en y a través del mercado. En el momento que se
rebela como tal e intenta oponerse a su lógica, es declarado culpable y se
le declara la sentencia de muerte. La pena se ejecuta con la máxima
frialdad28.
Simultáneamente a esa aspiración burguesa del mercado total, en el
que sólo rige su ley, han ido apareciendo distintas reivindicaciones por la
emancipación humana. Históricamente, siempre han aparecido grupos
26
En este sentido véase Franz Hinkelammert, Sacrificios humanos y sociedad occidental: Lucifer y la Bestia, DEI, San
José, 1998.
27
Franz Hinkelammert, ídem, pp. 136-137 y su trabajo acerca del pensamiento lockiano que aparece en libro
(nota 3)
28
Ídem.
Direito e Democracia
319
humanos que se han levantado y han resistido frente a distintas y diversas
expresiones del poder. Se trata de múltiples luchas de resistencias con
vidas efímeras o más o menos duraderas, cuyas reclamos han tenido finales dispares, con mayores o menores logros y con éxitos de distinto grado
de objetivación e institucionalización. Cualquier manifestación popular
frente a cualquier manifestación del poder que coarta y ahoga algún
aspecto de la dignidad humana en permanente proceso de construcción,
ha sido y puede ser un foco importante que tenga algo que aportar a la
idea de derechos humanos. En este caso, dentro del capitalismo aparecen
respuestas al sojuzgamiento por el automatismo del mercado que reivindican una subjetividad que les es negada. Múltiples movimientos de resistencia que acompañan las distintas fases de desarrollo del capitalismo
lo cuestionan.
La reacción de los poderosos y de los beneficiados por el sistema, es
clara: los enfrenta como su peor enemigo, y se lanza contra ellos, creando
un mortal mecanismo de inversión. Para quitárselos de en medio y justificar el acto de su eliminación, se proyectan sobre ellos las imágenes y los
adjetivos más negativos y rechazables posibles. Se les inferioriza su calidad humana, diabolizando y demonizando su condición. No son seres
humanos, sino animales voraces, bestias carniceras que no son dignas de
vivir y que cuestionan el orden y el respeto de los derechos humanos
establecidos. Pese a que múltiples colectivos reivindiquen mayores niveles de participación, más justicia, más libertad y más igualdad, son tratados como monstruos sobre los que hay que ejercer cualquier tipo de violencia para que por fin desaparezcan de la faz de la tierra. De víctimas
pasan a ser victimarios.
El resultado final que se pretende es que, al no haber más bestias, ya no
hará falta matar a ninguna más. Los derechos y la sociedad están finalmente seguros. Los desproporcionados medios utilizados se legitiman porque
quien detenta el poder, se apropia incluso del discurso de los derechos
humanos para poder condenar los actos de sus enemigos. Curiosamente,
acaba haciendo lo mismo que condena, es decir, acusando a otros se justifica la ejecución sobre ellos, en tanto oponentes demonizados, de los mismos comportamientos de animales que supuestamente realizan. Por tanto,
resulta que todos estos monstruos son desarrollados y presentados en nombre
de los derechos humanos, o en nombre de la lucha contra ellos. En otras palabras, que toda práctica que es expresión de una lucha por la dignidad
humana, todos los valores de la convivencia humana, todo humanismo,
320
Direito e Democracia
todo universalismo ético emancipador son una amenaza contra la cual hay
que pelear. Y esto se hace en nombre tanto de las relaciones sociales de
producción interpretadas como sociedades perfectas, como de los derechos
universales que le son funcionales. En realidad quienes ven como monstruo a su enemigo, está proyectando sobre él su propia monstruosidad29.
Concluyendo, resulta que, de nuevo en ambas facetas, se utiliza la
misma lógica localista y funcional de la universalidad de los derechos
humanos para negarles a quienes intentan abrir parcelas y espacios de
lucha por una vida más digna, su posibilidad de acción y el ser sujetos de
derechos. Quienes reaccionan y actúan así, demuestran la hipocresía y la
falsedad de su discurso, el doble rasero que utilizan en función de sus
propios intereses y según les convenga. Están dispuestos, si hace falta, a
no reconocer derechos o impedir su posibilidad de ejercerlos, incluso si es
necesario, a sacrificar a seres humanos que ponen en peligro el orden
jerárquico establecido.
3. LA RELACIÓN UNIVERSALISMO/
PARTICULARISMO
Una vez vistas las tres paradojas o contradicciones, a continuación
vamos a profundizar un poco más en el conflicto universalismo/relativismo.
Se señalarán algunos de los errores que conlleva el enfrentamiento
posicional dualista y maniqueo entre ambas dimensiones y se darán algunas claves para poder entender la manera como el pensamiento humano
funciona en su captación de la realidad. Sólo abordando el problema
desde una perspectiva relacional, se podrá avanzar en la comprensión y
en la solución de los problemas que se presentan.
Raimon Panikkar, en La intuición cosmoteándrica, destaca un deseo
común a todos los seres humanos. Parece como si en nosotros el esfuerzo
por la unidad, por apoderarnos y hacernos dueños de la realidad, fuera
una parte constitutiva de nuestra naturaleza. Desde el punto de vista
cultural, cada forma de vida, cada visión del mundo tiene una legítima e
integral pretensión de conseguir la verdad y, por ello, de universalidad30.
29
Ídem, pp. 161 y 193.
30
La intuición cosmoteándrica. Las tres dimensiones de la realidad, Trotta, Madrid, 1999, p. 117.
Direito e Democracia
321
Paralelamente a esta aspiración de unidad, en el ámbito de las relaciones humanas, todas las sociedades tienden a acercarse y a aglomerarse; y todos los pueblos tienen tendencia también a la asimilación y a la
socialización31. En su aventura por conseguir la plenitud, cada comunidad desde su particularidad se confronta con las particularidades y plenitudes de otras comunidades. En ese encuentro se definen mejor los límites de sus distintas pretensiones, y del conflicto surgen diferentes procesos hegemónicos y contrahegemónicos de imposición, intercambio y trasvase cultural.
También en el ámbito interno de una cultura sucede los mismo. Las
clases, los grupos y los diversos colectivos sociales se enfrentan contra las
visiones unitarias y monolíticas de quienes poseen la hegemonía. Además, los modos culturales son un ejemplo de las diversas interpretaciones
y actualizaciones que hay en el seno de una misma cultura32.
Dentro de estos espacios de confluencia de identidades interculturales
e intraculturales se comprueba que el binomio universal/particular puede
ser tratado como relación. Ya se anticipó que de la misma manera que la
universalidad es un modo para tratar la particularidad, la particularidad
es un modo para tratar la universalidad. Ambas se coimplican, son
ambivalentes33.
En este sentido, lo particular es un concepto esencialmente relacional
porque presupone la totalidad social e intersocial dentro de las cuales las
particularidades se constituyen. De igual forma, lo universal sólo puede
emerger a partir de lo particular ya que es sólo la negación de un contenido
particular lo que transforma ese contenido en el símbolo que lo trasciende34. De
ahí que el problema no haya que enfocarlo maniqueamente. El dualismo
unidad/pluralidad hay que dirigirlo hacia esa y que los une, en el marco
y en los contextos donde se dan sus antagonismos y sus vínculos35. Por eso
sería más acertado hablar de universalidad y particularidad desde la relatividad
31
Ídem, p. 25.
32
Ver Raimon Panikkar, El espíritu de la política, Península, Barcelona, 1999, pp. 44-45.
33
Ver Pierpaolo Donati, «Lo postmoderno y la diferenciación de lo universal», en Salvador Giner y Ricardo
Scartezzini (eds.), Universalidad y diferencia, Alianza Editorial, Madrid, 1996, p. 126. El autor distingue el
binomio absoluto/relativo, que no es reversible porque bloquea posibles alternativas y relaciones, del
binomio universal/particular que sí lo es.
34
Véase Ernesto Laclau, Emancipación y diferencia, Ariel, Buenos Aires, 1996, pp. 30-34.
35
Ídem, pp. 33-34; y Raimon Panikkar, La intuición..., p. 24.
322
Direito e Democracia
en cuanto implica una conciencia relacional. Nada tiene un sentido ni
un significado independientemente de un contexto delimitado36.
3.2. Dos versiones contrapuestas
Múltiples han sido las formas como se ha enfocado este difícil binomio37.
La más común es aquella posición que defiende la existencia de una
línea divisoria, opuesta e incontaminada entre el universalismo cimentado en el ser humano en tanto individuo, y el relativismo o particularismo
edificado sobre la comunidad38.
La versión más proclamada del primero es el ideal de derechos humanos
occidental basado en los derechos asignados al ser humano y que le pertenecen por el mero hecho de serlo. Tienen su origen en su naturaleza, son
previos a los contextos socioculturales donde se encuentra y, además, son
superiores a la sociedad y al estado. La autonomía del individuo y su suprema dignidad exige que la comunidad esté organizada por la suma de hombres libres39. Sobre estos elementos se establecen unos criterios universales
con los que se pueden enjuiciar y valorar éticamente a todas las culturas.
La interpretación del particularismo más aceptado postula el enraizamiento
inevitable de los seres humanos en una memoria, en una cultura y en una
historia colectiva particular que son las condiciones decisivas de su identidad. La postura más radical apuesta por la inconmensurabilidad intercultural:
cada comunidad posee sus propias concepciones del mundo y su propio código ético, y no puede medirse con los criterios de otra comunidad. No es
posible establecer un marco universal de enjuiciamiento para valorar las
actuaciones, los hábitos y las costumbres de todas y cada una de las culturas.
Todas poseen el mismo rango axiológico40.
36
Panikkar, ídem, p. 33.
37
En este sentido véase Raimon Panikkar, ídem, pp. 27 y ss.; Ernesto Laclau, op. cit. pp. 46 y ss.; Jack Donnelly,
cit. p. 165 y ss.; y Xabier Etxeberria, «Los derechos humanos: universalidad tensionada de particularidad»,
en Los derechos humanos, camino hacia la paz, Gobierno de Aragón, Zaragoza, 1997, pp. 91 y ss.
38
Ver el libro de Juan José Sebreli, El asedio a la modernidad. Crítica del relativismo cultural, Ariel, Barcelona, 1992,
ejemplo claro de quien considera que sólo desde el liberalismo se puede concebir lo universal. Es
incomprensible ver la ceguera de este autor que ignora que, incluso desde posiciones relativistas, también
se puede estructurar la universalidad.
39
Ver Jack Donnelly, op. cit. pp. 23, 34 y 39-40; Xabier Etxeberria, ídem, p. 94; y Boaventura de Sousa Santos,
«Por una concepción multicultural de los derechos humanos», en Memoria, 101, Bogotá, p. 46.
40
Xabier Etxeberria, ídem, p. 90.
Direito e Democracia
323
Junto a los defectos señalados más arriba por las tres paradojas, a este
universalismo del individuo se le reprochan otros más: en primer lugar, la
acentuación de la importancia del individuo abstracto implica una homologación que vacía las identidades y una total despreocupación por las
diferencias. En segundo lugar, también abstrae los contextos y los procesos históricos donde se desenvuelven las personas41. En tercer lugar, ambas abstracciones son expresión de un localismo hegemónico y expansivo
-encarnado inicialmente en el individuo occidental varón, blanco, empresario y propietario- que destruye al resto de culturas y, al aplicarse,
deja fuera de sus derechos a la mayoría de la población -mujeres, homosexuales, negros, pobres...42- Finalmente, implica un universalismo ficticio porque ejerce todo un monopolio sobre el acceso a las condiciones
socioeconómicas con las que se puede llegar a lo universal43.
En cuanto al particularismo radical, entre otras cosas se le critica el
hecho de que cuando valora de la misma manera a todas las culturas, lo
hace ya desde un criterio universal de respeto a todos los grupos particulares44. También al supeditar al individuo libre y autónomo a las normas y
los hábitos dictadas por la comunidad, se le está anulando su capacidad
de decidir libremente y rebelarse frente a las injusticias cometidas por la
colectividad. Además, excluye criterios para contrastar y distinguir las
sociedades totalitarias de las sociedades democráticas45. Finalmente, la
esencialización de la comunidad, la etnia, la raza o la nación, es fuente
de marginación y discriminación de todo aquello que queda fuera de su
círculo de pertenencia. Se conforma un “nosotros” excluyente frente a
los otros despreciados46.
Decantarse por una de las dos posiciones y aceptar que sólo ambas
tienen una relación maniquea y de oposición, sin que tampoco puedan
existir otras opciones y otras formas de abordar el binomio, conlleva más
despropósitos que aciertos. Al final el gran perjudicado es el complejo
41
Antonio Enrique Pérez Luño presenta tres tipos de críticas al universalismo en «La universalidad de los
derechos humanos», en Anuario de Filosofía del Derecho, tomo XV, 1998, pp. 98-102.
42
Xabier, Etxeberría, p. 94.
43
Pierre Bourdieu, Meditaciones..., pp. 90 y 96-97.
44
Xabier Etxeberria, ci., p. 90 y Ernesto Laclau, cit., p. 89.
45
Son criterios deducidos de las incompletudes que para Boaventura de Sousa Santos presentan las culturas
musulmana e hindú. Op. cit. pp. 49-50.
46
Ver Joaquín Herrera, op. cit.
324
Direito e Democracia
mundo humano, compuesto de múltiples variables y elementos. Las dos
posturas dogmatizan y ontologizan sus puntos de vista y reducen la riqueza humana.
En este sentido, se incurre en los mismos errores señalados por un
conocido proverbio complementado: cuando el dedo señala el sol, el tonto
mira el dedo... Pero más tonto sería si mirara al sol, pues se quedaría ciego47.
Ser tontos o ciegos vendría a ser el marco dentro del que se mueven
quienes defienden tanto una idea de universalidad expansionista y excluyente, como una idea de particularidad cerrada e incomunicada. O
bien se tropiezan por mirar a lo lejos sin observar la tierra que se pisa o
bien se chocan contra cualquier objeto, árbol, farola o muralla, por enfocar sus ojos abajo, sólo atendiendo a los pies. En ambos casos, se incurre
en determinados procesos de absolutización y abstracción, moviéndose
como Alphas, Betas, Gammas o Epsilones en busca de soma en un mundo
infeliz y cerrado.
Si por un lado estamos frente a un universalismo ciego, que como una
supernova invade con su luz a otras estrellas, en el segundo caso nos
encontramos con un particularismo absoluto y desorientado, que como
un agujero negro invertido y estático, no asimila y se aisla de todo cuanto
pasa a su alrededor. El primero es un cierre en expansión continua, el
segundo un cierre en contracción permanente que niega los ineludibles
vasos comunicantes interculturales. Los dos, por separado, son tontos,
uno porque mira sólo al sol y el otro porque mira sólo al dedo.
Con una mirada más atenta comprobamos que no sólo hay otras opciones, sino que, siguiendo una línea relacional, también hay ciertos puntos
intercambiables, reversibles y coincidentes entre estos universalismos y
particularismos enfrentados. Señalemos algunos:
1. Si el particularismo conlleva un criterio de universalidad -aquel
que respeta todas las culturas por igual-, el universalismo, bien
al rechazar o al aceptar ese mismo criterio o principio, está reconociendo que existen otras pretensiones de generalidad y
universalidad, al menos una más diferente a la suya -que apuesta por la universalidad de los derechos del individuo por encima de la comunidad-.
47
En Subcomandante Marcos, «Encuentro intergaláctico», Ajoblanco, nº 4, 1997, p. 6
Direito e Democracia
325
2. En tanto que es visto como un conflicto entre universales, surge
el paradójico efecto de que ambos se relativizan. El uno hace
que el otro aparezca como un etnocentrismo con máscaras
universalistas48.
3. Además de que uno reivindica lo que el otro rechaza, los dos
abstraen, eliminan y/o anulan algunos elementos de la realidad
social: los contextos internos y/o externos, las identidades y las
diferencias, la capacidad de respuesta de los individuos, las prácticas sociales, los sujetos colectivos...
4. Presentan un peligro de generar procesos destructivos contra el
ser humano y la comunidad. Tal como indica el propio Ricardo
Scartezzini, el universalismo y el relativismo pueden justificar
ideas jerárquicas, no igualitarias y antidemocráticas49. Implican
lógicas de exclusión.
5. Por último, lo ideal nunca es absolutamente perfecto en lo real.
En la práctica es imposible tanto un universalismo como un particularismo plenos, definitivos y completos. Si existieran uno u
otro en la realidad, no habría ningún tipo de referente. En parecido sentido, Boaventura de Sousa Santos señala que si cada
cultura fuera tan completa como se juzga, existiría solamente una
cultura única50.
3.2. Universalismo de confluencia
Una alternativa que explique y salga de este aparente callejón sin
salida entre lo particular y lo universal, debe hacerse cargo tanto de la
presencia de múltiples culturas, con sus respectivos grupos humanos, como
de las distintas visiones y pretensiones de unidad hacia la que aspiran,
que pueden ser diferentes y equidistantes unas de otras.
Es por ello que incluso el punto de partida en el que hemos situado al
48
Ricardo Scartezzini, «Las razones de la universalidad y de la diferencia», en Universalidad y diferencia, Alianza
Editorial, Madrid, 1996, p. 27.
49
Ídem, p. 23.
50
Ver Boaventura de Sousa, op. cit. p. 48.
326
Direito e Democracia
tonto, el marco en el que se encuentra, igualmente está equivocado porque no sólo hay un sol, no sólo hay un dedo y una forma de apuntar al
cielo. Hay múltiples soles y estrellas, muchos son los dedos que las señalan e, incluso, hay otras maneras para indicar distintos lugares y sitios.
Siempre es muy enriquecedor lo que pueden ofrecernos quienes imaginan y crean diversos mundos, por muy diferentes que sean al nuestro.
La aceptación de esta pluralidad no tiene por qué implicar indefectiblemente la total incomunicación y separación entre ellas. Es cierto que
podremos encontrarnos con esferas en las que será imposible establecer
vasos comunicantes, pero habrá otras en donde sí será posible algunos
puntos de encuentro.
El conocimiento y la valoración de otras formas de vida a partir de
nuestra misma cultura es una empresa complicada, pero existe toda una
amplia gama de tonalidades de sentido. Nos encontramos con zonas completamente oscuras y ciegas para nuestros ojos, de evidente
inconmensurabilidad porque sus cimientos descansan sobre paradigmas
originales, absolutamente propios, e imposibles de reducir a una unidad básica51. Asimismo aparecen esferas de penumbra y de poca claridad, pero
que pueden ser traducidas y apropiadas en virtud de nuestros propios
paradigmas. Y, finalmente, hay espacio de intensa luz, conmensurable y
de pleno entendimiento intercultural.
En este sentido, Raimon Pannikar apuesta por la urgencia y la necesidad de un horizonte abierto que vea y comprenda la tendencia del ser
humano hacia la unidad y la universalidad, pero que sea consciente de que
hay otros pueblos con otros horizontes. Pese a que aspiramos a abrazarlos,
nos percatamos tanto de su carácter siempre escurridizo, como de su apertura constitutiva. Lo transcultural nunca está sólo pues siempre estamos
en una cultura. Y una cultura no lo abarca todo. Siempre se encontrará
con elementos y facetas de la realidad impenetrables para ella, incluso
para la misma razón humana52, sin embargo también habrán equivalentes
homeomórficos, elementos de juntura y concurrencia intercultural, que
expresan los frutos de inseminaciones mutuas.
De las tres áreas de inconmensurabilidad, traducibilidad y
conmensurabilidad nace toda una interfecundación de asimilación, cam51
Véase Riccardo Scartezzini, op. cit. p.20.
52
La intuición cosmoteándrica..., p. 31.
Direito e Democracia
327
bio y renovación. Cada vez que una cultura se plantea un concepto perteneciente a otra, tiende a modificarse, a enriquecerse y a incorporar a su pensamiento algo completamente nuevo53. Ninguna cultura está enclaustrada en
sí misma. Constantemente implica elección y cambio, fruto de las relaciones internas y externas que experimenta por el encuentro con otras
comunidades y colectivos.
Reiterando lo dicho, el saber valorar las particularidades siendo conscientes de nuestras raíces no impide la búsqueda de referentes
transculturales y transhistóricos. Xabier Etxeberría nos habla de una universalidad tensionada de particularidad, en donde se interrelacionan y acceden los imaginarios, las distintas cosmovisiones y diversas concepciones del mundo nacidas de las prácticas sociales54. Se trata de un universalismo de confluencia, abierto a un permanente diálogo y a un continuo
proceso de construcción sin imposiciones etnocéntricas y homogénicas.
Por este y otros motivos, todo conflicto intercultural no tiene que ser
abordado como un problema incómodo y rechazable, sino enteramente lo
contrario, como un reto enriquecedor de intercambios con el que hay
que convivir para que la vida no pierda su dinamicidad. La inmigración
es una muestra de ello, pese a que quiera verse en el sentido más negativo y execrable.
Evidentemente, cuando se está hablando de áreas de concurrencia, de
puntos o parámetros transculturales y de equivalentes homeomórficos, los
riesgos de imposiciones hegemónicas y de dobles discursos excluyentes aparecerán a cada instante. De ahí que esta universalidad dialógica y de confluencia deba hacer referencia a aquella dimensión de la realidad a partir de
la cual se puede conocer si los procesos de desarrollo, encuentros y conflictos
interculturales provocan situaciones de marginación, discriminación y exclusión social en todas sus esferas y dimensiones. Ese lugar se encuentra en
la idea de dignidad humana y en la figura de los derechos humanos.
3.3. Abstracciones, idealizaciones y exclusiones
Ernesto Garzón Valdés, en respuesta a las críticas particularistas sobre
los mecanismos de abstracción que las posiciones éticas universalistas
53
Riccardo Scartezzini, cit.
54
Op. cit. p. 91.
328
Direito e Democracia
realizan en su proposición de principios éticos universales, señala que la
abstracción -entendida como omisión selectiva que deja de lado algunos
predicados no importantes de teorías y descripciones- ni es patrimonio
exclusivo de ellas, ni tampoco implica un desprecio de lo particular y de
la diversidad cultural. El razonamiento lógico y científico lo utiliza como
un indispensable instrumento de conocimiento55.
Junto a la abstracción hay otro mecanismo, la idealización, que es una
adición selectiva de unas características que pueden faltar en los agentes
reales56. Sin ser exclusivo de ellas, es un recurso que también aparece en
el ámbito de las ciencias sociales.
El pensamiento occidental se distingue por el empleo de ambos medios de conocimiento. El problema y el cuestionamiento de sus usos aparece cuando se desatienden y nos despreocupamos tanto de los elementos
que se eliminan y quedan fuera, como de los que se añaden y se incluyen.
Con las abstracciones se pueden omitir uno o varios elementos que
siendo importantes y decisivos (p.e las condiciones de posibilidad de la
vida humana), se califican como predicados, secundarios y/o accesorios,
hasta tal punto que se pueden ignorar.
En cuanto a las idealizaciones, es tan grande y tan exigente la adición
introducida que su grado de perfección es imposible de lograr en la realidad (p.e. una sociedad perfecta desarrollada por el mercado o el estado,
cualquier otra mediación e incluso alguna cualidad del ser humano -en
cuanto individuo racional, competitivo y omniscente...-). El problema es
que no hay conciencia de esa imposibilidad. Se totaliza como un fin que
hay que conseguir cueste lo que cueste, aun a costa de velar y sacrificar
también otras cualidades o elementos con los que tomamos conciencia
de lo que sí es posible y factible para todos.
Veamos ambos casos un poco más en detalle con dos ejemplos:
1. Una de las formas más comunes que el ser humano tiene para
conocer la realidad es utilizando conceptos e ideas con los que
55
Ernesto Garzón Valdés, «El problema ético de las minorías», en León Olivé (comp.) Ética y diversidad cultural,
F.C.E., México, 1993, pp. 36 y ss. El autor sigue las propuestas de Onora O’Neill, «Ethical reasoning and
ideological pluralism», en Ethics, vol. 98, 4, 1988. Referencia tomada de Jesús González Amuchastegui,
«¿Son los derechos humanos universales?», en Anuario de Filosofía del Derecho, tomo XV, 1998, p. 61.
56
Ídem.
Direito e Democracia
329
captarla como una totalidad. La razón posee unos anhelos que
la impulsan siempre a ir hacia delante y la incitan a la consecución de determinados fines que son, a la vez, sus límites porque
nunca logra alcanzarlos. El uso puro de la razón es el medio para
poder acercarnos a ellos, pero posee una incapacidad para darles respuestas, de ahí que sea su uso práctico la salida ante la
imposibilidad de obtenerlas y superar, de esta manera, los límites. La razón, por tanto, no se explica por sí misma, sino desde
fuera, a través de su uso57.
El pensamiento permanentemente aspira a trascender y abarcar la totalidad de la realidad y lo hace utilizando conceptos
universales. El hecho de que se acuda a ellos demuestra los
límites con los que el sujeto cognoscente se encuentra al no
poder conocer toda la realidad. Necesitamos los conceptos
universales para suplir esa carencia. Sirven como una muleta
de apoyo y son un instrumento de búsqueda con el que intentamos abarcar lo infinito58.
Esto se comprueba con los marcos categoriales de las ciencias
empíricas. Paradójicamente, mientras que los casos que podemos observar y experimentar son limitados, cuando usamos los
conceptos universales hacemos referencia a todos, designamos
con ellos a un número ilimitado, por lo que el conjunto de los
casos observables constituye una parcialidad en relación a la cual el
concepto universal designa una totalidad desconocida. Luego el concepto universal trasciende cualquier conjunto de casos observables.
Observamos menos casos que todos los que abstracta y universalmente acaparamos. La conclusión es que como sujetos
cognoscentes no podemos acceder con un conocimiento directo
a la totalidad de los hechos, tenemos que trascender la realidad
mediante los conceptos universales. La limitación de nuestro
conocimiento nos obliga a utilizarlos.
Nos damos cuenta que la realidad trasciende a la experiencia y
a la teoría. Como aspiramos a su totalidad y la imaginamos, creamos categorías universales para intentar conocerla completa57
Ver la “Doctrina trascendental del método”, en Crítica de la razón pura de Immanuelle Kant, AlfaguaraSantillana, 13ª ed., Madrid, 1997, pp. 571 y ss.
58
Véase Franz Hinkelammert, Crítica a la razón utópica, DEI, San José, 1984, pp. 231 y ss.
330
Direito e Democracia
mente, pero estamos limitados por el número de hechos concretos que podemos observar59. Si no tuviéramos esta imposibilidad, los conceptos universales no harían falta. Es un hecho objetivo producido por la subjetividad humana el que aspiremos a
la totalidad pese a nuestros límites y, por tanto, que la realidad
nos trascienda en última instancia, mas no el pensamiento.
Asimismo, el sujeto puramente cognoscente no accede a la realidad empírica como tal, directamente, sino como sujeto actuante por el hecho de que antes interviene sobre ella con determinados fines, convirtiéndola en el objeto de conocimiento
de las ciencias empíricas. De estas actuaciones surgen los principios de imposibilidad. Con ellos se construyen las teorías generales de las ciencias empíricas. Es el ser humano como realizador, no como observador el que las determina. Y trasciende
también al sujeto cognoscente60.
Al encontrarse con límites en su actuación orientada por fines
que idealmente los traspasa, reflexiona en el ámbito de los fines
tecnológicamente posibles y utiliza tanto los conceptos trascendentales como los procesos tecnológicos infinitos para anticipar
la total realidad y transformarla en empiria.
Permanentemente hay un condicionante material de posibilidad para la elección de los fines. Todos los fines posibles poseen
condiciones materiales cuyo universo es el producto social de la
economía. Ningún proyecto puede realizarse si no es materialmente posible. El tamaño del producto social de los medios materiales marcará, por tanto, los límites de la elección. Para poder elegir sabemos que sólo puede hacerse en el marco de los
bienes escasos delimitados por el producto social. Y sólo si se
vive, se puede. La vida es una precondición para hacerlo, además de ser el modo de realidad del sujeto que abre el ámbito
desde donde se ponen los fines61.
Pues bien, para vivir es necesario satisfacer las necesidades humanas. Sólo de este modo se obtienen las condiciones que posi59
Ídem, pp. 233 y 234.
60
Ídem, p. 237.
61
Ver Enrique Dussel, Ética de la liberación en la era de la globalización, Trotta, Madrid, 1998, p. 262.
Direito e Democracia
331
bilitan la vida. Si no hay ser humano vivo y corporal, no habrá
noción concreta de la realidad ni proyecto o actuación consciente con los que, como tales, podamos existir en ella.
2. Por otra parte, y como segundo ejemplo, de la misma forma que
aspiramos a la totalidad de la realidad, elaboramos proyectos de
sociedades ideales, pensadas en función de una ordenación
adecuada de las relaciones humanas. La voluntad pura siempre
aspira a lo mejor, a lo perfecto. Construimos utopías con las que
elaboramos mundos futuros y abstractos mientras modificamos
la realidad social en función de ellos. Para llegar a ese nivel
armónico y sin fisuras para la convivencia humana, se modela la
sociedad perfecta según criterios derivados de algunas leyes sociales. A través de esos ideales articulamos los medios con los
fines para conseguir el máximo grado de absoluta perfección.
Sobre estos esquemas se ha construido el pensamiento de la
Ilustración y su idea de progreso infinito que tarde o temprano,
se dice, será beneficioso para todos. Paradójicamente a través
de esos imaginarios, que son imposibles de alcanzar en su plenitud real pero no pensada, podemos darnos cuenta del marco de
lo que sí es factible, porque todo posible existe en referencia a una
plenitud imposible, en relación a la cual es experimentado y argumentado el marco de lo posible62. El problema surge cuando
funcionalizamos nuestra realidad dentro de procesos de mala
infinitud por querer llegar a límites inalcanzables. En ese instante perdemos la verdadera noción de nuestras concretas posibilidades y reales condiciones de vida.
Incluso tanto el uso de los conceptos trascendentales en el primer
ejemplo, como de los imaginarios trascendentales en el segundo, que son
necesarios para enfrentarnos a la realidad, pueden llevarnos a graves peligros. Todo proceso de conocimiento es una empresa discriminadora,
aunque necesaria. También tiene una función de síntesis. Pero el pensamiento puede tener un poder corrosivo, pues además de revelar y ocultar
elementos de la realidad, la manipula y hasta la puede destruir63. La amenaza en los dos ejemplos vistos aparece cuando, en virtud de esas abstrac-
62
Franz Hinkelammert, Crítica... pp. 21 y 26-27.
63
Raimon Pannikar, La intuición... pp. 73, 78-79 y 90.
332
Direito e Democracia
ciones imposibles, sacrificamos y destruimos no sólo nuestra realidad, los
contextos en los que estamos situados, sino nuestras vidas, la de todos los
sujetos que le otorgan significado.
Retomando el argumento del primer ejemplo, nos encontramos cómo
la racionalidad formal de las ciencias cimentada en la visión instrumental de la razón weberiana, reduce el conocimiento científico a simples
juicios sobre la verdad y la falsedad, la eficiencia o la ineficiencia de la
articulación de los medios y los fines. Pretende darle una neutralidad
valórica al análisis de los hechos y, asimismo, edificar la ciencia por medio de una lógica formal y abstracta que no entra en consideraciones
materiales y de fondo. Este tipo de racionalidad, muy típica en el mundo
económico, si se totaliza tanto en el campo epistemológico como
metodológico niega la posibilidad de establecer otros juicios científicos
válidos que no se refieren exclusivamente a esa relación medio-fin. Tanto el actor que articula el vínculo entre los medios y los objetivos como los
sujetos afectados en sus posibilidades de vida, desaparecen sin que importe cómo queda su estado existencial64.
En este sentido, no es de extrañar que gran parte de la humanidad
quede excluida de la división social del trabajo y que la naturaleza se
esté deteriorando progresivamente porque no preocupa. El resultado de
los efectos indirectos de la propia racionalidad medio-fin absolutizada
por el mercado conduce al suicidio de todos por sus efectos perversos.
A pesar de todo, renunciar al conocimiento formal de las cosas es
imposible. El formalismo es el tipo de acercamiento con el que la razón y
la realidad se interconectan. Ahora bien, en el instante que olvidamos
que lo formal y abstracto está en nuestras estructuras mentales y creemos
que está en los objetos de la experiencia, perdemos la noción de la realidad junto a toda su complejidad y multidimensionalidad.
En cuanto a las idealizaciones, con la ilusión ciega de perseguir y
realizar lo ideal e imposible, desvirtuamos, sin darnos cuenta, la persecución y realización de lo que sí es realmente posible. La ilusión de poder
realizar sociedades perfectas es una ilusión trascendental que distorsiona el
realismo político65. Las mediaciones se absolutizan sobre los sujetos con-
64
Franz Hinkelammert, Cultura de la esperanza y sociedad sin exclusión, DEI, San José, 1995, pp. 275 y ss.
65
Franz Hinkelammert, Crítica a la... p. 25.
Direito e Democracia
333
cretos y sobre la naturaleza, aun en el caso de que la intención sea, a
través de la vía institucional (mercado, propiedad privada, nación, estado, libertad, igualdad...), la obtención de una armonía celestial entre
los seres humanos.
Por esto siempre es necesario articular lo posible y lo imposible en virtud del criterio de factibilidad, de la vida del sujeto inserto en un circuito natural con la naturaleza. Ignorar este dato provoca situaciones en las
que en función de construcciones perfectas, como sucede con los supuestos de conocimiento perfecto y con la velocidad infinita de reacción a
factores de producción que se expresan en términos de mercado o estado,
se olvida que son conceptos trascendentales a la luz de los cuales se puede actuar pero hacia los cuales no se puede progresar66. Hay que evitar la
absolutización de estas ilusiones para que no distorsionen la realidad y se
cosifique o se haga caso omiso de los sujetos.
Por tanto, en estos ejemplos de abstracción e idealización, nos encontramos con la eliminación de importantes parcelas de la realidad y, sobre
todo, de aquellas relacionadas con la vida humana, llegándose, incluso,
a consecuencias perversas y hasta destructivas, dentro de las cuales aparecen múltiples procesos de inversión ideológica.
En el marco de los derechos humanos sucede otra situación similar o
parecida. En las críticas al universalismo occidental y al particularismo
radical, ya se señaló tanto la abstracción que ambos hacían de determinados elementos como la amenaza de producir procesos destructivos contra el ser humano y/ la comunidad.
A título de ejemplo, fijándonos en algunas de las concepciones occidentales sobre los derechos humanos, como aquellas basadas en la naturaleza presocial del hombre y en el contrato fundacional ideal que se
establece en un plano del como si hipotético, se comprueba una alta carga de universalidad abstracta, sin raíces y ajenas a cualquier tipo de connotación particular e histórica.
Seyla Benhabib denomina como el otro generalizado al sujeto racional
con iguales derechos y deberes, pero sin historia, que se deduce de estas
teorías. Y contrapone el otro concreto que se refiere a la perspectiva que
sitúa a los sujetos racionales en sus identidades y especificidades, que se
66
Ídem.
334
Direito e Democracia
consideran diferentes y hacen valer sus circunstancias personales (mujeres, gays, pueblos indígenas...). Desde la primera perspectiva, no se incluyen las circunstancias del otro concreto, no siendo adecuadamente asumido el elemento de la diferencia en el proceso de formulación de derechos67.
Además, aquel imaginario universalista presupone una concepción
marcadamente individualista de los seres humanos que en su aparente
neutralidad y generalidad, representa a una determinada clase social (burguesía), protegiendo sus intereses frente a otros colectivos como el de los
trabajadores asalariados, que quedan en posiciones de desigualdad68.
En otro plano, el mismo Xabier Etxeberria se refiera a otros imaginarios
dentro de la concepción occidental, a los que denomina de la asimetría, y
los contrapone a los imaginarios de la simetría que son los mismos que se
basan en la igualdad formal y abstracta de todos los individuos. Son planteamientos que parten de la distinción entre lo hegemónico y lo
antihegemónico, de situaciones en las que unos oprimen y explotan a otros.
Desde esa particularidad universalizada de la exclusión, se denuncia la
desigualdad real que existe entre todos los seres humanos, destacando especialmente a las víctimas del sistema dominante, las mayorías populares
oprimidas y pobres69. De esa experiencia de la negación, de sus particularidades, de sus parcialidades, se intentan abrir otros procesos de universalización que se mueven por una lógica de inclusión de todos los sujetos corporales y necesitados y que rechaza cualquier tipo de marginación social70.
No parten de una universalidad previa, ya dada de antemano, sino de una
parcialidad, la de los pobres, la de las víctimas, que es el punto de inicio
para ir construyendo una noción de los derechos humanos que combine
simultáneamente su dimensión teórica y práctica71.
Para estar alerta de todos estos procesos de abstracción que amputan a
la realidad y a los seres humanos concretos, un universalismo de confluencia
debe dar cuenta de todas aquellas situaciones en las que se producen
estados de rechazo, de no reconocimiento y de marginación social. Por
67
Véase Seyla Benhabib, Situating the Self: Gender, Community and Postmodernism in contemporary Ethics, Routledge,
London, NY, 1992, p. 164; ver también Xabier Etxeberria, op. cit. pp. 94-97.
68
Xabier Etexebarria, cit., p. 95.
69
Ídem, pp. 97-99.
70
Sobre los planteamientos de la teología y la filosofía de la liberación, ver David Sánchez Rubio, op. cit.
71
Véase Jon Sobrino, «Los derechos humanos y los pueblos oprimidos. Reflexiones histórico-teológicas», en Los
derechos humanos en un mundo dividido, Universidad de Deusto, Bilbao, 1999.
Direito e Democracia
335
ello, debe ser consciente de sus límites y siempre tiene que estar en un
permanente estado de vigilancia para evitar incurrir en esa lógica de
cierre y blindaje que detiene el impulso de la emancipación humana.
Cuando en cualquier tradición o cultura aparecen focos de resistencia
que luchan por superar los límites establecidos por las instituciones y las
mediaciones que estructuran un sistema u orden social concreto, y se
trata de superar los obstáculos que impiden tanto desarrollar las capacidades humanas como disfrutarlas, se están dando elementos que contribuyen al desarrollo universal de la idea de dignidad humana.
Finalmente, si recordamos la definición de los derechos humanos entendidos como sistemas de objetos (valores, normas, instituciones) y sistema
de acciones (prácticas sociales) que posibilitan la apertura y la consolidación
de espacios de lucha por la dignidad humana72, cada vez que en cualquier
contexto cultural se articulen e institucionalicen determinadas reivindicaciones sociales y aparezcan distintos procesos de lucha con particulares
concepciones acerca de la dignidad, teniendo en cuenta las condiciones
que posibilitan la existencia de los sujetos participantes y afectados, se
están cimentando las bases para establecer ámbitos de juntura con los
que contribuir en la construcción dinámica y constante de la idea de
universalidad.
Por esta razón, en este marco es en el que hay que situar el fenómeno
de la inmigracion, porque con ella se están reivindicando concretas posibilidades de vida más dignas, a pesar de estar limitadas por un sistema
socioeconómico que funciona en un sentido contrario a la aceptación de
los inmigrantes como sujetos corporales, vivos, actuantes y constructores
de realidades humanas distintas y variadas.
72
Ver Joaquín Herrera, «Hacia una visión compleja...», cit.
336
Direito e Democracia
Documento Histórico
Prevenção contra a Discriminação e Proteção das Minorias
Convenção Internacional sobre a
eliminação de todas as formas de
discriminação racial (1968)*
Os Estados-partes na presente Convenção,
Considerando que a Carta das Nações Unidas baseia-se em princípios
de dignidade e igualdade inerentes a todos os seres humanos, e que todos
os Estados-membros comprometem-se a tomar medidas separadas e conjuntas, em cooperação com a Organização, para a consecução de um dos
propósitos das Nações Unidas, que é promover e encorajar o respeito universal e a observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem discriminação de raça, sexo, idioma ou religião,
Considerando que a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos e que toda pessoa pode invocar todos os direitos estabelecidos
nessa Declaração, sem distinção alguma, e principalmente de raça, cor
ou origem nacional,
Considerando que todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação e contra qualquer incitamento à discriminação,
Considerando que as Nações Unidas têm condenado o colonialismo e
todas as práticas de segregação e discriminação a ele associadas, em qualquer forma e onde quer que existam, e que a Declaração sobre a Outorga
*
Adotada pela Resolução 2.106-A (XX) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 21.12.1965 - ratificada pelo
Brasil em 27.03.1968
Direito e Democracia
Canoas
n.2
Direito e vol.1,
Democracia
2º sem. 2000
p.337-353337
da Independência aos Países e Povos Coloniais de 14 de dezembro de
1960 (Resolução 1514 (XV) da Assembléia Geral) afirmou e proclamou
solenemente a necessidade de levá-las a um fim rápido e incondicional,
Considerando que a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 20 de dezembro de
1963 (Resolução 1.904 (XVIII) da Assembléia Geral) afirma solenemente a necessidade de eliminar rapidamente a discriminação racial no mundo, em todas as suas formas e manifestações, e de assegurar a compreensão e o respeito à dignidade da pessoa humana,
Convencidos de que a doutrina da superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente
injusta e perigosa, e que não existe justificação para a discriminação racial, em teoria ou na prática, em lugar algum,
Reafirmando que a discriminação entre as pessoas por motivo de raça,
cor ou origem étnica é um obstáculo às relações amistosas e pacíficas
entre as nações e é capaz de perturbar a paz e a segurança entre os povos
e a harmonia de pessoas vivendo lado a lado, até dentro de um mesmo
Estado,
Convencidos de que a existência de barreiras raciais repugna os ideais
de qualquer sociedade humana,
Alarmados por manifestações de discriminação racial ainda em evidência em algumas áreas do mundo e por políticas governamentais baseadas em superioridade racial ou ódio, como as políticas de apartheid, segregação ou separação,
Resolvidos a adotar todas as medidas necessárias para eliminar rapidamente a discriminação racial em todas as suas formas e manifestações,
e a prevenir e combater doutrinas e práticas racistas e construir uma
comunidade internacional livre de todas as formas de segregação racial e
discriminação racial,
Levando em conta a Convenção sobre a Discriminação no Emprego e
Ocupação, adotada pela Organização Internacional do Trabalho de 1958,
e a Convenção contra a Discriminação no Ensino, adotada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, em
1960,
338
Direito e Democracia
Desejosos de completar os princípios estabelecidos na Declaração das
Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
Racial e assegurar o mais cedo possível a adoção de medidas práticas para
esse fim,
Acordam o seguinte:
Parte I
Artigo 1º - Para os fins da presente Convenção, a expressão “discriminação
racial” significará toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade
de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos
campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro
campo da vida pública.
2. Esta Convenção não se aplicará às distinções, exclusões, restrições
e preferências feitas por um Estado-parte entre cidadãos e não cidadãos.
3. Nada nesta Convenção poderá ser interpretado como afetando as
disposições legais dos Estados-partes, relativas à nacionalidade, cidadania e naturalização, desde que tais disposições não discriminem contra qualquer nacionalidade particular.
4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais
tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado
de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais
grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e
liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para
diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.
Artigo 2º - Os Estados-partes condenam a discriminação racial e comprometem-se a adotar, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma
política destinada a eliminar a discriminação racial em todas as
Direito e Democracia
339
suas formas e a encorajar a promoção de entendimento entre todas
as raças, e para este fim:
a) Cada Estado-parte compromete-se a abster-se de incorrer em todo
ato ou prática de discriminação racial contra pessoas, grupos de
pessoas ou instituições e zelar para que as autoridades públicas
nacionais ou locais atuem em conformidade com esta obrigação;
b) Cada Estado-parte compromete-se a não encorajar, defender ou
apoiar a discriminação racial praticada por uma pessoa ou uma organização qualquer;
c) Cada Estado-parte deverá tomar as medidas eficazes, a fim de rever as políticas governamentais nacionais e locais e modificar, abrogar
ou anular qualquer disposição regulamentar que tenha como objetivo criar a discriminação ou perpetuá-la onde já existir;
d) Cada Estado-parte deverá tomar todas as medidas apropriadas, inclusive, se as circunstâncias o exigirem, medidas de natureza
legislativa, para proibir e pôr fim à discriminação racial praticada
por quaisquer pessoas, grupo ou organização;
e) Cada Estado-parte compromete-se a favorecer, quando for o caso,
as organizações e movimentos multiraciais, bem como outros meios
próprios para eliminar as barreiras entre as raças e a desencorajar o
que tenda a fortalecer a divisão racial.
2. Os Estados-partes tomarão, se as circunstâncias o exigirem, nos
campos social, econômico, cultural e outros, medidas especiais e
concretas para assegurar, como convier, o desenvolvimento ou a
proteção de certos grupos raciais ou de indivíduos pertencentes a
esses grupos, com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Essas medidas não deverão, em caso algum, ter a finalidade de manter direitos desiguais ou distintos para os diversos grupos raciais, depois de alcançados os objetivos, em razão dos quais
foram tomadas.
Artigo 3º - Os Estados-partes condenam a segregação racial e o apartheid e
comprometem-se a proibir e a eliminar nos territórios sob a sua
jurisdição todas as práticas dessa natureza.
340
Direito e Democracia
Artigo 4º - Os Estados-partes condenam toda propaganda e todas as organizações que se inspirem em idéias ou teorias baseadas na superioridade de uma raça ou de um grupo de pessoas de uma certa cor ou de
uma certa origem étnica ou que pretendam justificar ou encorajar
qualquer forma de ódio e de discriminação raciais, e comprometem-se a adotar imediatamente medidas positivas destinadas a eliminar qualquer incitação a uma tal discriminação, ou quaisquer
atos de discriminação com este objetivo, tendo em vista os princípios formulados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e
os direitos expressamente enunciados no artigo V da presente Convenção, inter alia:
a) a declarar como delitos puníveis por lei, qualquer difusão de idéias
baseadas na superioridade ou ódio raciais, qualquer incitamento à
discriminação racial, assim como quaisquer atos de violência ou
provocação a tais atos, dirigidos contra qualquer raça ou qualquer
grupo de pessoas de outra cor ou de outra origem étnica, como
também qualquer assistência prestada a atividades racistas, inclusive seu financiamento;
b) a declarar ilegais e a proibir as organizações, assim como as atividades de propaganda organizada e qualquer outro tipo de atividade
de propaganda que incitarem à discriminação racial e que a encorajarem e a declarar delito punível por lei a participação nestas
organizações ou nestas atividades;
c) a não permitir às autoridades públicas nem às instituições públicas,
nacionais ou locais, o incitamento ou encorajamento à discriminação racial.
Artigo 5º - Em conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no
artigo 2, os Estados-partes comprometem-se a proibir e a eliminar a
discriminação racial em todas as suas formas e a garantir o direito
de cada um à igualdade perante a lei, sem distinção de raça, de
cor ou de origem nacional ou étnica, principalmente no gozo dos
seguintes direitos:
a) direito a um tratamento igual perante os tribunais ou qualquer
órgão que administre a justiça;
b) direito à segurança da pessoa ou à proteção do Estado contra vio-
Direito e Democracia
341
lência ou lesão corporal cometida, quer por funcionários de Governo, quer por qualquer indivíduo, grupo ou instituição;
c) direitos políticos, particularmente direitos de participar nas eleições - de votar e ser votado - conforme o sistema de sufrágio universal e igual, de tomar parte no Governo, assim como na direção
dos assuntos públicos a qualquer nível, e de acesso em igualdade
de condições às funções públicas;
d) outros direitos civis, particularmente:
i)
ii)
iii)
iv)
v)
vi)
vii)
viii)
ix)
direito de circular livremente e de escolher residência dentro das fronteiras do Estado;
direito de deixar qualquer país, inclusive o seu, e de voltar
ao seu país;
direito a uma nacionalidade;
direito de casar-se e escolher o cônjuge;
direito de qualquer pessoa, tanto individualmente como
em conjunto, à propriedade;
direito de herdar;
direito à liberdade de pensamento, de consciência e de
religião;
direito à liberdade de opinião e de expressão;
direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas;
e) direitos econômicos, sociais e culturais, principalmente:
i)
direitos ao trabalho, à livre escolha de trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho, à proteção contra o desemprego, a um salário igual para um trabalho igual,
a uma remuneração equitativa e satisfatória;
ii) direito de fundar sindicatos e a eles se afiliar;
iii) direito à habitação;
iv) direitos à saúde pública, a tratamento médico, à previdência social e aos serviços sociais;
v) direito à educação e à formação profissional;
vi) direito à igual participação nas atividades culturais;
342
Direito e Democracia
f) direito de acesso a todos os lugares e serviços destinados ao uso do
público, tais como meios de transporte, hotéis, restaurantes, cafés,
espetáculos e parques.
Artigo 6º - Os Estados-partes assegurarão, a qualquer pessoa que estiver sob
sua jurisdição, proteção e recursos eficazes perante os tribunais nacionais e outros órgãos do Estado competentes, contra quaisquer
atos de discriminação racial que, contrariamente à presente Convenção, violarem seus direitos individuais e suas liberdades fundamentais, assim como o direito de pedir a esses tribunais uma satisfação ou reparação justa e adequada por qualquer dano de que foi
vítima, em decorrência de tal discriminação.
Artigo 7º - Os Estados-partes comprometem-se a tomar as medidas imediatas
e eficazes, principalmente no campo do ensino, educação, cultura,
e informação, para lutar contra os preconceitos que levem à discriminação racial e para promover o entendimento, a tolerância e a
amizade entre nações e grupos raciais e étnicos, assim como para
propagar os propósitos e os princípios da Carta das Nações Unidas,
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Declaração
das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e da presente Convenção.
Parte II
Artigo 8º - 1. Será estabelecido um Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial (doravante denominado “Comitê”), composto de dezoito peritos de grande prestígio moral e reconhecida imparcialidade,
que serão eleitos pelos Estados-partes dentre os seus nacionais e
que exercerão suas funções a título pessoal, levando-se em conta
uma distribuição geográfica equitativa e a representação das formas diversas de civilização, assim como dos principais sistemas jurídicos.
2. Os membros do Comitê serão eleitos em votação secreta dentre
uma lista de pessoas indicadas pelos Estados-partes. Cada Estadoparte pode indicar uma pessoa dentre os seus nacionais.
Direito e Democracia
343
3. A primeira eleição se realizará seis meses após a data da entrada
em vigor da presente Convenção. Ao menos três meses antes da
data de cada eleição, o Secretário Geral da Organização das Nações Unidas enviará uma carta aos Estados-partes para convidá-los
a apresentar suas candidaturas no prazo de dois meses. O Secretário Geral da Organização das Nações Unidas organizará uma lista,
por ordem alfabética, de todos os candidatos assim designados, com
indicações dos Estados-partes que os tiverem designado, e a comunicará aos Estados-partes.
4. Os membros do Comitê serão eleitos durante uma reunião dos Estados-partes convocada pelo Secretário Geral das Nações Unidas.
Nesta reunião, na qual o quorum será estabelecido por dois terços
dos Estados-partes, serão eleitos membros do Comitê os candidatos
que obtiverem o maior número de votos e a maioria absoluta dos
votos dos representantes dos Estados-partes presentes e votantes.
5. a) Os membros do Comitê serão eleitos para um mandato de quatro
anos. Entretanto, o mandato de nove dos membros eleitos na primeira eleição expirará ao final de dois anos; imediatamente após a
primeira eleição, os nomes desses nove membros serão escolhidos,
por sorteio, pelo Presidente do Comitê.
b) Para preencher as vagas fortuitas, o Estado-parte cujo perito tenha
deixado de exercer suas funções de membro do Comitê nomeará
outro perito entre seus nacionais, sob reserva da aprovação do Comitê.
6. Os Estados-partes serão responsáveis pelas despesas dos membros
do Comitê para o período em que estes desempenharem funções no
Comitê.
Artigo 9º - 1. Os Estados-partes comprometem-se a submeter ao Secretário
Geral das Nações Unidas, para exame do Comitê, um relatório sobre as medidas legislativas, judiciárias, administrativas ou outras
que adotarem para tornarem efetivas as disposições desta Convenção:
a) no prazo de um ano, a partir da entrada em vigor da Convenção,
para o Estado interessado; e
344
Direito e Democracia
b) posteriormente, pelo menos a cada quatro anos e toda vez que o
Comitê vier a solicitar.
O Comitê poderá solicitar informações complementares aos Estados-partes.
2. O Comitê submeterá anualmente à Assembléia Geral um relatório
sobre suas atividades e poderá fazer sugestões e recomendações de
ordem geral baseadas no exame dos relatórios e das informações
recebidas dos Estados-partes. Levará estas sugestões e recomendações de ordem geral ao conhecimento da Assembléia Geral e, se as
houver, juntamente com as observações dos Estados-partes.
Artigo 10 - O Comitê adotará seu próprio regulamento interno.
2. O Comitê elegerá sua Mesa para um período de dois anos.
3. O Secretário Geral das Nações Unidas fornecerá os serviços de
Secretaria ao Comitê.
4. O Comitê reunir-se-á normalmente na sede das Nações Unidas.
Artigo 11 - Se um Estado-parte considerar que outro Estado-parte não vem
cumprindo as disposições da presente Convenção poderá chamar a
atenção do Comitê sobre a questão. O Comitê transmitirá, então, a
comunicação ao Estado-parte interessado. Em um prazo de três
meses, o Estado destinatário submeterá ao Comitê as explicações
ou declarações por escrito, a fim de esclarecer a questão e indicar
as medidas corretivas que por acaso tenham sido tomadas pelo referido Estado.
2. Se, dentro do prazo de seis meses, a contar da data do recebimento
da comunicação original pelo Estado destinatário, a questão não
estiver dirimida satisfatoriamente para ambos os Estados-partes interessados, por meio de negociações bilaterais ou por qualquer outro processo que estiver a sua disposição, tanto um como o outro
terão o direito de submetê-la ao Comitê, mediante notificação
endereçada ao Comitê ou ao outro Estado interessado.
3. O Comitê só poderá tomar conhecimento de uma questão, de
acordo com o parágrafo 2º do presente artigo, após ter assegurado
que todos os recursos internos disponíveis tenham sido utilizados
Direito e Democracia
345
e esgotados, em conformidade com os princípios do Direito Internacional geralmente reconhecidos. Não se aplicará essa regra
quando a aplicação dos mencionados recursos exceder prazos razoáveis.
4. Em qualquer questão que lhe for submetida, o Comitê poderá solicitar aos Estados-partes presentes que lhe forneçam quaisquer informações complementares pertinentes.
5. Quando o Comitê examinar uma questão conforme o presente artigo, os Estados-partes interessados terão o direito de nomear um
representante que participará sem direito de voto dos trabalhos no
Comitê durante todos os debates.
Artigo 12 - 1. a) Depois que o Comitê obtiver e consultar as informações que
julgar necessárias, o Presidente nomeará uma Comissão de Conciliação ad hoc (doravante denominada “Comissão”), composta
de 5 pessoas que poderão ou não ser membros do Comitê. Os
membros serão nomeados com o consentimento pleno e unânime
das partes na controvérsia e a Comissão porá seus bons ofícios à
disposição dos Estados presentes, com o objetivo de chegar a uma
solução amigável da questão, baseada no respeito à presente Convenção.
b) Se os Estados-partes na controvérsia não chegarem a um entendimento em relação a toda ou parte da composição da Comissão, em
um prazo de três meses, os membros da Comissão que não tiverem o
assentimento dos Estados-partes na controvérsia serão eleitos por
escrutínio secreto, dentre os próprios membros do Comitê, por maioria de dois terços.
2. Os membros da Comissão atuarão a título individual. Não deverão
ser nacionais de um dos Estados-partes na controvérsia nem de um
Estado que não seja parte na presente Convenção.
3. A Comissão elegerá seu Presidente e adotará seu regulamento interno.
4. A Comissão reunir-se-á normalmente na Sede das Nações Unidas
ou em qualquer outro lugar apropriado que a Comissão determinar.
346
Direito e Democracia
5. O secretariado, previsto no parágrafo 3º do artigo 10, prestará igualmente seus serviços à Comissão cada vez que uma controvérsia
entre os Estados-partes provocar sua formação.
6. Todas as despesas dos membros da Comissão serão divididas igualmente entre os Estados-partes na controvérsia, com base em um
cálculo estimativo feito pelo Secretário Geral.
7. O Secretário Geral ficará autorizado a pagar, se for necessário, as
despesas dos membros da Comissão, antes que o reembolso seja
efetuado pelos Estados-partes na controvérsia, de conformidade com
o parágrafo 6º do presente artigo.
8. As informações obtidas e confrontadas pelo Comitê serão postas à
disposição da Comissão, que poderá solicitar aos Estados interessados que lhe forneçam qualquer informação complementar pertinente.
Artigo 13 - 1. Após haver estudado a questão sob todos os seus aspectos, a
Comissão preparará e submeterá ao Presidente do Comitê um relatório com as conclusões sobre todas as questões de fato relativas à
controvérsia entre as partes e as recomendações que julgar oportunas, a fim de chegar a uma solução amistosa da controvérsia.
2. O Presidente do Comitê transmitirá o relatório da Comissão a cada
um dos Estados-partes na controvérsia. Os referidos Estados comunicarão ao Presidente do Comitê, em um prazo de três meses, se
aceitam ou não as recomendações contidas no relatório da Comissão.
3. Expirado o prazo previsto no parágrafo 2º do presente artigo, o Presidente do Comitê apresentará o Relatório da Comissão e as declarações dos Estados-partes interessados aos outros Estados-partes
nesta Convenção.
Artigo 14 - Todo Estado-parte na presente Convenção poderá declarar, a qualquer momento, que reconhece a competência do Comitê para receber e examinar as comunicações enviadas por indivíduos ou grupos de indivíduos sob sua jurisdição, que aleguem ser vítimas de
violação, por um Estado-parte, de qualquer um dos direitos enun-
Direito e Democracia
347
ciados na presente Convenção. O Comitê não receberá comunicação alguma relativa a um Estado-parte que não houver feito declaração dessa natureza.
2. Qualquer Estado-parte que fizer uma declaração de conformidade
com o parágrafo 1º do presente artigo, poderá criar ou designar um
órgão dentro de sua ordem jurídica nacional, que terá a competência para receber e examinar as petições de pessoas ou grupos de
pessoas sob sua jurisdição, que alegarem ser vítimas de uma violação de qualquer um dos direitos enunciados na presente Convenção e que esgotaram os outros recursos locais disponíveis.
3. A declaração feita de conformidade com o parágrafo 1º do presente artigo e o nome de qualquer órgão criado ou designado pelo
Estado-parte interessado, consoante o parágrafo 2º do presente artigo, serão depositados pelo Estado-parte interessado junto ao Secretário Geral das Nações Unidas, que remeterá cópias aos outros
Estados-partes. A declaração poderá ser retirada a qualquer momento, mediante notificação ao Secretário Geral das Nações Unidas, mas esta retirada não prejudicará as comunicações que já estiverem sendo estudadas pelo Comitê.
4. O órgão criado ou designado de conformidade com o parágrafo 2º
do presente artigo, deverá manter um registro de petições, e cópias
autenticadas do registro serão depositadas anualmente por canais
apropriados junto ao Secretário Geral das Nações Unidas, no entendimento de que o conteúdo dessas cópias não será divulgado ao
público.
5. Se não obtiver reparação satisfatória do órgão criado ou designado
de conformidade com o parágrafo 2º do presente artigo, o peticionário terá o direito de levar a questão ao Comitê, dentro de seis
meses.
6. a) O Comitê levará, a título confidencial, qualquer comunicação que
lhe tenha sido endereçada, ao conhecimento do Estado-parte que
supostamente houver violado qualquer das disposições desta Convenção, mas a identidade da pessoa ou dos grupos de pessoas não
poderá ser revelada sem o consentimento expresso da referida pessoa ou grupos de pessoas. O Comitê não receberá comunicações
anônimas.
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Direito e Democracia
b) Dentro dos três meses seguintes, o Estado destinatário submeterá
ao Comitê as explicações ou declarações por escrito que elucidem
a questão e, se for o caso, indiquem o recurso jurídico adotado pelo
Estado em questão.
7.a) O Comitê examinará as comunicações recebidas em conformidade
com o presente artigo à luz de todas as informações a ele submetidas pelo Estado interessado e pelo peticionário. O Comitê só examinará uma comunicação de um peticionário após ter-se assegurado de que este esgotou todos os recursos internos disponíveis. Entretanto, esta regra não se aplicará se os processos de recurso excederem prazos razoáveis.
b) O Comitê comunicará suas sugestões e recomendações eventuais
ao Estado-parte e ao peticionário em questão.
8. O Comitê incluirá em seu relatório anual um resumo destas comunicações e, se for necessário, um resumo das explicações e declarações dos Estados-partes interessados, assim como suas próprias sugestões e recomendações.
9. O Comitê somente terá competência para exercer as funções previstas neste artigo se pelo menos dez Estados-partes nesta Convenção estiverem obrigados, por declarações feitas de conformidade
com o parágrafo 1º deste artigo.
Artigo 15 - 1. Enquanto não forem atingidos os objetivos da Resolução 1.514
(XV) da Assembléia Geral de 14 de dezembro de 1960, relativa à
Declaração sobre a Outorga de Independência aos Países e Povos
Coloniais, as disposições da presente Convenção não restringirão
de maneira alguma o direito de petição concedido aos povos por
outros instrumentos internacionais ou pela Organização das Nações Unidas e suas agências especializadas.
2. a) O Comitê, constituído de conformidade com o parágrafo 1 do
artigo VIII desta Convenção, receberá cópia das petições provenientes dos órgãos das Nações Unidas que se encarregarem
de questões diretamente relacionadas com os princípios e objetivos da presente Convenção e expressará sua opinião e formulará recomendações sobre essas petições, quando examinar as
petições dos habitantes dos territórios sob tutela ou sem gover-
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349
no próprio ou de qualquer outro território a que se aplicar a
Resolução 1.514 (XV) da Assembléia Geral, relacionadas a questões tratadas pela presente Convenção e que forem submetidas
a esses órgãos.
b) O Comitê receberá dos órgãos competentes da Organização das
Nações Unidas cópia dos relatórios sobre medidas de ordem
legislativa, judiciária, administrativa ou outras diretamente relacionadas com os princípios e objetivos da presente Convenção que as
Potências Administradoras tiverem aplicado nos territórios mencionados na alínea “a” do presente parágrafo e expressará sua opinião
e fará recomendações a esses órgãos.
3. O Comitê incluirá em seu relatório à Assembléia Geral um resumo
das petições e relatórios que houver recebido de órgãos das Nações
Unidas e as opiniões e recomendações que houver proferido sobre
tais petições e relatórios.
4. O Comitê solicitará ao Secretário Geral das Nações Unidas qualquer informação relacionada com os objetivos da presente Convenção, de que este dispuser, sobre os territórios mencionados no
parágrafo 2º (a) do presente artigo.
Artigo 16 - As disposições desta Convenção, relativas à solução das controvérsias ou queixas, serão aplicadas sem prejuízo de outros processos para
a solução de controvérsias e queixas no campo da discriminação,
previstos nos instrumentos constitutivos das Nações Unidas e suas
agências especializadas, e não excluirão a possibilidade dos Estados-partes recorrerem a outros procedimentos para a solução de
uma controvérsia, de conformidade com os acordos internacionais
ou especiais que os ligarem.
Parte III
Artigo 17 - 1. A presente Convenção estará aberta à assinatura de todos os
Estados-membros da Organização das Nações Unidas ou membros de qualquer uma de suas agências especializadas, de qualquer Estado-parte no Estatuto da Corte Internacional de Justi-
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Direito e Democracia
ça, assim como de qualquer outro Estado convidado pela Assembléia Geral das Nações Unidas a tornar-se parte na presente
Convenção.
2. Esta Convenção está sujeita à ratificação. Os instrumentos de ratificação serão depositados junto ao Secretário Geral da Organização das Nações Unidas.
Artigo 18 - Esta Convenção está aberta à adesão de todos os Estados mencionados no parágrafo 1º do artigo XVII.
2. Far-se-á a adesão mediante depósito do instrumento de adesão junto
ao Secretário Geral das Nações Unidas.
Artigo 19 - 1. A presente Convenção entrará em vigor no trigésimo dia a contar
da data em que o vigésimo sétimo instrumento de ratificação ou
adesão houver sido depositado junto ao Secretário Geral das Nações Unidas.
2. Para os Estados que vierem a ratificar a presente Convenção ou a
ela aderir após o depósito do vigésimo sétimo instrumento de ratificação ou adesão, a Convenção entrará em vigor no trigésimo dia a
contar da data em que o Estado em questão houver depositado seu
instrumento de ratificação ou adesão.
Artigo 20 - 1. O Secretário Geral das Nações Unidas receberá e enviará, a
todos os Estados que forem ou vierem a tornar-se partes nesta Convenção, as reservas feitas pelos Estados no momento da ratificação
ou adesão. Qualquer Estado que objetar a essas reservas, deverá
notificar ao Secretário Geral, dentro de noventa dias da data da
referida comunicação, que não as aceita.
2. Não será permitido reserva incompatível com o objeto e o propósito desta Convenção, nem reserva cujo efeito seja o de impedir
o funcionamento de qualquer dos órgãos previstos nesta Convenção. Uma reserva será considerada incompatível ou
impeditiva se a ela objetarem ao menos dois terços dos Estadospartes nesta Convenção.
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351
3. As reservas poderão ser retiradas a qualquer momento por uma
notificação endereçada com esse objetivo ao Secretário Geral das
Nações Unidas. A notificação surtirá efeito na data de seu recebimento.
Artigo 21 - Todo Estado-parte poderá denunciar a presente Convenção mediante notificação por escrito endereçada ao Secretário Geral das
Nações Unidas. A denúncia produzirá efeitos um ano depois da
data do recebimento da notificação pelo Secretário Geral.
Artigo 22 - As controvérsias entre dois ou mais Estados-partes, com relação à
interpretação ou aplicação da presente Convenção que não puderem ser dirimidas por meio de negociação ou pelos processos previstos expressamente nesta Convenção, serão, a pedido de um deles,
submetidas à decisão da Corte Internacional de Justiça, a não ser
que os litigantes concordem com outro meio de solução.
Artigo 23 - 1. Qualquer Estado-parte poderá, em qualquer momento, formular
pedido de revisão desta Convenção, mediante notificação escrita
dirigida ao Secretário Geral da Organização das Nações Unidas.
2. A Assembléia Geral das Nações Unidas decidirá sobre as medidas
a serem tomadas, se for o caso, com respeito a este pedido.
Artigo 24 - O Secretário Geral da Organização das Nações Unidas comunicará
a todos os Estados mencionados no parágrafo 1º do artigo XVII
desta Convenção:
a) As assinaturas, ratificações e adesões recebidas em conformidade
com os artigos 17 e 18;
b) A data da entrada em vigor da Convenção, nos termos do artigo
19;
c) As comunicações e declarações recebidas em conformidade com
os artigos 19, 20, 23;
d) As denúncias recebidas em conformidade com o artigo 21.
352
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Artigo 25 - 1. A presente Convenção, cujos textos em árabe, chinês, espanhol,
francês, inglês e russo são igualmente autênticos, será depositada
junto ao Secretário Geral das Nações Unidas.
2. O Secretário Geral da Organização das Nações Unidas encaminhará cópias autenticadas da presente Convenção a todos os Estados.
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Normas Editoriais
I. APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS
1. Os artigos devem ser apresentados em disquete, preferencialmente em Windows Word 6.0 ou superior, acompanhados de
uma cópia impressa.
2. O texto dos artigos deverá ter de 10 a 20 laudas, em média.
3. Um resumo de seis a dez linhas, em língua inglesa e em língua
portuguesa, deverá introduzir o artigo, juntamente com palavras-chave indicativas de seu conteúdo.
4. A apresentação do artigo deverá conter: identificação, com título; subtítulo ( se houver); nome do(s) autor(es); maior
titulação acadêmica ou outra, cargo atual e instituição onde
exerce as funções; telefone e endereço; e-mail, se for o caso.
5. As citações, referências bibliográficas e notas de rodapé deverão seguir, obrigatoriamente, as normas da ABNT. As citações,
no texto, deverão ser feitas em língua portuguesa, reservandose as citações em língua estrangeira para as notas de rodapé, se
for o caso. Excepcionalmente, a critério do Conselho Editorial e
dos editores, serão aceitos artigos em espanhol ou citações, no
texto, nesta língua, por ser ela comum aos países do Mercosul.
6. Artigos em outra língua estrangeira poderão ser aceitos, a juízo
do Conselho Editorial e dos editores, se o autor for estrangeiro e
sua contribuição de indiscutível valor científico.
Direito e Democracia
Canoas
n.2
Direito e vol.1,
Democracia
2º sem. 2000
p.355-356355
II. PUBLICAÇÃO
1. Os trabalhos remetidos para publicação serão submetidos à apreciação do Conselho Editorial ou de outros consultores por este
designados, de acordo com as especificidades do tema.
2. O Conselho Editorial não se responsabiliza pela devolução dos
originais.
3. Havendo necessidade de alteração quanto ao conteúdo do texto, será sugerido ao autor que as faça, para posterior publicação.
Adeqüação lingüística e copidescagem ficam a cargo dos editores, ressalvada a alteração de conteúdo.
4. Os autores, cujos trabalhos forem publicados, receberão dois
exemplares da Revista.
5. Os trabalhos devem ser encaminhados para:
Prof. Dr. Plauto Faraco de Azevedo, Editor
Revista Direito e Democracia
Universidade Luterana do Brasil
Curso de Direito
Rua Miguel Tostes, 101 - Prédio 1, sala 29
92420-280 - Canoas/RS - Brasil
Impresso na Gráfica da ULBRA
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